Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
40/11-4GTPTG.E1
Relator: JOÃO GOMES DE SOUSA
Descritores: DEPOIMENTO INDIRECTO
CONVERSAS INFORMAIS
DECLARAÇÕES DO ARGUIDO
VÍCIOS
CONSTITUIÇÃO DE ARGUIDO
DIREITOS DO SUSPEITO
DENÚNCIA DE CRIME
Data do Acordão: 06/04/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
1. Se os agentes policiais percepcionaram directamente os factos – mesmo que os “factos” sejam o declarado pelo ainda não arguido – não há depoimento indirecto.

2. O meio de prova “declarações de arguido” tem que ser veiculado através de um “interrogatório” previsto nos artigos 140-º- a 144-º do CPP. O meio de prova “declarações de arguido” não pode ser veiculado por “conversas informais”.

3. O formalismo dos interrogatórios de arguido é uma questão central no próprio valor do meio de prova, uma vinculação à forma querida pelo legislador, produto ou resultado de uma evolução histórica processual que concluiu ser este formalismo do interrogatório a melhor forma de acautelar direitos.

4. As “conversas informais” são um expediente para tornear direitos em nome de uma suposta verdade “descoberta” pelo investigador policial que, dessa forma, pretende determinar o resultado do julgamento. São, portanto, um expediente de má policia. Um abuso. Uma fraude à lei e ao Direito.

5. Se o meio de prova “declarações de arguido” não cumpre a regra da “tipicidade de interrogatório” de arguido e surge através, de “conversa informal” ocorre o vício processual da inexistência do meio de prova “declarações de arguido”.

6. Mas as forças policiais não estão proibidas de falar com os cidadãos que podem vir a ser arguidos ou com os suspeitos, ou com quem se encontra numa “cena de crime”, o que cria situações de facto de fronteira e de difícil solução.

7. Quando o ainda não arguido não foi constituído arguido, podendo considerar-que que há motivo para tal, como mera decorrência do nº 5 do artigo 58º do Código de Processo Penal qualquer declaração daquele não pode ser utilizada como prova.

8. Mas esta proibição de prova não abrange as declarações ouvidas pelos agentes policiais ao arguido, antes de este o ser ou haver obrigação de constituição, se não houver culpa das forças policiais no atrasar da formalização daquela constituição.

9. Face ao ordenamento português parece indubitável que o simples cidadão ou cidadão suspeito não goza do direito ao silêncio e, como tal, a prova produzida pelas suas declarações, melhor, depoimento, é válida se ainda não havia obrigação de constituição como arguido.

10. Se as entidades policiais agem dentro dos poderes concedidos pelas normas reguladoras da aquisição e notícia do crime (artigos 241º e 242º) e de medidas cautelares e de policia (artigos 248º e segs., designadamente o artigo 250º do C.P.P.) e, sem má fé ou atraso propositado na constituição de arguido, ouvem do cidadão ou suspeito a informação da prática de um crime, isso não constitui violação de lei ou fraude à lei, nem obtenção de prova proibida.

11. Por isso que a questão não se centra em saber se a proibição de “conversas informais” deve abranger afirmações anteriores ou posteriores à constituição de arguido, já que são sempre proibidas após a constituição como arguido. E nunca são antes da constituição como arguido, excepto se a má-fé policial tiver ilegalmente atrasado essa constituição.

12. Se o arguido é interceptado na prática de uma contra-ordenação (excesso de velocidade) e não de um crime, nem sequer há atraso na constituição de arguido em processo crime para os efeitos do artigo 58º, nº 5 C.P.P. no momento em que, interceptado, faz uma afirmação que revela um hipotético crime.

13. Nesse caso a declaração do ainda não arguido não passa de uma denúncia de um crime nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 241º e seguintes do Código de Processo Penal.

14. O vício de uma decisão que considerou nulo um meio de prova válido nem se classifica como nulidade, nem como erro na apreciação da prova, sim como erro de direito que afectou a apreciação probatória e se constituiu como erro de julgamento em matéria de direito. [1]
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes que compõem a 2ª Subsecção do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório:
No Tribunal Judicial de Portalegre – 1º Juízo - correu termos o processo comum singular supra numerado, no qual são arguidos

JR, nascido a 31.10.1966, natural da freguesia do Brunheiro, concelho de Murtosa, filho de…, divorciado, serralheiro, residente …, Bunheiro,

NF, nascido a 15.10.1977, natural da freguesia de Nossa Senhora da Expectação, concelho de Campo Maior, filho de---, militar da GNR, residente na Rua ---, Campo Maior e

JS, nascido a 05.02.1971, natural da freguesia da Nossa Senhora da Expectação, concelho de Campo Maior, filho de---, militar da GNR, residente na Rua ---,Campo Maior

imputando-lhes:

- Ao arguido JR, em autoria material ena forma consumada, um crime de corrupção activa, p. e p. pelo art.º 374.º, n.º 1 do Código Penal, na redacção anterior à Lei n.º 32/2010, de 2 de Setembro, aplicável no momento da prática dos factos e, actualmente, previsto e punível pelo art.º 374.º, n.º 1 do Código Penal;

- Aos arguidos NF e JS, em autoria material e na forma consumada, um crime de corrupção passiva para acto ilícito, p. e p. pelo art.º 373.º, n.º 1 do Código Penal, na redacção anterior à Lei n.º 32/2010, de 2 de Setembro, aplicável no momento da prática dos factos e, actualmente, p. e p. pelo art.º 372.º, n.º 1 do mesmo diploma legal.
*
A final foi lavrada sentença que absolveu:

a) O arguido JR da prática de um crime de corrupção activa, p. e p. pelo art.º 374.º, n.º 1do Código Penal;

b) Os arguidos NF e JS da prática de um crime de corrupção passiva para acto ilícito, p. e p. pelo art.º 372.º, n.º 1 do Código Penal.

Inconformada, interpôs o presente recurso, a Exmª Senhora Procuradora–adjunta junto do Tribunal de Portalegre com as seguintes conclusões:

1 – Houve erro notório na apreciação da prova, nos termos do disposto nos artigos 410º/2 al. c) e 128º ambos do Código de Processo Penal. Com efeito:

2 – A Mma Juiz a quo afirmou na sua motivação de que as testemunhas de acusação não revelaram possuir conhecimento directo dos factos constantes da acusação. Pois, valorou o depoimento das mesmas como reprodução de conversas informais, as quais, segundo a Mma. Juiz a quo, não podem ser valoradas em sede de audiência de julgamento.

3 – A Mma. Juiz a quo não valorou a prova indiciária que, no nosso entendimento é suficiente para condenar os arguidos de que vêm acusados.
4 – A Mma. Juiz a quo afirma ser seguidora da posição maioritária da jurisprudência e, assim, considera que os depoimentos dos órgãos de polícia criminal que tivessem na base conversas informais são inadmissíveis,

5 – Acrescentando que a valoração das conversas informais quando, em sede de audiência de julgamento, os arguidos se remetem ao silêncio, não serão susceptíveis de serem valoradas, sob pena de violação das garantias de defesa destes, mormente do exercício do direito ao silêncio, o qual deste forma, tem efectiva expressão.

6 – É entendimento do Ministério Publico que a lei processual penal não proíbe o depoimento indirecto, em absoluto – vide Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 440/99 (in DR, II, de 09.11.1999).

7 - Sobre a questão da admissibilidade dos depoimentos dos órgãos de polícia criminal, existe dessintonia entre a jurisprudência (quer dos Tribunais Comuns, quer do Tribunal Constitucional) e a Doutrina Portuguesa (pelo menos uma parte dela).

8 - Depoimento directo é aquele em que a testemunha que o presta revela uma aquisição originária do conhecimento dos factos, ao passo que no depoimento indirecto, esse conhecimento do depoente é uma aquisição derivada – em segunda mão, não resulta de uma percepção visual, auditiva, olfactiva etc.., directa e imediata, antes é transmitido por outrem.

9 - O Professor Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. II, Verbo, 5ª Edição revista e actualizada, pág. 221, avança a seguinte definição: “conhecimento directo dos factos é aquele que a testemunha adquire por se ter apercebido imediatamente deles através dos seus próprios sentidos.” – na mesma linha, M Simas Santos, Leal Henriques e João Simas Santos.

10 - Contudo na prática, nem sempre se faz a mais adequada aplicação destas noções - vide acórdão do STJ de 30.09.1998, proc. nº 366/98-3ª, acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07.02.2007, consultável in www.dgsi.pt, acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15.03.2007, no processo n.º 2287/07-9ª, acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25.05.2009, processo n.º 359/06.GVCRM.G1 – jurisprudência referenciada na nossa motivação.

11 – Porém, há que distinguir: “quando a testemunha relata em tribunal aquilo que ouviu da boca de outra pessoa, o depoimento é directo porque a testemunha dele teve conhecimento directo por o ter captado por intermédio dos seus próprios ouvidos.

12 – Nos presentes autos, verifica-se que as testemunhas DM, PA e VP, que, na altura, estavam todos em exercício das suas funções numa acção de fiscalização rodoviária, no dia 27 de Maio de 2011. Relataram as circunstâncias de tempo e de lugar em que o arguido JR foi interceptado e que, nesse momento, lhes terá dito que há cerca de um ano atrás já tinha pago a dois guardas para o não autuarem, descrevendo que se faziam transportar num Renault Megane branco e que tinham uma farda em tudo idêntica a destes militares. Mais referiu que tinha pago àqueles dois guardas o montante de €100,00 (cem euros).

13 - Neste segmento, estas testemunhas fazem um depoimento directo, pois transmitem aquilo que percepcionaram (viram e ouviram) directamente no local – no momento da fiscalização, no dia 27 de Maio de 2011, ao JR.

14 - Os órgãos de polícia criminal podem testemunhar sobre todos os factos de que tenham conhecimento directo, só não podendo ser objecto do seu depoimento os conhecimentos que tiverem obtido através de depoimentos cuja leitura seja proibida ou que deveriam ser reduzidos a auto e não foram, sendo a leitura desse auto também proibida. Por isso, nada impede que os órgãos de polícia criminal possam testemunhar sobre todos os factos de que tomaram conhecimento fora do processo, nomeadamente declarações feitas pelo arguido ou terceiros, observando-se, neste caso as regras do testemunho indirecto.

15 - É evidente que aos órgãos de polícia criminal não está vedado ter com determinadas pessoas conversas que não são formalizadas em auto. Essas conversas podem reportar-se a factos que estão em investigação e a fonte de informação pode até ser um suspeito do crime investigado – como é o caso nos presentes autos.

16 - Aliás, ao abrigo do disposto nos artigos 55º/2, 249º e 250º todos do Código de Processo Penal, os órgãos de polícia criminal podem e devem colher notícias do crime, descobrir os seus agentes e praticar os actos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova, nomeadamente colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime e a sua reconstituição.

17 - Assim, nada impede que os agentes de investigação, em audiência de julgamento deponham sobre o conteúdo dessas diligências, incluindo sobre o conteúdo das conversas havidas com suspeitos, que, entretanto, foram constituídos arguidos e, mesmo que estes, na audiência se remetam ao silêncio, desde que essas conversas não visem contornar ou iludir a proibição contida no disposto no artigo 356º/7 do Código de Processo Penal.

18 – Voltando aos presentes autos, em primeiro lugar, importa notar que as três testemunhas, soldados da GNR, DM, PA e VP nunca tomaram declarações – nem participaram na sua recolha aos arguidos.

19 - Em segundo lugar, é de realçar que todos os arguidos estavam presentes em sede de audiência de julgamento.

20 - Os soldados da GNR reproduziram, em sede de audiência de julgamento, a notícia do crime ou seja relataram o que o arguido JRs (que ainda não era arguido, porque ainda não havia processo) lhes disse aquando a fiscalização rodoviária, não tendo sido os depoimentos valorados pela Mma. Juiz a quo por os considerarem indirectos/conversas informais.

21 - Ora, quando estão em causa direitos e garantias fundamentais do arguido, o juiz deve ser intransigente na sua defesa, cabendo-lhe assegurar que o processo seja justo e equitativo, transparente, o que passa por garantir o respeito por princípios fundamentais como sejam o da imediação e do contraditório.

22 - A orientação doutrinária que a Mma. Juiz a quo acolheu é unilateral por se preocupar apenas com as garantias da defesa e ignorar finalidades primárias que o processo penal tem de prosseguir, como sejam a realização da justiça e a descoberta da verdade material, a tutela de direitos fundamentais das pessoas e o restabelecimento da paz jurídica e a reafirmação da norma jurídica violada.

23 - A busca da verdade material, é no processo penal, um dever ético e jurídico.

24 - Com efeito, componente essencial do principio do Estado de Direito é a ideia de justiça, a qual exige também a manutenção de uma administração de justiça capaz de funcionar, devendo reconhecer-se as necessidades irrenunciáveis de uma acção penal eficaz e acentuar-se o interesse público numa investigação da verdade, o mais completa possível, no processo penal, sendo o esclarecimento dos crimes graves tarefa essencial de uma comunidade orientada pelo aludido principio.

25 - Sempre que se verifique a existência de uma tensão entre princípios e interesses fundamentais potencialmente conflituantes, há que procurar a sua harmonização.

26 - A disciplina contida no artigo 129º do Código de Processo Penal não viola o princípio da estrutura acusatória do processo, nem o da imediação, nem a regra do contraditório; de facto, aquele preceito, ao mesmo tempo que admite o testemunho de ouvir dizer, impõe que as pessoas referenciadas nesse depoimento sejam, elas próprias, chamadas a depor.

27 – Seguindo aquele entendimento, a Mma. Juiz a quo optou, unilateral e exclusivamente, pela afirmação dos interesses e direitos das defesas, em total detrimento da realização da justiça, um valor com igual tutela constitucional. Ademais,

28 - Para a prova dos factos em processo penal, é legítimo o recurso à prova indiciária ou circunstancial, com virtualidade incriminatória para afastar a presunção de inocência. A prova indiciária ou indirecta refere-se aos factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto ao tema da prova

29 – A prova indiciária pressupõe um facto demonstrado através de uma prova directa ao qual se associa uma regra da ciência, uma máxima da experiencia ou uma regra de sentido comum.

30 - Uma vez que no processo penal são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei – artigo 125º do Código de Processo Penal, delas (das provas admissíveis) não pode ser excluída a prova por presunções, em que se parte de um facto conhecido (o facto base ou facto indiciante, que funciona como indício) para afirmar um facto desconhecido (o factum probandum) recorrendo a um juízo de normalidade (de probabilidade) alicerçado em regras da experiência comum que permite chegar, sem necessidade de uma averiguação casuística, a um resultado verdadeiro.

31 - As provas não podem ser apreciadas uma a uma, isoladamente, de forma fragmentada, descontextualizadas do material probatório à disposição do julgador, sendo nestas situações em que não há prova directa, mas existe a prova indiciária.

32 - Assim, para que seja possível a condenação é imprescindível que, por procedimentos legítimos, se alcance a certeza jurídica, que não é desde logo a certeza absoluta, mas que sendo uma convicção com génese em material probatório, é suficiente para, numa perspectiva processual penal e constitucional legitimar uma sentença condenatória.

33 - Volvendo ao caso dos presentes autos, conciliando:

Os depoimentos directos dos militares da GNR, DM, PA e VP, que, plagiando a Mma. Juiz a quo, referindo-se ao mesmos: “prestando um depoimento que nos pareceu inteiramente credível, relataram as circunstâncias de tempo e de lugar em que o arguido JR foi interceptado.”, quer no dia 24 de Maio de 2010, quer no dia 27 de Maio de 2011;

A fls. 08 dos presentes autos, o fotograma do veiculo automóvel marca Mazda, de matricula espanhola --- CRZ do arguido JR, exibido em sede de audiência de julgamento, comprovativo de que o mesmo conduzia em excesso de velocidade, no dia 24 de Maio de 2010, às 15.52horas, no IP2, km 163, que estava arquivado nos não autuados por ser um veiculo automóvel de matricula estrangeira – constitui no nosso entender um forte indicio dos factos referidos em 1, 2, 4 e 5;

A fls. 09 a 15, as cópias da guia de ronda de planeamento para o dia 24 de Maio de 2010, exibidas em sede de audiência de julgamento e confirmadas pelas testemunhas, confirmam que os arguidos JS e NS se encontravam de serviço nesse dia, em exercício de funções de fiscalização do transito e que se faziam transportar no Renault megane branco - o único existente no Destacamento territorial de Portalegre – as quais constituem no nosso entender forte indicio dos factos 7,

A fls. 176, o comprovativo de levantamento de dinheiro na caixa ATM, no dia 24 de Maio de 2010, bem como as cópias dos processos disciplinares dos arguidos, as quais não foram impugnadas pelos arguidos nem nas contestações nem em sede de audiência de julgamento, à luz das regras da razão, da lógica e da experiência comum, a Mma. Juiz a quo só podia ter considerado os factos constantes da acusação por provados e, em consequência condenar os arguidos pelos crimes de que vêm acusados.

34 – Padece assim a Douta Sentença de erro notório da apreciação da prova, a que alude o artigo 410º/2 al. c) do Código de Processo Penal.

35 – Na Douta Sentença recorrida, não se fez a adequada apreciação dos depoimentos dos militares da GNR: DM, PA e VP.

36 - Assim sendo, valorando os depoimentos dos referidos militares, valorando as provas indiciárias, devem o arguidos JR ser condenado, em autoria material e na forma consumada, pela prática de um crime de corrupção activa, previsto e punível pelo artigo 374º/1 do Código Penal e, os arguidos NF e JS da prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de corrupção passiva por acto ilícito previsto e punível pelo artigo 372º/1 do Código Penal.

Termos em que, em nosso entender, deverá ser dado provimento ao recurso interposto, substituindo a sentença absolutória por uma condenatória.
*
Responderam os arguidos concluindo pela improcedência do recurso, com as seguintes conclusões:
Arguido JR:

1ª As conversas informais entre um arguido e os agentes policiais não são susceptíveis de serem valoradas como meio probatório em audiência de julgamento, sob pena de violação das garantias de defesa daquele, mormente do exercício do seu direito ao silêncio, o qual, apenas desta forma, tem efectiva expressão

2º O artigo 129º, nº 1, do Código de Processo Penal (diploma a que se referem as disposições legais invocadas nesta peça sem indicação de origem) é claro e preciso na recusa do depoimento indirecto como meio de prova.

3º No presente caso, a valoração em sede de audiência de julgamento das conversas informais como meio de prova traduziria uma confissão da prática de um crime realizada de forma indirecta e por interposta pessoa, o que é absolutamente inadmissível, tanto mais que não existem quaisquer garantias sobre o modo e condições como as declarações do arguido foram obtidas.

4º O arguido tem o direito a remeter-se ao silêncio no julgamento, sem que tal atitude o possa prejudicar e, se decidir confessar uma prática delituosa, terá o Tribunal que se assegurar que ele o faz de forma livre e fora de qualquer coacção – cfr. artigos 343, nº 1 e 344, nº 1.

5º Por outro lado, as declarações do arguido prestadas no âmbito do inquérito e documentadas nos autos não podem ser valoradas à luz da nossa lei processual penal, sendo que “os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado na sua recolha, não podem ser inquiridas como testemunhas sobre o conteúdo daquelas”. – cfr. artigos 355º e 356º, nº 1, b) e nº 7.

6º No limite, o Tribunal pode considerar provado que o arguido conversou com os agentes policiais e até pode ficar (bem ou mal) convencido que o teor dessas conversas foi o relatado por tais agentes, mas já não pode, porém, considerar provada a ocorrência de determinados factos praticados pelo arguido apenas com o fundamento de alegadamente o arguido ter dito, naquelas conversas, que os praticou.

7º Com efeito, não é legítimo e, como tal, não é admissível transferir para os agentes policiais a tarefa exclusiva do Tribunal de avaliar a veracidade, liberdade e bondade das declarações do arguido, em especial quando as mesmas significam ou podem significar a confissão de um crime.

8º Excluídos que sejam os depoimentos indirectos das testemunhas DM, PA e VP, não existem nos autos outros elementos de prova que possam sustentar a acusação.

9º Os restantes meios de prova invocados pela Ilustre Magistrada do Ministério Público apenas permitem, quando muito, a recolha de alguns indícios do que se possa ter passado, pelo que não são suficientes para sustentar uma condenação sem violação do princípio geral in dúbio pro reo.

10ª Pelo exposto, a Douta Sentença não padece do erro notório da apreciação da prova que lhe é apontado pela ilustre Magistrada do Ministério Público, nem de qualquer outro erro que mereça censura.

Termos em que julgando o presente recurso improcedente, com a consequente confirmação da Douta Sentença.

Os arguidos NF e JS, com as seguintes conclusões:

Não ocorreu erro na apreciação da prova, pela Meritíssima Juiz recorrida, ao decidir como decidiu no que respeita a consideração final dos factos provados e não provados;

A “Meritíssima Juiz recorrida” fundamentou, motivando abundantemente, a sua decisão, deixando perfeitamente claro, com absoluta justificação lógica e jurídica, o sentido da decisão recorrida (Artº 127 do C.P.P e Ac. S.T.J. de 29.01.1992 – C.J. ano XVII, tomo 1, pag. 20) e as suas razões mais profundas.

A “Meritíssima Juiz recorrida” na sua douta decisão recorrida, não só, respeitou em absoluto as regras fundamentais, em matéria de prova, da imediação e do contraditório, como até, fez uso irreparável da doutrina e princípios legais que devem nortear o procedimento do julgador;

A Sentença recorrida foi elaborada com irreparável procedimento, constituindo um aresto de exemplar uso dos princípios e regras que devem orientar a realização da

Nestes termos e nos demais de direito que V.Exas doutamente suprirão deve o presente recurso ser julgado improcedente por não provado com todas as consequências legais para que, mais uma vez, se faça
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A Exmª. Procuradora-geral Adjunta neste Tribunal da Relação emitiu douto parecer no sentido da procedência do recurso.

Foi cumprido o disposto no artigo 417º n.º 2 do Código de Processo Penal e o arguido apresentou resposta.
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B - Fundamentação:
B.1.1 - O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:

1. No dia 24 de Maio de 2010, pelas 15h52, o arguido JR, que conduzia o veículo automóvel de marca Mazda, com matrícula espanhola --- CRZ, circulava a 140 km/h no IP2, Arez, ao quilómetro 163,3;

2. Num troço em que apenas é permitido circular à velocidade máxima de 90 km/h;

3. No ATM dos Fortios foi efectuado um levantamento, nesse dia, de € 150,00;

4. Os arguidos não têm antecedentes criminais registados.
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B.1.2 - E como não provados os seguintes factos:

Com interesse para a boa decisão da causa, não se provou que:
a) O arguido JR foi interceptado e mandado parar, em local não concretamente determinado, mas situado acerca de um quilómetro da povoação de Fortios, no IP2, área desta comarca;

b) Pelos arguidos NF e JS, militares da GNR adstritos ao destacamento do trânsito que se encontravam em exercício de funções de fiscalização do trânsito e que se faziam transportar num veículo automóvel marcar Renault, modelo Megane;

c) Nessa altura, o arguido JR foi informado pelos militares da GNR de que tinha sido detectado a conduzir em excesso de velocidade e de que, por tal facto, iria ser autuado pela respectiva contra-ordenação e que poderia ficar inibido de conduzir;

d) Contudo, estes arguidos, de acordo com um plano previamente elaborado entre ambos, referiram ao arguido JR que aquela situação se resolveria se lhes entregasse o montante de €100,00 (cem euros);

e) E assim, não procederiam ao levantamento de qualquer auto de contra-ordenação;

f) Tal proposta dos arguidos NF e JS foi de imediato aceite pelo arguido JR;

g) Mas, porque o arguido JR não dispunha de tal quantia, os arguidos NF e JS indicaram-lhe a caixa ATM mais próxima, na localidade dos Fortios;

h) Tendo os arguidos NF e JS ficado na posse dos documentos da viatura conduzida pelo arguido JR;

i) O arguido JR dirigiu-se à caixa de ATM existente à entrada da localidade de Fortios;

j) O arguido JR voltou para junto dos arguidos NF e JS e entregou-lhes o montante de €100,00 (cem euros), em notas do Banco Central Europeu, quantia essa que estes receberam e fizeram sua;

k) Os arguidos NF e JS sabiam que ao solicitarem o montante de €100,00 (cem euros) ao arguido JR para não levantarem o auto de contra-ordenação, acto compreendido nas suas funções de agentes de autoridade colocavam em causa o interesse do Estado na legalidade da acção dos seus agentes;

l) Os arguidos NF e JS, agindo livre, voluntária e conscientemente, sabendo que estavam em exercício de funções, solicitaram ao arguido JR e dele receberam a quantia de €100,00 (cem euros), fazendo-a sua e, em troca, não elaboraram o respectivo auto de contra-ordenação, conduta que sabiam ser contrária aos deveres do cargo;

m) Não obstante este conhecimento, os arguidos NF e JS sabiam que este seu comportamento era proibido por lei e criminalmente punido;

n) Agiu o arguido JR de forma livre, voluntária e conscientemente, com o propósito único de não ser autuado pela prática da contra-ordenação em causa, como efectivamente conseguiu, oferecendo para o efeito aos arguidos NF e JS o montante de €100,00 (cem euros) que estes receberam, apesar de saber que se tratavam de militares da Guarda Nacional Republicana, os quais pelo exercício das suas funções apenas têm direito a auferir o respectivo vencimento e outros eventuais privilégios remuneratórios pagos pela entidade patronal – o Estado, com exclusão de quaisquer outros pagamentos processados por terceiros particulares, representando ainda o arguido JR que com a sua conduta os levaria a prosseguir interesses próprios e privados, na esfera da actividade da Administração Pública, assim pervertendo a autonomia intencional desta mesma administração na prossecução dos fins que lhe são adstritos;

o) O arguido JR sabia pois que dava uma quantia em dinheiro aos militares da GNR, que lhes não era devida, o que fez com o intuito de, em troca dessa vantagem patrimonial obter, como obteve, desses mesmos militares da GNR o favor de o não autuarem o que sabia ser contrário aos deveres do cargo daqueles agentes da autoridade;

p) Sabia ainda o arguido JR que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida.
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B.1.3 - E apresentou as seguintes razões para fundamentar a matéria de facto:
No que respeita aos factos provados, o Tribunal formou a sua convicção com base no teor de fls. 5 a 8, 14, 176.

No que se refere aos antecedentes criminais considerou-se o certificado do registo criminal junto aos autos.

No que concerne aos factos dados como não provados tal resultou de, em audiência, não ter sido efectuada prova cabal da veracidade dos mesmos.

O arguido JR remeteu-se ao silêncio.

Os arguidos NF e JS negaram os factos de que estavam acusados, afirmando que não conseguiram interceptar o condutor do veículo identificado na acusação.

As testemunhas de acusação não revelaram possuir conhecimento directo dos factos constantes da acusação.

As testemunhas DM, PA e VP, prestando um depoimento que nos pareceu inteiramente credível, relataram as circunstâncias de tempo e lugar em que o arguido JR foi interceptado e que, nesse momento, lhes terá dito que há cerca de um ano atrás já tinha pago a dois guardas para o não autuarem, descrevendo que esses militares se faziam transportar num Renault Megane e que tinham uma farda em tudo idêntica a destes militares. Mais referiu que pagou €100,00.

Importa saber, à luz da nossa lei, como valorar tais depoimentos e o teor das conversas informais tidas pelos arguidos com elementos das forças policiais quando, em julgamento, se remetem ao silêncio.

Decorre do art.º 127.º do CPP, o qual estabelece o princípio da livre apreciação da prova, que, salvo disposição em contrário, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente. Tal significa que o julgador aprecia a prova, formando a sua convicção a qual tem que ser objectivável, e ainda fundamentada e estar de acordo com o que resulta das regras da experiência.

As conversas informais, segundo Vinício Ribeiro (Código de Processo Penal – Notas e Comentários, Coimbra, 2008, pág. 730) são “conversas não formais e, por isso não reduzidas a auto. Processualmente não existem. Podem ocorrer no local da infracção (e será até o caso mais vulgar) antes de o arguido ter sido constituído como tal, no posto policial ou até nos corredores do tribunal (já depois da constituição de arguido)”.

O Supremo Tribunal de Justiça já se debruçou sobre a questão várias vezes:

- no sentido da inadmissibilidade de valoração das conversas informais veja-se, a título de exemplo, o Acórdão de 29 de Janeiro de 1992 (CJ, ano XVII, tomo 1, pág. 20);

- no sentido da sua admissibilidade, veja-se, a título de exemplo, o Acórdão de 29 de Março de 1995 (BMJ n.º 445, pág. 279).

Actualmente, a posição que julgamos maioritária considera inadmissíveis os depoimentos dos órgãos de polícia criminal que tivessem na sua base conversas informais (cfr. acs. do STJ de 11 de Julho de 2001, CJACSTJ, ano IX, tomo 3, págs. 166 e ss., de 30 de Outubro de 2001, proc.º n.º 2630/01, rel. Armando Leandro, de 3 de Outubro de 2002, proc.º n.º 2804/01, rel. Pereira Madeira, todos in www.dgsi.pt, de 20 de Abril de 2006, proc.º n.º 06P363, rel. Rodrigues da Costa; Ac. da Relação do Porto de 18 de Outubro de 2000, CJ, ano XXV, tomo 1, págs. 232 e ss., da Rel. de Coimbra de 15 de Dezembro de 2004, CJ, ano XXIX, tomo 5, págs. 53 e ss, o Ac. da Rel. de Guimarães de 4 de Junho de 2007, proc.º n.º 2055/06, rel. Fernando Monterroso, e o recente Ac. da Rel. de Lisboa de 3-5-2011, proc.º n.º 146/09.0PHOER.L1-5, rel. José Adriano: “As chamadas “conversas informais” dos arguidos com os agentes policiais, antes de serem constituídos arguidos, não podem ser valorizadas em sede probatória”).

Partilhamos deste entendimento (vide o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13 de Junho de 2012, disponível em www.dgsi.pt, relatado por Coelho Vieira, em cuja esteira nos baseámos e recolhemos as referências doutrinais e jurisprudenciais supra indicadas). Parece-nos que a valoração de tais conversas, quando os arguidos, em audiência, se remetem ao silêncio, não serão susceptíveis de serem valoradas, sob pena de violação das garantias de defesa destes, mormente do exercício do direito ao silêncio, o qual, apenas desta forma, tem efectiva expressão. O contrário, seria deixar entrar pela janela o que não se quis deixar entrar pela porta.

Ora, no caso em apreço, o arguido JR reproduziu o teor destas conversas informais em sede de declarações, documentadas nos autos, prestadas em sede de inquérito. Não duvidamos da veracidade das mesmas, contudo, à luz da nossa lei processual penal, encontramo-nos impedidos de as valorar, dado que, em julgamento, este arguido remeteu-se ao silêncio. Não importa aqui cuidar das razões pelo que o fez. É um direito que lhe assiste, e nenhuma censura daí poderemos retirar.

Dos restantes meios de prova, também não é possível considerar como provados os factos constantes da acusação. A versão dos factos apresentada pelos arguidos, militares da GNR, parece construída à volta de coincidências que lhe atribuem uma carga de inverosimilhança, como salientado pelo Ministério Público, em alegações. Mas, em face da ausência de outros meios de prova, poderemos daí concluir que o contrário do que afirmam ocorreu e que ocorreu, exactamente, da forma descrita na acusação? Não.

O que se deixa escrito causará perplexidade ao cidadão comum, mas ainda que, como afirmou a defesa do arguido JR, em alegações, sejamos uma Justiça “hipócrita”, procuraremos ser, sempre, uma Justiça cumpridora da Lei.

Ao contrário do que se lê em muito pasquim, o juiz não julga pelo “cheiro”, não se baseia em “palpites”, sem que isto signifique que seja alheio ao que resulta das regras da experiência comum.

Ainda que se possa dizer “O rei vai nu”, perfilhamos do entendimento de que a obediência que devemos à Lei nos conduzirá a uma consciência tranquila e à realização da Justiça, tal qual como foi preconizada pelo legislador.

Em face do exposto, foram os factos constantes das alienas a) a p) considerados como não provados”.
***
Cumpre decidir.
B.2 - Este tribunal da Relação tem competência para conhecer de facto e de direito (artigos 427º e 428.º do Código de Processo Penal).

O âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência, ou não, dos vícios indicados no art. 410°, n.° 2, do Código de Processo Penal de acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das secções do STJ de 19/10/95 in D.R., I-A de 28/12/95.

Haverá que apreciar, como matéria suscitada pela recorrente nas suas conclusões a não consideração na apreciação probatória e convicção da frase dita pelo arguido JR no momento da sua intercepção pela patrulha da GNR constituída pelos outros dois arguidos e saber se há erro notório na apreciação da prova.

A primeira questão suscitada pela recorrente centra-se no saber se o tribunal recorrido, ao não considerar prova relevante o dito pelo arguido aos agentes policiais e agora co-arguidos, violou o direito vigente.

Afirma o tribunal recorrido que se trata de “conversa informal”, como tal prova proibida, a recorrente que se não trata de depoimento indirecto e, portanto, o dito pelas testemunha que o ouviram ao primeiro arguido é prova lícita, afirmam os arguidos que se trata de “conversa informal”, não atendível.

Dos autos resulta que os agentes policiais em acção de controlo de velocidade, ao interceptarem o arguido, ouviram deste que no ano anterior havia pago cem euros a “camaradas” daqueles para evitar ser autuado por excesso de velocidade, criando assim no seu espírito – presume-se - uma avença anual de impunidade.

Estas afirmações são depoimento indirecto, são “conversa informal”, são declarações do arguido prestado em inquérito?

Esta a primeira questão. Só após a decisão sobre esta questão se impõe apurar se o tribunal pode conhecer do alegado erro notório na apreciação da prova ou se se impõe determinar a remessa dos autos ao tribunal recorrido para que seja lavrado novo acórdão ou reenviar os autos para novo julgamento.

É nossa convicção que – a terem existido - não estamos perante depoimento indirecto, nem “conversa informal” (com o significado habitual), sim perante declarações do ora arguido – antes de ser constituído formalmente como arguido - percepcionadas directamente pelos agentes policiais no momento da intercepção.

Em consequência e em função da sua caracterização, podem ser elemento de prova válido a atender pelo tribunal recorrido no âmbito da apreciação probatória e, consequentemente, na sua convicção.

Assim, uma terceira questão surge: qual o vício da decisão que considerou nulo um meio de prova válido? Nulidade, erro na apreciação da prova ou outro? Quais as consequências?
*
B.3 – Há abundante jurisprudência sobre a matéria dos eventuais “depoimentos indirectos” prestados por agentes policiais e das ditas “conversas informais”, mas a sua indicação e reprodução apenas complicaria o que é simples, pois que a nossa questão, passando pelo afastamento dessas duas questões, se centra no saber se as declarações de quem ainda não é formalmente arguido podem ser objecto de depoimento de terceiro (seja agente policial ou não).

Não se trata de depoimento indirecto pois que este tem por objecto o que se ouviu dizer a outra pessoa, não assistindo o depoente ao facto relatado, ao que foi dito.

Ora não é isso que se passa no caso sub judicio.

Nos termos do acórdão da Relação de Guimarães de 11-02-2008 (Proc. 2181/07, rel. Cruz Bucho), “quando a testemunha relata em tribunal aquilo que ouviu da boca de outra pessoa, o depoimento é directo porque a testemunha dele teve conhecimento directo por o ter captado por intermédio dos seus próprios ouvidos”. [2]

É princípio geral relativo à prova por depoimento que a testemunha deva ser inquirida sobre factos de que tenha conhecimento directo – artigo 128º do Código de Processo Penal.

Como já afirmámos no acórdão da Relação de Coimbra de 14-10-2009 (Recurso 63/09-3PECBR.C1), o depoimento por ouvir dizer (por outiva, per auditur), uma das formas de depoimento indirecto, reconduz-se à não percepção directa (sensorial) do facto objecto de prova, sim à recepção do que resulta percepcionado por outro meio de prova, por outra pessoa.

E são as exigências resultantes dos princípios da imediação, oralidade e, maxime, do acusatório, a aconselharem que o iter cognoscitivo do tribunal quanto ao facto a apurar e subsequente formação da convicção do tribunal e sua motivação, se centrem no facto directamente percepcionado e não no indirectamente ouvido.

Ora, no caso concreto os agentes policiais percepcionaram directamente os factos, pelo que não há depoimento indirecto. Acontece é que os factos directamente percepcionados foram o declarado pelo ainda não arguido.

E são estas realidades de facto – directamente percepcionado ou não, declarações de arguido ou não – que têm causado certa instabilidade jurisprudencial.

E a circunstância de serem agentes policiais não torna o seu depoimento de natureza “indirecta”, vício de raciocínio que parece surgir com inusitada frequência e que parece pretender evitar que, em muitas situações, os agentes dos OPC (os seus depoimentos) sejam importante meio de prova.

Logo, não é a análise do regime do depoimento indirecto que se impõe fazer no caso em análise. [3]
*
B.5 – Questão diversa diz respeito às chamadas “conversas informais” levadas a cabo pelos OPC na pendência do processo.

Aqui, em função da qualidade do agente policial e dos deveres que lhe incumbem de formalização em actos processuais das declarações do arguido, o legislador estabelece uma barreira de proibição de valoração, a resultante do regime decorrente dos artigos 356º, nº 7 e 357º, nº 2 do Código de Processo Penal.

É óbvio que essa barreira se concretiza na proibição da sua produção e valoração em audiência de julgamento, mas daí decorre a proibição da sua prática em inquérito.

O que o legislador pretende é instituir a exclusividade de produção (realização) do meio de prova “declarações do arguido” através de uma forma vinculada, taxativa, típica, prevista ao pormenor nos artigos 140 a 144º do Código de Processo Penal, com o nome “interrogatório de arguido”, com exclusão de qualquer outra forma.

Há, portanto, uma vinculação formal, uma taxatividade, uma tipicidade de forma nos interrogatórios de arguido, detido ou não.

O meio de prova “declarações de arguido” tem que ser veiculado através de um “interrogatório” previsto nos artigos 140- a 144. O meio de prova “declarações de arguido” não pode ser veiculado por “conversas informais”.

Dito de outra forma, o formalismo dos interrogatórios de arguido é uma questão central no próprio valor do meio de prova, uma vinculação à forma querida pelo legislador, produto ou resultado de uma evolução histórica processual que concluiu ser este formalismo do interrogatório a melhor forma de acautelar direitos. [4]

Portanto o que se pretende é evitar que as forças policiais consigam introduzir em audiência de julgamento um elemento de prova cujo cumprimento normativo é inexistente e, consequentemente, cuja fiabilidade é patente.

Assim, as “conversas informais” são uma informalidade afrontosa, fraudulenta, que permite a violação desses direitos que se pretendem acautelar. E surgem nos processos como forma de tornear a previsão dos artigos 140 a 144º e 356º e 357º do Código de Processo Penal pouco após a entrada em vigor deste código. Ou seja, uma forma de tornear direitos e, assim, negá-los, em nome de uma suposta verdade “descoberta” pelo investigador policial que, dessa forma, pretende determinar o resultado do julgamento. São, portanto, um expediente de má policia. Um abuso. Uma fraude à lei e ao Direito. E incumbe a qualquer tribunal impedir essa fraude ao Direito.

Daí que as “conversas informais” sejam habitualmente – com pouca ambição - consideradas prova nula, não apreciável em sede de livre apreciação e vedada como base motivacional de facto.

Em nossa opinião devem ser mais (pelo que se acaba de dizer em sede de “tipicidade de interrogatório” de arguido), conduzindo à inexistência do meio de prova declarações de arguido, se estas surgirem através de uma “conversa informal”. [5]

Porque, de facto, só a invalidade processual “inexistência” parece ser suficiente para caracterizar a pretensão de produção de um meio de prova em tão flagrante violação das normas de produção desse meio de prova.

Por outro lado, a sua consideração como prova válida conduziria ao abuso policial como sistema, ao descrédito da Justiça e à violação de direitos do arguido em inquérito – “declarações” não controladas (se é que o são pois que podem ser simulações ou falsidades) – que se podem reflectir em audiência de julgamento (“Direito ao Silêncio” ali exercido).

Há variadíssima jurisprudência sobre a matéria mas limitamo-nos a afirmar que a posição praticamente unânime vai no sentido da proibição de valoração das “conversas informais” desde o acórdão do STJ de 29-01-1992 (CJ, I, pag. 20-24). A doutrina segue no mesmo sentido.[6]

Nada de novo, nada de inesperado, o contrário é que seria espantoso.

Não obstante jurisprudência algo imprecisa quanto à delimitação conceptual das situações de facto (conceito de “depoimento indirecto” quando o agente percepcionou directamente factos, ou de “conversa informal” com arguido, quando ainda não há constituição como arguido), pensamos que uma adequada delimitação das situações de facto e de direito é a sufragada pelo STJ no acórdão de 15-02-2007 (Proc. 06P4593, relator o Cons. Maia Costa):

I - Relativamente ao alcance da proibição do testemunho de “ouvir dizer”, pode considerar-se adquirido, por um lado, que os agentes policiais não estão impedidos de depor sobre factos por eles detectados e constatados durante a investigação e, por outro lado, que são irrelevantes as provas extraídas de “conversas informais” mantidas entre esses mesmos agentes e os arguidos, ou seja, declarações obtidas à margem das formalidades e das garantias que a lei processual impõe.

II - Pretenderá, assim, a lei impedir, com a proibição destas “conversas”, que se frustre o direito do arguido ao silêncio, silêncio esse que seria “colmatado” ilegitimamente através da “confissão por ouvir dizer” relatada pelas testemunhas.

III - Pressuposto desse direito ao silêncio é, no entanto, a existência de um inquérito e a condição de arguido: a partir de então, as suas declarações só podem ser recolhidas e valoradas nos estritos termos indicados na lei, sendo irrelevantes todas as conversas ou quaisquer outras provas recolhidas informalmente.

IV - De forma diferente se passam as coisas quando se está no plano da recolha de indícios de uma infracção de que a autoridade policial acaba de ter notícia: compete-lhe praticar “os actos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova”, entre os quais, “colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime” (art. 249.º do CPP).

V - Esta é uma fase de pura recolha informal de indícios, que não é dirigida contra ninguém em concreto; as informações que então forem recolhidas pelas autoridades policiais são necessariamente informais, dada a inexistência de inquérito. Ainda que provenham de eventual suspeito, essas informações não são declarações em sentido processual, precisamente porque não há ainda processo.

VI - Completamente diferente é o que se passa com as ditas “conversas informais” ocorridas já durante o inquérito, quando já há arguido constituído, e se pretende “suprir” o seu silêncio, mantido em auto de declarações, por depoimentos de agentes policiais testemunhando a “confissão” informal ou qualquer outro tipo de declaração prestada pelo arguido à margem dos formalismos impostos pela lei processual para os actos a realizar no inquérito”.

*
B.6 – Não nos parece que tal ocorra no caso concreto que se não pode reconduzir à noção de “conversas informais”, com o sentido habitual de “meio fraudulento de prova”.

Não há conversas informais quando as forças policiais se limitam a cumprir os preceitos legais, quer pela necessidade de “documentar” a prática do ilícito e suas sequelas, designadamente providenciar os actos cautelares que se imponham (v. g. artigos 243º, 248 a 250º do C.P.P.), quer quando actuam por imposição legal ao detectarem a prática de um ilícito e o arguido decide – por sua iniciativa e sem actuação criticável das forças policiais – fazer afirmações não sugeridas, provocadas ou imaginadas por aqueles OPC.

Não só as forças policiais estão a cumprir preceitos legais que lhes impõem uma actuação, como o arguido fez afirmações unilaterais (a “conversa informal” exige bilateralidade, comunicação mútua, uma provocação para a “confissão por ouvir dizer” ou, mesmo, o “relatar” fraudulento de uma “conversa” inexistente).

Ao invés, no caso presente a “comunicação” reduziu-se à eventual verbalização voluntária de um “estado de alma” por parte do arguido antes de ter essa qualidade.

Ou seja, as forças policiais não estão proibidas de falar com os cidadãos que podem vir a ser arguidos ou com os suspeitos, ou com quem se encontra numa “cena de crime”, que a tal resultado conduz o excesso, o radicalismo, na análise destas situações e na fase incial do processo.

Esta situação teórico-processual é de fronteira e de difícil solução em muitos casos, mas no caso concreto ela não assume tal dificuldade e é, aliás, evidente numa análise calma da situação de facto e seus significados normativos.

E é de fronteira quando o ainda não arguido mas já pode ser suspeito, ainda não foi constituído arguido, podendo considerar-que que há motivo para tal.

O caso dos autos não ´de fronteira, pois que o arguido, antes de o ser e de haver motivos para o ser, faz uma afirmação que denuncia a prática eventual de um crime. Só após a sua afirmação surge a possibilidade – que pode não ser imediata, por necessidade de obter mais indícios – de constituição de arguido.

Para este caso parece-nos, deveria valer o disposto no artigo 58º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “Constituição de arguido”, norma que é o cerne da nossa questão concreta (e não a questão do “depoimento indirecto” ou das “conversas informais”):

1 - Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, é obrigatória a constituição de arguido logo que:

d) For levantado auto de notícia que dê uma pessoa como agente de um crime e aquele lhe for comunicado, salvo se a notícia for manifestamente infundada.

2 - A constituição de arguido opera-se através da comunicação, oral ou por escrito, feita ao visado por uma autoridade judiciária ou um órgão de polícia criminal, de que a partir desse momento aquele deve considerar-se arguido num processo penal e da indicação e, se necessário, explicação dos direitos e deveres processuais referidos no artigo 61.º que por essa razão passam a caber-lhe.
3 - …
5 - A omissão ou violação das formalidades previstas nos números anteriores implica que as declarações prestadas pela pessoa visada não podem ser utilizadas como prova.

6 - A não validação da constituição de arguido pela autoridade judiciária não prejudica as provas anteriormente obtidas.

E, como mera decorrência do nº 5 do artigo 58º do Código de Processo Penal, a omissão ou violação das formalidades previstas nos números anteriores implica que qualquer declaração daquele que já deveria ter sido constituído como arguido não pode ser utilizada como prova. Tratar-se-ia de clara proibição de prova se tal tivesse ocorrido.

Mas esta proibição de prova não abrange as declarações ouvidas pelos agentes policiais ao arguido (antes de o ser) se não houver culpa sua no atrasar da formalização daquela constituição.

Como se fundamenta no Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 11 Julho 2001: [7]
“Convém realçar que a não constituição de alguém como arguido nos casos a que se refere o citado artigo 58°, nomeadamente, a violação ou omissão das formalidades aí previstas "implica que as declarações prestadas pela pessoa visada não podem ser utilizadas como prova contra ela" (n.° 4).

Naturalmente que o argumento interpretativo a contrario sensu é falível mas aqui inevitável.

Face ao ordenamento português e no caso concreto parece-nos indubitável que simples cidadão ou cidadão suspeito não goza do direito ao silêncio e, como tal, a prova produzida pelas suas declarações, melhor, depoimento, é válido.

Se ainda não havia obrigação de constituição como arguido e as entidades policiais agiam dentro dos poderes concedidos pelas normas reguladoras da aquisição e notícia do crime (artigos 241º e 242º) e de medidas cautelares e de policia (artigos 248º e segs., designadamente o artigo 250º do C.P.P.) e, sem má fé ou atraso propositado na constituição de arguido, ouvem do cidadão ou suspeito a informação da prática de um crime, isso não constitui violação de lei ou fraude à lei, nem obtenção de prova proibida.

Por isso que a questão não se centra – como faz alguma jurisprudência – em saber se a proibição de “conversas informais” deve abranger afirmações anteriores ou posteriores à constituição de arguido.[8]

Que são proibidas após a constituição como arguido é do reino do óbvio.

Que nunca são antes da constituição como arguido também nos parece evidente, já que aí nem existem “conversas informais”, sim afirmações de um cidadão, que pode ser suspeito ou nem isso. E o suspeito ou nem isso é, no ordenamento processual penal português, uma testemunha.

Excepto se a má-fé policial tiver ilegalmente atrasado essa constituição. Por isso que o artigo 58º tenha um nº 5, que comina com a nulidade probatória uma conduta policial que conduza a um resultado não querido pelo legislador. [9]

Assim, a questão centra-se, no caso de situações de fronteira, na distinção a fazer entre as figuras de “suspeito” e “arguido”. Este goza de direitos, aquele é testemunha. O arguido goza do direito ao silêncio, o suspeito não. [10]

Numa situação de facto duvidosa em que as forças policiais não constituem logo como arguido – que o pode ser verbalmente – um suspeito da prática de um crime é de reconhecer ao suspeito o direito ao silêncio (e seus benefícios em audiência – não admissão de depoimentos policiais)? Ou seja, podemos resolver a questão através da extensão de direitos do arguido ao suspeito? Ou fazer rectrotrair a condição de arguido a momento anterior independentemente de uma situação de nulidade (fora, portanto, da operatividade do nº 5 do artigo 58)? Ou estaremos limitados – o que parece o mais adequado – à clara delimitação da situação de facto, até em função da relevância do momento de constituição como arguido? [11]

O direito francês resolve o problema suscitado por estas questões de fronteira através da figura da “témoin assisté”, [12] reconhecendo a esta direitos análogos aos do arguido – Code de Prócedure Pénale, artigos 113-2 a 113-8 (48º Edition, 2007, Dalloz), principalmente o artigo 113-4, 1º §. [13]

O caso concreto permite-nos fugir à questão, muito embora se opine – sem relevo para os autos – que o sistema processual penal português é claro na distinção de figuras e efeitos e que a resolução das questões de fronteira passa pela clara delimitação da situação de facto e pela análise rigorosa da actuação policial, sendo a dúvida de facto resolvida a favor do arguido.

No caso presente, em que sequer se indicia deficiente conduta policial (muito menos má-fé na sua actuação), mas uma verbalização – se existente, obviamente - voluntária e de soberba do arguido não estamos perante uma situação de fronteira.

No nosso caso a situação é mais “colorida”, pois que o arguido é interceptado na prática de uma contra-ordenação (excesso de velocidade) e não de um crime, pelo que nem sequer há atraso na constituição de arguido em processo crime para os efeitos do artigo 58º, nº 5 C.P.P. no momento em que, interceptado, faz a afirmação.

Ou seja, o arguido não tinha que ser constituído como tal quando se concretiza a intercepção e só depois de verbalizar a eventual prática de um crime de corrupção é que pode surgir (se houver indícios) a obrigação de constituição como arguido em processo crime e não antes.

Não há, pois, nulidade de meio de prova resultante da previsão do nº 5 do artigo 58º do Código de Processo Penal, única de que poderia beneficiar o arguido.

No fundo, a declaração do arguido não passa de uma denúncia de um crime nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 241º e seguintes do Código de Processo Penal, mais propriamente do artigo 244º.

Que ele seja simultaneamente denunciante e denunciado – sendo interessante - não altera os dados da concreta situação processual.
*
B.7 – Como consequência do que acabámos de expor – validade de um meio de prova válido mas declarado nulo - deve o tribunal recorrido reapreciar os factos, incluindo nessa apreciação o meio de prova “depoimento de testemunhas”, das testemunhas DM, PA e VP, para o que haverá que determinar a prolação de nova decisão.

Assim, quanto à última questão, qual o vício da decisão que considerou nulo um meio de prova válido, nulidade ou erro na apreciação da prova, temos que concluir que nenhuma dessas, pois que se trata de um erro de direito que afectou a apreciação probatória e se constituiu como erro de julgamento em matéria de direito.

Isto porquanto o vício detectado no acórdão recorrido e analisado por este tribunal não diz respeito a um vício de apreciação probatória - erro de julgamento entendido como questão de facto (artigo 412º, nºs. 3 e 4 do C.P.P.) ou erro de revista alargada nos termos do disposto no artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal – nem uma nulidade processual já que a não consideração de um meio válido de prova não é uma nulidade processual.

Acresce que este Tribunal da Relação não pode cindir o juízo probatório (e convicção) do tribunal recorrido e concluir que a existência deste meio de prova é suficiente – ou não – para a condenação dos arguidos, para mais não havendo recurso de facto.

Este vício determina – e apenas – a prolação de nova decisão, sem prejuízo dos poderes do tribunal recorrido de determinar a reabertura da audiência se e para o que entender conveniente.

*
C - Dispositivo:

Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 2ª Subsecção Criminal deste tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso e, em consequência, declaram nula a decisão recorrida e determinam a prolação de nova decisão expurgada do vício indicado em B.7, para o que haverá que incluir na apreciação probatória o depoimento das testemunhas DM, PA e VP.

Sem custas. (elaborado e revisto pelo relator antes de assinado).

Évora, 04 de Junho de 2013

João Gomes de Sousa


Ana Bacelar Cruz

__________________________________________________
[1] - Sumariado pelo relator.

[2] - No mesmo acórdão e por referência ao acórdão do S.T.J. de 12-12-2001, considerou-se “não se estar perante um depoimento indirecto, mas antes perante o relato de um facto concreto e de que a testemunha teve conhecimento directo por o ter captado por intermédio dos seus próprios ouvidos, quando essa testemunha transmite ao tribunal o que ouviu um dos co-arguidos dizer”.

[3] - De qualquer forma sempre se afirma que do estatuído no artigo 129º, nº 1 do Código de Processo Penal claramente decorre que o depoimento per auditur não é “absolutamente proibido” na ordem jurídica portuguesa. A regra acaba por ser a aceitação. Como já afirmámos no acórdão de 14-10-2009 supra citado, apesar de a regra da hearsay is no evidence ser vista ainda hoje como "uma característica de todos os processos de estrutura fundamentalmente acusatória, enquanto a sua admissibilidade é característica dos processos de fundo inquisitório” (Prof. Costa Andrade, in Colectânea de Jurisprudência, ano VI, 1981, tomo 1º, pág. 6), isso hoje já só se justifica numa abordagem historicista. De facto, este dualismo jurídico não é tão claro, afastando-se claramente do “hearsay is no evidence” depois de o britânico “Civil Evidence Act 1995” [secção 1. (1) e (2)] ter abolido a regra para o processo civil (sem prejuízo das salvaguardas da secção 2.) e de o “Criminal Justice Act 2003” ter consagrado um grande campo de excepções à regra no campo penal (secções 114, 116 e 118).

O mesmo se passa com as Federal Rules of Evidence, onde a Rule 602 (Lack of Personal Knowledge) impõe que “A witness may not testify to a matter unless evidence is introduced sufficient to support a finding that the witness has personal knowledge of the matter”.. e, subsequentemente a Rule 802 (Hearsay Rule) determina que “Hearsay is not admissible except as provided by these rules or by other rules prescribed by the Supreme Court pursuant to statutory authority or by Act of Congress”. Não obstante, a Rule 803 (Hearsay Exceptions) contém um tal campo de excepções à regra geral que esta se torna uma excepção, cumpridas que estejam as duas condições da sua admissibilidade, o dar conhecimento à outra parte da intenção de produzir tal prova e a audição da testemunha fonte, quando disponível.

Constatamos, pois, que o direito de raiz anglo-saxónico é hoje menos rígido - pela abertura de um grande campo de excepções à regra - do que os direitos europeus continentais, pelo menos os mais próximos do direito processual penal português, designadamente o italiano e o espanhol.

[4] - V. g., a propósito do meio de prova “reconhecimento” mas aplicável por maioria de razão ao interrogatório de arguido, Medina de Seiça, «Legalidade da prova e reconhecimentos “atípicos” em processo penal» in “Liber Discipulorum a Jorge de Figueiredo Dias», pp. 1387- 1421 (principalmente pp. 1399-1410), Coimbra Editora, 2003.

[5] - Ver a este propósito o acórdão da Relação de Lisboa de 04-03-2009 (Proc. 1592/99.OSXLSB.L1, rel. Rui Gonçalves) – “VI – Não é possível, à luz do processo penal português, criar-se uma nova categoria processual de “conversas” ou de actos “informais” (inexistente numa teoria dos actos processuais-penais), sendo que tal categoria seria, de todo, incongruente com o estatuto processual conferido ao arguido.”

[6] - V. g. José Damião da Cunha, in “O regime processual de leitura de declarações na audiência de julgamento” in RPCC, ano 7, fasc. 3, pag. 422 e segs.

[7] Colectânea de Jurisprudência (STJ), Tomo III/2001, Rel. Lourenço Martins, Processo: 1796/01.

[8] - Acórdão da Relação do Porto de 13-06-2012 (proc. 1222/11.4JAPRT.P1): “I – As conversas informais dos arguidos com os agentes policiais, quer ocorram antes quer ocorram depois da constituição de arguido, são desprovidas de valor probatório por violação do princípio constitucional do direito a um processo justo e equitativo”.

[9] - Parece-nos irem neste sentido os acórdãos: do STJ no supracitado acórdão de 15-02-2007 (Proc. 06P4593, relator o Cons. Maia Costa): “IV - De forma diferente se passam as coisas quando se está no plano da recolha de indícios de uma infracção de que a autoridade policial acaba de ter notícia: compete-lhe praticar “os actos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova”, entre os quais, “colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime” (art. 249.º do CPP). V - Esta é uma fase de pura recolha informal de indícios, que não é dirigida contra ninguém em concreto; as informações que então forem recolhidas pelas autoridades policiais são necessariamente informais, dada a inexistência de inquérito. Ainda que provenham de eventual suspeito, essas informações não são declarações em sentido processual, precisamente porque não há ainda processo”.

- da Relação de Coimbra de 09-07-2008 (Jorge Dias, proc. nº 601/07.6GBCNT.C1): “Deve ser valorado em audiência de julgamento o depoimento de um agente da autoridade que, no exercício das suas funções, ao tomar conta de uma ocorrência, foi informado por um interveniente em acidente de viação, que era ele o condutor”

- da Relação de Coimbra de 09-05-2012 (Proc. 12/11.9PECTB.C1, rel. Jorge Dias): “Os depoimentos prestados em audiência pelos agentes da autoridade relatando a forma como abordaram o dono do carro, dentro do qual se encontrava a arma proibida, e que mais tarde viria a ser constituído arguido, perguntando-lhe a quem pertencia tal arma, constitui prova válida e atendível adquirida no âmbito da investigação que lhes competia efetuar”.

- da Relação de Lisboa de 02-03-2006 (Rel. Fernando Correia Estrela, proc. 22/07.0FCSTB.L1): “I- Não consubstancia o sentido de 'conversas informais' o diálogo estabelecido entre um qualquer agente de autoridade e o suspeito da prática de crime (condução em estado de embriaguez), no local e imediatamente após acidente de viação, pelo que não constituindo prova proibida, pode ser valorado pelo tribunal de julgamento o depoimento da testemunha, agente policial que tomou conta da ocorrência”.

- da Relação de Lisboa de 10-03-2009 (rel. Luís Gominho): “VI. É que o relato referente à abordagem inicial de quem enceta uma acção de fiscalização, para num primeiro momento procurar um interlocutor válido com quem dialogar, sedimentando, no seu prosseguimento, a convicção obtida, não integra o conceito de “conversa informal”, do mesmo modo que a elaboração de um auto de notícia não pode ser confundido com um auto de declarações, não estando portanto tal relato no âmbito da proibição do art.356º., nº.7 do Código de Processo Penal”.

- da Relação de Guimarães de 25-02-2009 (proc. 736-08.8GAEPS.G1, rel. Carlos Barreira): “IV – Pressuposto desse direito ao silêncio do arguido é, no entanto, a existência de um inquérito e a condição de arguido: a partir de então, as suas declarações só podem ser recolhidas e valoradas nos estritos termos indicados na lei, sendo irrelevantes todas as conversas ou quaisquer outras provas recolhidas informalmente. V – De forma diferente se passam as coisas quando se está no plano da recolha de indícios de uma infracção de que a autoridade policial acaba de ter notícia: compete-lhe praticar “os actos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova”, entre os quais, “colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime” (art.º 249º do C.P. Penal). VI – Esta é uma fase de pura recolha informal de indícios, que não é dirigida contra ninguém em concreto; as informações que então forem recolhidas pelas autoridades policiais são necessariamente informais, dada a inexistência de inquérito. Ainda que provenham de eventual suspeito, essas informações não são declarações em sentido processual, precisamente porque não há ainda processo”.

[10] - Ver a questão colocada de forma clara e racional pelo Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” 5ª edição - Vol. I, pp. 291-293, Editorial VERBO, 2008.

[11] - V. g. o Prof. Germano Marques da Silva - na obra citada a fls. 291 – na referência à Lei nº 43/86, de 26-09 e a relevância da “definição rigorosa do momento e do modo de obtenção do estatuto de arguido”

[12] - Aut. E ob. cit.

[13] - “Lors de la première audition du témoin assisté, le juge d'instruction constate son identité, lui donne connaissance du réquisitoire introductif, de la plainte ou de la dénonciation, l'informe de ses droits et procède aux formalités prévues aux deux derniers alinéas de l'article 116. Mention de cette information est faite au procès-verbal” – redacção da Lei n° 2000-516 de 15 Junho 2000 (em vigor desde 1 de Janeiro de 2001).