Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
255/22.0GDSTR-A.E1
Relator: EDGAR VALENTE
Descritores: PRISÃO SUBSIDIÁRIA
AUDIÇÃO DO CONDENADO
Data do Acordão: 02/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
Ao contrário do que dispõe o n.º 2 do art.º 492.º do Código de Processo Penal, que prevê expressamente a audição do condenado antes de ser proferido despacho relativo à execução da pena de prisão, o art.º 49.º do Código Penal não faz referência alguma à audição do condenado antes de ser proferido despacho a converter a multa não paga em prisão subsidiária.

Apesar disso, tem sido unanimemente entendido que deve ser dada oportunidade ao condenado de se pronunciar sobre a não pagamento da multa.

Porém, a audição a que alude o art.º 61.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal não tem necessariamente que ser presencial. O que é determinante para assegurar o princípio do contraditório é que ao arguido seja concedida oportunidade de se pronunciar antes de ser determinado o cumprimento da prisão subsidiária.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório.

No processo sumário n.º 255/22.0GDSTR, que corre termos no Juízo Local Criminal de … do Tribunal Judicial da Comarca de …, foi proferido despacho com o seguinte teor:

“Face ao exposto, decido converter a pena de multa aplicada ao arguido em 43 dias de prisão subsidiária.”

Inconformado, o arguido AA interpôs recurso de tal decisão, extraindo da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

“1. O Arguido foi condenado por sentença transitada em julgado na pena de 65 (sessenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz a quantia total de € 390,00 (trezentos e noventa euros) e na pena acessória de proibição de conduzir qualquer veículo motorizado pelo período de 03 (três) meses e 20 (vinte) dias, nos termos do disposto no art. 69.º, n.º 1 al a) e n.º 2 do Código Penal (CP).

2. A pena de multa não foi liquidada pelo arguido, apenas a pena acessória foi cumprida, no entanto o mesmo demonstra que o arguido quer cumprir com as suas obrigações.

3. O douto Tribunal a quo decidiu pela conversão da pena de multa em prisão subsidiária de 43 (quarenta e três) dias.

4. A defesa não concorda na conversão fazendo o presente recurso.

5. Não foi feita notificação pessoal ao arguido do douto despacho que converteu a pena, tendo que o mesmo ser da forma descrita – pessoal.

6. O facto de não ter havido notificação pessoal do arguido configura nulidade insanável nos termos do disposto no artigo 119.º, al c) do CPP por violação do artigo 61.º n.º 1 al b) do CPP.

7. Mais, o arguido não foi ouvido pessoalmente acerca dos motivos que o levaram a não ter pago até então a multa a que foi condenado, o que originou violação do disposto no n.º 2 do artigo 495 do CPP, constituindo uma nulidade insanável cominada na al. c) do artigo 119.º do CPP.

8. O despacho que, ao abrigo do art. 49º do Código Penal, converte a pena de multa não paga em prisão subsidiária configura uma alteração superveniente do conteúdo decisório da sentença de condenação, estando em causa a liberdade do arguido o Juiz, antes de proferir decisão deverá ouvir o arguido, sendo que pessoalmente.

9. A audição por escrito não é suficiente, é exigível a audição pessoal.

10. Salientar ainda que, o arguido condenado em pena de multa deve ser notificado pessoalmente para pagar a multa liquidada, sendo que o prazo para o pagamento da multa não começa a correr enquanto esta notificação não tiver lugar, não existindo assim incumprimento, não podendo haver conversão da multa não paga em prisão subsidiária – mais uma vez a não notificação com a formalidade exigida configura nulidade insanável pois impede o exercício de direitos do arguido.

11. Na opinião da defesa há ainda caminho para a não conversão, sendo importante e exigível ouvir o arguido presencialmente, só devendo ser aplicada pena não privativa da liberdade em última instância, só mesmo quando estão esgotadas todas as hipóteses e dada a oportunidade de explicação por parte do arguido.

12. Salientar a questão da possibilidade, contudo, apesar das nulidades invocadas, de que deveria o Tribunal a quo ter considerado a aplicação do regime de cumprimento permanência na habitação tendo em conta a dimensão da pena concreta, sendo que realizaria de forma adequada e suficiente as finalidades visadas com a execução da pena, o que não foi considerado sequer, nos termos do disposto no artigo 43.º, n.º 1 al c) do CP. O arguido até teria condições para tal, mas não foi considerado.

13. Atentas as nulidades insanáveis descritas anteriormente, entende a defesa que a conversão da pena de multa em pena ade prisão subsidiaria não foi correcta devendo a mesma ser dada sem efeito, dando possibilidade ao arguido de se explicar, após ter sido notificado pessoalmente.”

O recurso foi admitido.

O MP na 1.ª instância respondeu ao recurso, concluindo do seguinte modo (transcrição):

“1) Recorre o arguido da douta decisão que determinou a conversão da pena de 65 dias multa não paga em 43 dias de prisão subsidiária;

2) O arguido invoca não ter sido notificado pessoalmente da douta decisão em apreço, mas, pelo mero compulso dos autos, apura-se que este foi pessoalmente notificado do douto despacho recorrido, por órgão de polícia criminal, no dia 11-06-2023.

3) A conduta do arguido, ao invocar falsamente a falta de notificação pessoal, atinge os princípios da boa-fé processual;

4) A notificação da decisão que procedeu à conversão da multa em prisão subsidiária foi efetuada ao arguido através de contato pessoal e respeitou todos os preceitos legais;

5) A audição do arguido antecedente da decisão de conversão pode ser efetuada por escrito, não se exigindo a sua audição verbal ou presencial;

6) Através de carta datada de 24-02-2023, depositada na morada do TIR no dia 28-02-2023, foi conferida a prerrogativa do arguido se pronunciar por escrito, pelo que, se nada disse desde então, a conversão apenas a este pode ser imputada

7) A douta decisão não padece dos vícios invocados pelo recorrente.”

Conclui pugnando pela improcedência do presente recurso, mantendo-se integralmente a decisão recorrida.

A Exm.ª PGA neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.

Procedeu-se a exame preliminar.

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (1), não tendo havido qualquer resposta.

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

Reproduz-se a decisão recorrida, na parte que interessa:

“Por sentença transitada em julgado em 09-12-2022, AA, foi condenado, pela prática, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292º, nº 1, do Código Penal, na pena de 65 (sessenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz a quantia de € 390,00 (trezentos e noventa euros) e na pena acessória de proibição de conduzir qualquer veículo motorizado pelo período de 3 (três) meses e 20 (vinte) dias, nos termos do disposto no artº 69º, nº 1, al. a) e nº 2, do C. Penal.

No que respeita à pena de MULTA, o arguido não efetuou o pagamento voluntário da multa, não requereu o seu pagamento em prestações ou a sua substituição por trabalho a favor da comunidade.

Procurou-se efetuar o pagamento coercivo da mesma – cf. art. 49, n.º 1 do C.P. e art. 491.º do C.P.P – concluindo-se, porém, pela inexistência de bens suscetíveis de penhora.

O Ministério Publico promoveu a conversão da multa em prisão subsidiária.

O arguido foi notificado para a morada do TIR para proceder ao pagamento da multa, sob pena desta ser convertida em prisão subsidiaria, ou para justificar o seu incumprimento, nos termos do art.º 49.º, n.º 3 do CP – cf. referências … e ….

Porém, nada veio dizer. Cumpre decidir.

Prescreve o art. 49.º, n.º 1 do C. Penal que caso a multa não seja paga voluntária ou coercivamente será cumprida pena de prisão subsidiária pelo tempo correspondente a dois terços, não relevando, para o efeito, o limite mínimo dos dias de prisão constantes do art. 41, n.º1 do C.P.

Ora, no caso sub júdice, voluntariamente o arguido não efectuou o pagamento da multa e coercivamente, tal como supra exposto, não é possível cumprir-se a pena atendendo a que não são conhecidos bens suscetíveis de penhora da sua propriedade.

Nesta conformidade, importa converter a pena de multa – não paga – em prisão subsidiária.

Para o efeito dispõe o art. 49.º, n.º 1 do CP, que a pena de prisão subsidiária corresponde a 2/3 da pena de multa, o que significa que aos 65 dias de multa correspondem 43 dias de prisão subsidiária.

Face ao exposto, decido converter a pena de multa aplicada ao arguido em 43 dias de prisão subsidiária.

Advirta-se o arguido que pode, a todo o tempo, evitar total ou parcialmente a execução da prisão subsidiária pagando, no todo ou em parte, a referida multa – cf. n.º 2 art. 49 do C.P.

(…).”

2 - Fundamentação.

A. Delimitação do objecto do recurso.

A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (art.º 412.º), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.

Questão única - nulidade insanável nos termos do disposto no artigo 119.º, al c) por violação do artigo 61.º n.º 1, alínea b) e nulidade prevista na mesma disposição legal, por falta de notificação ao arguido para estar presente para a sua audição nos termos do art.º 495.º, n.º 2.

B. Decidindo.

Questão única.

Vejamos, antes de mais, o quadro legal atinente:

Segundo o art.º 49.º, n.º 1 do Código Penal, na parte que importa “[s]e a multa, que não tenha sido substituída por trabalho, não for paga voluntária ou coercivamente, é cumprida prisão subsidiária…”.

Por seu turno, dispõe o n.º 2 da mesma disposição legal que “[o] condenado pode a todo o tempo evitar, total ou parcialmente, a execução da prisão subsidiária, pagando, no todo ou em parte, a multa a que foi condenado”.

Por último, na parte atinente, o nº 3 da aludida norma dispõe que “[s]e o condenado provar que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável, pode a execução da prisão subsidiária ser suspensa…”.

Ao contrário do que dispõe o n.º 2 do art.º 492.º, que prevê expressamente a audição do condenado antes de ser proferido despacho relativo à execução da pena de prisão (2), o referido art.º 49.º do Código Penal não faz referência alguma à audição do condenado antes de ser proferido despacho a converter a multa não paga em prisão subsidiária.

Apesar disso, tem sido unanimemente entendido, e a nosso ver bem, que deve ser dada oportunidade ao condenado de se pronunciar sobre a não pagamento da multa.

Mas isso é uma coisa (e esta “oportunidade” está documentada nos autos); outra, é que tal oportunidade tenha que lhe ser dada através de uma tomada presencial de declarações.

A audição a que alude o art.º 61.º, n.º 1, alínea b) não tem necessariamente que ser presencial. O que é determinante para assegurar o princípio do contraditório é que ao arguido seja concedida oportunidade de se pronunciar antes de ser determinado o cumprimento da prisão subsidiária.

“Não se vislumbra, ao contrário do alegado pelo recorrente, que o artº 27º (em qualquer dos seus números, apesar de o arguido no recurso não ter especificado qualquer deles), ou o artº 32º, nº 5, da C.R.P. obriguem a uma audição presencial. O contraditório, neste caso, deve ser cumprido dando-se a possibilidade de o arguido alegar o que entender de modo a ser proferida decisão que tenha em conta isso mesmo.” (3)

“O direito do arguido a ser ouvido significa que pode pronunciar-se antes de ser tomada uma decisão que directa e pessoalmente o afecte; o direito a ser ouvido não tem, no entanto, que consistir sempre numa audição ou audiência pessoal e oral; a possibilidade de se pronunciar por escrito através de intervenção processual do defensor pode satisfazer, e satisfaz por regra, o direito a ser ouvido no exercício do contraditório.”(4)

Considerando que o arguido, através de carta de 24.02.2023, depositada na morada do TIR no dia 28.02.2023, foi notificado para a morada do TIR para proceder ao pagamento da multa, sob pena desta ser convertida em prisão subsidiária ou para justificar o seu incumprimento, nos termos do art.º 49.º, n.º 3 do CP (referências … e …) e optou por nada dizer (nomeadamente requerendo a aplicação do regime de obrigação de permanência na habitação), a conversão apenas a este pode ser imputada notificado que foi para o efeito, estando perfeitamente cumprido o contraditório, nada mais sendo exigível que o tribunal faça.

Este entendimento também emerge do teor do n.º 3 do art.º 49.º do Código Penal, ao prever “se o condenado provar …”, ou seja, é o condenado que tem que provar que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável para que se possa ponderar decretar a suspensão da execução da prisão subsidiária.

“Tudo isto indica que o condenado, que bem sabe que foi condenado numa pena de multa que não pagou, tem que ter uma posição “proactiva”, digamos assim, de modo a impedir que tenha que cumprir a prisão subsidiária ou, pelo menos, que seja proferido despacho nesse sentido, já que, como se referiu, a qualquer momento pode impedi-lo, pagando a multa em que foi condenado.

Deveria o tribunal convocá-lo para que eventualmente dissesse de viva voz o que não alegou por escrito? Julgamos que não.” (5)

Como consta do Acórdão da Relação de Coimbra de 20.01.2016, proferido no processo n.º 127/10.0GASAT.C1, “[o] princípio do contraditório constitui uma verdadeira garantia constitucional. Todavia, para que a concessão dessa garantia assuma a sua efetividade torna-se necessária alguma colaboração positiva do arguido. O tribunal concede ao arguido a possibilidade de exercer o contraditório, não lhe pode impor, de modo algum, a obrigação de exercício efetivo desse direito”.

Seguimos o entendimento claramente maioritário na jurisprudência, embora existam decisões em sentido contrário, algumas delas defendendo existir um regime idêntico ao da execução da revogação da suspensão da execução da pena de prisão.

Estamos, porém, perante situações diversas, “desde logo porque se revogada a suspensão da execução da pena de prisão, o condenado necessariamente tem que a cumprir; se convertida a multa não paga em prisão subsidiária, ainda assim, o condenado pode evitar o seu cumprimento, pagando-a a qualquer momento (como se sabe é isso, aliás, que acontece mais frequentemente). Para além do mais, é o nº 2 do artº 495º do C.P.P. que prevê recolha de prova por parte do tribunal e a audição do condenado na presença do técnico.” (6)

O recurso é, pois, totalmente improcedente.

3 - Dispositivo.

Por tudo o exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC. (art.º 513.º, n.º 1 e art.º 8.º, n.º 9 / Tabela III do Regulamento das Custas Processuais)

(Processado em computador e revisto pelo relator)

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1 A que pertencerão todas as referências normativas ulteriores, sem indicação diversa.

2 É, aliás, significativo que o recorrente afirme que a audição por escrito não é suficiente e é exigível a audição pessoal do arguido, mas não explicando porque motivo este plus de presencialidade é necessário. Recorde-se que aqui não existe qualquer técnico social que acompanhe a pena suspensa, pelo que não faz sentido ouvir o arguido na presença de um técnico que… não existe.

3 Acórdão deste TRE de 21.01.2020 proferido no processo n.º 189/17.0PTFAR-A.E1 (relator Nuno Garcia), que seguimos de perto (e continuaremos a seguir) e disponível, como todos os outros referidos ulteriormente sem indicação diversa, em www.dgsi.pt.

4 Henriques Gaspar in Código Processual Penal Comentado, 3.ª edição, 2021, página 173.

5 Cfr. acórdão deste TRE acima citado.

6 Idem, onde se podem consultar referências jurisprudenciais no sentido defendido e em sentido contrário.