Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
87/12.3GGBJA-A.E1
Relator: CARLOS BERGUETE COELHO
Descritores: MEIOS DE PROVA
FOTOGRAFIAS
GRAVAÇÃO LÍCITA
Data do Acordão: 03/29/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Sumário:
I – Configura prova proibida, nos termos e para os efeitos do artigo 167.º do CPP, por referência ao disposto no artigo 199.º, n.º2, alínea a) do Código Penal, as fotografias obtidas por uma testemunha, em situação que não pode enquadrar-se em lugar público, sem o consentimento do visado e com o sentido inequívoco de ulterior demonstração probatória da acção deste, que não lhe era dirigida a si, mas a outra pessoa.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

1. RELATÓRIO

Nos autos em referência, correndo termos em Secção Criminal da Instância Local de Beja, Comarca de Beja, o assistente JH deduziu acusação contra A., imputando-lhe a prática de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181.º, n.º 1, do Código Penal (CP), e de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art. 143.º, n.º 1, do CP.

O Ministério Público, findo o inquérito, determinou o arquivamento pelo crime de ofensa à integridade física e não acompanhou a acusação pelo crime de injúria.

Não se conformando com esse arquivamento, o assistente veio requerer a abertura da instrução, tendo junto, como prova, um CD contendo filmagem colhida através do seu telemóvel e transcrição de conversa gravada pelo mesmo meio.

Aberta a instrução, procedeu-se a inquirição de testemunha (OM, durante a qual esta exibiu duas fotografias, cuja junção aos autos se determinou, conforme consta de despacho então proferido pelo tribunal a quem a diligência foi deprecada, por entender poder ser útil às finalidades da instrução.

Acerca da (in) validade da prova constituída pelo referido CD, na sequência de despacho que a veio suscitar, o assistente e o Ministério Público pronunciaram-se.

Após, proferiu-se despacho, no que ora releva, do seguinte teor:

(…) pelo requerimento de fls. 428 a 430, veio pronunciar-se o assistente, pugnando pela validade de tal meio de prova.

Veio referir que a filmagem incluída no CD anexo ao requerimento de abertura de instrução, contém duas partes: uma na qual é visível uma vinha, uma máquina e duas pessoas (não identificáveis por se encontrarem à distância), e, posteriormente, a súbita chegada do arguido que, após imobilizar a sua viatura, se dirige para a vedação que separa a via pública da sua propriedade, com propósito de a transpor; a segunda parte onde nada é visível, ouvindo-se apenas o barulho das agressões do arguido e os gritos deste e da esposa do assistente. Defende, assim, que ocorrerão duas situações: filmagem e gravação.

No que respeita à filmagem, sustenta que por não existir qualquer indício de que haveria o propósito de filmar o arguido. Antes se tencionava filmar, à distância, a possibilidade de destruição/danificação com uma máquina da conduta de água que serve a propriedade do assistente e do irmão. E o aparecimento súbito do arguido, que se introduz no plano fixo de filmagem e avança rapidamente na direcção do assistente é que dá origem a que aquele seja filmado. É o arguido que se introduz no plano fixo de filmagem e não este que busca a pessoa do arguido, tudo se precipitando em muito poucos segundos. Mais refere que o arguido nem sequer manifestou qualquer oposição ao facto de, nas circunstâncias referidas, estar a ser filmado, sendo que foi este que, sabendo que estava a ser filmado, por se ter colocado voluntariamente à frente do aparelho, avançou para os assistentes apenas e exclusivamente com intuito agressivo. No que respeita à gravação sonora, defende que esta é acidental, não resultando de qualquer actuação/omissão voluntária ou descuidada do assistente. Perante a agressividade do arguido, o assistente apenas teve tempo para baixar o telemóvel. Não teve tempo de o desligar. Quer isto dizer, não existe um acto de gravar as afirmações do arguido. Daí dizer-se que a gravação foi acidental, no sentido de independente da vontade do assistente. Não deixa de argumentar que a actuação do arguido, realizada já fora da sua propriedade, no caminho público que a circunda, ocorreu à vista de toda a gente, podendo os seus gritos ser ouvidos por qualquer pessoa que se encontrasse nas imediações do local onde os factos ocorreram e que foram proferidas de modo a serem audíveis por qualquer pessoa, facto de que ele, arguido, estava bem ciente.

Argumenta existir justa causa para a obtenção de tal meio de prova e que este não diz respeito «ao núcleo da vida privada» da pessoa visionada (o aqui arguido), sendo a imagem e gravação lícitas.

Para tanto, cita diversa jurisprudência, ainda que esta seja referente a processos em que estaria em causa a obtenção de imagens por sistemas de videovigilância.
*
De fls. 431 a 438 veio, de igual modo, pronunciar-se o Ministério Público divergindo, todavia, da opinião expressa pelo assistente quanto à validade de tais elementos probatórios.

Para tanto defende que a gravação que o próprio assistente efectuou com o seu telemóvel, no dia, hora e local dos factos, em que capta imagens e palavras do arguido sem o consentimento ou autorização deste e que, para além da gravação de imagens, a “escuta ambiental”, ou seja, a gravação de conversas entre presentes, no seu ambiente real, foram realizadas por um dos interlocutores sem o conhecimento nem consentimento ou autorização do outro, com a finalidade de comprovar a identidade do autor do crime de ofensa à integridade física. Defende que se trata de uma gravação sem qualquer intuito de impedir uma reiteração delitiva, de tutela da vítima; de recolher preventivamente todo o tipo de informações com o fim de prevenir delitos ou facilitar a futura investigação dos que vierem a ser praticados; de assegurar fontes de prova com a finalidade de prova em relação um delito a consumar, ou seja, sem fins de prevenção criminal, mas exclusivamente com o intuito de demonstrar a ocorrência de factos tipificados na Lei como crime e a identidade da pessoa que os cometeu. E, por esse motivo, conclui que a sua validade não poderá ser a mesma (por comparação com os sistemas de videovigilância colocados na via pública), por se estar perante um meio de obtenção de prova que colide com diferentes direitos fundamentais do arguido, como sejam o direito à imagem, à palavra e à intimidade, que são protegidos pelo art. 26.º, n.º 1 da C.R.P.

Invoca, para tanto, o art.º 199.º do Cód. Penal e a opinião do Prof. Costa Andrade (no Comentário Conimbricense do Código Penal, em anotação ao art. 199.º), para após concluir pela ilegalidade das gravações feitas, consequente nulidade probatória, que se estende às duas cópias das fotografias que foram juntas no decurso da inquirição da testemunha OM, em sede de instrução, elementos que não poderão ser valoradas pelo Tribunal.

Pugna, assim, pela declaração de nulidade da referida gravação contida no CD que foi junto a fls. 350, bem como a reprodução em papel do referido diálogo junta a fls. 348 e 349 e ainda as duas fotografias juntas a fls. 416 e 417, em consequência do que deverá ser determinado o seu desentranhamento do processo, por constituírem meios de prova proibidos.

Mais promove que, antes de ser ordenado tal desentranhamento, seja dado conhecimento ao arguido da situação para, querendo, exercer o direito de queixa de que é titular (quanto ao crime do artigo 199.º do CP).

Cumpre apreciar e decidir.

O art. 26.º n.º 1 da CRP estabelece que a todos é reconhecido o direito à reserva da intimidade da vida privada, pelo que de acordo com o igualmente estabelecido no artigo 18.º n.º 1 da CRP, aquele preceito é directamente aplicável e exequível por si mesmo, sem necessitar pois [e nas palavras de Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, IV, p.313] da intervenção da lei ordinária, vinculando as entidades públicas, a começar pelos tribunais, e privadas.

A nível constitucional, acrescenta ainda o art.º 32.º, n.º 8 da CRP, que é nula - logo necessariamente ilícita e proibida - a prova obtida mediante abusiva intromissão na vida privada.

Esta norma deve ser tida como aplicável em todo e qualquer processo e reporta-se tanto à prova obtida tanto pelas entidades públicas como pelas entidades particulares.

E as proibições de prova produzem, na sua atendibilidade e valoração, aquilo a que se costuma chamar “efeito à distância”, no sentido de que da mesma maneira que não é admissível a prova proibida directa, também não será tolerável a prova mediata, fundada naquela outra. [Neste sentido, a doutrina de Costa Andrade in Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, p. 169 e sgts e 182 e sgts].

A salvaguarda dos direitos ou interesses constitucionalmente protegidos há-de correlacionar-se com o princípio da proporcionalidade em sentido amplo, proibindo-se o excesso, e devendo, por isso, as restrições estabelecidas serem necessárias, adequadas e proporcionais.

Por isso, numa situação de colisão de direitos fundamentais, de ordem constitucional, quais sejam, o direito à reserva da intimidade da vida privada e o direito de acesso aos tribunais para defesa de interesses legalmente protegidos (art. 20.º da CRP) haverá que conjugar os interesses em confronto.

É certo que o oferecimento de provas faz parte do conteúdo do direito de acesso aos tribunais. Todavia, tal como fazem notar Jorge Miranda e Rui Medeiros [in Constituição Portuguesa Anotada, I, p. 195)) um tal direito não implica necessariamente a admissibilidade de todos os meios de prova permitidos em direito em qualquer tipo de processo e independentemente do objecto do litigio, assim como não exclui em absoluto a introdução de limitações na produção de certos meios de prova, posto que não arbitrárias ou desproporcionadas.

E, de acordo com a lição de Vieira de Andrade (in “Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976”, 2ª ed., p. 277, 278 e 310 e sgts) e de Bacelar Gouveia (in “Manual de Direito Constitucional”, II, p. 1085 e sgts), o critério a usar em caso de colisão de direitos conferidos pela CRP deve passar, em primeira linha, não pela hierarquização abstracta dos bens envolvidos nesses direitos fundamentais, mas por uma ponderação em função das circunstâncias concretas em que se põe o problema, de forma a encontrar a solução mais conforme à ordem constitucional.

Pois bem, para a apreciação da situação vertente crê-se que assumirá particular relevância o decidido pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, no âmbito do Processo n.º 689/10.2GAPTL.G1, disponível em www.dgsi.pt.

Por ter tido como objecto uma situação em tudo similar à dos autos e ser particularmente esclarecedor, transcreve-se parcialmente o seu conteúdo:

[…] salvo o devido respeito, não assiste razão à recorrente, uma vez que é nosso entendimento de que tal prova, mesmo que obtida sem o consentimento da arguida, pode e deve ser valorada no processo penal não configurando prova proibida nos termos do art.º 125.º do CPP.

Em causa está uma discussão na qual os insultos proferidos pela arguida tiveram como única destinatária a ofendida Maria C. ... E o teor dos insultos dirigidos à ofendida pôde ser ouvido por várias pessoas, entre as quais o seu filho Rui que procedeu à questionada gravação. Significa isto que a arguida não se preocupou em evitar que as suas palavras não fossem audíveis por outras pessoas, o que vale por dizer que tais palavras se destinavam ao público.

Mutioz Conde Revista Penal - nº14 - janeiro de 2009 Prueba prohibida y valoracíón de las grabaciones audiovisuales en el proceso penal -, referindo-se concretamente a gravações realizadas por particulares no âmbito das relações privadas, entende que a chave para saber em que casos, excepcionalmente, a gravação pode ser utilizada como prova é dada pela situação em que se encontra o particular que a faz - se é alguém que está a ser vítima de um crime e com a gravação pretende facilitar a sua averiguação e posterior condenação, ou se é alguém que não seja a vítima mas antes co-autor desse delito ou queira utilizar a gravação para chantagear a pessoa que a grava, ameaçando denuncia-la.

No caso, é manifesto que a ofendida estava a ser vítima de um crime de injúrias. Daí que estejamos em presença de uma gravação que deve ser tida por lícita.

Assim e para concluir, nada obsta a que a referida gravação seja valorada pelo tribunal em conjugação com depoimentos das testemunhas Rui e José Luís nos termos do artº 127º do C.P.P., pois não constitui prova proibida. (...)"

Na situação que em concreto apreciamos, a denunciada actuação do arguido, terá ocorrido fora da sua propriedade, num caminho público que a circunda, à vista de quem ali estivesse, sendo que os seus gritos eram aptos a ser ouvidos por qualquer pessoa e terão sido supostamente proferidas em tom e modo aptos a serem audíveis por qualquer pessoa e que não seria do desconhecimento do arguido.

Nessa medida, adoptando a tese já expressa no Acórdão supra transcrito, tendo as concretas circunstâncias em que os factos aparentemente terão ocorrido, assumirá maior relevo a protecção do direito de acesso aos tribunais para defesa de interesses legalmente protegidos (ou seja, de o assistente utilizar tal meio como prova no âmbito de processo em que visa demonstrar uma actuação ilícita do arguido) em detrimento do direito à reserva da intimidade da vida privada do arguido.

Por conseguinte, e pese embora as reservas iniciais colocadas quanto à validade de tais elementos probatórios - que determinaram a prolação do despacho de fls. 420 - se conclui que não será nula a prova contida no CD junto pelo assistente (bem como os fotogramas juntos a fls. 436 e 437).

Notifique.

Inconformado com o despacho, o Ministério Público interpôs recurso, formulando as conclusões:

1.º
Vem o recurso interposto do despacho proferido a fls. 439 a 445 dos autos de Instrução n.º 87/12.3 GGBJA, no qual o Mm.º Juiz de Instrução reconheceu como válida a gravação constante do CD com que o assistente instruiu o seu requerimento de abertura de instrução e a transcrição de um diálogo captado no momento em que foi efetuada a mencionada gravação, para além de ter ainda reconhecido como válida a cópia de 2 (duas) fotografias que foi junta pela testemunha OM, no decurso da sua inquirição em sede de instrução.

2.º
A questão que se coloca prende-se unicamente com a validade dos referidos meios de prova.

3.º
Neste caso concreto está em causa a captação, pelo assistente, com o seu telemóvel, de imagens e, simultaneamente, de palavras, quando se encontrava no local dos factos - imediações do Monte do Moutinho -, bem como a reprodução, em suporte de papel, dessas palavras.

4.º
Trata-se de uma gravação sem qualquer intuito de impedir uma reiteração delitiva; de tutela da vítima; de recolher preventivamente todo o tipo de informações com o fim de prevenir delitos ou facilitar a futura investigação dos que vierem a ser praticados; de assegurar fontes de prova com a finalidade de prova em relação um delito a consumar, ou seja, sem fins de prevenção criminal, mas exclusivamente com o intuito de demonstrar a ocorrência de factos tipificados na Lei como crime e a identidade da pessoa que os cometeu.

5.º
Precisamente por essa razão é que se conclui que estamos claramente perante um meio de obtenção de prova que colide com diferentes direitos fundamentais do arguido, como sejam o direito à imagem, à palavra e à intimidade, que são protegidos pelo art. 26°, n.º 1 da C.R.P.

6.º
Esta nova forma de "privatização da investigação", traduzida na gravação de imagens por particulares, que são por eles trazidas ao processo, tem de ser analisada casuisticamente, tendo em vista a salvaguarda daquele «núcleo duro» da vida privada da pessoa visionada, o qual assume uma multiplicidade de vertentes e que seguramente abrange todas as situações como a que está em causa nestes autos - onde o uso das reproduções mecânicas tem um fim exclusivamente repressivo e não preventivo, por isso, vedado por Lei, na medida em que constituem meios de prova ilícitos à luz do art. 199º do Cód. Penal.

7.º
Exatamente pelos mesmos fundamentos consideramos que as duas cópias das fotografias que foram juntas no decurso da inquirição da testemunha OM, em sede de instrução, não poderão ser valoradas pelo Tribunal como meio de prova. É que as fotografias em causa foram obtidas pela referida testemunha quando fotografou o arguido exatamente nas mesmas circunstâncias de tempo, modo e lugar e com o mesmo fim com que o fez o assistente ao efetuar a gravação (de imagens e palavras) com o telemóvel.

8.º
Neste caso não são válidas e, como tal, não podem ser valoradas pelo Tribunal as provas consistentes, quer na captação das referidas fotografias pela testemunha, quer na gravação de imagens e palavras, através da filmagem, feita pelo próprio assistente com o seu telemóvel, bem como a reprodução em papel do diálogo travado pelo arguido no momento da captação das imagens, independentemente do tempo da gravação e da sua qualidade.

9.º
A considerar-se que um tão vulgar contexto da vida social legitima a realização de gravações de palavras e da imagem de terceiros, a tutela penal concedida pelo art.º 199.º do Código Penal fica sem objeto, passa a ser uma incriminação meramente simbólica.

10.º
O despacho recorrido supõe, de modo bem infeliz, que existe uma contradição insanável entre a esfera da privacidade (lato sensu, abrangendo a palavra e a imagem) e os eventos sucedidos no espaço público, quando está claramente assumido pela doutrina que a privacidade não “cessa” quando a pessoa age em público.

11.º
O Mm.º Juiz de Instrução ao proferir o despacho de fls. 439 a 445 violou o disposto nos arts. 26º, n.º 1 da C.R.P., 125º, 126º, n.º 3 e 167º do Cód. Proc. Penal e ainda o art. 199º do Cód. Penal, pelo que a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que não admita os referidos meios de prova por serem nulos e, por isso, proibidos.

O recurso foi admitido.

O assistente apresentou resposta, sem extrair conclusões, pugnando pela confirmação do despacho recorrido.

Neste Tribunal da Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, no sentido de que as provas são proibidas.

Observado o disposto no n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal (CPP), o assistente reiterou a sua posição.

Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO
O objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da motivação, como decorre do art. 412.º, n.º 1, do CPP. Assim, reside em apreciar da preconizada invalidade das provas admitidas na instrução, no caso, por um lado, do CD, junto ao requerimento de abertura da instrução, reportado à filmagem e à gravação efectuadas, incluindo a consequente transcrição da conversa gravada e, por outro, das fotografias exibidas por testemunha quando inquirida.

Analisando:
O despacho recorrido suportou a admissibilidade dos meios de prova obtidos através do telemóvel (filmagem e conversa e, consequente, transcrição desta) na ponderação do direito à reserva da intimidade da vida privada e do direito de acesso aos tribunais para defesa de interesses legalmente protegidos, justificando a sua posição, em síntese, pela circunstância de que, em concreto, como nele consta, a denunciada actuação do arguido, terá ocorrido fora da sua propriedade, num caminho público que a circunda, à vista de quem ali estivesse, sendo que os seus gritos eram aptos a ser ouvidos por qualquer pessoa e terão sido supostamente proferidas em tom e modo aptos a serem audíveis por qualquer pessoa e que não seria do desconhecimento do arguido.

Por seu lado, no tocante às fotografias obtidas de testemunha, o tribunal não se pronunciou expressamente acerca da sua validade processual, mas implicitamente veio a acolher o fundamento de interesse para a instrução formulado pelo tribunal então deprecado para a realização da diligência.

Ora, nos termos do art. 26.º n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), “A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação”, aqui abarcando-se a protecção da esfera nuclear das pessoas e da sua vida, ou seja, fundamentalmente aquilo que a literatura civilista designa por direitos de personalidade (v. Gomes Canotilho/Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Coimbra Editora, 2007, volume I, pág. 461, e Paulo Mota Pinto, sobre “A limitação voluntária do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”, in “Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues”, Coimbra Editora, 2001, volume 2, pág. 527).

Sem descurar os contributos doutrinários e jurisprudenciais que a densificação do conceito de vida privada e familiar tem merecido (sobre esta temática, v. acórdão do STJ de 28.09.2011, rel. Cons. Santos Cabral, in www.dgsi.pt), acompanhando Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., pág. 468, pode definir-se que o âmbito normativo do direito fundamental à reserva da intimidade da vida privada e familiar deverá delimitar-se, assim, como base num conceito de «vida privada» que tenha em conta a referência civilizacional sob três aspectos: (1) o respeito dos comportamentos; (2) o respeito do anonimato; (3) o respeito da vida em relação.

Afigura-se, sem necessidade de acrescido esclarecimento, que a situação em análise não respeita ao núcleo íntimo da vida privada do arguido. Porém, não deixa de relevar como atinente à sua privacidade, entendida, esta, na sua ampla dimensão, multifacetada, que se revela pelas mais diversas formas e, também, na interacção social, como aqui sucede.

E o despacho recorrido não o descurou, na ponderação dos direitos por que se pautou, apelando à forma tendencialmente pública que a acção do arguido terá revestido, em condições que justificariam a obtenção das provas em causa, não se traduzindo, estas, em abusiva intromissão na vida privada (art. 32.º, n.º 8, da CRP).

Neste âmbito, é pacífico que qualquer restrição de direitos fundamentais terá de obedecer aos princípios de necessidade, adequação e proporcionalidade, conforme ao art. 18.º, n.º 2, da CRP, limitando-se, pois, ao estritamente necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, o que, sempre, imporá uma cuidada ponderação no confronto entre a medida da restrição e a dimensão da lesão dos direitos correspondentes.

Como se sublinhou no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 407/97, de 21.05, in www.dgsi.pt, a previsão legal carecerá sempre de ser compaginada com uma exigente leitura à luz do princípio da proporcionalidade, subjacente ao art.18º, nº.2, da CRP, garantindo que a restrição do direito fundamental em causa se limite ao estritamente necessário à salvaguarda do interesse constitucional na descoberta de um concreto crime e punição do agente.

Tal princípio da proporcionalidade assume uma tripla dimensão: (i) princípio da adequação ou da idoneidade, segundo o qual as medidas restritivas legalmente previstas devem revelar-se como meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei; (ii) princípio da exigibilidade ou da necessidade, isto é, que as medidas restritivas previstas na lei devem revelar-se necessárias e indispensáveis, porque os fins visados não podem ser obtidos por outros meios menos onerosos para os direitos, liberdades e garantias; (iii) princípio da proporcionalidade em sentido restrito, significando que os meios legais restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa justa medida, para impedir a desproporção das medidas relativamente a esses fins (v. Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., págs. 392/393, e Jorge Miranda/Rui Medeiros, in “Constituição Portuguesa Anotada”, Coimbra Editora, 2005, tomo I, pág. 162).

Acresce que, conforme Manuel da Costa Andrade, in “Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal”, Coimbra Editora, 1992, pág. 81, Nem só a descoberta da verdade, preordenada à realização da justiça pela via da perseguição, identificação e punição dos agentes do crime, poderá reclamar a utilização de provas de algum modo atinentes à área problemática das proibições de prova.

Já Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, Coimbra Editora, 1.º vol, pág. 59, referia:

“(…) o processo penal constitui um dos lugares por excelência em que tem de encontrar-se a solução do conflito entre as exigências comunitárias e a liberdade de realização da personalidade individual. Aquelas podem postular, em verdade, uma «agressão» na esfera desta; agressão a que não falta a utilização de meios coercivos (prisão preventiva, exames, buscas, apreensões) e que mais difícil se torna de justificar e suportar por se dirigir a meros «suspeitos» – tantas vezes inocentes – ou mesmo a «terceiros» (...).

Daí que ao interesse comunitário na prevenção e repressão da criminalidade tenha de pôr-se limites - inultrapassáveis quando aquele interesse ponha em jogo a dignitas humana que pertence mesmo ao mais brutal delinquente; ultrapassáveis, mas só depois de cuidadosa ponderação da situação, quando conflitue com o legítimo interesse das pessoas em não serem afectadas na esfera das suas liberdades pessoais para além do que seja absolutamente indispensável à consecução do interesse comunitário. É através desta ponderação e justa decisão do conflito que se exclui a possibilidade de abuso do poder (...) e se põe a força da sociedade ao serviço e sob controlo do Direito (…)”.

O mesmo é dizer que os interesses da realização da justiça não bastam para justificar que os direitos fundamentais devam ceder, o que se impõe, por maioria de razão, quando as provas são obtidas por particulares.

Se assim é, não obstante o despacho haja acentuado a perspectiva da reserva da intimidade da vida privada por confronto com o direito de acesso aos tribunais, em referência ao disposto no art. 126.º, n.º 3, do CPP, que prevê sejam nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, em concreto deve ainda problematizar-se - como o recorrente vem suscitar - a protecção devida ao direito à imagem e ao direito à palavra, cuja autonomia relativamente àquela se encontra plenamente reconhecida e decorre, desde logo, desse art. 26.º, n.º 1, da CRP.

O que remete, no que ao caso interessa, para o invocado art. 167.º do CPP, que define o valor probatório das reproduções mecânicas, aqui obtidas pelo assistente e pela testemunha.

Assim, segundo o seu n.º 1, essas reproduções “só valem como prova dos factos ou coisas reproduzidas se não forem ilícitas, nos termos da lei penal”, consentâneo com a necessidade de apreciação à luz de critérios de ilicitude penal substantiva, por referência ao tipo legal do art. 199.º do CP (Manuel da Costa Andrade, ob. cit., pág. 238, reportando-se ao anterior art. 179.º, correspondente à versão originária).

Acompanhando, ainda Manuel da Costa Andrade, in “Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Coimbra Editora, 1999, tomo I, em anotação a esse art. 199.º:

(…) contém duas incriminações autónomas - a saber: gravações e fotografias ilícitas - preordenadas à tutela de dois bens jurídicos distintos: o direito à palavra e o direito à imagem. Trata-se de duas incriminações homólogas, mas não inteiramente sobreponíveis. Entre elas é, com efeito, possível referenciar alguns desvios e diferenças, que, no seu conjunto, resultam na redução da área de tutela típica reservada à imagem que aparece, por isso, mais rarefeita e descontínua (…) a gravação da palavra é ilícita logo que obtida sem consentimento, enquanto que a fotografia só será ilícita desde que produzida contra a vontade, mormente, tendo em conta o n.º 2 do art. 79.º do Código Civil (CC), diferenciação que é compreendida face à maior externalidade da imagem que torna este direito necessariamente mais incontornavelmente exposto à ofensa.

Relativamente ao bem jurídico tutelado, protege o direito à palavra e o direito à imagem como bens jurídicos pessoais, correspondentes a duas expressões directas da personalidade.

À semelhança de outros bens jurídicos correspondentes a liberdades fundamentais e de estrutura axiológico-normativa idêntica, também o direito à palavra se analisa numa dupla dimensão: a) Uma dimensão positiva: a legitimidade para, sem restrições, recusar que assiste ao portador concreto para, em total liberdade, autorizar a gravação e audição; e b) uma dimensão negativa ou exclusiva: a liberdade para, sem restrições, recusar a gravação e a audição. E também aqui esta estrutura intersubjectiva e relacional do bem jurídico prejudica o estatuto dogmático e o regime jurídico-penal da manifestação de concordância do portador concreto: trata-se, com efeito, de um acordo que exclui a tipicidade.

O que fica dito para a palavra vale, no essencial, para o direito à imagem como autónomo bem jurídico-penal. Também aqui estamos perante um bem jurídico eminentemente pessoal com a estrutura de uma liberdade fundamental e que reconhece à pessoa o domínio exclusivo sobre a sua própria imagem.

Em razão da definida prevalência de critérios substantivos, o comportamento do agente poderá ver-se excluído da tipicidade desde que ocorram causas de exclusão da ilicitude, consagradas no art. 31.º do CP, bem como, face à unidade da ordem jurídica, decorrentes do previsto nos arts. 79.º (“Direito à imagem”) e 80.º (“Direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”) do CC.

Como sublinhado no acórdão da Relação de Lisboa de 28.05.2009, rel. Fátima Mata-Mouros, in www.dgsi.pt, não se estabeleceu uma condicionante de validade da prova assente na mera verificação da tipicidade de uma conduta como crime. Exigiu-se mais: exigiu-se a não ilicitude das mesmas. Ora a ilicitude não se esgota no preenchimento de um tipo legal de crime. Para que um comportamento seja punido como crime exige-se que, além se encontrar tipificado na lei penal, configure também um acto ilícito e culposo. Não sendo necessário ir tão longe quanto o foi a teoria da redução teleológica do tipo de sentido vitimodogmático (construção que funda a exclusão da responsabilidade penal das fotografias, ou gravações, feitas sem consentimento, pelas vítimas de crimes com base na dogmática dos limites imanentes dos direitos fundamentais), por via da qual o comportamento indigno do titular do direito à palavra e imagem determina a perda da dignidade penal dos referidos direitos, afastando, desde logo a verificação de crime ao nível dos elementos do tipo, importa, porém, não perder de vista a possibilidade de verificação de alguma causa de justificação da ilicitude ou mesmo da culpa configuráveis no caso.

Vejamos, então, em concreto.

Para tanto, uma vez que a filmagem e a gravação, com transcrição, foram juntas ao requerimento de abertura da instrução, bem como as fotografias, juntas em diligência dessa mesma instrução, importa dilucidar, quanto ao fundamento e ao modo como foram obtidos, o que naquele se alegou, sendo certo que se trata de análise compatível com essa fase processual, sem prejuízo do que se entendeu por indiciado findo o inquérito.

Assim, decorre desse requerimento:

O assistente, que se encontrava no exterior da propriedade pertencente ao pai do arguido, filmou à distância, com o seu telemóvel a conversa entre o seu cunhado e o Sr. AP (sem que fosse possível identificar os intervenientes). Estava em causa a tentativa de destruição com uma máquina de uma conduta que fornece água à propriedade da Sra. D. Adelaide e do irmão. No filme, é visível a chegada súbita do arguido em viatura, a saída precipitada deste da viatura, a caminhada na direção do assistente e esposa e é percetível a passagem da vedação.

A partir deste momento cessam as filmagens, ouvem-se os gritos do arguido e as injúrias proferidas contra o assistente e a intervenção de Adelaide no sentido de impedir o arguido de agredir o marido. Como se vê claramente pela filmagem o arguido sabia que o assistente estava a filmá-lo com o telemóvel e não deduziu qualquer oposição. A gravação das palavras do arguido, na sequência da violenta investida deste contra o assistente, foi feita acidentalmente (o assistente nem sequer teve tempo ou possibilidade de desligar o telemóvel, que gravou sozinho), em espaço público - fora da propriedade do pai do arguido. As palavras deste, proferidas aos gritos, em espaço publico, eram destinadas ao assistente e susceptíveis de serem ouvidas por qualquer pessoa que estivesse no local ou mesmo afastada, como foi o caso da Sra. D. OM que se apercebeu do que se estava a passar e imediatamente correu para o local, tendo ainda conseguido fotografar as agressões do arguido ao assistente.

Ora, no que concerne à filmagem do arguido, aparentemente ter-se-á seguido àquela dita filmagem à distância sem identificação de intervenientes, feita pelo assistente, por ocasião de manobra, no local, de uma máquina agrícola, retratada a fls. 347 dos autos.

O arguido terá chegado ao local e saltado a vedação entre a propriedade do seu pai e de JC, aparentemente em movimento rápido e de molde a que tivesse sido, na circunstância, também filmado.

Indicia-se que aí se encontravam várias pessoas e que, tendo o arguido actuado como antes referido, não se aceita que, dirigindo-se a outra propriedade, ainda que confinante, a reserva do que fizesse devesse estar a coberto de absoluta garantia de privacidade.

Se bem que essa captação de imagem a que foi sujeito fosse provavelmente contra a sua vontade, o arguido, quanto se saiba, não o expressou.

Por seu lado, dir-se-á que é, pelo menos, duvidoso que o assistente, atenta a inerente rapidez de movimento do arguido com que se confrontou, tivesse prévia e voluntariamente delineado essa captação e/ou tivesse a expectativa de que fosse provável que a mesma viesse a ocorrer.

Neste contexto, afigura-se não ser defensável, sem mais, que a captação da imagem seja subsumível ao tipo legal do art. 199.º do CP, donde esse meio de obtenção de prova surge como razoável em razão do circunstancialismo que se depara.

Com respeito à gravação das palavras proferidas pelo arguido, aparece em idêntico contexto, ainda que subsequentemente à filmagem, obtida pela mesma forma, sem fundamento para autonomizá-la, já que, não obstante a ausência de consentimento expresso daquele, não se coibiu de as manifestar na presença das várias pessoas, admitindo que por todos fossem ouvidas.

Em função da análise casuística que o recorrente preconiza, e bem, que deva ser tido em conta, o denominado «núcleo duro» da vida privada do arguido não foi lesado de forma importante e intolerável, por confronto com a viabilidade do assistente se fazer valer dessas provas em defesa dos seus interesses.

Contrariamente ao invocado, a recolha dessas provas, naquele circunstancialismo, reputa-se indiciariamente proporcional e adequada, não se configurando como de índole eminentemente repressiva e para finalidade que não mereça ser tutelada.

Todavia, entendimento diverso suscita a recolha de imagens fotográficas, levada a cabo pela testemunha.

Na verdade, resulta aparentemente que a testemunha, depois de se ter apercebido do que se estava a passar, fotografou o arguido e, assim, com o sentido inequívoco de ulterior demonstração probatória da acção deste, que nem mesmo a si, que se saiba, era dirigida, em situação que indicia que contrariou a vontade daquele, sem possibilidade deste manifestar oposição.

Nesta vertente, não se aceita que as fotografias tenham sido obtidas de forma justificada pelo n.º 2 do art. 79.º do CC, ou por outra qualquer prevista para o efeito, sendo que decorre inegável que a atitude da testemunha se revelou voluntária, postergando desnecessariamente o direito à imagem do arguido, em situação que não pode enquadrar-se em lugar público, ainda que diversos fossem os presentes e se tratasse de caminho público.

Aqui, note-se, o decurso em local público não equivale a afastar a privacidade, em concreto, do círculo das pessoas então envolvidas, incluindo o arguido, cuja protecção deve prevalecer sobre os interesses do assistente.

As fotografias, obtidas como foram, representam intolerável lesão da imagem do arguido, a que, objectivos de perseguição criminal, não servem, concretamente, de justificação.

Configuram prova proibida, nos termos e para os efeitos do art. 167.º do CPP, por referência ao disposto no art. 199.º, n.º 2, alínea a), do CP e, por isso, não admissível.

3. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se:
- conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, assim,

- sem prejuízo de se manter, em sintonia com o despacho recorrido, a validade, como prova, das imagens e gravações obtidas pelo assistente, incluindo transcrição que apresentou, determinar que as fotografias obtidas pela testemunha não sejam admitidas como prova, porque proibida.

Sem custas.

Processado e revisto pelo relator.

Évora, 29 de Março de 2016


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(Carlos Jorge Berguete)

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(João Gomes de Sousa)