Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
948/11.7PBSTR.E1
Relator: JOÃO GOMES DE SOUSA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
FACTOS GENÉRICOS
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 10/01/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO O RECURSO. FOI, NO ENTANTO, DETERMINADA A PROLAÇÃO DE NOVA SENTENÇA EXPURGADA DE FACTO TIDO COMO NÃO ESCRITO
Sumário:
I - Num tipo de crime onde a reiteração e intensidade do agir humano está no centro da definição de um tipo penal muito amplo (maus-tratos, violência doméstica, tráfico de droga), a precisa e possível indicação e concretude dos factos necessários à integração no tipo é elemento essencial do julgamento. E é, na sequência, o cerne do direito de defesa.

II - Se a alegação factual – em qualquer imputação penal - não pode ser facilitada pelo uso de fórmulas “vagas, imprecisas, nebulosas, difusas, obscuras”, neste tipo de crime a exigência é maior dada a amplitude do tipo penal. Por isso, será de ter por não escritas aquelas formas de imputação genérica. [1]
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes que compõem a 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório:

No Tribunal Judicial de Santarém correu termos o processo comum colectivo supra numerado no qual foi julgado A, divorciado, filho de..., nascido a 9/04/1957, em Vale Figueira, Santarém, residente na Calçada..., Santarém, ao qual tinha sido imputada a prática, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.152º, nº 1, al.a) do Código Penal e de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arts.153º, nº1 e 155º, nº1, al.a), do C.Penal.
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A final - por sentença lavrada a 30 de Janeiro de 2013 - veio a decidir o Tribunal recorrido, julgar procedente por provada a acusação pública e, em consequência:

- Condenou o arguido A. pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.152º°, nº1, al.a), na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão.

- Condenou o mesmo arguido pela prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arts.153º°, nº1 e 155º, nº1, al.a), ambos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão.

- Em cúmulo jurídico destas duas penas, nos termos do art.77º, nºs.1 e 2 do C.Penal, condenar o arguido A. na pena única de 4 (quatro) anos de prisão.
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Inconformado, o arguido interpôs recurso, com as seguintes conclusões:

1 – Manifestamente, o arguido foi condenado mercê dos seus antecedentes criminais, não pela prova, na verdade inexistente, produzida em julgamento quanto aos factos de que em concreto vem acusado nos mesmos.

2 - Dos depoimentos das testemunhas da acusação o que claramente resultou foi a inexistência de prova dos factos imputados ao arguido.

3 - Das testemunhas da acusação e dos declarantes, queixosos, extrai-se uma confrangedora falta de precisão quanto a situar os factos no tempo, a referir de forma espontânea os termos ou expressões alegadamente injuriosas ou ameaçadoras da autoria do arguido.

4 - Tal míngua e falta de espontaneidade resultam claros do depoimento da assistente B, com depoimento gravado no ficheiro, 20130109104218-167795-65110.

5 - O queixoso P, conforme depoimento gravado no ficheiro, 20130109104218-167795-65110, do suporte magnético, foi salvo o devido respeito, manifestamente “conduzido”, pelo Digníssimo representante do Ministério Público, às expressões alegadamente proferidas pelo arguido e constantes da acusação;

6 – Espontaneamente, não sabia o teor das mesmas, tal como em nenhuma parte do seu depoimento demonstrou ter consciência dos factos alegadamente praticados em 16/10/2011 e dos quais até seria queixoso;

7 - Declarou que o arguido se embriaga com regularidade e que quando sóbrio não tem atitudes como as alegadas na acusação…

8 - Quanto à testemunha, C, o seu depoimento é surrealista quando se tenta compaginá-lo com a experiência da vida, ou com o local dis factos…

9 - Consta do seu depoimento, gravado no ficheiro 20130109114334-167795-65110 do suporte magnético, que apenas tem conhecimento dos factos alegadamente praticados pelo arguido no mercado, sem precisar a data.

10 - Quanto a estes declara algo que de forma alguma merece credibilidade, ou seja que quando ao chegar com o carro ao mercado e vendo muita agitação na zona dos “pintos “, onde se encontrava a assistente, deixou a filha (com seis anos de idade) dentro do carro a trabalhar e foi em auxílio da sogra”.

11 - Mais declarou no seu depoimento, que deixou o carro com o vidro aberto, a cerca de 50 metros de distância do local onde se encontrava a sogra, daí conseguindo ver a filha.

12 - Curiosamente declara que ao mesmo tempo actuava segurando o sogro…

13 - A experiência da vida concede-nos algum crédito quanto a um depoimento deste teor? Cremos que não…

14 – A prova produzida, mercê das circunstâncias referidas, não e idónea a conduzir à condenação do arguido.

15 – O arguido devia ter sido absolvido e nesse sentido se interpõe o presente recurso.

16 – Por outro lado, o tribunal “aquo” fez “tábua rasa” do relatório social junto aos autos.

17 – De cujo teor derivou o requerimento do arguido, lavrado em acta e indeferido, no sentido de lhe serem aplicadas as medidas eventualmente decorrentes e legalmente previstas, do art. 20º nºs 2 e 3 do CP.

18 – Pois o relatório social é peremptório quanto ao percurso de vida do arguido e ao ineficaz efeito das penas de prisão efectiva sobre o mesmo.

19 – O arguido não praticou os crimes de que vem acusado, arts. 152º nº 1 a) e 153º nº 1 e 155º nº 1 a) do CP.

20 – Ao ser condenado pelos mesmos, o Acórdão violou as previsões dos respectivos tipos legais.

Termos em que, deve ser revogado o Douto Acórdão e o arguido absolvido.
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A Digna magistrada do Ministério Público em 1ª instância respondeu ao recurso interposto, defendendo a improcedência do mesmo, com as seguintes conclusões:

a. O recorrente foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, al. a) do Código Penal na pena de 3 anos e 3 meses de prisão e por um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelo artigo 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a) do Código Penal na pena de 1 ano de prisão, tendo sido condenado, em cúmulo jurídico, na pena de 4 anos de prisão;

b. O recorrente alega que foi condenado pelo seu certificado de registo criminal e não pela prova que foi produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, porque não foi produzida qualquer prova;

c. Apesar de não o alegar expressamente o Recorrente alega o vício da sentença de erro notório na apreciação da prova para recorrer do douto acórdão a quo;

d. Nos termos do artigo 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal o recurso pode ter como fundamento, desde que o vicio resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, o erro notório na apreciação da prova;

e. Para que haja erro notório na apreciação da prova é necessário que a decisão do julgador, que foi fundamentada na sua livre convicção, seja uma decisão, de entre as possíveis, aquela que é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum;

f. Para que existisse erro notório na apreciação da prova necessário era que fossem dados como provados factos incompatíveis entre si, ou que fossem dados como provados factos contrários à prova produzida;

g. Nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador;

h. Assim, na valoração da prova, o julgador é livre de formar a sua convicção desde que, para tanto, a mesma não seja contra as regras da experiência, da lógica e da razão;

i. Da leitura do douto acórdão, não resulta claramente um erro notório na apreciação da prova;

j. Sendo que face à fundamentação do douto acórdão recorrido, assente nas provas produzidas e nas regras da experiência comum e da lógica, é evidente que a decisão do Tribunal a quo era a única que podia ser tomada, sendo inatacável precisamente porque foi proferida em obediência à lei;

k. O que o recorrente pretende é substituir a sua convicção à convicção do tribunal;

Nestes termos, por tudo o que fica exposto, confirmando-se a decisão recorrida, sendo este o entendimento que perfilhamos,
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O Exmº Procurador-geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.

Deu-se cumprimento ao disposto no artigo 417º n.º 2 do Código de Processo Penal.
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B - Fundamentação:

B.1.1 - O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:

1). O arguido A e a assistente B foram casados entre si desde 16 de Março de 1978 até ao corrente ano, tendo habitado, de há cerca de 4 anos e até Julho de 2011, uma casa sita na Rua..., em Santarém.

2). Durante tal lapso de tempo e em datas e locais não concretamente determinados, o arguido, por motivos não apurados, agrediu e insultou a sua cônjuge, apelidando-a de “porca”, “vaca” e “puta”, entre outras palavras, bem como a ameaçou dizendo-lhe “não tenho pistola mas com uma navalha ou com um machado mato-te”.

3). Em 27 de Agosto de 2011 o arguido A dirigiu-se a B após esta sair de casa e, quando a seguia pela Rua ..., em Santarém, por motivos não apurados, disse-lhe “não és minha, não és de mais ninguém”, “vou-te matar e aos teus filhos” e ainda “qualquer dia vou-te apanhar, não tenho pistolas mas tenho facas e machado”.

4). Em 9 de Outubro de 2011, cerca das 11h20, o arguido A, sem motivo aparente, interpelou B quando esta se encontrava no mercado público de Santarém, que tem lugar no Campo Emílio Infante da Câmara, nesta cidade, agarrando-a por um braço e disse-lhe: “isto não fica assim”, “és uma puta, és uma vadia”.

5). Ao agir da forma supra descrita, o arguido fê-lo deliberada, livre e conscientemente, com a intenção de maltratar corporal e psiquicamente B, sua cônjuge, bem como de amedrontá-la, causando-lhe receio pela sua integridade física e vida, o que conseguiu.

6). O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei e tinha capacidade de se determinar de acordo com esse conhecimento.

7). Em data não apurada, mas não posterior a 31/08/2011, em hora também não determinada, mas à noite, o arguido A abordou o seu filho C, na via pública, em Santarém, e disse-lhe: “eu mato-te”.

8). Ao proceder da forma descrita, o arguido atuou deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que a expressão proferida amedrontava C, o que conseguiu.

9). O arguido sabia ainda que a sua conduta era proibida e punida por lei e tinha capacidade de se determinar de acordo com esse conhecimento.

10). O arguido, de acordo com o C.R.C. juntos aos autos, sofreu já as seguintes condenações:

i. na pena de 1 ano de prisão, pela prática, em data não apurada, de um crime de violação na forma tentada e de um crime de ofensas corporais voluntárias, condenação imposta no âmbito do processo de querela nº130/86, tendo a referida pena sido declarada perdoada;

ii. na pena de 2 meses de prisão, substituída por prisão por dias livres, a cumprir em 8 períodos de 48 horas, pela prática, em data não determinada, de um crime de ofensas corporais, condenação imposta no âmbito do processo sumário nº289/87;

iii. na pena de 2 anos de prisão, pela prática, em 7 ou 17/01/1984, de um crime de homicídio na forma tentada, condenação imposta no âmbito do processo de querela nº487/89; tal pena foi objecto de perdão parcial de 1 ano, tendo sido declarada extinta pelo cumprimento;

iv. na pena de 18 meses de prisão, pela prática, em 25/09/1996, de um crime de resistência e coação sobre funcionário, condenação imposta no âmbito do Pº--/97.4TBABF; tal pena foi declarada extinta pelo cumprimento;

v. na pena de 18 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos, sob condição de indemnização ao lesado, pela prática, em 17/04/1996, de um crime de dano na forma continuada, condenação imposta no âmbito do Pº---/97.6TBABF; a suspensão da execução da pena foi posteriormente revogada; esta pena foi posteriormente englobada em cúmulo jurídico;

vi. na pena de 1 ano de prisão, inteiramente perdoada, pela prática, 4/05/1997, de um crime de dano, condenação imposta no âmbito do Pº--/97.5GCABF; esta pena foi posteriormente englobada em cúmulo jurídico;

vi. na pena de 5 meses de prisão, perdoada sob condição resolutiva do arguido não cometer infracção dolosa no período de 3 anos, pela prática, em Maio de 97, de um crime de ameaça, condenação imposta no âmbito do Pº --/97.6GCABF; esta pena foi posteriormente englobada em cúmulo jurídico de penas com a condenação sofrida no Pº--/97.3GCABF;

vii. na pena de 9 meses de prisão, perdoada sob condição resolutiva do arguido não cometer infracção dolosa no período de 3 anos, pela prática, em 10/02/1996, de um crime de ofensa à integridade física simples, condenação imposta no âmbito do Pº---/99.0TBABF, por sentença transitada em julgado em 16/02/2001;

ix. na pena de 6 meses e 15 dias de prisão, perdoada sob condição resolutiva do arguido não cometer infracção dolosa no período de 3 anos, pela prática, em 21/08/1996, de um crime de dano, condenação imposta no âmbito do Pº---/98.7TBABF, por sentença transitada em julgado em 16/02/2001; esta pena foi posteriormente englobada em cúmulo jurídico;

x. na pena de 7 meses de prisão, perdoada sob condição resolutiva do arguido não cometer infracção dolosa no período de 3 anos, pela prática, em 25/09/1996, de um crime de ofensa à integridade física simples, condenação imposta no âmbito do Pº---/98.1TBABF, por sentença transitada em julgado em 16/02/2001; esta pena foi posteriormente englobada em cúmulo jurídico;

xi. na pena de 4 meses de prisão, pela prática, em datas não determinadas, de um crime de ameaça, condenação imposta no âmbito do Pº--/97.3GCABF; esta pena foi posteriormente englobada em cúmulo jurídico;

xii. na pena de 3 anos e 3 meses de prisão, pela prática, em 8/04/2001, de dois crimes de ofensa à integridade física e de um crime de maus tratos conjugais, condenação imposta no âmbito do Pº--/01.9GDSTR, por acórdão transitado em julgado em 23/05/2002; esta pena foi posteriormente englobada em cúmulo jurídico;

xiii. na pena de 6 anos de prisão, pela prática, em 21/09/2000, de um crime de maus tratos e de um crime de violação de domicílio, condenação imposta no âmbito do Pº---/00.0GBSLV, por acórdão transitado em julgado em 14/05/2003;

xiv. na pena única de 4 anos de prisão, pela prática, em 6/09/2001, de um crime de violação, na forma tentada, condenação imposta no âmbito do Pº---/01.9GCSTR, por acórdão transitado em julgado em 29/10/2003; esta pena foi posteriormente englobada em cúmulo jurídico;

xv. na pena única de 9 anos de prisão, em cúmulo jurídico das penas referidas em v., vi., vii., ix., x., xi., xii. e xiii., tendo o arguido cumprido a pena e saído em liberdade condicional.

11). De acordo com o relatório social constante dos autos, o mesmo arguido cresceu num ambiente familiar caracterizado pelo abandono da figura materna e desconhecimento da figura paterna, tendo ficado desde tenra idade entregue aos cuidados dos avós maternos, com quem viveu durante a sua infância e juventude, de condição socioeconómica bastante precária, sendo-lhe associadas dificuldades mesmo ao nível da satisfação das necessidades essenciais, nem sempre asseguradas.

12). Frequentou a escola, por um curto período de tempo, tendo apenas concluído o 2º. ano de escolaridade, alegando desinteresse e a necessidade de contribuir materialmente para o sustento da família.

13). Com cerca de 10 anos começou a trabalhar na área da pastorícia, onde se manteve durante alguns anos, passando posteriormente a desenvolver tarefas indiferenciadas de natureza agrícola e na área da construção civil.

14). Contraiu matrimónio com a assistente aos 20 anos de idade, tendo esta à data apenas 15 anos.

15). Desse casamento resultou o nascimento de quatro filhos, com idades compreendidas entre os 33 e 22 anos, tendo dois já constituído agregados familiares autónomos vivendo os restantes com a mãe.

16). Desde a constituição do agregado a dinâmica intrafamiliar processou-se num quadro de extrema violência protagonizada pelo arguido, com diversas separações associadas.

17). No decurso da sua história de vida o arguido tem vindo a manifestar, de forma recorrente, um padrão comportamental de significativa agressividade e violência, padrão comportamental potenciado pelo consumo abusivo de álcool, sendo que o seu comportamento agressivo foi direcionado não apenas para o núcleo familiar, mas também para elementos da comunidade de residência, resultando em vários contactos do arguido com o sistema de justiça, que determinaram as condenações supra indicadas.

18). O arguido reside atualmente sozinho, num quadro de precariedade e carência económica e de isolamento sociofamiliar, habitando uma pequena casa inserida numa propriedade agrícola na zona limítrofe de Santarém, cedida gratuitamente por uma pessoa amiga, onde não dispõe de condições mínimas de habitabilidade por falta de infraestruturas básicas, nomeadamente eletricidade e água.

19). A sua subsistência é garantida através de apoio social dos serviços e instituições locais, nomeadamente Cáritas, Santa Casa da Misericórdia e Segurança Social, sendo inclusivamente beneficiário do Rendimento Social de Inserção pelo qual aufere a prestação mensal no valor de € 189,52, rendimento que complementa pedindo na rua.

20). A situação de isolamento familiar verifica-se desde meados de 2011, após a esposa e filhos terem mostrado total indisponibilidade para continuar a acolher o arguido no agregado familiar, não obstante lhe ter sido dada mais uma oportunidade pelos vários elementos da família, após cumprimento da última prisão efetiva.

21). Na atualidade, quer a cônjuge, quer os três filhos receiam quanto à sua integridade física atendendo ao comportamento de agressividade e violência manifesta que vem mantendo até à atualidade.

22). O arguido não assume o consumo abusivo de álcool como um problema pessoal, não revelando motivação para se sujeitar a um acompanhamento especializado, por considerar desnecessário.

23). Destacam-se como características pessoais mais relevantes a impulsividade associada a dificuldades de autocontrolo e descentração.

24). Do contacto estabelecido entre o arguido e os técnicos de reinserção social este não revelou capacidade em analisar criticamente factos semelhantes aos que deram origem ao presente processo, não efetuando uma interiorização em relação à gravidade dos factos inerentes à sua atual situação jurídica, denotando ausência de juízo critico face ao seu comportamento delituoso, não revelando intimidação com a sua situação jurídico-penal atual, verbalizando sentimentos de hostilidade em relação ao agregado familiar constituído e manifestando uma atitude de indiferença no que respeita à alteração do seu estilo de vida.

25). Da avaliação efectuada, verifica-se que o comportamento delituoso do arguido tem na origem fragilidades significativas no que se refere às suas competências interpessoais, potenciadas pelo consumo abusivo de álcool, problemáticas pessoais que se constituem como potenciais factores de risco, concluindo os técnicos de reinserção social que será problemática a sua reinserção social em meio livre, considerando que não resultará no efeito pretendido pela falta de adesão que é desde logo verbalizada pelo arguido.
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B.1.2 - E como não provados os seguintes factos:

a). Que o arguido e a assistente tenham habitado desde a data do casamento e até Outubro de 2011 a casa referida em 1);

b). Que tenha sido em 16 de Outubro de 2011, pelas 20h00 e no Campo Sá da Bandeira, que ocorreram os factos referidos em 7).
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B.1.3 - E apresentou como motivação da decisão de facto os seguintes motivos:

“O tribunal fundou a sua convicção, com base na qual deu por apurados os factos descritos supra, pela valoração conjunta e crítica, segundo as regras comuns da experiência, dos seguintes elementos de prova:

. C.R.C. do arguido, de fls.61 a 73/ 387 a 400;
. cópia de manuscrito, de fls.87;
. declarações de atribuição de estatuto de vítima à assistente e ao ofendido C, nos termos da Lei nº112/2009, de 16/09, na sequência das queixas pelos mesmos apresentadas, de fls.100 e 101 e de fls.115 e 116;
. certidão da Conservatória do Registo Civil de Santarém, de fls.140 e 141;
. cópia de documento clínico hospitalar, referente à assistente, de fls.345;
. cópia de elementos clínicos referentes à assistente (guias de tratamento e receitas médicas), de fls.434 a 447;
. relatório social para determinação de sanção, de fls.453 a 457;

. declarações prestadas pelo arguido, que, em síntese: contestou os factos imputados, fixando-se em pormenores de circunstância e aduzido argumentos justificativos, que, no entanto, resultam numa não negação da situação de confronto ou conflito em si[2], pretendendo que os factos lhe são imputados pelos seus familiares apenas porque estes lhe querem mal, não adiantando qualquer razão plausível para tais queixas e manifestando, em simultâneo, pela sua postura e forma de verbalizar as suas razões, uma hostilidade latente para com os mesmos[3], que, ao invés de desacreditar as imputações que lhe são feitas, lhe conferem verosimilhança;

. declarações prestadas pela assistente B, que, em síntese: pronunciou-se sobre os factos trazidos a juízo, confirmando as expressões injuriosas que lhe foram dirigidas, bem como as ameaças, referindo serem estas não apenas de anúncio de um mal para si própria, mas para os filhos e para os seus irmãos, reportando-se não apenas às situações concretamente referidas nos autos, mas também a outras similares; referiu-se ainda de uma forma mais genérica à sua vida em comum com o arguido e problemas familiares existentes, prestando esclarecimentos quanto aos períodos de separação e reconciliação após o arguido ter estado preso; aludiu também ao facto do arguido “beber demais”; demonstrou sentir receio e sentir-se coartada com os comportamentos do arguido, afirmando ter sido sujeita a dois internamentos psiquiátricos e estar sob medicação em virtude dos comportamentos de que tem sido vítima;

. depoimentos prestados pelas testemunhas:

- C, filho do arguido e da assistente, também ofendido, que, em suma: confirmou o tratamento injurioso e ameaças dirigidos pelo arguido à sua mãe, aludindo a situação ocorrida perante a própria polícia; referiu também o facto do arguido se embriagar; confirmou igualmente a sujeição da assistente a tratamentos psiquiátricos e acompanhamento médico; por fim, confirmou a ameaça de que foi alvo, esclarecendo já lhe ter sido a mesma dirigida várias vezes e referindo que “devido ao histórico dele tem medo que ele faça alguma coisa”;

- CM, nora da assistente e do arguido, que, no essencial: reportou-se à situação que ocorreu no mercado, esclarecendo ter ido buscar o carro e aperceber-se da situação entre a sogra e o arguido, com gritos por parte da assistente e gesticular de braços no ar, tendo de imediato saído do carro e se interposto entre ambos, afirmando que nessa ocasião o arguido proferiu insultos; referiu ainda ter a ideia de que os filhos do arguido têm medo dele; aludiu ainda ao facto do arguido ter posto por debaixo da sua porta um escrito difamatório da assistente, cuja cópia consta dos autos;

- N, primo do ofendido C e sobrinho da assistente, que, no essencial: esclareceu acompanhar este ofendido, tendo assistido à ameaça que foi dirigida a este pelo arguido; referiu ainda ser “normal” que ficasse com medo devido ao passado do arguido;

- F, cunhado do arguido, que, em suma: disse ter sabido que o arguido estava fora de casa, pelo que ele e a esposa, irmã do arguido, decidiram acolhê-lo no Natal, referindo que o arguido se queixava de ser acusado de agressões que não tinha cometido; espontaneamente e de mote próprio acrescentou que o arguido pretendeu que ele e a esposa testemunhassem que haviam visto o arguido a ser agredido pelos filhos e pela esposa, ao que o depoente se recusou.

A testemunha MD, irmã do arguido, não quis prestar declarações.
Não foi produzida outra prova em julgamento.

Entendeu o tribunal que, apesar de algumas imprecisões quanto a circunstâncias de pormenor, que são não apenas compreensíveis, como comuns neste tipo de casos, as declarações e os depoimentos prestados pela assistente e pelas testemunhas de acusação afiguraram-se coerentes e prestados de forma isenta, sendo no essencial consentâneos entre si, os que lhes confere credibilidade, permitindo a sustentação da matéria apurada.

Essa credibilidade é ainda reforçada pela prova documental junta aos autos, que comprova alguns aspectos invocados pelas testemunhas e assistente.

Refira-se apenas que quanto à data da ocorrência relativa ao ofendido C se considerou que a mesma não poderia ser correta, por referência à própria data da queixa que deu origem à atribuição àquele do estatuto de vítima, que assim se rectificou[4].

Quanto ao local dessa ocorrência, percebeu-se que quer o ofendido, quer a testemunha que o acompanhava a souberam determinar no espaço, mas não sabendo a designação desse mesmo espaço, pelo que resultou não confirmada a indicação também constante da acusação.

Quanto ao momento da saída do arguido da casa de morada de família e ao facto do casal não ter aí sempre residido, tal foi esclarecido pelas declarações do próprio arguido e da assistente.

Igualmente aludiram os dois ao facto de estarem já divorciados, o que se considerou, apesar da inexistência de documento autêntico nesse sentido.

O apuramento dos factos pessoais referentes ao arguido sustentou-se no respectivo relatório social juntos aos autos, complementado com alguns esclarecimentos do próprio, sendo os seus antecedentes penais determinados com base no C.R.C.”.
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Cumpre conhecer.

B.2 - O âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência, ou não, dos vícios indicados no art. 410°, n.° 2, do Código de Processo Penal de acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das secções do STJ de 19/10/95 in D.R., I-A de 28/12/95.

Das suas conclusões extrai-se que o recorrente está insatisfeito com a decisão recorrida por três motivos: o terem-se dado como provados factos, que não identifica nem nas motivações nem nas conclusões; o ter-se concluído que havia prova suficiente para se terem dado como provados os factos. Acresce a insatisfação pela decisão tomada em acta de audiência de julgamento quanto à aplicabilidade do artigo 20º, ns. 2 e 3 do Código Penal.
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B.3.1 – Quanto a esta última, o despacho lavrado em acta a fls. 473-474, a insatisfação do arguido deveria ter-se concretizado em recurso interlocutório interposto do dito despacho e no respectivo prazo.

Não interposto, transitou em julgado tal despacho, pelo que não pode ser objecto de recurso final.

Sempre se dirá, no entanto, que do relatório social para determinação de sanção de fls. 453-457 se não pode inferir a necessidade ou sequer conveniência de realização de perícia psiquiátrica, nem factos de onde resulte a imputabilidade diminuída, muito menos inimputabilidade, do arguido.
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B.3.2 - É sabido que a impugnação ampla da matéria de facto nos termos do disposto no artigo 412º, nº 3 e 4 do Código de Processo Penal, a incidir sobre os erros de julgamento e sobre a prova produzida em audiência de julgamento, apresenta uma configuração alternativa e ao recorrente é exigível que cumpra os seguintes ónus processuais:

a) A indicação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (al. a) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal);

b) A indicação das provadas provas que impõem decisão diversa da recorrida (al. b) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal);

c) Se a acta contiver essa referência, a indicação provada das passagens em que se funda a impugnação por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364 (nº 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal);

d) Ou, alternativamente, se a acta não contiver essa referência, a identificação e transcrição nas motivações de recurso das ditas “passagens” dos meios de prova oral (declarações, depoimentos e esclarecimentos gravados).

E, há que convir, o recorrente não cumpriu, de forma cabal, completa e explícita o seu ónus de impugnação, em nenhum dos seus pontos, nem nas motivações nem nas conclusões, pelo que não conheceremos de facto.

Como é sabido, ao tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só é possível alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b) do n.º 3 do citado artigo 412.º].

Sobra a existência de vício de facto previsto pelo artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, a ressaltar do texto da decisão recorrida e tal não ocorre no caso em apreciação.

Não há, portanto, erro na apreciação da prova e, em virtude disso, mantém-se intocada a matéria de facto.
*
B.3.3 – A última razão de inconformidade do recorrente prende-se com a consideração de que a prova produzida não permite que se considerem os factos como provados.

No entanto, lida a decisão recorrida, esta é clara e explícita na indicação dos meios de prova que considerou relevantes, indicando além disso as razões que permitiram concluir pela existência de prova suficiente para atingir o grau de convicção exigido pela nossa ordem jurídica e pelas regras de conhecimento empírico na apreciação factual.

Por isso, bem andou o tribunal recorrido na tarefa de apreciação probatória, não sendo associável à sua decisão a existência de qualquer vício processual ou probatório, como invocado.
*
B.4 – Apenas uma excepção se abre e diz respeito ao “facto” dado como provado em 2) com este teor:

«2). Durante tal lapso de tempo e em datas e locais não concretamente determinados, o arguido, por motivos não apurados, agrediu e insultou a sua cônjuge, apelidando-a de “porca”, “vaca” e “puta”, entre outras palavras, bem como a ameaçou dizendo-lhe “não tenho pistola mas com uma navalha ou com um machado mato-te”».

Ora, considerando que o arguido A e a assistente B foram casados entre si desde 16 de Março de 1978 até ao corrente ano (facto provado em 1), isto quer significar que o facto provado corresponde mais ou menos a isto: ”Desde tempos imemoriais, não se sabe bem onde nem porquê, o arguido “agrediu e insultou a sua cônjuge, apelidando-a de “porca”, “vaca” e “puta”, entre outras palavras, bem como a ameaçou dizendo-lhe “não tenho pistola mas com uma navalha ou com um machado mato-te”».

Desde logo, é um período temporal de 34 (trinta e quatro) anos!!! Depois “agrediu”, “insultou” e “ameaçou” são conceitos de direito, não são factos.

Como já afirmámos em acórdão de 17 de Setembro de 2013 (Recurso 97/11.8PFSTB.E1):

«Relativamente a estes “factos” dificilmente os poderemos considerar relevantes e aceitáveis.

Aceitáveis desde logo em termos de permitir o contraditório. Relevante, nessa mesma sequência, o contraditório, mas também porque nada significam em termos penais e apenas se destinam a mascarar a pretensão de “sair” de um crime simples e tradicional (as ofensas corporais, injúrias e/ou as ameaças) para “concretizar” a pretensão de preenchimento de um crime pleno de modernidade, a violência doméstica”.
……………..
Ou seja, os factos que devem ser/são o “objecto do processo” têm que ter a característica da “falsificabilidade” popperiana, já não como critério essencial para a caracterização das teorias científicas, sim com o sentido de que a sua concretude pode ser declarada falsa. Em breve, o que não pode ser declarado não provado por falta de concretização ou por ridículo, não pode ser declarado provado.

Em regra o critério é o ridículo. Dar como não provado que “os factos não ocorreram usualmente praticados no interior da residência” é sintomático. É tão ridículo que já se torna estranho que alguém seja condenado – ou veja agravada a sua condenação – pela prova do facto positivo.

Mas não é, apenas, a ausência de factos e/ou prova que se pretendem ultrapassar com este tipo de “alegação”.

Alegando-se de forma genérica está-se a tentar ultrapassar dificuldades processuais. Deixa de haver preocupações processuais comezinhas: a natureza do crime? Público, semi-público, particular? Existência de queixa? Caducidade desse direito? Prescrição? Peanuts! Trata-se de violência doméstica, o crime “borracha” qua apaga preocupações processuais e dispensa grande rigor na linguagem, investigação, instrução e prova nos autos.

As dificuldades de investigação, instrução e prova podem ser relevantes neste tipo de crime ocorrido entre paredes. Para isso deve haver compreensão. Não pode haver compreensão para uma universalizada generalização que perverte os princípios penais e processuais penais.

Factos: investigue-se e prove-se e tenha-se em vista um resultado que almeje um juízo para além da dúvida razoável.

E tenha-se presente o tipo penal que é claro: comete o crime “quem … de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais

Muito se disse já sobre este tipo penal, mas a exigência de uma delimitação factual que permita a subsunção àqueles conceitos genéricos é uma preocupação quotidiana de quem acusa, defende e julga, que não pode ser desvirtuada por abusivas e, portanto, inaceitáveis, generalizações.
…….
Ou seja, a própria dificuldade teorética de enquadramento do tipo de crime face a crimes tradicionais que lhe ocupam um campo de previsão sincrónico, o uso pleno de conceitos indeterminados, as dificuldades inerentes aos conceitos de “modo reiterado ou não” e “maus tratos físicos ou psíquicos”, impõem uma clara e precisa – concreta – exposição de factos a inserir no tipo.

Tudo neste tipo é incompatível com uma generalização factual sob pena de futura ineficácia do tipo, para além da presente violação dos mais elementares direitos de defesa, um intolerável achincalhamento do contraditório.

Data, local, comportamentos concretos de ambos, levados ao pormenor possível mas esgotante de um agir humano, os meios utilizados e circunstâncias da acção, circunstâncias envolventes relevantes, o que – no “pedaço de vida” – possa ser juridicamente relevante e permita o processo mental de todos – acusador, defesa e tribunal – no descortinar se esse agir humano “cabe” no tipo, permite aferir da ilicitude, culpa, maior ou menor perigosidade da acção, desvalor do resultado, o habitual.

Enfim, se é a integridade corporal, saúde física e psíquica e dignidade da pessoa humana que se pretendem tutelar e se a norma apenas prevê “as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à sua degradação pelos maus-tratos», é bom que a base de tais cogitações sejam factos concretos (quase diríamos, “o bom e velho facto concreto”) em vez de literatura modernista generalizante.

Já se disse que, em termos práticos, maus-tratos significa o exercício de violência. Mas o conceito necessita de ser escalpelizado e tem sido intensamente objecto de análise na jurisprudência e doutrina, considerando os problemas que suscita em termos de definição do tipo e repetição de actos de violência praticados.

“O tipo apresenta-se assim deliberadamente fragmentário, no que respeita à definição das condutas penalmente relevantes, pois prescreve na realidade que não são todos os maus tratos que são passíveis de activar a reacção penal, mas tão só aqueles infligidos de modo intenso ou reiterado. “… a comissão de crime de maus tratos a cônjuge implica a prática reiterada ou minimamente repetida de actos de violência, ou a )prática de uma conduta violenta singular, desde que a mesma se revista de específicos foros de gravidade”. [5]

Assim, neste tipo de crimes onde a reiteração e intensidade do agir humano está no centro da definição de um tipo penal muito amplo (maus-tratos, violência doméstica, tráfico de droga), a precisa indicação e concretude dos factos necessários à integração no tipo é elemento essencial do julgamento. E é, na sequência, o cerne do direito de defesa.

Se a alegação factual – em qualquer imputação penal - não pode ser facilitada pelo uso de formas gerais, imprecisas, sem individualização de cada um dos factos, com utilização de fórmulas “vagas, imprecisas, nebulosas, difusas, obscuras”, neste tipo de crime a exigência é muito maior dada a amplitude do tipo penal.

Aliás, a jurisprudência do STJ neste campo é clara e insofismável, quer a propósito do crime de tráfico de droga, quer a propósito de crimes de maus-tratos e violência doméstica, sempre onde se pretende ultrapassar a dificuldade de prova de múltiplos factos pela imputação genérica e, logo, por presunção.

Porque a isso se resume esta prática: acusa-se por presunção factual, pretendendo-se a condenação por presunção factual.

Assim, só de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de STJ:

“5 - Não são "factos" susceptíveis de sustentar uma condenação penal as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado ("procediam à venda de produtos estupefacientes", "essas vendas eram feitas por todos e qualquer um dos arguidos", "a um número indeterminado de pessoas consumidoras de heroína e cocaína", "utilizavam também "correios", "utilizavam também crianças", etc.).

6 - As afirmações genéricas, contidas no elenco desses "factos" provados do acórdão recorrido, não são susceptíveis de contradita, pois não se sabe em que locais os citados arguidos venderam os estupefacientes, quando o fizeram, a quem, o que foi efectivamente vendido, se era mesmo heroína ou cocaína, etc. Por isso, a aceitação dessas afirmações como "factos" inviabiliza o direito de defesa que aos mesmos assiste e, assim, constitui uma grave ofensa aos direitos constitucionais previstos no art. 32º da Constituição” - (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-05-2004 - Proc. 04P908, Rel. Cons. Santos Carvalho);

“I - O princípio ou cláusula geral estabelecido no n.º 1 do art. 32.º da CRP significa, ao aludir a todas as garantias de defesa, que ao arguido, como sujeito processual, devem ser assegurados todos os direitos, mecanismos e instrumentos necessários e adequados para que possa, em plena liberdade da vontade, defender-se, designadamente para que possa contrariar a acusação ou a pronúncia, através de um julgamento imparcial, realizado com total independência do juiz, em procedimento leal e justo, sendo certo que a individualização e clareza dos factos objecto do processo são indispensáveis para que o arguido possa valida e eficazmente contraditar a acusação ou a pronúncia, única forma de se poder defender” - (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21-02-2007 - Proc. 06P4341, rel. Cons. Oliveira Mendes);

“VI – Não se podem considerar como “factos” as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado, pois a aceitação dessas afirmações para efeitos penais inviabiliza o direito de defesa e, assim, constitui uma grave ofensa aos direitos constitucionais previstos no art.º 32.º da Constituição. Por isso, essas imputações genéricas não são “factos” susceptíveis de sustentar uma condenação penal” - (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Acórdão do STJ de 15-11-2007 - Proc. 07P3236, rel. Cons. Santos Carvalho);

“III - Como vem sendo afirmado pela jurisprudência dominante do STJ, as imputações genéricas, designadamente no domínio do tráfico de estupefacientes, sem qualquer especificação das condutas em que se concretizou o aludido comércio e do tempo e lugar em que tal aconteceu, por não serem passíveis de um efectivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado, não podem servir de suporte à qualificação da conduta do agente.

IV - Por isso, será de ter por não escrita aquela imputação genérica,.. .” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02-04-2008 (Proc. 07P4197, rel. Cons. Raul Borges);

“XX - Resultando da matéria de facto apurada apenas que (aqui se excluindo factualidade abrangida por anterior condenação judicial), após 03-11-2003, o arguido, que havia estado preso e voltara a viver com a mulher e as filhas, «continuou a consumir bebidas alcoólicas e, por algumas ocasiões, em datas não apuradas», agrediu aquela «com bofetadas» e que com «frequência era chamada a Polícia àquela residência», impõe-se concluir que a descrição da conduta do arguido considerada provada se mostra algo indefinida, vaga e genérica, tanto em relação ao tempo e ao lugar da prática dos factos, como relativamente aos próprios factos integradores das agressões e respectivas motivação e consequências, não se encontrando esclarecido o número de ocasiões em que tal ocorreu, a quantidade de bofetadas em causa ou qualquer elemento relativo à forma e intensidade como foram desferidas, ao local do corpo da ofendida atingido e às suas consequências, em termos de lesões corporais ou de efeitos psíquicos, também se desconhecendo, além do contexto de consumo de álcool, a motivação da conduta em causa, sendo certo que não se encontra assente qualquer facto integrador do elemento subjectivo constitutivo do tipo legal.

XXI - Esta imprecisão da matéria de facto provada colide com o direito ao contraditório, enquanto parte integrante do direito de defesa do arguido, constitucionalmente consagrado, traduzindo aquela uma mera imputação genérica, que a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem entendido ser insusceptível de sustentar uma condenação penal – cf. Acs. de 06-05-2004, Proc. N.º 908/04 - 5.ª, de 04-05-2005, Proc. N.º 889/05, de 07-12-2005, Proc. N.º 2945/05, de 06-07-2006, Proc. N.º 1924/06 - 5.ª, de 14-09-2006, Proc. N.º 2421/06 - 5.ª, de 24-01-2007, Proc. N.º 3647/06 - 3.ª, de 21-02-2007, Procs. N.ºs 4341/06 - 3.ª e 3932/06 - 3.ª, de 16-05-2007, Proc. N.º 1239/07 - 3.ª, de 15-11-2007, Proc. N.º 3236/07 - 5.ª, e de 02-04-2008, Proc. N.º 4197/07 - 3.ª.” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02-07-2008 - Proc. 07P3861, Rel. Cons. Raul Borges).»

Logo, o facto dado como provado em 2) tem-se como não escrito por violação irreparável do contraditório e das garantias de defesa em processo penal – artigo 32º do Constituição da República Portuguesa.
*
B.5 – Em virtude desta conclusão haverá que refazer a decisão recorrida quanto à integração das condutas provadas, eventualmente em novos tipos penais, o que se poderá concretizar, ou não, numa nova qualificação jurídica dos factos e num novo juízo sobre a ilicitude, culpa e punibilidade das condutas.

Ao Tribunal da Relação está vedado fazê-lo já que isso retiraria um grau de recurso após uma decisão presumivelmente condenatória (e a decisão condenatória será nova no sentido de que a emissão de um juízo condenatório surge ex novo dos factos refeitos).

Esse grau de recurso – em decisão desta Relação – só seria possível existindo recurso para o STJ, o que não é viável no caso concreto, por ser inadmissível.

Por outro lado, poderia esta Relação fazer a comunicação a que se referem os nsº 1 e 3 do artigo 358º do Código de Processo Penal quanto a ambas as alterações, o desaparecimento do facto 2) e a nova alteração da qualificação jurídica.

Só o fará quanto ao primeiro (desaparecimento do facto dado como provado em 2) através da notificação deste acórdão, pois que o segundo – a nova qualificação jurídica – a existir, é da exclusiva competência do tribunal recorrido (e a pronúncia desta Relação, de forma antecipada, poderia ser vista como uma forma de tentar determinar a decisão do tribunal recorrido), pelo que lhe incumbirá dar cumprimento ao disposto naquela norma – se for o caso - da forma que entender mais conveniente.
***
C - Dispositivo

Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso mas decidir:

I. Considerar como não escrito o facto dado como provado em 2) por violação irreparável do contraditório e das garantias de defesa em processo penal – artigo 32º do Constituição da República Portuguesa;

II. Determinar o lavrar de nova decisão expurgada da consideração de tal facto;

III. Tendo o tribunal recorrido liberdade na determinação da forma de notificar qualquer alteração no objecto do processo, por notificação escrita ou reabertura da audiência.

Sem custas.

Notifique.

Évora, 01 de Outubro de 2013 (elaborado e revisto pelo relator antes de assinado).

João Gomes de Sousa

Ana Bacelar Cruz

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[1] - Sumariado pelo relator.

[2] - Assim, designadamente, as afirmações: de nunca ter agarrado a assistente pelo braço, sendo a mesma que ia com a canadiana e caiu; se quisesse matá-la neste tempo já o poderia ter feito; que tem ferramentas mas que não é para lhe fazer mal; que só arranjam testemunhas que são familiares, questionando porque não trazem vizinhos ou amigos; que quer é que o deixem em paz; que esteve preso “por causa desta mulher”; que “hoje tem nojo dela”, que quer é “ver-se livre desta gente”, que “tem permissão para ir à Rua Humberto Delgado até ao Miradouro, para baixo é que não” e que gostava que a advogada fosse lá ver a janela, que é duma cave, para ver se dá para ver a rua (aludindo à medida de coação a que está sujeito e à alegação da patrona oficiosa da assistente, em alegações finais, de que esta teria receio de ir à rua, espreitando à janela antes de sair); que quer que “ela tire o nome dele”.

[3] - Vd. nota 1.

[4] - Sendo certo que a testemunha N admitiu que os factos em causa teriam ocorrido na data referida na acusação, fê-lo por anuência a pergunta feita nesse sentido, sem qualquer grau de certeza, mas como mera possibilidade, entendendo-se que a resposta assim prestada não põe em causa a indicação que resulta do elemento probatório considerado.

[5] - Ricardo Bragança de Matos, in “Dos maus tratos a cônjuge à violência doméstica: um passo na tutela da vítima”, RMP, ano 27, Julho-Setembro 2006, n.º 107, págs.100-101).