Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1367/19.2T8STR.E1
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: GRAVAÇÃO DA PROVA
PRINCÍPIO DA ADESÃO DA ACÇÃO CÍVEL EM PROCESSO PENAL
TRIBUNAL COLECTIVO
JUIZ SINGULAR
NOTIFICAÇÃO DA ACUSAÇÃO
PEDIDO CÍVEL
Data do Acordão: 01/14/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I - Com a entrada em vigor, em 1 de Setembro de 2013, do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, em face do estabelecimento da obrigatoriedade da gravação de todas as audiências, prevista no artigo 155.º do CPC, e da alteração à possibilidade anteriormente consagrada de ser requerida pela parte a intervenção do tribunal colectivo, o artigo 599.º do CPC veio estabelecer que a audiência final decorre sempre perante tribunal singular, ditando, em consequência, o final da intervenção do tribunal colectivo no âmbito do processo civil, estatuindo o n.º 2 do artigo 2.º daquela lei, que «[n]os processos de natureza civil não previstos no Código de Processo Civil, as referências feitas ao tribunal colectivo, que deva intervir nos termos previstos neste Código, consideram-se feitas ao juiz singular», mas referindo no seu segmento final «com as necessárias adaptações, sem prejuízo do disposto no n.º 5 do artigo 5.º»
II - Também no segmento final do referido artigo 599.º do CPC, o legislador sublinha que o juiz singular é determinado «de acordo com as leis de organização judiciária», impondo-se, pois, interpretar qual a repercussão desta alteração da codificação processual civil, na excepção ao princípio da adesão obrigatória prevista na alínea g), do n.º 1 do artigo 72.º do CPP, na qual o legislador previu que a pretensão indemnizatória pode ser deduzida em separado, quando o valor do pedido permitir a intervenção civil do tribunal colectivo, devendo o processo penal correr perante tribunal singular.
III - Tendo presente o que decorre da LOSJ, que determina a competência, em razão da matéria, entre os juízos dos tribunais de comarca, estabelecendo as causas que competem aos juízos de competência especializada, e estabelecendo a competência, em razão do valor, entre os juízos centrais cíveis e os juízos locais cíveis, nas acções declarativas cíveis de processo comum, e analisando o preceituado na alínea g) do n.º 1 do artigo 72.º do CPP, à luz destes princípios, afigura-se-nos que subjacente a esta excepção no espírito do legislador não se encontrava apenas a perspectiva da composição do tribunal, singular ou colectivo, mas especialmente a competência do tribunal decorrente do valor da causa, já que, em matéria cível, deste já então dependia a atribuição da competência do tribunal, sendo primeiramente as causas de valor superior à alçada do tribunal da Relação sempre da competência do tribunal colectivo e, posteriormente, podendo as partes requerer a sua intervenção.
IV - Não obstante de harmonia com o disposto no artigo 7.º, n.º 1, da LOSJ, os juízes dos tribunais judiciais formem um corpo único e sejam regidos pelo respetivo estatuto, julgando apenas de acordo com a Constituição e com a lei, é esta que, conforme refere o n.º 2 do mesmo preceito, determina os requisitos e as regras de recrutamento dos juízes dos tribunais judiciais de primeira instância, tendo estabelecido que, tanto em matéria de natureza cível como criminal, os juízes a colocar nos juízos centrais, sejam os tendencialmente mais habilitados, em face da maior antiguidade e classificação de mérito, na comparação com aqueles que se encontram habilitados a julgar as causas da competência dos juízos locais.
V - A esta luz, estamos certos que nas necessárias adaptações a que alude no n.º 2 do artigo 2.º da Lei n.º 41/2013, não deixaria o legislador de ter presente a referida diferenciação na habilitação entre o juiz singular que julga as causas com valor inferior e aqueloutro que julga as de valor superior a 50.000,00 €. Aliás, se bem virmos, quando estabelece a ressalva do n.º 5 do artigo 5.º da referida lei, e no n.º 6 mantém a competência do juiz de círculo para julgamento das causas de valor superior à alçada da Relação até à entrada em vigor da LOSJ, o legislador assume claramente que da entrada em vigor do diploma não pode nunca resultar a diminuição da garantia que a parte que havia requerido a intervenção do tribunal colectivo pretendia, nem da continuação do julgamento das indicadas causas por juiz de círculo, que já então tinha aquelas habilitações que a LOSJ veio estabelecer como necessárias para o exercício das funções nas ali denominadas instâncias centrais.
VI - Como em face do disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 9.º do CC, devemos presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento e consagrou as soluções mais acertadas, não podendo, pois, ser considerado pelo intérprete um pensamento legislativo que não tem na letra da lei qualquer correspondência verbal, especialmente tendo presente que apesar de o legislador ter posteriormente efectuado alterações ao CPP nunca revogou esta alínea, e as decisões publicadas que consideraram aquela norma do CPP “esvaziada de conteúdo”, “um anacronismo” ou mesmo “um puro e simples elemento de contradição sistemática do ordenamento”, implicariam que se concluísse pela sua revogação tácita, consideramos, diversamente que, in casu, sendo óbvio que o legislador afastou o julgamento colectivo em processo civil, as dificuldades de interpretação do actual sentido útil do preceito são facilmente ultrapassadas, bastando que se entenda que a prevista excepção tem como escopo o valor do pedido e não a composição do tribunal, e, conferindo-lhe uma interpretação conforme à actual organização judiciária, adaptando-se as referências da alínea g) do n.º 1 do artigo 72.º do CPP à mesma, e assim concluindo que, em face do disposto nos artigos 117.º, n.º 1, alínea a), e 130.º, n.º 1, alínea a), da LOSJ, a excepção consagrada na mencionada alínea será actualmente aplicável quando o pedido formulado for superior a 50.000,00 €, devendo a menção ali efectuada ao tribunal colectivo entender-se feita ao juízo central cível, e a menção ao tribunal singular, ao juízo local criminal.
VII - Assim, admitindo o valor do pedido formulado pelos Autores a intervenção do juízo central cível, e tendo a acusação sido deduzida para julgamento perante juízo local criminal, fixando-se nessa ocasião o dies a quo para o exercício pelos Autores do seu direito no processo criminal, não o tendo feito então e, por isso, não sendo já possível o exercício do seu direito no processo penal quando foram notificados do despacho de pronúncia, com intervenção do tribunal colectivo, não existe qualquer obstáculo à dedução do seu pedido em separado perante o tribunal civil, funcionando de pleno a referida excepção ao princípio da adesão. (sumário da relatora)
Decisão Texto Integral:
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém[1]
Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[2]:

I. RELATÓRIO
1. Por despacho proferido na audiência prévia, o Juízo Central Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém declarou-se incompetente em razão da matéria para conhecer do pedido de indemnização formulado nos presentes autos pelos Autores M… e C…, em suma, porque «com o princípio da adesão se atribui ao tribunal penal competência em matéria cível», já que «se se permitisse a apresentação em separado do pedido de indemnização civil baseado em factos penais tal como pretendem os Autores, estar-se-ia a violar o referido princípio da adesão obrigatória, pondo em causa os objectivos associados ao mesmo e que se resumem na utilidade de resolução única de todas as questões atinentes ao facto criminoso, evitando-se a contradição de julgados». Mais aduziu que, na situação em presença, «não se verifica a excepção àquele princípio invocada pelos Autores na medida em que o disposto na al. g) nº 1 do artº 72º do CPP pressupõe simultaneamente duas coisas: - Primeiro, que a indemnização tenha um valor superior àquele a partir do qual permita a intervenção do tribunal colectivo; - Segundo, que o processo penal deva correr perante o tribunal singular. No caso em apreciação, e não obstante o valor atribuído a esta acção permitir a intervenção do Juízo Central Cível, o processo penal, como resulta da certidão junta aos autos e referente ao acórdão penal, correu termos pelo tribunal colectivo. Daqui resulta que os Autores apenas estavam legitimados a deduzir em separado o pedido civil de indemnização se os factos penais tiverem sido apreciados pelo tribunal singular».

2. Inconformados, os Autores apelaram, encerrando as suas alegações com as seguintes conclusões:
«1º O Tribunal, através do despacho proferido na audiência prévia (Refª:84337207) declarou-se incompetente em razão da matéria e absolveu os réus da instância, o que fez de forma errada.
2º No caso vertente, o tribunal fez uma errada interpretação e errada aplicação do artigo 72º, alínea g) do CPP, porque não teve em conta em conta o que se passou no termo do inquérito, tendo antes prestado atenção ao que depois se veio a seguir na fase de julgamento.
3º Os autores quando foram notificados da acusação ficaram a saber que a acusação iria fazer seguir o processo para julgamento perante Tribunal Singular, tendo nessa altura optado por fazer seguir o seu pedido em separado, tendo também em conta o valor do pedido que pretendiam formular, €190.000,00.
4º Aos lesados assiste assim, o direito de aguardar o termo do inquérito criminal, com o seu arquivamento ou dedução da acusação, para decidirem se fazem seguir o seu pedido na acção penal, ou se o fazem seguir em separado no caso de se encontrarem nalgumas das situações ressalvadas no artigo 72º do CPP, devendo o sentido desta norma retirar-se adaptadamente, dos artigos 44º, 117º, nº1, al. a) e 130º, nº1, al. a) da Lei nº 62/2013 de 26 de Agosto.
5º O tribunal deveria ter julgado que o momento relevante a atender para a dedução do pedido em separado dentro dos condicionalismos previstos na alínea g) do nº1, do artigo 72º do CPP, no qual aliás os autores se encontravam, era o do termo do inquérito e não o da fase de julgamento.
Nestes termos e fundamentos deverá ser revogado o douto despacho recorrido, julgando-se o tribunal recorrido competente em razão da matéria e assim será feita a acostumada JUSTIÇA».

3. A Apelada D…, S.A. apresentou contra-alegações nas quais pugnou pela improcedência da apelação.
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II. O objecto do recurso.
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil[3], é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo evidentemente daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Assim, vistos os autos, a única questão colocada para apreciação no presente recurso de apelação consiste em saber se, em face do concreto circunstancialismo em presença, os Autores podiam ou não deduzir em separado o pedido de indemnização civil, fundado em factos penais.
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III – Fundamentos
III.1. – De facto
A tramitação processual que avulta dos documentos juntos aos autos e importa considerar para a decisão da questão em apreço, é a seguinte:
1- Na petição inicial, entrada em juízo em 18-05-2019, os Autores referem como “questão prévia” que «Pelos mesmos factos do presente processo foram os réus julgados e condenados enquanto arguidos, no processo comum colectivo 439/12.9GBCCH-J2 dos Juízos Centrais Criminais da Comarca de Santarém, estando o mesmo a aguardar decisão de recursos no Tribunal da Relação de Évora».
2 - Os Autores peticionaram a condenação da empresa R. a pagar-lhes a quantia de 190.000,00€ a título de indemnização por danos morais sofridos na sequência da morte do seu filho, vitimado por acidente de trabalho ocorrido enquanto trabalhava para aquela, atentos «os poderes e as funções desempenhadas pelos vários réus representantes da 1ª R., os deveres de vigilância, controle, supervisão e autoridade conferiam-lhes especial obrigação de agir de modo a evitar os eventos danosos no âmbito dos sectores das suas competências».
3 - O referido processo iniciou-se em 26 de Julho de 2012, tendo em primeira instância, a empresa, ora Ré, sido condenada pela prática de crime de violação de regras de segurança.
4 - No âmbito dos autos de inquérito com o número de processo 439/12.9GBCCH, foi proferido despacho de acusação, para julgamento por Tribunal Singular, do qual os ora Autores e o seu Ilustre Mandatário foram notificados no dia 9 de Dezembro de 2015, nas qualidades de ofendido e de assistente para requerer abertura de instrução e deduzir pedido de indemnização civil.
5 - A notificação do despacho de acusação ao co-autor, na qualidade de assistente, foi efectuada nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 113.º, n.º 3, do CPP, considerando-se realizada no quinto dia posterior à data do depósito na caixa de correio postal do destinatário constante do sobrescrito, ou seja, em 16 de Dezembro de 2015, terminando o prazo ali indicado para deduzir o pedido de indemnização civil (20 dias contados a partir da notificação do despacho de acusação), no dia 18 de Janeiro de 2016.
6 - A notificação do despacho de acusação à co-autora C…, na qualidade de ofendida, foi efectuada nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 113.º, n.º 2, do CPP, considerando-se realizada no terceiro dia útil posterior ao do registo correio postal, ou seja, em 14 de Dezembro de 2015, terminando o prazo ali indicado para deduzir pedido de indemnização civil (20 dias contados a partir da notificação do despacho de acusação), no dia 18 de Janeiro de 2016 (já que o último dia do prazo, foi sábado).
7 - Os Autores não deduziram pedido de indemnização cível no identificado processo.
8 - Requerida a instrução no identificado processo crime, em 14 de Novembro de 2016, foi proferido despacho de pronúncia, para julgamento dos arguidos em processo comum e perante Tribunal Colectivo, do qual os ora Autores foram notificados.
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III.2. – De direito
Pretendem os Apelantes que o tribunal a quo fez uma errada interpretação e aplicação da norma contida no artigo 72.º, alínea g), do Código de Processo Penal[4], já que «por terem ficado a saber que a acusação iria fazer seguir o processo para julgamento perante Tribunal Singular optaram por não fazer seguir o seu pedido enxertado na acção penal e fazê-lo seguir em separado tendo também em conta o valor do pedido que pretendiam formular €190.000,00», sendo que «passada essa fase processual, não só deixava de ser já possível o exercício do direito no processo penal, como, logicamente, deixava de operar o obstáculo a que os titulares do mesmo o concretizassem na acção civil», contrapondo a Apelada, por um lado, que «não se verificava a diferença de competência funcional», já que «a norma invocada para fundar a situação de exceção alegada encontra-se, desde logo, desfasada da realidade processual civil atual, e, aliás, à data da prolação do despacho de acusação, que prevê o ‘juiz singular’ como juiz da audiência final em qualquer circunstância», e, por outro lado, que «não se verificou in casu a exceção prevista na alínea g) do n.º 1 do artigo 72.º do CPP, porquanto o julgamento no âmbito do processo penal – conduzido pelo juízo central criminal do tribunal judicial da comarca de Santarém – foi efetivamente realizado perante o tribunal coletivo».
Vejamos.
Tendo presente como é que os códigos de processo, civil e penal, determinam a competência material e funcional para o julgamento das causas, releva primeiramente e em concreto para a questão recursiva, o disposto no artigo 71.º do CPP que estabelece o princípio da adesão ou interdependência, de acordo com o qual «o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei»[5]. Como se sumariou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.05.2018[6], «curando da responsabilidade civil conexa com a criminal, o art. 71.º do CPP consagra o princípio da adesão da acção civil à acção penal que, mais do que uma mera interdependência das acções, arrasta o pedido de indemnização civil de perdas e danos para a jurisdição penal». Assim, sendo pacífico que os factos que fundamentam o pedido nesta acção cível são os mesmos que consubstanciam o ilícito criminal imputado no processo criminal, a competência do tribunal criminal para conhecer do pedido cível conexo com a acção penal decorre in casu da responsabilidade civil extracontratual do agente que haja cometido o facto ilícito e culposo, o mesmo é dizer, na prática do crime que constitui o objecto do processo penal, pelo que, a referida regra imporia a dedução do pedido de indemnização civil perante o tribunal criminal.
Efectivamente, naquele preceito quis o legislador estabelecer, como regra, a obrigatoriedade da dedução pelo lesado do pedido de indemnização por perdas e danos sofridos em consequência da prática do ilícito criminal, no próprio processo penal. Conforme se afirmou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.05.2019[7], «a aludida adesão obrigatória tem, necessariamente, vantagens, importando economia processual, dado que num mesmo e único processo se resolvem todas as questões atinentes ao facto criminoso, sem necessidade de fazer correr mecanismos diferentes e em sede autónomas, outrossim, por razões de economia de meios, uma vez que os interessados não necessitam de despender e dispersar custos, a par das razões de prestígio institucional, porquanto se evitam contradições de julgados».
Não obstante, ciente de que casos havia em que a adesão obrigatória do pedido de indemnização civil ao processo penal podia revelar-se inadequada, veio estabelecer no artigo 72.º do CPP um conjunto taxativo de excepções àquela obrigatoriedade, facultando ao lesado a possibilidade de dedução em separado do pedido de indemnização perante o tribunal civil, em caso da sua verificação. Isto dito, na espécie, importa apenas a previsão da alínea g) do n.º 1 do preceito, na qual se previu que tal pretensão pode ser deduzida em separado, quando o valor do pedido permitir a intervenção civil do tribunal colectivo, devendo o processo penal correr perante tribunal singular. Esta excepção permite, pois, «o recurso imediato ao tribunal civil, mesmo que ainda não exista sequer processo penal, podendo constituir uma fuga ao princípio da adesão. Bastará, para isso, que o lesado sobrevalorize o montante dos danos, provocando desta forma a intervenção do tribunal colectivo, pelo seu valor superior à respectiva alçada»[8]. Em anotação a esta alínea, MAIA GONÇALVES[9] sublinha ainda que a mesma «abrange não só os casos em que a intervenção do colectivo é imposta pelo valor do pedido, como também aqueles em que essa intervenção deriva da vontade e iniciativa das partes».
Porém, afirmou-se no despacho recorrido que «não se verifica a excepção àquele princípio invocada pelos Autores na medida em que o disposto na al. g) nº 1 do artº 72º do CPP pressupõe simultaneamente duas coisas: - Primeiro, que a indemnização tenha um valor superior àquele a partir do qual permita a intervenção do tribunal colectivo; - Segundo, que o processo penal deva correr perante o tribunal singular. No caso em apreciação, e não obstante o valor atribuído a esta acção permitir a intervenção do Juízo Central Cível, o processo penal, como resulta da certidão junta aos autos e referente ao acórdão penal, correu termos pelo tribunal colectivo. Daqui resulta que os Autores apenas estavam legitimados a deduzir em separado o pedido civil de indemnização se os factos penais tiverem sido apreciados pelo tribunal singular».
Na situação em apreço, dúvidas não existem de que se encontra verificado o requisito atinente ao valor do pedido consubstanciador do funcionamento da excepção ao princípio da adesão obrigatória, e é também certo que o julgamento de natureza criminal decorreu perante tribunal colectivo. Mas, como evidencia o elenco da tramitação processual relevante acima enunciado, a acusação havia sido deduzida para julgamento em processo singular e a intervenção do tribunal colectivo apenas foi suscitada com a prolação do despacho de pronúncia.
Defendem os Apelantes que passada a fase processual da acusação já não lhes era possível o exercício do direito no processo penal, contrapondo a Apelada, que em face do disposto no artigo 77.º do CPP, aqueles dispunham do prazo de 20 dias após a notificação do despacho de pronúncia para deduzirem pedido de indemnização civil no processo penal respectivo.
Somos, pois, chegados à primeira questão que por ordem lógica de apreciação os autos convocam, e que é a de saber se, tendo sido deduzida a acusação para julgamento perante tribunal singular, a posterior pronúncia para julgamento perante tribunal colectivo, sem que os lesados deduzam o pedido de indemnização civil, faz ou não precludir a possibilidade de o deduzirem posteriormente em separado, o que equivale a determinar qual o momento em que se extingue o direito conferido aos lesados para deduzirem o pedido de indemnização cível em processo penal.
Como se depreende do que já acima referimos, o princípio da adesão obrigatória supõe que o pedido civil a deduzir deva fundamentar-se, no essencial, no objecto do processo penal, ou seja, no conjunto de factos que constitui a imputação do facto ilícito com natureza criminal, sendo que este objecto processual é delimitado pela acusação ou, caso esta não seja deduzida, e tenha sido requerida a abertura de instrução, pela subsequente pronúncia do arguido. De facto, nos termos definidos no artigo 77.º, n.ºs 2 e 3 do CPP, o texto da lei é claro: o prazo legal para a dedução do pedido civil, em processo penal, tem o seu termo inicial, com a notificação do despacho de acusação ou, não tendo esta sido deduzida, do despacho de pronúncia que tenha sido proferido. Portanto, a interpretação do texto legal não se efectua nos termos preconizados pela Apelada, já que a fixação do dies a quo do prazo para dedução do pedido civil a partir da notificação do despacho de pronúncia ao lesado, reporta-se às situações em que, por não ter sido deduzida acusação, é o despacho de pronúncia que fixa a atinente factualidade de natureza criminal que será o fundamento do pedido cível a deduzir porque só com os referidos actos processuais, se encontra, em princípio, delimitado o objecto do processo penal. Por isso, a acusação, quando deduzida, ou a pronúncia quando aquela o não tiver sido, tenham uma natureza essencial para a dedução do pedido civil. Assim, «as consequências da não formulação do pedido civil, no prazo de 20 dias, subsequentes à notificação da acusação deduzida, são inequívocas, nos termos do disposto no artigo 77º, ou seja, a sua não admissão, restando a sua formulação em separado nos tribunais civis, se legalmente admissível ou, sendo inadmissível o pedido em separado, preclude o direito de formular tal pedido civil»[10].
Revertendo estas considerações ao caso em apreço, tendo o Ministério Público deduzido acusação, assim delimitando o objecto do processo criminal, o termo inicial do prazo de 20 dias para os AA., pais da infeliz vítima, deduzirem o pedido de indemnização civil, foi o dia 18 de Janeiro de 2016. Assim, quando no termo da instrução que ocorreu no identificado processo-crime, em 14 de Novembro de 2016, foi proferido despacho de pronúncia, para julgamento dos arguidos em processo comum e perante Tribunal Colectivo, há muito que aquele prazo peremptório para dedução do pedido de indemnização civil no processo criminal havia decorrido, sem que os ora Autores o tivessem ali formulado. Como bem se assinalou no citado aresto do Supremo Tribunal de justiça de 22.05.208, «deduzida a acusação no inquérito, o direito à indemnização tem de ser exercido nos prazos peremptórios assim cominados, sob pena de ficar definitivamente encerrada a possibilidade do exercício da acção cível em conjunto com a acção penal». Portanto, o facto de o julgamento criminal ter afinal decorrido perante tribunal colectivo, não constitui in casu o apontado obstáculo à dedução em separado do pedido de indemnização civil, uma vez que, aquando da notificação do despacho de pronúncia aos lesados, há muito que o prazo para deduzirem o pedido no processo criminal, contado da data em que foram notificados da acusação, havia decorrido, sendo sabido que, decorrido um prazo assinalado por lei, sem que ocorra justo impedimento validamente arguido, não é possível que aquele prazo se prorrogue ou renove. Nestes termos, não pode subscrever-se o argumento fundador do despacho impugnado.
Afirmou-se ainda naquele acórdão do nosso mais Alto Tribunal a respeito da contagem do prazo prescricional, mas com interesse para a presente questão, que o decurso do prazo para o exercício da acção cível em conjunto com a acção penal sem que o pedido de indemnização civil tenha sido formulado determina que «não só deixa de ser já possível o exercício do direito no processo penal, como, logicamente, deixa de operar o obstáculo a que o titular do mesmo o concretize na acção civil».
Somos, pois, chegados à segunda questão colocada e que é a de saber se, tendo a acusação sido deduzida para julgamento perante Tribunal singular, podem ainda os Autores, ora Apelantes, deduzir o pedido de indemnização civil em separado, como defendem, louvando-se no citado aresto, já que é esta a excepção que convocam para afastar a aplicação ao caso da obrigatoriedade do princípio da adesão, afirmando que como se encontravam à data da dedução da acusação dentro da previsão da alínea g) do n.º 1, do artigo 72.º do CPP, assistia-lhes o direito de aguardar pelo termo do inquérito criminal, para aferirem se lhes era, ou não, conferida a faculdade de deduzirem a acção cível em separado, o que veio a confirmar-se com a notificação do teor da acusação, ficando assim a poder fazê-lo em separado desde esse momento até à data da prescrição do seu direito.
Estribando-se em jurisprudência publicada dos Tribunais Superiores, aduz a Apelada que esta excepção não colhe porquanto «a norma invocada para fundar a situação de exceção alegada encontra-se, desde logo, desfasada da realidade processual civil atual, e, aliás, à data da prolação do despacho de acusação, que prevê o ‘juiz singular’ como juiz da audiência final em qualquer circunstância». Como a mesma refere, é certo que, incidindo justamente sobre o princípio da adesão e a interpretação desta excepção, no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 05.11.2018[11], considerou-se que «não é aplicável a al. g) posto que representa anacronismo face à alteração do Código de Processo Civil e à redação do atual art. 599.º CPC que prevê o julgamento apenas por juiz singular. O tribunal coletivo em processo civil foi eliminado pela reforma de 2013 do processo civil e a norma que a ele se refere no processo criminal constitui um puro e simples elemento de contradição sistemática do ordenamento que é inaproveitável face aos dados atuais do processo civil», e que tal entendimento foi pouco depois trilhado no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 17.12.2018[12], de cujo sumário se extrai que «inexistindo agora a intervenção do tribunal colectivo no julgamento no âmbito do CPC, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26.06, esvaziou-se o conteúdo da citada alínea g), ante o disposto nos artºs 546º, 548º e 599º».
Pelo mesmo diapasão alinhou o Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão proferido em 19.11.2020[13] afirmando «quanto à alínea (g), porque se pressuponha, então, que a autora tinha a possibilidade de pedir o julgamento por tribunal colectivo, no processo civil, e no processo penal se tivesse de contentar com o julgamento por um tribunal singular.
Ora, tendo os tribunais colectivos desaparecido, com a reforma de 2013 do CPC, e tendo os factos em causa ocorrido em 2014, a autora nunca chegou a ter a possibilidade de requerer a intervenção do tribunal colectivo. Ou seja, o raciocínio a fazer é o inverso do feito pela autora. Desaparecida aquela possibilidade com a reforma de 2013 do CPC, a alínea (g) do art. 72/1 do CPP deixou de fazer sentido».
Salvo o devido respeito, afigura-se-nos não ser esta a melhor interpretação da lei.
Justificando a nossa discordância, mister é relembrarmos os cânones da interpretação da lei condensados no artigo 9.º do CC, de acordo com cuja estatuição:
«1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados».
Conforme adverte J. BAPTISTA MACHADO[14] este preceito «não tomou posição na controvérsia entre a doutrina subjectivista e a doutrina objectivista. Comprova-o o facto de se não referir, nem à “vontade do legislador”, nem à “vontade da lei”, mas apontar antes como escopo da actividade interpretativa a descoberta do “pensamento legislativo” (art.9.º, 1.º). Esta expressão, propositadamente incolor, significa exactamente que o legislador não se quis comprometer», como, aliás, o Ilustre Autor realça, citando um excerto da comunicação do então Ministro da Justiça, Doutor ANTUNES VARELA, à Assembleia Nacional, afirmando que “colocando-se deliberadamente acima da velha querela entre subjectivistas e objectivistas, a nova lei limitou-se a recolher uns tantos princípios que considerou aquisições definitivas da ciência jurídica, sem curar grandemente da sua origem doutrinária”»[15].
Assim, prossegue, «contrapõe-se letra (texto) e espírito (pensamento) da lei, declarando-se que a actividade interpretativa deve – como não podia deixar de ser – procurar este a partir daquela.
A letra (o enunciado linguístico) é, assim, o ponto de partida. Mas não só, pois exerce também a função de um limite, nos termos do art. 9.º, 2; não pode ser considerado como compreendido entre os sentidos possíveis da lei aquele pensamento legislativo (espírito, sentido) “que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”. Pode ter que proceder-se a uma interpretação extensiva ou restritiva, ou até porventura a uma interpretação correctiva, se a fórmula verbal foi sumamente infeliz, a ponto de ter falhado completamente o alvo. Mas, ainda neste último caso, será necessário que do texto “falhado” se colha pelo menos indirectamente uma alusão àquele sentido que o intérprete venha a acolher como resultado da interpretação»[16].
Ora bem.
É certo que a actual codificação processual civil já se encontrava vigente ao tempo da notificação aos ora Autores da dedução da acusação no processo criminal, e que com a entrada em vigor em 1 de Setembro de 2013, do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, em face do estabelecimento da obrigatoriedade da gravação de todas as audiências, prevista no artigo 155.º do CPC, e da alteração à possibilidade anteriormente consagrada de ser requerida pela parte a intervenção do tribunal colectivo, veio o artigo 599.º do CPC estabelecer que a audiência final decorre sempre perante tribunal singular, ditando, em consequência, o final da intervenção do tribunal colectivo no âmbito do processo civil.
Não obstante, no segmento final deste preceito, o legislador sublinha que o juiz singular é determinado «de acordo com as leis de organização judiciária», impondo-se, pois, aquilatarmos o sentido desta remissão.
Sabido é que, em face do disposto no artigo 211.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa[17], os Tribunais Judiciais são os tribunais comuns em matéria civil e criminal, e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens jurídicas, dispondo o artigo 40.º, n.º 2, da Lei n.º 62/2013, de 26/08 - Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) -, que esta lei determina a competência, em razão da matéria, entre os juízos dos tribunais de comarca, estabelecendo as causas que competem aos juízos de competência especializada, e determinando o seu artigo 41.º a competência, em razão do valor, entre os juízos centrais cíveis e os juízos locais cíveis, nas acções declarativas cíveis de processo comum. Decorre ainda do artigo 117.º, n.º 1, alínea a), que «compete aos juízos centrais cíveis a preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de processo comum de valor superior a 50.000,00 €», pelo que, atento o valor da presente acção, não fora a circunstância de a causa de pedir ter como fundamento factos que abstractamente constituem ilícito de natureza criminal, dúvidas não se colocariam de que a competência para a instrução e julgamento da causa competia ao juízo central cível. Porém, tendo presente a materialidade invocada pelos autores em fundamento da sua pretensão, diz-nos ainda o artigo 118.º, n.º 1, da LOSJ que «compete aos juízos centrais criminais proferir despachos nos termos dos artigos 311.º a 313.º do Código do Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro, e proceder ao julgamento e aos termos subsequentes nos processos de natureza criminal da competência do tribunal coletivo ou do júri», podendo, de harmonia com o disposto no artigo 81.º, n.ºs 1 e 3, als. a) a d), ser criados juízos de competência especializada local e central, tanto cível como criminal, funcionando, consoante os casos, como tribunal singular, como tribunal colectivo ou como tribunal de júri (artigo 85.º). Por seu turno, de acordo com o previsto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 183.º, que rege sobre a colocação de juízes, os juízes a colocar nos juízos referidos nas alíneas a), c) e f) a j) do n.º 3 do artigo 81.º são nomeados de entre juízes de direito com mais de 10 anos de serviço e classificação não inferior a Bom com distinção, enquanto os juízes a colocar nos juízos referidos nas alíneas b), d) e e) do n.º 3 do artigo 81.º são nomeados de entre juízes de direito com mais de cinco anos de serviço e classificação não inferior a Bom.
Portanto, não obstante de harmonia com o disposto no artigo 7.º, n.º 1, da LOSJ, os juízes dos tribunais judiciais formem um corpo único e sejam regidos pelo respetivo estatuto, julgando apenas de acordo com a Constituição e com a lei, é esta que, conforme refere o n.º 2 do mesmo preceito, determina os requisitos e as regras de recrutamento dos juízes dos tribunais judiciais de primeira instância, tendo estabelecido que, tanto em matéria de natureza cível como criminal, os juízes a colocar nos juízos centrais, sejam os tendencialmente mais habilitados, em face da maior antiguidade e classificação de mérito, na comparação com aqueles que se encontram habilitados a julgar as causas da competência dos juízos locais.
A esta luz, e pese embora seja certo que o n.º 2 do artigo 2.º da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, estatui que «[n]os processos de natureza civil não previstos no Código de Processo Civil, as referências feitas ao tribunal colectivo, que deva intervir nos termos previstos neste Código, consideram-se feitas ao juiz singular», não é menos verdade que no seu segmento final o preceito também refere «com as necessárias adaptações, sem prejuízo do disposto no n.º 5 do artigo 5.º». Ora, estamos certos que nas necessárias adaptações não deixaria o legislador de ter presente o que vimos de referir quanto à diferenciação na habilitação entre o juiz singular que julga as causas com valor inferior e aqueloutro que julga as de valor superior a 50.000,00 €. Aliás, se bem virmos, quando estabelece a ressalva do n.º 5 do artigo 5.º da referida lei, e no n.º 6 mantém a competência do juiz de círculo para julgamento das causas de valor superior à alçada da Relação até à entrada em vigor da LOSJ, o legislador assume claramente que da entrada em vigor do diploma não pode nunca resultar a diminuição da garantia que a parte que havia requerido a intervenção do tribunal colectivo pretendia, nem da continuação do julgamento das indicadas causas por juiz de círculo, que já então tinha aquelas habilitações que a LOSJ veio estabelecer como necessárias para o exercício das funções nas ali denominadas instâncias centrais.
Sinteticamente exposto o que decorre da LOSJ, e analisando agora o preceituado na alínea g) do n.º 1 do artigo 72.º do CPP, à luz destes princípios, afigura-se-nos que subjacente a esta excepção no espírito do legislador não se encontrava apenas a perspectiva da composição do tribunal, singular ou colectivo, mas especialmente a competência do tribunal decorrente do valor da causa, já que, em matéria cível, deste já então dependia a atribuição da competência do tribunal, sendo primeiramente as causas de valor superior à alçada do tribunal da Relação sempre da competência do tribunal colectivo e, posteriormente, podendo as partes requerer a sua intervenção.
Em face do que vimos de referir não podemos concordar com a ideia vertida nos citados arestos, e defendida pela Apelada, de que inexistindo agora a intervenção do tribunal colectivo no julgamento civil, a citada alínea g), do n.º 1 do artigo 72.º do CPP, tenha ficado esvaziada de conteúdo. De facto, em face do disposto nos n.ºs 2 e 3 do citado artigo 9.º do CC, devemos presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento e consagrou as soluções mais acertadas, não podendo, pois, ser considerado pelo intérprete um pensamento legislativo que não tem na letra da lei qualquer correspondência verbal, especialmente tendo presente que apesar de o legislador ter posteriormente efectuado alterações ao CPP nunca revogou esta alínea, e as citadas decisões implicariam se concluísse pela sua revogação tácita.
Ao invés, conforme sublinha BAPTISTA MACHADO, impõe-se ter presente que «[m]esmo quando aparentemente claro à primeira leitura, a sua aplicação aos casos concretos da vida faz muitas vezes surgir dificuldades de interpretação insuspeitadas e imprevisíveis»[18]. In casu, sendo óbvio que o legislador afastou o julgamento colectivo em processo civil, tais dificuldades de interpretação do actual sentido útil do preceito são facilmente ultrapassadas, para o que basta que se entenda que a prevista excepção tem como escopo o valor do pedido e não a composição do tribunal. Assim, conferindo-lhe uma interpretação conforme à actual organização judiciária, adaptando-se as referências da alínea g) do n.º 1 do artigo 72.º do CPP à mesma, e considerando, em face do disposto nos artigos 117.º, n.º 1, alínea a), e 130.º, n.º 1, alínea a), da LOSJ, entendemos que a mencionada alínea não ficou esvaziada de conteúdo e a excepção na mesma consagrada será actualmente aplicável quando o pedido formulado for superior a 50.000,00 €[19], devendo a menção ali efectuada ao tribunal colectivo entender-se feita ao juízo central cível, e a menção ao tribunal singular, ao juízo local criminal[20].
Revertendo este entendimento à concreta situação em presença urge concluir que admitindo o valor do pedido formulado pelos Autores a intervenção do juízo central cível, e tendo a acusação sido deduzida para julgamento perante juízo local criminal, fixando-se nessa ocasião o dies a quo para o exercício pelos Autores do seu direito no processo criminal, não o tendo feito então e, por isso, não sendo já possível o exercício do seu direito no processo penal quando foram notificados do despacho de pronúncia, com intervenção do tribunal colectivo, não existe qualquer obstáculo à dedução do seu pedido em separado perante o tribunal civil, funcionando de pleno a referida excepção ao princípio da adesão.
Nestes termos, a decisão recorrida não pode ser mantida, declarando-se o juízo central cível competente para o julgamento do formulado pedido de indemnização.
Procede, pois, a apelação.
Porque vencida, de harmonia com o princípio da causalidade previsto no artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, incumbe à R., ora Apelada, suportar as custas devidas em primeira instância, e as de parte, neste recurso (artigos 529.º e 533.º do CPC).
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IV - Decisão
Pelo exposto, na procedência da apelação, acordamos em revogar a decisão recorrida que julgou procedente a excepção da incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria e, em consequência, determinamos o prosseguimento dos autos.
Custas pela Apelada.
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Évora, 14 de Janeiro de 2021
Albertina Pedroso [21]
Tomé Ramião
Francisco Xavier
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[1] Juízo Central Cível de Santarém - Juiz 1.
[2] Relatora: Albertina Pedroso; 1.º Adjunto: Tomé Ramião; 2.º Adjunto: Francisco Xavier.
[3] Doravante abreviadamente designado CPC.
[4] Doravante abreviadamente designado CPP.
[5] Para uma síntese da evolução legislativa a este respeito, e bem assim da responsabilidade civil emergente de crime, cfr. Ac. STJ de 27-04-2011, proferido no processo n.º 712/00.9JFLSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt,
como os demais citados sem menção de outra fonte.
[6] Proferido no processo n.º 2565/16.6T8PTM.E1.S2.
[7] Proferido no processo n.º 9918/15.5T8LRS.L1.S1, citando neste sentido, Leal Henriques e Simas Santos, apud, Código de Processo Penal anotado, 1º volume, páginas 378 e seguintes.
[8] Cfr. CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, Comentários e notas práticas, Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto, Coimbra Editora, 2009, pág. 194.
[9] In Código de Processo Penal, Anotado, 3.ª edição, Revista e Actualizada, ALMEDINA, 1990, pág. 143.
[10] Cfr. Ac. TRG de 02.07.2018, proferido no processo n.º 130/16.GEBRG-A.G1.
[11] Proferido no processo n.º 2261/17.7T8PNF-A.P1.
[12] Proferido no processo n.º 1286/18.0T8VCT-A.G1.
[13] Processo n.º proc. 8539/19.8T8LSB.L1, disponível em https://outrosacordaostrp.com/2020/11/19/ac-do-trl-de-19-11-2020-proc-8539-19-8t8lsb-l1-principio-da-adesao-tribunal-colectivo-persistencia-de-danos-nao-patrimoniais-art-72-1-d-g-do-cpc/.
[14] In Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, ALMEDINA, Coimbra, 1987, pág. 188.
[15] Para maior desenvolvimento a respeito da querela sobre os métodos hermenêuticos e sobre a posição do Código Civil, cfr. autor e obra citada, págs. 173 a 192, e OLIVEIRA ASCENSÃO, in O DIREITO – Introdução e Teoria Geral, 2.ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1980, págs. 341 a 387.
[16] Ainda sobre este tema, com profundidade, como lhe era habitual, pode ler-se: ENSAIO SOBRE A TEORIA DA INTERPRETAÇÃO DAS LEIS, MANUEL D. DOMINGUES DE ANDRADE e INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DAS LEIS, por FRANCESCO FERRARA, 3ª EDIÇÃO, Colecção STVDIVM, ARMÉNIO AMADO, EDITOR, SUCESSOR, COIMBRA, 1978.
[17] Doravante abreviadamente designada CRP.
[18] J. BAPTISTA MACHADO, ob. cit., pág. 175, e MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Introdução ao Direito, 2012, § 17.º, HERMENÊUTICA E DIREITO, § 18 INTERPRETAÇÃO DA LEI e § 19 RESULTADO DA INTERPRETAÇÃO, páginas 315 a 371.
[19] Já que actualmente a atribuição da competência aos juízos centrais em função do valor não coincide com o valor da alçada, que se mantém em 30.000,00 € (artigo 44.º da LOSJ).
[20] Subscrevendo a decisão da primeira instância, no Acórdão TRG de 29.06.2017, proferido no processo n.º 2299/16.1T8BRG.G1, ainda que começando por aderir ao entendimento já referido nos indicados arestos, acabou por se admitir que «quando muito, poderá entender-se, adaptadamente, tendo em atenção o disposto nos artºs 44.º; 117.º, nº 1, al. a); e 130.º, nº 1, al. a), ambos da Lei 62/2013, já em vigor à data dos factos, que a mencionada alínea será aplicável quando o pedido for superior a 50.000,00 euros, caso em que seria da competência das instâncias centrais o julgamento da respectiva acção declarativa cível. Não é o caso, na medida em que o pedido formulado se contém dentro dos limites da competência, em razão do valor, das chamadas instâncias locais».
[21] Texto elaborado e revisto pela Relatora, e assinado electronicamente pelos três desembargadores que constituem esta conferência.