Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
166/17.0T8FAL.E1
Relator: FRANCISCO MATOS
Descritores: LEGITIMIDADE PASSIVA
IMPUGNAÇÃO PAULIANA
Data do Acordão: 05/02/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - a procedência da ação pauliana não tem por efeito restituir ao património do devedor os bens alienados por via do ato impugnado, permite ao credor impugnante e só a ele, na medida do seu interesse, executá-los no património do beneficiário;
- por falta de conexão (objetiva) com a ação em que visa inserção, não é admitir o pedido reconvencional, destinado a obter a compensação de despesas feitas com a coisa, formulado por um dos comproprietários na ação de divisão de coisa comum.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc. nº 166/17.0T8FAL.E1

Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório
1. (…), viúva e (…), casado, ambos residentes no Bairro da Calçada dos (…), Rua 5, n.º 25, em Lisboa, instauraram contra 1º) Herança Indivisa aberta por óbito de (…), representada por (…), casado, residente na Rua (…), em Évora, (…), divorciada, residente na Rua (…), nº 14, 2º, esq., Cruz Quebrada, Dafundo, (…), solteira, maior, residente na Rua dos (…), nº 43, 1º, Lisboa, (…), casada, residente na Rua Padre (…), nº5, r/c, esq., Cruz Quebrada, Dafundo, 2.º) (…), casado, residente na Rua do (…), nº 133, bloco C, r/c, dtº, Lisboa, 3.º) (…), solteiro, maior, residente na Quinta das (…), s/n, lote B, Rua das (…), Alvito, 4.º) (…), divorciado, residente na Quinta das (…), s/n, lote B, Rua das (…), Alvito, 5.º) (…), solteiro, maior, residente na Praceta (…), lote 1, r/c, dtº, (…), Alvito, 6.º) (…), solteiro, maior, residente no Largo do (…), nº 12, r/c, Lisboa, 7.º) (…), casado, residente na Rua (…), nº 11, Évora, e 8.º) (…), na qualidade de legal representante do menor (…), residente na Rua (…), n.º 7, r/c, Lisboa, ação especial de divisão de coisa comum.

Alegaram, em resumo, que são proprietários com os RR, em comum e partes distintas, do prédio misto denominado Quinta de (…), com a área de 29,0750, sito no concelho de Ferreira do Alentejo, o qual não comporta divisão em substância sem alteração, diminuição do seu valor e/ou utilidade económica.

Pedem o termo da indivisão por via da adjudicação ou venda do prédio.

Contestou o requerido (…) alegando que vendeu a sua quota de 47/400 avos indivisos do prédio aos Requerentes, que a procedência da ação não lhe acarreta nenhum prejuízo e, assim, que é parte ilegítima na causa.

Concluiu pela sua absolvição da instância.

Contestaram os requeridos (…), (…), (…), (…), (…), (…) e (…), excecionando a ilegitimidade do 4º R, aceitando a indivisibilidade, em substância, do prédio e alegando que entre os anos de 2005 a 2011 foram realizadas despesas na parte urbana do imóvel (desratização, EDIA, impostos, limpeza do imóvel, seguros, produtos de higiene, limpeza e manutenção do jardim, conservação e reparação da casa e do jardim) que apenas alguns dos comproprietários suportaram.

Concluíram pedindo a absolvição da instância do 4º R e reconvindo, (i) a consideração da “divisão de despesas que foram suportadas por parte dos comproprietários em beneficio de todos, sem que todos tivessem comparticipado nas mesmas”, (ii) “ser reconhecidos os direitos dos 1º a 4ª e 9º RR, face aos AA, nos valores de € 423,90 e 367,19, respetivamente acrescidos de juros vencidos e vincendos desde a data da realização dos pagamentos até efetivo e integral pagamento a liquidar em sede de execução de sentença”, (iii) a “titulo subsidiário, caso não seja declarada procedente a exceção de ilegitimidade (…) deverá ser reconhecido o direito do 4º R, face aos AA, no valor de € 25.319,06”.

Os Requerentes responderam à contestação por forma a defenderem a legitimidade do requerido … (designado por 4º R na contestação), a considerarem o pedido reconvencional inadmissível, por não se incluir em nenhuma das situações em que a lei admite a sua formulação e por incompatibilidade das formas do processo, a excecionarem a litispendência do pedido reconvencional por referência ao processo 57/16.2TBFAL, no qual os Requeridos formulam idêntico pedido, fundado no direito à compensação que visam nos presentes autos.

Concluíram pela improcedência da exceção da ilegitimidade do requerido (…), pela inadmissibilidade do pedido reconvencional e, em qualquer caso, pela improcedência deste pedido.

2. Finda a fase dos articulados, foi proferida decisão que designadamente (i) absolveu da instância o rqdº. (…), por o haver considerado parte ilegítima na causa, (ii) julgou improcedente a exceção da ilegitimidade do rqdº (…) e declarou este parte legítima na causa, (iii) julgou extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, relativamente ao rqdº (…), (iv) não admitiu o pedido reconvencional, por incompatibilidade das formas de processo e por pendência de ação, entre os mesmos sujeitos, com idêntico pedido e causa de pedir, (v) declarou a indivisibilidade em substância do prédio e fixou as quotas dos interessados e (vi) ordenou a realização de perícia para determinar o valor do prédio.

3. A rqdª Herança Indivisa aberta por óbito de (…), representada por (…), (…), (…), (…) e os rqdºs (…), (…) e (…), recorrem desta decisão, concluindo assim a motivação do recurso:

“1. Os Recorrentes não se conformam com a decisão proferida pelo Tribunal a quo, por considerarem que não foi devidamente interpretado e aplicado o Direito ao caso concreto, nestas duas questões em particular.

2. O presente recurso deve ser admitido nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 644.º do CPC, atendendo a que o Tribunal a quo proferiu despacho saneador que, embora sem pôr termo ao processo, decidiu duas questões que se inserem na referida norma: (i) o Tribunal a quo apreciou o mérito da causa, após análise da prova produzida nos autos e apreciação da exceção de ilegitimidade do R. (…), ao decidir quem são os legítimos titulares do imóvel e ao fixar as respetivas quotas-partes; (ii) ao decidir pela inadmissibilidade da Reconvenção, o Tribunal a quo determinou a absolvição dos AA., Reconvindos, da instância reconvencional, por questões de ordem meramente processual e sem apreciar o mérito da causa.

3. Os Recorrentes não podem de todo concordar com o entendimento do Tribunal a quo relativamente à manutenção do R. (…) como titular do imóvel, uma vez que os efeitos da procedência de uma ação de Impugnação Pauliana não foram corretamente identificados.

4. Com efeito, nos termos do artigo 616.º do CPC, os bens objeto de impugnação não retornam à titularidade do alienante (devedor, neste caso o R. …), uma vez que permanece válida a transmissão realizada a favor dos adquirentes e os direitos dela emergentes (in casu, os RR. … e …).

5. Veja-se neste sentido os seguintes acórdãos, todos disponíveis em www.dgsi.pt: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 20 de Março de 2003, proferido no âmbito do processo n.º 03B3106; Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 11 de Dezembro de 2003, proferido no âmbito do processo n.º 8776/2003-6, e de 23 de Fevereiro de 2006 proferido no âmbito do processo n.º 643/2006-6; Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 21 de Abril de 2015, proferido no âmbito do processo n.º 189/04.0TBSRT.C1.

6. Veja-se também o entendimento de João Cura Mariano, in “Impugnação Pauliana”, 2.ª Edição – Revista e Aumentada, Almedina, 2008, pp. 243 e 244.

7. Assim sendo, para efeitos da presente ação, o R. (…) não se pode considerar proprietário de 50/400 avos do imóvel, uma vez que a totalidade da sua quota já foi transmitida.

8. Relativamente à suposta incompatibilidade da forma de processo exigida para a Reconvenção (comum) e a forma de processo especial em causa, cumpre referir que o próprio processo especial previsto nos artigos 925.º e seguintes do CPC comporta uma fase que pode seguir a tramitação do processo comum.

9. Para além disso, o próprio n.º 3 do artigo 266.º do CPC exceciona a incompatibilidade da forma de processo sempre que o Juiz autorize com fundamento na existência de interesse relevante ou quando a apreciação conjunta das pretensões seja indispensável para a justa composição do litígio, nos termos dos n.ºs 2 e 3 do artigo 37.º do CPC, tendo considerado a jurisprudência que esta norma se aplica a casos como o dos autos (Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25 de Maio de 2017 e proferido no âmbito do processo n.º 1242/09.9TJVNF-B.G1; Acórdão da Relação de Lisboa de 24 de Setembro 2015, proferido no âmbito do processo n.º 2510/14.3T8OER-A.L1-2; Acórdão da Relação de Guimarães de 25 de Setembro de 2014, proferido no âmbito do processo n.º 260/12.4TBMNC-A.G1; e o Acórdão da Relação de Lisboa de 4 de Março 2010, proferido no âmbito do processo n.º 1392/08.9TCSNT.L1-6, todos disponíveis em www.dgsi.pt).

10. Apesar de na ação de divisão de coisa comum se discutir o exercício do direito do comproprietário a não permanecer na indivisão, estando em causa o exercício de um direito real, na verdade é totalmente relevante, e inclusive imperioso, apreciar todas as questões relacionadas com o exercício desse direito, nomeadamente quando se refere à participação de cada um dos comproprietários na manutenção e conservação do imóvel, até porque o valor do imóvel está totalmente dependente da atuação realizada ao longo dos anos com vista à sua conservação e manutenção.

11. Assim, se se seguir o entendimento do Tribunal, chegar-se-á a uma situação de flagrante injustiça: o comproprietário beneficiará da divisão e do valor que lhe couber no imóvel sem ter participado nas despesas necessárias realizadas pelos restantes comproprietários, que até são titulares de quotas inferiores.

12. Ao contrário do que vem sugerir o Tribunal a quo, nestes autos não está apenas em causa uma ação de natureza real constitutiva, concretizada na definição do direito real dos proprietários e das respetivas quotas-partes, mas, igualmente, uma ação que reconhece direitos de crédito ao recebimento do preço devido pela quota-parte de que cada um é titular, em consequência da adjudicação ou da venda.

13. No que respeita à exceção de litispendência, não existe qualquer identidade de pedidos e de causas de pedir relativamente aos pedidos principais formulados nos dois processos, sendo que os pedidos principais dizem respeito ao reconhecimento da validade do contrato de arrendamento celebrado com uma das R., que não é parte nos presentes autos (… – Olivicultura, Lda.), e ao reconhecimento do direito de crédito da arrendatária relativamente aos AA., tendo sido peticionado a compensação do valor das rendas pelo valor das despesas pagas.

14. As partes não são totalmente as mesmas, os pedidos principais são distintos e a causa de pedir procede de facto jurídico distinto (naquele processo, a celebração de um contrato de arrendamento e a realização de despesas pela arrendatária; neste, a realização de despesas pelos comproprietários, estando em causa a divisão da coisa comum).

15. Falhando os pressupostos, não se verifica no caso a exceção de litispendência, devendo o Tribunal apreciar os pedidos reconvencionais apresentados pelos RR.

NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO,

Deverá ser concedido total provimento ao presente recurso, determinando-se a revogação do despacho saneador proferido pelo Tribunal a quo nos termos peticionados.

Responderam os Requerentes por forma a defenderem a improcedência do recurso.

Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Objeto do recurso
O objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões da motivação do recurso, enquanto corolário lógico-jurídico da fundamentação expressa na alegação, sem prejuízo das questões que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio e do conhecimento de alguma das questões suscitadas vir a ficar prejudicada pela solução dada a outras – cfr. artºs. 635º, nº 4, 639º, nº 1, 608º, nº 2 e 663º, nº 2, todos do Código de Processo Civil (CPC).
As conclusões da motivação do recurso colocam as seguintes questões: (i) a ilegitimidade para a causa do rqdº (…), (ii) a admissibilidade do pedido reconvencional.

III. Fundamentação
1. Factos
A decisão recorrida não enumera os factos que julgou provados cumprindo, no entanto, discriminá-los atenta a estrutura própria das decisões judiciais e a circunstância dos factos que agora assim se discriminam se mostrarem documentalmente comprovados (artºs. 607º, nºs 3 e 4 e 663º, nº 2, ambos do CPC):
a) Mostra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Ferreira do Alentejo sob o nº …/20040608, o prédio misto denominado Quinta de (…), com a área de 29,0750, sito na freguesia de Ferreira do Alentejo e Canhestros.
b) Mostram-se registadas as seguintes aquisições (em vigor) de partes indivisas do prédio:
- a favor dos Requerentes: 47/400 por partilha da herança de (…) e mulher; 94/400 por compra a (…) e (…); 47/400 por compra a (…); 47/4000 por compra a (…); 12/400 por compra (…).
- a favor de (…): 47/400 por partilha da herança de (…) e mulher; 23/4000 por compra a (…).
- a favor de (…) e de (…): 20/400 por doação de (…); 50/400 por doação de (…).
- a favor de (…): 12/4000 por sucessão hereditária de (…).
- a favor de (…): 1/400 por partilha da herança de (…) e mulher (certidões juntas aos autos de fls. 113 a 116 e 976 a 980).
c) Por sentença de 7/6/17, transitada em julgado, proferida no proc. 12969/15.6T8LSB, instaurada pelo Estado Português contra (…), (…), (…) e (…), foi declarada a “ineficácia da doação efetuada pelo R. (…) a favor dos RR (…) e (…) do direito a cinquenta quatrocentos avos do prédio misto, destinado a habitação e agricultura, sito na Quinta de (…), (…), perante o A., permitindo que este possa satisfazer o seu crédito sobre os 1º e 2º Réus através da execução do identificado direito na esfera jurídica (património) dos RR (…) e (…), até ao limite do aludido crédito”, dispositivo judicial que se mostra averbado à descrição do prédio (cfr. docs. juntos aos autos de fls. 139 a 153 e de fls. 976 a 980).

2. Direito
2.1. Se o rqdº (…) é parte ilegítima na causa
A decisão recorrida julgou o rqdº (…) parte legítima na causa na consideração que este é comproprietário do prédio por efeito da declaração da ineficácia da doação que fizera a seus filhos … e … (ponto c) dos factos provados).

Os Rqdºs divergem desta solução argumentando que a declaração de ineficácia da doação, relativamente ao credor Estado, não afeta a validade da doação, permanecendo a coisa na esfera jurídica dos adquirentes e que, como tal, o rqdº (…), havendo disposto validamente da sua quota, não é comproprietário do prédio e não tem interesse na divisão.

Apreciando.

Partes legítimas para a causa são aqueles que têm interesse em demandar ou em contradizer, exprimindo-se o interesse em demandar pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha, segundo a relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor, na falta de indicação da lei em contrário (artº 30º do CPC).

Incidindo sobre uma coisa, simultaneamente, dois ou mais direitos de propriedade, existe propriedade em comum ou compropriedade (artº 1403º, nº 1, do CC) e a lei atribui a qualquer dos comproprietários, salvo convenção em contrário, o poder potestativo de exigir a divisão da coisa ou, mais apropriadamente, o direito a não permanecer na indivisão (artº 1412º, nº 1, do CC); divisão que pode ter lugar amigavelmente ou nos termos da lei do processo (artº 1413º do CC).

A relação material controvertida, tal como configurada pelo Rqtes., visa o exercício deste direito à divisão da coisa fundada na compropriedade.

Partes legítimas para a causa são os titulares simultâneos dos direitos de propriedade sobre a coisa, ou seja, os seus comproprietários pois sendo a coisa sua são eles que têm interesse em demandar e contradizer com vista ao exercício e definição dos respetivos direitos e, assim, partes legítimas na ação de divisão de propriedade em comum são os comproprietários da coisa.

Os Rqtes. demandaram vários interessados, na qualidade de comproprietários, mas não concretizaram o direito de cada um deles; alegaram a sua a quota-parte do direito sobre a coisa (235/400) e a quota-parte dos Rqdºs (…), (…), (…) e (…) (70/400, por sucessão hereditária de …), remetendo a concretização dos direitos indivisos dos demais comproprietários para as certidões de cadernetas prediais e do registo predial que juntaram aos autos (artºs 10º, 12º e 13º do requerimento inicial).

Documentos que não permitem identificar o rqdº (…) como comproprietário do prédio (cfr. al. b) dos factos provados).

Tal como os Rqtes. configuram a relação material controvertida, ainda que integrada pelos meios de prova (documentos) que a instruíram, o rqdº (…), não é comproprietário do prédio, não é sujeito da relação material controvertida e, assim, não é parte legítima para a causa.

E tal legitimidade não lhe advém, salvo melhor opinião, como efeito da sentença proferida nos autos de impugnação pauliana que declarou a ineficácia da doação efetuada pelo rqdº (…) a favor dos seus filhos [ponto c) dos factos provados], por não determinar esta uma qualquer repristinação do seu direito em comum sobre o prédio; para assim ser, necessário se tornaria estender erga omnes os efeitos de tal ineficácia ou equipará-la a uma qualquer forma de inexistência, invalidade ou ineficácia do negócio jurídico que a doação representa e não cremos poder assentar neste ponto.

A procedência da impugnação não tem por efeito a restituição ao património do devedor dos bens alienados por via do ato impugnado, permite ao credor impugnante, e só a ele, na medida do seu interesse, executá-los no património do obrigado.

“1. Julgada procedente a impugnação, o credor tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os atos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei.

(…)

4. Os efeitos da impugnação aproveitam apenas ao credor que a tenha requerido (artº 616º, do CC).

A atribuição ao credor impugnante, e só a ele, da faculdade de executar os bens, na medida do seu interesse, no património do beneficiário do ato impugnado permite extrair duas conclusões que relevam para os autos: (i) a declaração de ineficácia do ato não tem por efeito a restituição dos bens ao património do devedor, os bens permanecem na esfera jurídica dos beneficiários do ato, única via do credor os poder aí executar, (ii) o ato impugnado permanece totalmente válido e eficaz, mesmo em relação ao impugnante, na parte em que exceda a medida do interesse deste.

Assim, P. Lima e A. Varela, “(…) sacrificando-se o ato apenas na medida do interesse do credor impugnante, mostra-se claramente que ele não está afetado por qualquer vício intrínseco capaz de gerar a sua nulidade, pois se mantém de pé, como ato válido, em tudo quanto excede a medida daquele interesse (…).”[1]

E o Ac. do STJ de 15-01-2004 (proc. 03B3106), “[n]ão se suscitam dúvidas que o ato impugnado pela pauliana não tem nenhum vício genético, sendo, em si, totalmente válido e eficaz, pois que o devedor, mesmo que carregado de dívidas, não fica impedido de dispor dos seus bens: o que não pode é, conscientemente, de má fé, prejudicar os credores.

Por isso, mesmo que triunfantemente impugnado, não deixa esse ato de manter a sua validade e eficácia. Apenas sofre um certo enfraquecimento: os bens transmitidos respondem pelas dívidas do alienante, na medida do interesse do credor.”

A declaração de ineficácia da doação efetuada pelo rqdº (…) a favor dos seus filhos, ora rqdºs (…) e (…), permite ao credor impugnante, no caso o Estado, executar o objeto da doação no património destes últimos, mas não tem por efeito a restituição dos bens, no caso do direito indiviso sobre os bens, ao património do doador.

O rqdº (…) não é sujeito da relação material controvertida, tal como os Rqtes a configuram, o que significa não é parte legítima na causa.

A ilegitimidade de alguma das partes é uma exceção dilatória que dá lugar à absolvição da instância (artºs 278º, nº 1, al. d), 576º, nº 2, 577º, al. e), todos do CPC).

Absolvido da instância o rqdº (…) a quota-parte do prédio que lhe foi fixada na decisão recorrida acresce à quota-parte do prédio fixada aos rdqºs (…) e (…).

O recurso procede quanto a esta questão.


2.2. A (in)admissibilidade do pedido reconvencional
Os Rqdºs formularam pedido reconvencional fundado em despesas que realizaram, nos anos de 2005 a 2011, com a manutenção e conservação da parte urbana e jardim do prédio objeto da divisão e para as quais os Rqtes, segundo alegam, não contribuíram.

Devendo os comproprietários contribuir, em proporção das respetivas quotas, para as despesas necessárias à conservação e fruição da coisa (artº 1411º, nº 1, do CC), o dissenso coloca-se no meio processual apto ao exercício deste direito, porquanto a decisão recorrida ajuizou que tal exercício, por via reconvencional, não é admissível – seja porque não se mostra possível decidir sumariamente a reconvenção, o que é incompatível com a forma de processo especial de divisão de coisa comum, seja porque a admissão do pedido reconvencional determinaria a repetição de uma outra causa em curso, uma vez que se mostra pendente o proc. nº 57/16, entre os mesmos sujeitos, com idêntico pedido e causa de pedir – e os Rqdºs consideram que não existem razões procedimentais que obstem à admissão e apreciação do pedido reconvencional.

Como resulta do confronto da jurisprudência coligida nos autos pela decisão recorrida e pelos pelos Rqdºs, não existe uniformidade nas Relações quanto à admissibilidade da reconvenção deduzida na ação especial de divisão de coisa comum destinada a obter a compensação por algum(s) comproprietário(s) quanto a despesas feitas com a coisa; uns “consideram que a menos que as questões deduzidas na contestação/reconvenção possam ser decididas sumariamente, sem necessidade de prosseguir a causa nos termos do processo comum, a reconvenção não será admissível” outros “consideram ser de admitir a reconvenção para assegurar a justa composição do litígio, quando tenha sido suscitada a compensação de invocado crédito por despesas suportadas para além da quota respetiva, com o crédito de tornas que venha a ser atribuído ao requerente, devendo a ação seguir os termos do processo comum, para que sejam decididas tais questões, só então se entrando na fase executiva do processo com a conferência de interessados”.[2]

Entrar, porém, nesta discussão supõe, a nosso ver, resolvida uma outra questão que, por ordem lógica, a precede, qual seja, a admissibilidade objetiva da reconvenção.

“Os limites postos pela lei à admissão da reconvenção podem classificar-se em objetivos e processuais. a) Limites objetivos. Traduzem-se na exigência duma certa conexão ou relação entre o objeto do pedido reconvencional e o objeto do pedido do autor. (…) b) Limites processuais. Os limites processuais relacionam-se: 1) com a forma do processo; 2) com a competência do tribunal.” [3]-

Enquanto ação proposta pelo réu contra o autor na instância por este aberta, a reconvenção só é admissível quando apresente uma conexão ou relação com a ação em que visa inserção, assim expressa pelo artº 266º, do CPC:

“2. A reconvenção é admissível nos seguintes casos:

a) Quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa;

b) Quando o réu se propõe tornar efetivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida;

c) Quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor;

d) Quando o pedido do réu tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter.

Verificada a inclusão do pedido reconvencional numa destas previsões será então caso de verificar se o rito processual da ação em curso tem espaço para a sua apreciação ou se, não o tendo, deverá ser adaptado pelo juiz, como meio indispensável à obtenção da justa composição do litígio (artºs 266º, nº 3 e 37º, nºs 2 e 3, ambos do CPC); e cremos ser esta ordem lógica de conhecimento não só porque o esquema de análise proposto pela norma (artº 266º) assim o sugere, mas sobretudo porque um qualquer juízo sobre a adequação procedimental entre a ação e a reconvenção, com vista à justa composição do litígio, supõe a admissibilidade objetiva desta e não o inverso.

Tornando aos autos, fácil se torna afirmar que o pedido reconvencional não emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa (ambas pugnam pela indivisibilidade, em substância, da coisa), nem visa obter, em benefício dos Reconvintes, o mesmo efeito jurídico que os Rqtes se propõem obter (os Rqtes querem a divisão da coisa e os Reconvintes querem obter o pagamento de despesas efetuadas com a coisa), o que exclui a sua inserção nas previsões das alíneas a) e d).

Prosseguindo, a ação tem por objeto a adjudicação ou venda da coisa e não a sua entrega, podendo acontecer, é certo, que a coisa venha a ser adjudicada pelos Rqtes mas também o seu inverso, ou seja, que a coisa venha a ser adjudicada aos reconvintes (artº 929º, nº 2, do CPC), caso em que a coisa não será pedida a eles mas por eles, o que afasta a previsão da alínea b), apesar do pedido reconvencional se destinar a efetivar o direito a despesas relativas à coisa.

Por último, o pedido reconvencional aproxima-se – na sua formulação e não na sua estrutura – da previsão da alínea c), segundo a qual o pedido reconvencional é admissível quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, inferior, igual ou superior ao do autor, para obter a compensação.

Compensação que envolve, por natureza, a existência de créditos recíprocos entre credor e devedor, no caso, (i) o crédito que os Reconvintes pretendem ver reconhecido sobre os Rqtes e (ii) um crédito dos Rqtes de que eles, reconvintes, são devedores.

“Quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, qualquer delas pode livrar-se da sua obrigação por meio de compensação com a obrigação do seu credor, verificados os seguintes requisitos (…)” – artº 847º, do CC.

“A compensação é uma forma de extinção das obrigações em que, no lugar do cumprimento, como sub-rogado dele, o devedor opõe o crédito que tem sobre o credor. Ao mesmo tempo que se exonera da sua dívida, cobrando-se do seu crédito, o compensante realiza o seu crédito liberando-se do seu débito, por uma espécie de ação direta”.[4]

No caso, os Reconvintes não identificam um qualquer contra-crédito dos Rqtes suscetível de ser compensado com o crédito que visam reconhecer em juízo e o mesmo não decorre, como efeito necessário, da adjudicação ou venda da coisa, pois não se pode ab initio afastar a possibilidade de a coisa vir a ser adjudicada pelos Rqtes (artº 929º, nº 2, do CPC) caso em que estes assumirão a posição de devedores (de tornas) e não de credores.

O pedido reconvencional não se inclui em nenhuma das previsões de admissibilidade (objetiva) da reconvenção, razão pela qual esta, a nosso ver, não é admissível; neste sentido, Ac. desta Relação de 22-03-2018[5] e jurisprudência nele citada.

O recurso improcede quanto a esta questão.

2.3. Custas
Parcialmente vencidos no recurso, Rqdºs e Rqtes pagarão as custas na proporção de metade (artº 527º, nº 2, do CPC).

Sumário (da responsabilidade do relator – artº 663º, nº 7, do CPC):
(…)

IV. Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto, na procedência parcial do recurso, em:
a) absolver da instância o rqdº (…).
b) manter, no mais, a decisão recorrida, exceto no que respeita à quota fixada aos requeridos (…) e (…), a qual deverá ser acrescida de 50/400 avos do imóvel.
c) Custas a cargo dos Recorrentes e Recorridos na proporção de ½.
Évora, 2/5/2019
Francisco Matos
José Tomé de Carvalho
Isabel de Matos Peixoto Imaginário

__________________________________________________
[1] Código Civil anotado, vol. 1º, 4ª ed., pág. 633.
[2] Ac. RE de 17-01-2019 (proc. 764/18.5T8STB.E1), disponível em www.dgsi.pt.
[3] Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 3º, págs. 98 e 116.
[4] Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., vol. II, 4ª ed., pág. 130.
[5] Proc. 151/17.2T8ODM.E1, disponível em www.dgsi.pt.