Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
194/05-1
Relator: FERNANDO RIBEIRO CARDOSO
Descritores: ABATE CLANDESTINO
DOLO GENÉRICO
DOLO ESPECÍFICO
NEGLIGÊNCIA CONSCIENTE
NEGLIGÊNCIA INCONSCIENTE
CONTRADIÇÃO INSANÁVEL DA FUNDAMENTAÇÃO
CONTRADIÇÃO INSANÁVEL ENTRE A FUNDAMENTAÇÃO E A DECISÃO
PROVA PERICIAL
EXAME
INSPECÇÃO SANITÁRIA
Data do Acordão: 04/12/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
1. O art. 22 do DL 28/84, de 20 de Janeiro, prevê e pune duas infracções relativas ao abate clandestino de animais, com pressupostos distintos, embora unificadas na mesma norma incriminadora. O n.º1 prevê e pune o abate clandestino de animais. O n.º2 do reporta-se à aquisição para consumo de carne e produtos desses animais e tem como pressupostos a aquisição, por qualquer forma (compra, troca, doação, etc.) do objecto material, consubstanciado na carne do animal abatido ilegalmente ou no produto com ela fabricado ou produzido.

Quanto ao elemento subjectivo, além do dolo genérico – vontade livre e consciente de adquirir a carne ou produto de animal abatido ilicitamente, o que é do conhecimento do sujeito activo – exige-se o dolo específico, traduzido em certa intenção ou atitude interior do agente: este adquiriu a carne, ou os produtos, para (com o fim de) consumo público.

A negligência, no que respeita ao crime previsto no n.º2 do citado art. 22, pressupõe sempre que a carne ou produto de animal adquirido para consumo público provenha de abate nas (ou numa das) condições objectivas de clandestinidade mencionadas no art. 22 n.º1, e que o agente previu a realização do crime como possível, mas actua sem se conformar com essa realização (negligência consciente) ou não previu sequer a possibilidade da realização do crime (negligência inconsciente).

2. A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, apenas se verificará quando, analisada a matéria de facto, se chegue a conclusões irredutíveis entre si e que não possam ser ultrapassadas ainda que com recorrência ao contexto da decisão no seu todo ou às regras de experiência comum.

3. O exame pericial previsto nos artigos 151 e seguintes do Código de Processo Penal é diferente dos exames a que alude o artigo 171 do mesmo diploma. Na prova pericial é respeitado o princípio do contraditório, sendo o despacho que o ordena notificado ao Ministério Público, quando não é o seu autor, ao arguido, ao assistente e às partes civis, daí o valor probatório previsto no artigo 163 do Código de Processo Penal de 1987.

4. O exame macroscópico directo (efectuado à vista desarmada), constante de fls.40, não tem aquele valor probatório. A médica veterinária que realizou o exame não formulou nenhum juízo científico, com grande certeza e infalibilidade próprios desses juízos, ao afirmar, “não sendo visíveis as marcas sanitárias oficiais de inspecção sanitária, presumo tratar-se de abate clandestino”, mas, apenas, emitiu uma opinião em determinado sentido a ser avaliada em conjunto com outros elementos de prova. Assim, tal conclusão não era vinculativa para o tribunal, devendo ser apreciado nos termos do artigo 127 do Código de Processo Penal, ou seja segundo as regras da experiência e a livre convicção do Tribunal.

5. Assim, ao afastar a referida presunção exarada no exame macroscópico, face à demais prova produzida, não incorreu a senhora juiz em erro notório na apreciação da prova.
FRC
Decisão Texto Integral:
Acordam, precedendo audiência, os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório:

1.- Nos autos de processo comum singular n.º … do 1.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de …, os arguidos J. S. e Z., Lda. foram submetidos a julgamento pela prática em autoria material de um crime de abate clandestino, p. e p. pelo art. 22 n.º1, alin. a) e b) do DL 28/84, de 20 de Janeiro, vindo, por sentença proferida em 8 de Outubro de 2004, a ser absolvidos da prática desse crime.

2.- Inconformado, o Ministério Público veio interpor recurso da sentença, em cuja motivação produziu as seguintes conclusões:

1- Retira-se da leitura da motivação de facto da decisão recorrida que a circunstância de as carcaças de peru apreendidas se destinarem ao «consumo público», figura, simultaneamente, como um facto provado e como um facto não provado.

2- Nesta confluência é patente a existência de uma contradição insanável da fundamentação de facto:

3- O Tribunal a quo discordou do juízo contido no relatório pericial valorado em audiência e apenas invoca como motivo de discordância com o parecer pericial a circunstância de o mesmo conter uma presunção face à clandestinidade do abate das carcaças de peru;

4- O desrespeito das regras sobre o valor da prova vinculada consubstancia um erro notório na apreciação da prova (art.410 n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal);

5- Resulta claramente do art. 22 n.º1, n.º2, e n.º3, do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, que o crime pelo qual os arguidos vinham acusados se encontra previsto na forma negligente;

6- Na fundamentação da decisão de facto o Tribunal a quo valorou as declarações do arguido J. S., que admitiu que efectivamente tinham sido encontrados no talho de que é gerente, as três carcaças de peru, sem que as mesmas apresentassem as marcas de inspecção sanitária e afirmou que tal situação era possível, na medida em que compra um grande número de aves e que não consegue controlar se todas elas têm os selos apostos:

7- Este circunstancialismo (se não por si só, em conjugação com os demais factos provados e não provados), é susceptível de integrar a violação de um dever de cuidado por parte dos arguidos e, consequentemente, é questionável a prática, sob a forma negligente, do crime previsto no art. 22 n.º 2, do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro;

8- Mas se o arguido é gerente do estabelecimento em causa, não terá ele o dever acrescido de controlar e verificar se todos os artigos que adquire para venda ao público se apresentam em condições de ser comercializados?

9- Se o não fez, ou se o não faz, então, é porque necessariamente não cumpre todos os deveres a que qualquer gerente de um estabelecimento comercial está obrigado e, por isso, arriscar-se-á a expor para venda ao público produtos sem condições de sanidade;

10. É curioso que o Tribunal a quo tenha levado em consideração - em sede de motivação da decisão - que os perus não tinham selos de inspecção sanitária, por terem caído, ou ter havido erro na sua colocação e que o arguido J. S. é gerente da "Z.", e depois não tenha apreciado tais factos e daí retirado as devidas conclusões, designadamente em termos de imputação do crime em causa a título negligente;

11. Encontrando-se o crime de Abate Clandestino previsto na forma negligente e tendo resultado da discussão da causa factos que poderão consubstanciar a prática do ilícito jurídico-penal sob a forma negligente deveria o Tribunal a quo ter-se pronunciado sobre a questão referida;

12. Exemplificativamente, sempre se dirá que o Tribunal a quo não apurou a razão pela qual o arguido J. S., enquanto gerente da "Z.", não conseguia controlar se todas as aves tinham os selos da inspecção apostos;

13. Se o arguido é gerente do estabelecimento, actua em nome e a favor deste, presumindo-se que aí esteja diariamente e controlará as entregas da mercadoria para venda, então, não se percebe porque não conseguia controlar a existência dos referidos selos;

14. Mais, se "nos 15 dias precedentes à apreensão foram adquiridos para venda pela "Z." 152,91 quilos de peru", então, o arguido J.S. já tinha tido necessariamente oportunidade para controlar a existência dos selos da inspecção sanitária;

15. Efectivamente, existem aspectos de facto que o Tribunal a quo não teve em conta e cuja apreciação é vital para uma correcta subsunção jurídica da conduta imputada aos arguidos;

16. É altura de afirmar que a sentença proferida peca por superficialidade na análise que fez da matéria de facto em causa, mas sobretudo por não ter conhecido de factos relevantes para o preenchimento do crime em causa.

17. Por tudo o que se disse, a sentença recorrida é nula (art.379, n.º1, al. c) do Cód. Proc. Penal), nulidade esta que acarreta simultaneamente uma insuficiência ao nível da matéria de facto apreciada.

18. Por todo o exposto, padece a douta decisão recorrida dos vícios previstos nos arts.379, n.º1, al. c) e 2 e 410, n.º 2, alíneas a), b) e c) e n.º3 do Código de Processo Penal, os quais deverão motivar a revogação da douta Sentença recorrida, bem como o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do que preceituam os art. 426 n.º1 e 426-A, do Código de Processo Penal, na medida em que a decisão recorrida violou o art. 22 do DL n.º 28/84, de 20 de Janeiro.

3.- Os arguidos não responderam ao recurso interposto.

4.- Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto entende que o recurso merece provimento e que deve decretar-se o reenvio dos autos para novo julgamento.

5.- Cumprido o disposto no art. 417 n.º2 do CPP e colhidos os vistos legais, teve lugar a audiência de julgamento, cumprindo, agora, decidir:

II - Fundamentação

6.- A decisão revidenda julgou provados e não provados a seguinte (transcrita) materialidade fáctica:

AFactos provados:

1) No dia 17 de Abril de 2000, pelas 11.30h, no estabelecimento de talho sito no Mercado Municipal de , pertencente à arguida Z. Lda. e dirigida pelo arguido J.S., a Inspecção Geral das Actividades Económicas apreendeu três carcaças de peru com o peso de 16,300 quilos que aí estavam expostas para venda aos clientes ao preço de 480$00 por quilo de peru inteiro.

2) Submetidos a exame macroscópico directo concluiu-se que “não sendo visíveis as marcas sanitárias oficiais de inspecção sanitária, pelo que presumo tratar-se de abate clandestino”.

3) O arguido J. S. era gerente da …, actuando em nome e a favor desta.

4) Nos 15 dias precedentes à apreensão foram adquiridos para venda pela 1.ª arguida 152,91 quilos de peru.

B – Factos não provados:
- que os animais apreendidos tenham provindo de abate clandestino;
- que o abate e exposição em venda foi feito exclusivamente sob as ordens do arguido J. S., sem prévia sujeição a inspecção sanitária e sem que o abate tenha ocorrido em matadouro ou outro recinto com autorização para o efeito;
- que o arguido J. S. sabia que dirigia o abate de perus para consumo público sem prévia sujeição aos controlos sanitários exigidos por lei;
- actuando deliberada, livre e conscientemente, sabendo a sua conduta proibida;
- as carcaças de peru encontravam-se expostas, para venda ao público.
- os arguidos não possuem meios técnicos nem humanos para o abate de quaisquer animais;
- os arguidos não possuem qualquer exploração agrícola;
- nem quaisquer animais vivos susceptíveis de serem abatidos para consumo.

Não foram tidas em consideração alegações conclusivas ou de direito, que serão ponderadas em sede própria.

7. - O tribunal recorrido fundamentou a sua decisão sobre a matéria factual nos seguintes e transcritos termos:

“ O decidido funda-se em todos os meios de prova produzidos em audiência de julgamento, valorados na sua globalidade.

Concretamente o tribunal fundou a sua convicção desde logo nas declarações do arguido J.S., que admitiu que efectivamente tinham sido encontrados no talho pertencente à Z., de que é gerente, as três carcaças de peru, sem que as mesmas apresentassem as marcas de inspecção sanitária, ou seja, o selo.

Negou, no entanto, que tivesse ordenado o abate de tais aves e que as mesmas fossem provenientes de abate clandestino, esclarecendo que as tinha comprado e a quem.

Confrontado com a ausência dos referidos selos, o mesmo afirmou que tal situação era possível, na medida em que compra um grande número de aves e que não consegue controlar se todas elas têm os selos apostos.

Acrescentou também que os selos podem cair ou ainda que pode ter havido um erro na colocação dos mesmos.

A testemunha M. C., inspector da IGAE, prestou depoimento de forma isenta e rigorosa, esclarecendo a forma como ocorreu a inspecção e a apreensão dos animais.

Afirmou ainda que os mesmos não se encontravam expostos ao público, mas sim dentro da câmara frigorífica.

Apenas sabia que os mesmos não apresentavam marca de inspecção sanitária, não podendo, no entanto, afirmar que os mesmos fossem provenientes de abate clandestino.

As restantes testemunhas arroladas pela acusação A. O., M. T. e J.F., intermediários no negócio das aves, afirmaram que era possível que os mesmos não apresentassem os selos, sem que tal significasse que os mesmos tivessem sido abatidos clandestinamente, uma vez que os selos por vezes caiem e pode também haver erros na colocação dos mesmos.

As testemunhas F. G., F.L. e L. S. não revelaram ter conhecimento de factos com interesse para a decisão da causa.

Valorou-se ainda o relatório pericial de fls. 40 e os documentos de fls. 177 a 182 dos autos, oportunamente submetidos a discussão.

Da conjugação de todos estes meios de prova resultou que o tribunal considerasse provados e não provados os factos da forma supra descrita.

Com efeito, da prova produzida não foi possível a este tribunal ficar convencido, desde logo, de que os animais fossem provenientes de abate clandestino, não bastando para tal o relatório pericial junto aos autos, na medida em que o mesmo apenas apresenta uma presunção a esse respeito.

Também não foi feita qualquer prova no sentido de que os animais tivessem sido abatidos sob as ordens do arguido.

No que diz respeito aos restantes factos considerados não provados, tal deve-se à circunstância de não ter sido feita prova suficiente acerca da verificação dos mesmos”.

8.- Os recursos têm como âmbito as questões suscitadas pelos recorrentes nas conclusões das suas motivações, sem prejuízo de outras que sejam do conhecimento oficioso. Tendo sido prescindida a documentação dos actos de audiência, o recurso é restrito à matéria de direito, atento o disposto nos art. 364 n.º1 e 428, ambos do C. Processo Penal.

Este Tribunal conhece das questões relativas à matéria de direito, bem como dos vícios invocados no n.º 2 do artigo 410 do Código de Processo Penal, podendo o recurso ter como fundamento a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.

O objecto do recurso está, assim, circunscrito pelas conclusões da respectiva motivação, pois que, conforme jurisprudência uniforme do STJ, são elas que, sintetizando as razões do pedido, recortam o “thema decidendum”.

9.- Nestes termos, como se deixou editado no proémio da audiência, nesta instância, importa examinar as seguintes questões:
    a) Se a sentença enferma de nulidade, nos termos do disposto no art. 379 n.º 1, alin. c) e n.º2 do CPP;

    b) Se a sentença recorrida enferma de alguns dos vícios elencados no art. 410.º n.º2 do CPP?

10.- Entende o Ministério Público que a sentença recorrida é nula, por violação do disposto no art. 379 n.º1, alin. c) e n.º 2 do CPP, porque na motivação de facto da decisão, o Tribunal “a quo”, não obstante proceder à valoração de um comportamento omissivo admitido pelo próprio arguido, não o inclui na matéria assente e não se pronuncia sobre a imputação subjectiva dos factos a título de negligência.

Na motivação da decisão de facto a Exma. Juíza exarou que “Concretamente o tribunal fundou a sua convicção desde logo nas declarações do arguido J.S., que admitiu que efectivamente tinham sido encontrados no talho pertencente à Z., de que é gerente, as três carcaças de peru, sem que as mesmas apresentassem as marcas de inspecção sanitária, ou seja, o selo.

Negou, no entanto, que tivesse ordenado o abate de tais aves e que as mesmas fossem provenientes de abate clandestino, esclarecendo que as tinha comprado e a quem.

Confrontado com a ausência dos referidos selos, o mesmo afirmou que tal situação era possível, na medida em que compra um grande número de aves e que não consegue controlar se todas elas têm os selos apostos. Acrescentou também que os selos podem cair ou ainda que pode ter havido um erro na colocação dos mesmos”.

Os arguidos foram acusados pela prática de um crime de abate clandestino, p. e p. pelo art. 22 n.º1, alin. a) e b) do DL n.º 28/84, de 20 de Janeiro, com pena de prisão até 3 anos e multa não inferior a 100 dias, por, alegadamente, terem mandado abater e exposto para venda ao público perus, sem prévia inspecção sanitária e fora de matadouros ou outro recinto com autorização para o efeito.

É certo que, nos termos do n.º2 do mesmo preceito, “com a mesma pena será punido quem adquirir, para consumo público, carne de animais abatidos nos termos do número anterior ou produtos com ela fabricados”, e que a mera negligência é objecto de punição (cf. n.º3 do mesmo artigo).

O art. 22 do citado DL 28/84 prevê e pune duas infracções relativas ao abate clandestino de animais, com pressupostos distintos, embora unificadas na mesma norma incriminadora. O n.º1 prevê e pune o abate clandestino de animais. O n.º2 do reporta-se à aquisição para consumo de carne e produtos desses animais e tem como pressupostos a aquisição, por qualquer forma (compra, troca, doação, etc.) do objecto material, consubstanciado na carne do animal abatido ilegalmente ou no produto com ela fabricado ou produzido.

Quanto ao elemento subjectivo, além do dolo genérico – vontade livre e consciente de adquirir a carne ou produto de animal abatido ilicitamente, o que é do conhecimento do sujeito activo – exige-se o dolo específico, traduzido em certa intenção ou atitude interior do agente: este adquiriu a carne, ou os produtos, para (com o fim de) consumo público.

A negligência, no que respeita ao crime previsto no n.º2 do citado art. 22, pressupõe sempre que a carne ou produto de animal adquirido para consumo público provenha de abate nas (ou numa das) condições objectivas de clandestinidade mencionadas no art. 22 n.º1, e que o agente previu a realização do crime como possível, mas actua sem se conformar com essa realização (negligência consciente) ou não previu sequer a possibilidade da realização do crime (negligência inconsciente).

É óbvio que, perante os factos vertidos na acusação e aqueles que o tribunal recorrido deu como provados e não provados, não se pode considerar a existência de qualquer omissão de pronúncia, pois que o tribunal pronunciou-se sobre o crime que efectivamente foi imputado aos arguidos e, não se tendo provado quaisquer actos de execução ou comparticipação por parte dos arguidos no dito abate dos perus, que se consumou com a morte destes, impunha-se a absolvição daqueles.

Os arguidos não foram acusados do crime, p. e p. pelo art. 22 n.º2 do DL 28/84 (aquisição para consumo público de perus abatidos clandestinamente), nem os factos que integram a existência desse crime, na forma dolosa ou negligente, constam da acusação ou foram invocados na contestação dos arguidos.

Não se provando que os perus apreendidos aos arguidos e que eram destinados ao consumo público fossem provenientes de abate clandestino (ou seja, que tenham sido abatidos sem a competente inspecção sanitária e fora dos matadouros licenciados ou recintos a esse efeito destinados pelas autoridades competentes), sempre faltaria um dos requisitos que integra o crime previsto no n.º2 do citado art. 22 do DL n.º 28/84.

Com o devido respeito, não se pode concluir que os perus apreendidos provinham de abate clandestino pelo facto de terem sido encontrados sem selos de inspecção sanitária, e imputar aos arguidos uma conduta negligente, por o arguido J.S. ter admitido que compra um grande número de aves e não consegue controlar se todas elas têm os selos apostos e ter justificado a falta de selos, por terem caído, ou ter havido erro na sua colocação.

É que esses selos são pequenas etiquetas de material plástico, com uma ponta em forma de farpa, que são cravadas parcialmente nas carcaças das aves e não é de todo improvável que possam cair com o manuseamento das carcaças.

Por força do art. 32 n.º2 da CRP têm de haver-se por banidas em processo penal as presunções de culpa.

Mesmo que, por mera hipótese de raciocínio, se admitisse emergir da fundamentação da matéria de facto uma conduta negligente dos acusados, o que, a nosso ver, não resulta, já que o arguido negou que os perus fossem provenientes de abate clandestino, não tendo o tribunal comunicado aos arguidos em sede de audiência de julgamento qualquer alteração relevante à matéria factual e qualificação jurídica, com condenação por crime diverso do descrito na acusação fora dos casos e condições previstos no artigo 358, n.º 3, do Código de Processo Penal, constituiria nulidade da sentença, como comina o artigo 379, alínea b), do mesmo diploma legal.

Na verdade, um exercício eficaz do direito de defesa não pode deixar de ter por referência uma acusação e um enquadramento jurídico-penal preciso, uma vez que daí decorrem, ou podem decorrer, muitas das opções básicas de toda a estratégica de defesa (a escolha deste ou daquele advogado, a opção por determinadas provas em vez de outras, o sublinhar de certos aspectos e não de outros, etc).

Assim, não procede a invocada nulidade da sentença.
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11.- Passemos à questão seguinte. Padecerá a sentença de algum dos vícios do art. 410 n.º2 do CPP, como sustenta o Ministério Público?

Em comum aos três vícios - "insuficiência para a decisão da matéria de facto provada"; "contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão" e "erro notório na apreciação da prova" - temos que apenas se poderá afirmar que o vício inquina a sentença/ou acórdão em crise se resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum".

Quer isto significar, e de acordo com a melhor, se não unânime, jurisprudência (v. g., e entre muitos, Ac. do STJ, de 29.11.1989; de 19.12.1990) que não é possível o apelo a elementos estranhos ao julgamento em si mesmo, só sendo de ter em conta as contradições intrínsecas da própria decisão, considerada como peça autónoma.

A existência dos vícios ditos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º, entre os quais os apontados à decisão ora em crise (" insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável de fundamentação e erro notório na apreciação da prova), e como é de forma unânime aceite e defendido pela doutrina e jurisprudência dos tribunais superiores, só pode afirmar-se como verificada se resultar "...do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum".; tais vícios são apenas os intrínsecos da própria decisão, considerada como peça autónoma, não sendo de considerar e ter em conta o que do processo conste em outros locais - entre muitos, ac. do STJ, de 29.11.89, Proc. 40255/3.ª; 19.12.90, Proc. 41327/3.ª; 29.01.92, Col. Jur. XVII, tomo 1.º, 20; ac. do Trib. Const., de 05.05.93, Bol. 427-100.

As regras ou normas da experiência, como refere Cavaleiro de Ferreira, são definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto "sub judice", assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade.

Quanto à "insuficiência para a decisão da matéria de facto provada",este vício, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando o tribunal de primeira instância tenha deixado de se pronunciar sobre facto que, revelando interesse para a decisão da causa, tenha sido alegado pela acusação ou pela defesa, ou tenha resultado da discussão da causa. E tal omissão de pronúncia verificar-se-á quando o tribunal não insira facto com a apontada natureza nem no rol dos factos provados nem naqueles que considerou como não provados (cf. acórdão do S.T.J., de 13.01.99, Proc. n.º 1126, 3.ª - Sec.).

Como refere o Prof. Germano Marques da Silva, «É necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada. Antes de mais, é necessário que a insuficiência exista internamente, dentro da própria sentença ou acórdão. Para se verificar este fundamento, é necessário que a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão que deveria ter sido proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito. A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não tem nada a ver com a eventual insuficiência da prova para a decisão de facto proferida.» [1]

Daí que aquela alínea se refira à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova (art. 127), que é insindicável em reexame da matéria de direito.

Assim, um tal vício só pode ter-se como evidente quando os factos provados forem insuficientes para justificar a decisão assumida [2] .

Ocorre este vício quando, da factualidade vertida na decisão em recurso, se colhe que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição.

«Há insuficiência para a decisão sobre a matéria de facto provada quando os factos dados como provados não permitem a conclusão de que o arguido praticou ou não um crime, ou não contém, nomeadamente, os elementos necessários ou à graduação da pena ou à elucidação de causa exclusiva da ilicitude ou da culpa ou da imputabilidade do arguido» [Ac. da Rel. de Lisboa de 19/7/2002, proferido no Proc. nº 128169, cujo sumário pode ser consultado no site htpp//www.dgsi.pt)].

Decorre daqui que a “decisão” a que se reporta a citada al. a) do referido n.º 2, se refere à decisão justa que devia ter sido proferida, não à decisão recorrida perante diferente matéria de facto.

O Juiz tem de estender a sua actividade cognitiva até onde pode e deve.

O tribunal recorrido apurou todos os factos que constituíam o objecto do processo, ou seja, os constantes da douta acusação pública e da contestação do arguido, com relevância para a decisão.


O facto do tribunal recorrido não ter, alegadamente, apurado a razão pela qual o arguido J. S., enquanto gerente da arguida “Z.”, não conseguia controlar se todas as aves tinham os selos da inspecção apostos, é de todo irrelevante para a imputação aos arguidos do crime de aquisição para o consumo público de produtos provenientes de abate clandestino, pois, desse crime não foram acusados, e não basta uma conduta negligente relativamente ao controle dos selos de inspecção, para lhes imputar tal crime.

Assim, a sentença recorrida não enferma do vício de insuficiência para a decisão dos factos provados.

Quanto à "contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão" para relevar como vício, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), a "contradição - que significa incoerência, oposição ou incompatibilidade manifesta - tem de ser insanável, isto é, tem de se apresentar como inultrapassável pelo tribunal de recurso. Ocorrerá, por exemplo, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir - em sentido idêntico se vem pronunciando, de forma unânime o S.T.J., destacando-se, a título de exemplo, os Ac. de 22.05.1996, Proc. n.º 306/96 e de 02.12.1999, Proc. n.º 1046/1998, 5.ª Sec., "Sumários de Acórdãos do S.T.J., n.º 36".

O mesmo vício pode ter lugar quando se dá como provado um facto mas da respectiva motivação resulta que assim não pode ser considerado, o que igualmente integra o erro notório na apreciação da prova.

Invocou o Ministério Público nas conclusões do recurso que a sentença recorrida padece do vício de contradição insanável da fundamentação pois a circunstância de as carcaças de peru apreendidas se destinarem ao “consumo público” figura, simultaneamente, como um facto provado e como um facto não provado.

Não pode deixar de reconhecer-se assistir aqui alguma razão ao recorrente.

Na verdade, como ressalta da decisão recorrida, deu-se como provado que:

“- … a Inspecção-Geral das Actividades económicas apreendeu três carcaças de peru com o peso de 16,300 quilos que… estavam expostas para venda aos clientes ao preço de 480$00 por quilo de peru inteiro.

E foi também dado como não provado que:

“- as carcaças de peru encontravam-se expostas, para venda ao público.

O que vale por dizer que estamos face a factos que mutuamente se excluem.

Como decidiu o Supremo Tribunal de Justiça «a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, apenas se verificará quando, analisada a matéria de facto, se chegue a conclusões irredutíveis entre si e que não possam ser ultrapassadas ainda que com recorrência ao contexto da decisão no seu todo ou às regras de experiência comum» (Ac. de 14.3.02, proc. n.º 3261/01-5).

Porém, a contradição que se verifica é ultrapassável pelo recurso ao texto do acórdão e às regras da experiência comum.

Na verdade, consta dos factos provados que as carcaças de peru encontravam-se no estabelecimento de talho, sito no Mercado Municipal de …, pertencente à arguida Z., Lda.

As regras de experiência comum apontam no sentido de que tais carcaças de peru estavam expostas para venda ao público consumidor, pois ninguém leva produtos desta natureza para um Mercado Municipal, a não ser com a finalidade de os comercializar ou destinar ao consumo público.

Assim, a contradição resulta de uma falta de atenção, pois os próprios arguidos assumem expressamente na sua contestação, para que remete a sentença recorrida no seu relatório, que as carcaças de peru se encontravam expostas para venda ao público (art. 3.º, 5.º e 6.º).

Por isso que impõe-se eliminar o facto não provado, acima transcrito, de modo a ultrapassar a referida contradição e evitar o reenvio do processo para novo julgamento sobre esta questão, que é de todo irrelevante para o desfecho da causa.

Sustenta ainda o Ministério Público que a sentença enferma do vício de erro notório na apreciação da prova por ter discordado de juízo contido em relatório pericial, sem motivação bastante.

Quanto ao "erro notório", vem sendo entendimento unânime da doutrina e jurisprudência que ele apenas se terá como verificado em apertadas circunstâncias.

Prescreve o artigo 127 do Código de Processo Penal o seguinte:

"Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente".

Este o princípio fundamental sobre a regra da livre apreciação da prova.

No entanto não é um princípio absoluto, já que a própria lei lhe estabelece excepções, designadamente as respeitantes ao valor probatório dos documentos autênticos e autenticados (art. 169), à confissão integral e sem reservas no julgamento (art. 344 n.º2) e à prova pericial (art. 163).

Tais excepções enquadram-se no princípio da prova legal ou tarifada, que se acha radicado na certeza e segurança e certeza das decisões, consagração da experiência comum e facilidade e celeridade das decisões.

E tem grande importância a distinção a nível processual, pois que o desrespeito pelas regras próprias da valoração legal ou tarifada implica a violação de normas de direito, com as consequências e implicações, "maxime" em matéria de recursos (cf. Maia Gonçalves in Código de Processo Penal – 7.ª edição a páginas 262.

Dissemos atrás que uma das excepções é a referente à prova pericial.

Ora, a este respeito dispõe o artigo 163 do Código de Processo Penal:

1 - O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador.

2 - Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência.

Não é difícil a interpretação do presente normativo processual.

Consagra ele duas hipóteses:

1 - O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial impõe-se, em princípio, ao julgador que o tem de acatar; e

2 - Se dele divergir - e é lícita a divergência - o julgador terá de fundamentar a sua discordância e, não o fazendo, viola a norma jurídico-processual do art. 163.

Alinhadas, em apertada síntese, estas considerações, passemos de novo ao caso do pleito.

O exame pericial previsto nos artigos 151 e seguintes do Código de Processo Penal é diferente dos exames a que alude o artigo 171 do mesmo diploma.

Na prova pericial é respeitado o princípio do contraditório, sendo o despacho que o ordena notificado ao Ministério Público, quando não é o seu autor, ao arguido, ao assistente e às partes civis, daí o valor probatório previsto no artigo 163 do Código de Processo Penal de 1987.

O exame macroscópico directo (efectuado à vista desarmada), constante de fls.40, não tem aquele valor probatório.

Por outro lado, a médica veterinária que realizou o exame não formulou nenhum juízo científico, com grande certeza e infalibilidade próprios desses juízos, ao afirmar, “não sendo visíveis as marcas sanitárias oficiais de inspecção sanitária, presumo tratar-se de abate clandestino”, mas, apenas, emitiu uma opinião em determinado sentido a ser avaliada em conjunto com outros elementos de prova.

Assim, tal conclusão não era vinculativa para o tribunal, devendo ser apreciado nos termos do artigo 127 do Código de Processo Penal, ou seja segundo as regras da experiência e a livre convicção do Tribunal.

Assim, ao afastar a referida presunção exarada no exame macroscópico, face à demais prova produzida, não incorreu a senhora juiz em erro notório na apreciação da prova.

A verdade é que a matéria de facto não contém quaisquer vícios que comprometam a justiça da decisão e que determinem o reenvio do processo para novo julgamento.

Assim, o recurso interposto improcede.

12. Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes que constituem a secção criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, mantendo a douta sentença recorrida, com excepção do que acima referiu quanto à eliminação do facto contraditório inserido nos factos não provados.

Não são devidas custas.


(Processado e revisto pelo relator que assina e rubrica as restantes folhas).


Évora, 2005.04.12

Fernando Ribeiro Cardoso (relator) – Gilberto Cunha (1.º Adjunto) e Martinho Cardoso (2.º Adjunto)




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[1] «Curso de Processo Penal», III, 2.ª edição, pp. 339/340.
[2] Cf. por todos, o acórdão, do STJ, de 9-4-97 (BMJ 466-392).