Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
774/16.7T8OLH.E1
Relator: ISABEL PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
Data do Acordão: 01/25/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - A recente intervenção legislativa em sede de CIRE, aditando o n.º 7 ao art. 233.º do CIRE, determina que, ainda que existam bens ou direitos a liquidar, deve declarar-se o encerramento do processo de insolvência aquando da prolação do despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante.
2 - O que, no entanto, determina unicamente o início do período de cessão do rendimento disponível.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: ACÓRDÃO

Acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrente: Ministério Público

Recorridos / Insolventes: (…) e (…)

O presente processo consiste em processo de insolvência no âmbito do qual os devedores (…) e (…) foram declarados insolventes.


II – O Objeto do Recurso

Tendo sido proferido despacho inicial no incidente de exoneração do passivo restante, foi consignado existir ativo a liquidar, seguindo-se despacho por via do qual se declarou encerrado o processo de insolvência conforme segue:
«I) declaro encerrado o processo de insolvência, nos termos do previsto no art. 230.º, n.º 1, al. e), do CIRE, sem prejuízo do prosseguimento do apenso de reclamação de créditos e do apenso respeitante à liquidação do ativo;
II) não existindo motivos, de acordo com o relatório apresentado pelo Sr. Administrador da Insolvência, para considerar que a insolvência é culposa, declara-se que a mesma é fortuita – art. 233.º, n.º 6, do CIRE;

III) declaro produzidos os efeitos previstos no art. 233.º, do CIRE, exceto os que forem incompatíveis com o deferimento liminar da exoneração do passivo acima decidido e ainda com o referido em I.»

Inconformado, o Ministério Público apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da sentença recorrida, a substituir por outra que ordene o prosseguimento dos autos para realização da liquidação e rateio final. Conclui a sua alegação de recurso nos seguintes termos:
«1. O Mmo. Juiz a quo, após a prolação do despacho liminar de admissão do pedido de exoneração do passivo restante, decidiu declarar encerrado o processo de insolvência, nos termos do previsto no art.º 230º n.º 1, al. e) do CIRE, sem prejuízo do prosseguimento da liquidação, declarando produzidos os efeitos previstos no art.º 233 do CIRE, excepto os que forem incompatíveis com o deferimento liminar da exoneração.
2. A única questão a decidir nos presentes autos consiste em saber se uma vez proferido o despacho inicial de exoneração do passivo restante, e perante a existência de activo a liquidar, podia ter sido ordenado o encerramento do processo, estritamente para o efeito do início do período de cessão.
3. O corpo do n.º 1 do art.º 230º do CIRE delimita o seu campo de aplicação, restringindo-se aos factos determinantes do encerramento do processo de insolvência que se verificam na hipótese de ele prosseguir após a declaração de insolvência.
4. Quando o processo prossiga as causas do seu encerramento constam das alíneas do n.º 1, merecendo especial relevo para a decisão do presente recurso as alíneas a) e e), esta introduzida pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril.
5. Prosseguindo o processo após a declaração de insolvência, o encerramento só deverá ser determinado depois de realizada a liquidação e o rateio final, ressalvando-se apenas a situação prevista no art.º 239º, n.º 6, do CIRE.
6. Só se procede ao rateio final e distribuição do respectivo produto pelos credores após a liquidação dos bens que integram a massa insolvente, donde para que esta possa ser feita deve estar pendente a instância insolvencial.
7. Tendo sido requerida a exoneração do passivo restante, duas situações podem ocorrer: ou há património que deve ser liquidado na pendência do processo ou não há e, então, o processo pode e deve ser encerrado no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante.
8. O que resulta da alínea e) do n.º 1 do art.º 230º é que o prosseguimento do incidente de exoneração do passivo restante não obsta ao encerramento do processo de insolvência de que pende, e se à data do despacho inicial já existirem elementos que revelem a inexistência de bens, deve o tribunal declarar o encerramento.
9. Se a liquidação ainda não tiver sido iniciada ou concluída, não há fundamento para a aplicação da alínea e) do art.º 230º do CIRE, aplicando-se o regime regra previsto na alínea a) do mesmo preceito legal.
10. Não faz qualquer sentido, uma declaração de encerramento do processo, com a inevitável cessação das atribuições do administrador da insolvência, quando ainda não foi levada a cabo a primordial função do mesmo, erigida pelo legislador a finalidade do processo de insolvência, a liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores (cfr. art.º 1º, n.º 1, do CIRE).
11. A existência de bens na massa para liquidar impede o encerramento no despacho inicial de apreciação do pedido de exoneração do passivo restante, razão porque inevitável é o art.º 230º, n.º 1, al. e), dever ser objecto de interpretação restritiva.
12. O encerramento do processo de insolvência constitui uma fase final do mesmo, pelo que deverá ocorrer uma vez realizados os fins previstos no mesmo processo, a que se refere o art.º 1º, do CIRE.
13. Assim, se à data do despacho inicial do pedido de exoneração do passivo restante já existirem elementos nos autos que revelem a inexistência de activo a liquidar, deve o juiz declarar o encerramento do processo de insolvência.
14. Mas se o património do devedor tiver bens para liquidar e a liquidação e o rateio ainda não tiver terminado, então não existe fundamento para encerrar o processo no despacho liminar de deferimento do pedido de exoneração do passivo restante, mesmo que esta decisão seja apenas para efeitos de início do período de cessão.
15. Ao interpretar o art.º 230º, n.º 1, al. e), do CIRE como se o mesmo permitisse encerrar o processo de insolvência sem a liquidação e o rateio estarem realizados, o tribunal interpretou erradamente aquela norma, dando-lhe um sentido que não é adequado à situação concreta.»

Não foram apresentadas contra-alegações.

Assim, cumpre conhecer da seguinte questão: do fundamento para declaração do encerramento do processo de insolvência e do respetivo âmbito.


III – Fundamentos

A – Dados a considerar

Os que resultam do que se deixa exposto supra.

B – O Direito

O encerramento do processo de insolvência encontra-se regulado no art. 230.º do CIRE, cujo n.º 1 estabelece o seguinte:
«1 - Prosseguindo o processo após a declaração de insolvência, o juiz declara o seu encerramento:
a) Após a realização do rateio final, sem prejuízo do disposto no n.º 6 do artigo 239.º;
b) Após o trânsito em julgado da decisão de homologação do plano de insolvência, se a isso não se opuser o conteúdo deste;
c) A pedido do devedor, quando este deixe de se encontrar em situação de insolvência ou todos os credores prestem o seu consentimento;
d) Quando o administrador da insolvência constate a insuficiência da massa insolvente para satisfazer as custas do processo e as restantes dívidas da massa insolvente.
e) Quando este ainda não haja sido declarado, no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante referido na alínea b) do artigo 237.º»

Vinha sendo entendido que o encerramento do processo a coberto da al. e) do n.º 1 do art. 230.º do CIRE, no âmbito do despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante, só podia ter lugar quando se verificasse a insuficiência da massa insolvente para satisfazer as respetivas dívidas, compaginando o referido preceito legal com o regime inserto no art. 232.º do CIRE.[1] Nesta senda, entendia-se que existindo bens a partilhar e não estando concluída a respetiva liquidação, não se podia declarar o encerramento do processo e insolvência antes de concluída a liquidação; só se devia declarar o encerramento do processo de insolvência no despacho liminar de deferimento do pedido de exoneração do passivo restante se inexistissem bens a liquidar.[2] O que se alicerçava, essencialmente, na seguinte fundamentação: as regras do CIRE «estabelecem o princípio de que a distribuição e o rateio final só terão lugar depois de encerrada a liquidação da massa insolvente, implicando, assim, que mesmo admitido liminarmente o impetrado incidente de exoneração do passivo restante, se já tiver ocorrido a liquidação, pode e deve decretar-se o encerramento do processo de insolvência, nos termos da alínea e), ao invés, na circunstância de a liquidação ainda não ter sido concluída, não há fundamento para a aplicação do regime estabelecido nesta alínea e) do art. 230º, nº. 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), antes o regime regra prevenido na alínea a) do art. 230º, nº. 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), ou seja, torna-se necessário aguardar pelo rateio final. Resulta do normativo citado (art. 230º, nº.1, alínea e), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), ser o próprio legislador que, implicitamente, admite como traduzindo ocorrência processual regular, a possibilidade de, em sede de prolação do despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante, não declarar o juiz titular dos autos o encerramento do processo, ou seja, é o próprio legislador que entende existirem circunstâncias que obstam a que, no despacho liminar do incidente de exoneração do passivo restante a que alude a alínea b) do art. 237º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), seja declarado o encerramento do processo. Tal como decorre da alínea a), do nº.1, do art. 230º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), prosseguindo o processo após a declaração de insolvência, o juiz declara o seu encerramento “Após a realização do rateio final, sem prejuízo do disposto no nº. 6, do artigo 239º”, donde podemos concluir que até ao encerramento da liquidação e rateio final, não deve o juiz declarar o encerramento do processo. Ademais, sublinhamos, não fazer qualquer sentido, uma declaração de encerramento do processo, com a inevitável cessação das atribuições do administrador da insolvência (art. 233º, nº. 1, alínea b), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE)), num momento em que persiste ainda por realizar a proeminente função, a nosso ver, do administrador de insolvência, qual seja, a de promover e diligenciar pela alienação dos bens que integram a massa insolvente (arts. 55º nº. 1, alínea a) e art. 158º, ambos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE)).»[3]

Porém, a recente intervenção legislativa em sede do CIRE veio demonstrar ser diversa a orientação legal. Na verdade, por via do DL n.º 79/2017, de 30/06/2017 (em vigor desde o dia 1 de Julho de 2017[4]), foi aditado o n.º 7 ao art. 233.º do CIRE, que regula os efeitos do encerramento do processo, estatuindo o seguinte: «O encerramento do processo de insolvência nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 230.º, quando existam bens ou direitos a liquidar, determina unicamente o início do período de cessão do rendimento disponível.» O que sinaliza que se pretende atribuir autonomia à al. e) do n.º 1 do art. 230.º do CPC, devendo ser declarado o encerramento do processo de insolvência no despacho inicial de exoneração do passivo restante, quando tal não tenha ainda ocorrido. No entanto, existindo bens ou direitos a liquidar, os efeitos do encerramento se repercutem unicamente no início do período de cessão do rendimento disponível. Coloca-se, assim, o devedor insolvente a salvo da demora desgastante em que frequentemente se traduz a atividade de liquidação e a própria tramitação do processo de insolvência, conferindo-se eficácia renovada ao incidente da exoneração do passivo restante: o princípio do “fresh start”, visando a reintegração plena do devedor na vida económica, não se compagina com a manutenção do devedor paralisado por longo período durante o qual ocorrem as vicissitudes do processo de insolvência, sendo antes imperioso que possa cumprir, desde logo e durante o prazo fixo de cinco anos, as obrigações legais que lhe permitirão alcançar a sua reabilitação económica.

Decorre do exposto que, sendo pertinente a declaração de encerramento do processo de insolvência aquando a prolação do despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante (art. 230.º, n.º 1, al. e), do CIRE), desde que existam bens ou direito a liquidar, o encerramento nestes termos determina unicamente o início do período de cessão do rendimento disponível, conforme determina o art. 233.º, n.º 7, do CIRE.

É certo que a decisão recorrida faz menção de que o encerramento do processo de insolvência não contenderia com o prosseguimento do apenso de reclamação de créditos e do apenso respeitante à liquidação do ativo – o que vai de encontro à pretensão do Recorrente, que pretende assegurar o prosseguimento dos autos para realização da liquidação e rateio final. No entanto, declarando ainda tal decisão que são produzidos os efeitos previstos no art. 233.º, do CIRE, exceto os que forem incompatíveis com o deferimento liminar da exoneração do passivo acima decidido e ainda com o prosseguimento dos referidos apensos, certo é que, considerando todos os efeitos decorrentes do encerramento do processo que se mostram enunciados no art.º 233.º, n.º 1, do CIRE, impõe-se antes a observância do regime legal consagrado no citado n.º 7 do art. 233.º do CIRE.

O recurso não procede integralmente, pois não se atende a pretensão de não declarar o encerramento do processo, antes de restringindo o âmbito deste conforme o regime legal citado.

Sem custas.


IV – DECISÃO

Nestes termos, decide-se pela parcial procedência do recurso, em consequência do que se revoga a decisão recorrida relativamente aos pontos I e III da decisão de 1.ª Instância supra transcrita, declarando-se o encerramento do processo de insolvência nos termos da al. a) do n.º 1 do art. 230.º n.º 1 al. e) do CIRE, o que, neste caso, determina unicamente o início do período de cessão do rendimento disponível.

Sem custas.

Évora, 25 de Janeiro de 2018
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões
Vítor Sequinho dos Santos

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[1] Cfr., entre outros, Ac. TRE de 11/05/2017 (Bernardo Domingos).
[2] Cfr., entre outros, Ac. TRP de 07/11/2016 (Oliveira Abreu); Ac. TRC de 07/06/2016 (Arlindo Oliveira); Ac. TRE de 20/06/2013 (Mata Ribeiro). Ana Filipa Conceição, I Congresso do Direito da Insolvência, p. 56. Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, 3.ª edição, p. 829.
[3] Ac. TRP citado, de 07/11/2016.
[4] Cfr. art. 8.º do citado DL.