Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
87/19.2T8CCH.E1
Relator: ANA MAERGARIDA CARVALHO PINHEIRO LEITE
Descritores: SIGILO PROFISSIONAL
DISPENSA
ADVOGADO
NECESSIDADE
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 01/14/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I – Em incidente de levantamento do sigilo profissional de advogado, a apreciação pelo tribunal superior do critério da prevalência do interesse preponderante pressupõe a indicação da factualidade controvertida que se pretende demonstrar com recurso ao depoimento em causa, cujo conhecimento pela testemunha se encontra abrangido pelo sigilo profissional invocado, bem como a relevância de tal depoimento, designadamente decorrente da eventual inexistência de outros meios de prova de tal factualidade;
II - Não tendo sido indicada a matéria que se pretende provar com o depoimento em causa, nem a eventual inexistência de outros meios probatórios ou qualquer elemento relativo à relevância do depoimento abrangido pelo sigilo profissional, não poderá a Relação considerar verificados os critérios dos quais faz a lei depender o levantamento do sigilo profissional. (sumário da relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

1. Relatório

O presente incidente de levantamento do sigilo profissional foi suscitado no âmbito da ação declarativa, com processo comum, que A…, divorciado, move contra a sua ex-cônjuge M…, divorciada, através da qual pretende obter a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de € 2250, em cumprimento de acordo outorgado entre ambos na sequência do respetivo divórcio.
A ré contestou, invocando a exceção de não cumprimento do contrato, e deduziu reconvenção, formulando o pedido seguinte: B) A título principal, 1- Condenar o A. reconvindo no pagamento à R. reconvinte de 3718,80€, relativos a metade das prestações pagas desde a aquisição do imóvel até à data em que foi decretado o divórcio, no valor total de 7437,61€; A título subsidiário, nos termos do artigo 554.º do C.P.C., 2- Condenar o A. reconvindo no pagamento à R. reconvinte de 3718,80€, relativos a metade das prestações pagas desde a aquisição do imóvel até à data em que foi decretado o divórcio, deduzido o valor de 2250,00€ correspondente ao valor de aquisição da viatura automóvel cujo pagamento a R. se obrigou no acordo celebrado, no valor de 1468,80€; C) Condenar o A. reconvindo no pagamento à R. reconvinte de 536,00€, relativos ao pagamento de metade do valor das prestações para amortização do empréstimo até à venda do imóvel, nos meses de Julho a Outubro de 2017; D) Condenar o A. reconvindo no pagamento à R. reconvinte de 1897,53€, relativos a metade do valor da diferença entre o valor obtido com a venda do imóvel e o valor restante da dívida com a sua aquisição.
Autor e ré arrolaram como testemunha a Sr.ª Advogada Dr.ª C---, a qual se escusou a depor na audiência final, mediante invocação de segredo profissional, esclarecendo que conheceu ambas as partes no âmbito da sua atividade profissional e representou o autor no processo de divórcio que correu termos entre o mesmo e a ré, acrescentando que estão em causa nos presentes autos factos relacionados com esse processo.
Por despacho constante da ata de 04-11-2020, concluiu-se pela legitimidade da escusa e ordenou-se a subida do incidente a esta Relação, com invocação do disposto nos artigos 497.º, n.º 2, e 417.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, e no artigo 135.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.

2. Pressupostos processuais

Este Tribunal da Relação é o competente para a apreciação e decisão do incidente de levantamento do sigilo profissional.
Não existem nulidades ou quaisquer exceções de que cumpra conhecer, nada obstando à apreciação do mérito da causa.

3. Fundamentos

3.1. Tramitação processual
Os elementos com relevo para a apreciação da questão suscitada constam do relatório supra.

3.2. Fundamentos de direito
Está em causa, no presente incidente, apreciar se deve ser determinado o levantamento do sigilo profissional invocado por advogada, arrolada como testemunha por ambas as partes, como fundamento da respetiva escusa a prestar depoimento na audiência final.
Com a epígrafe Dever de cooperação para a descoberta da verdade, dispõe o n.º 1 do artigo 417.º do Código de Processo Civil o seguinte: Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados. Prevê o n.º 2 do indicado preceito, além do mais, a condenação em multa daqueles que recusem a colaboração devida. Acrescenta o n.º 3, por seu turno, que a recusa é, porém, legítima se a obediência importar, entre outras situações, a prevista na alínea c): a violação do sigilo profissional. Esclarece o n.º 4 que, deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.
Como tal, deduzida a escusa com fundamento na violação do sigilo profissional, cumpre atender, por força do estatuído no n.º 4 do citado artigo 417.º, ao disposto no artigo 135.º do Código de Processo Penal, designadamente às normas constantes dos seus n.ºs 2 e 3, com a redação seguinte: 2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento. 3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento. Acrescenta o n.º 4 deste preceito o seguinte: 4 - Nos casos previstos nos n.ºs 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.
O Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, através do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 2/2008, datado de 13-02-2008 – publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 63 (31-03-2008) –, fixou a seguinte jurisprudência: 1) Requisitada a instituição bancária, no âmbito de inquérito criminal, informação referente a conta de depósito, a instituição interpelada só poderá legitimamente escusar-se a prestá-la com fundamento em segredo bancário; 2) Sendo ilegítima a escusa, por a informação não estar abrangida pelo segredo, ou por existir consentimento do titular da conta, o próprio tribunal em que a escusa for invocada, depois de ultrapassadas eventuais dúvidas sobre a ilegitimidade da escusa, ordena a prestação da informação, nos termos do n.º 2 do artigo 135.º do Código de Processo Penal; 3) Caso a escusa seja legítima, cabe ao tribunal imediatamente superior àquele em que o incidente se tiver suscitado ou, no caso de o incidente se suscitar perante o Supremo Tribunal de Justiça, ao pleno das secções criminais, decidir sobre a quebra do segredo, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo.
Extrai-se da análise deste regime, e conforme decorre do citado AUJ, que compete ao tribunal perante o qual a escusa, com fundamento na violação do sigilo profissional, for invocada, apreciar a legitimidade da recusa, averiguando da existência de sigilo. De seguida, caso conclua pela inexistência de sigilo e, assim, pela ilegitimidade da escusa, compete-lhe ordenar a prestação do depoimento; se, pelo contrário, considerar legítima a escusa, por se encontrar matéria em causa abrangida pelo dever de sigilo, haverá lugar ao incidente de quebra de segredo profissional.
Cabe, assim, ao tribunal de 1.ª instância decidir da legitimidade da escusa, procedendo, para o efeito, às averiguações tidas por necessárias e ouvindo previamente, conforme impõe o n.º 4 do artigo 135.º do CPP, o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.
Estando em causa o sigilo profissional de advogado, há que atender ao estatuído no artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados (aprovado pela Lei n.º 145/2015, de 09-09), com a epígrafe Segredo profissional, o qual dispõe, no n.º 1, que o advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente, entre outras situações previstas nas várias alíneas do preceito, a factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste – alínea a) – e a factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio – alínea e). Esclarece o n.º 2 do mencionado artigo que a obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço. Permite o n.º 4 do citado artigo, ao advogado, revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento. O n.º 5 do preceito, por seu turno, dispõe que os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.
O presente incidente de levantamento do sigilo profissional foi suscitado quanto à Sr.ª Advogada Dr.ª C…, arrolada como testemunha por ambas as partes e que se recusou a depor na audiência final, invocando o sigilo profissional, sendo que não consta dos autos que a mesma tenha solicitado anteriormente à Ordem dos Advogados (concretamente, ao presidente ao conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário), autorização para a revelação de factos abrangidos pelo segredo profissional.
Por despacho constante da ata de 04-11-2020, concluiu-se pela legitimidade da escusa e ordenou-se a subida do incidente a esta Relação, com invocação do disposto nos artigos 497.º, n.º 2, e 417.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, e no artigo 135.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
Analisando a tramitação do incidente, verifica-se que a 1.ª instância não solicitou à Ordem dos Advogados a emissão de parecer, pelo que não foi ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos impostos pelo n.º 4 do artigo 135.º do CPP, omissão cujas consequências importa apreciar.
Por outro lado, verifica-se que a 1.ª instância não indicou a matéria de facto previsivelmente do conhecimento da testemunha e abrangida pelo sigilo profissional, nem algum elemento que permita apreciar a relevância da prestação de tal depoimento, o que não é suprido por qualquer alegação das partes, sendo certo que o incidente foi oficiosamente suscitado.
Ora, decorre do disposto no citado artigo 135.º do CPP, ao qual cumpre atender por força do n.º 4 no artigo 417.º do CPC, que é de admitir o levantamento do segredo profissional sempre que tal se mostre justificado, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do meio de prova em causa para a descoberta da verdade.
Afirmam António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, p. 492) o seguinte: “cabe ao tribunal superior decidir se poderá justificar-se a quebra de sigilo, face ao princípio da prevalência do interesse preponderante, parametrizado pela imprescindibilidade do depoimento /informação para a descoberta da verdade e pela necessidade de proteção de bens jurídicos”. Explica Luís Filipe Pires de Sousa (Prova Testemunhal, 2016 – reimpressão, Coimbra, Almedina, p. 246) o seguinte: “A decisão final sobre a justificação da escusa invocada pela testemunha pautar-se-á sempre pelo princípio da proibição do excesso. O segmento da norma do Artigo 135.º, n.º 3, do CPP, que apela à “imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade”, constitui, de per si, uma concretização do princípio da proibição do excesso ou da proporcionalidade em sentido amplo”.
A apreciação pelo tribunal superior do critério da prevalência do interesse preponderante pressupõe a indicação da factualidade controvertida que se pretende demonstrar com recurso ao depoimento em causa, cujo conhecimento pela testemunha se encontra abrangido pelo sigilo profissional invocado, bem como a relevância de tal depoimento, designadamente decorrente da eventual inexistência de outros meios de prova de tal factualidade.
Neste sentido, cf. o acórdão desta Relação de 09-11-2017 (relatora: Isabel Imaginário), proferido no processo n.º 842/11.1TBVNO-B.E1 (publicado em www.dgsi.pt), no qual se entendeu o seguinte: “o dever de segredo deve ceder, por prevalência do interesse do acesso ao direito e da descoberta da verdade material, com vista à realização da justiça, desde que se apure que a pretendida informação é instrumentalmente determinante, necessária e imprescindível para demonstrar a factualidade controvertida”.
No caso presente, desconhece-se a matéria que se pretende provar com o depoimento em causa ou a eventual inexistência de outros meios probatórios, considerando que não foi indicada a factualidade previsivelmente do conhecimento da testemunha e abrangida pelo sigilo profissional, nem qualquer elemento relativo à relevância do depoimento em causa.
Assim sendo, não poderá esta Relação considerar verificados os critérios dos quais faz a lei depender o levantamento do sigilo profissional, o qual se não poderá decretar.
Neste sentido, cf. o acórdão da Relação de Coimbra de 04-03-2015 (relator: Vasques Osório), proferido no processo n.º 60/10.6TAMGR-A.C1 (publicado em www.dgsi.pt), no qual se concluiu o seguinte: “- A imprescindibilidade do depoimento de testemunha sujeita a segredo profissional é elemento essencial à densificação do princípio da prevalência do interesse preponderante a actuar pelo tribunal com vista à decisão sobre a quebra do segredo; - No requerimento que deu origem ao presente incidente não foram indicados os factos, eventualmente conhecidos pela testemunha e cobertos pelo segredo profissional de Advogado, susceptíveis de demonstrarem a absoluta necessidade ou imprescindibilidade do seu depoimento; - Por isso, não existe razão objectiva para que, feita a ponderação dos interesses conflituantes com os elementos disponíveis, deva ser quebrado aquele segredo”.
No caso presente, mostrando-se inviável, pelos motivos expostos, o preenchimento dos requisitos de que depende o levantamento do sigilo profissional, cumpre indeferir o incidente, o que não impede a eventual dedução de novo incidente devidamente fundamentado, se assim vier a ser entendido.
Tal prejudica a apreciação da questão relativa à forma de suprir a omissão de audição da Ordem dos Advogados, a qual sempre exigiria a indicação dos motivos pelos quais se pretende o levantamento do sigilo profissional, que não constam do incidente deduzido.

4. Decisão

Nestes termos, acorda-se em indeferir o incidente de levantamento do sigilo profissional.
Sem custas.
Notifique.
Évora, 14-01-2021
(Acórdão assinado digitalmente)
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite
(Relatora)
Cristina Dá Mesquita
(1.ª Adjunta)
José António Moita
(2.º Adjunto)