Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2830/16.2T8STR.E1
Relator: PAULO AMARAL
Descritores: ATRIBUIÇÃO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
DIREITO AO ARRENDAMENTO
Data do Acordão: 06/07/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O direito ao arrendamento a que alude o artigo 1793.º do Código Civil não pode, caso incida sobre um bem próprio, ser atribuído ao ex-cônjuge, como inquilino, que dele é proprietário.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 2830/16.2T8STR.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora

No presente incidente de atribuição da casa de família, na sequência de acção de divórcio entre o R. (…) e a A. (…), foi decidido atribuí-la ao cônjuge mulher mediante o pagamento mensal de € 80,00.
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Deste despacho recorre a mulher defendendo a sua revogação, atribuindo-lhe a casa sem a imposição de pagamento de qualquer renda ao Recorrido.
Caso assim não se julgue, deverá ser alterada a decisão recorrida no sentido de ser fixada uma renda não superior a € 25,00.
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O marido recorre subordinadamente defendendo que se revogue a sentença recorrida e, consequentemente, lhe seja atribuída a utilização da casa de morada de família.
Caso assim se não entenda, deve a compensação a cargo do cônjuge mulher ser fixada no montante mensal de € 125,00.
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O tribunal considerou os seguintes factos:
1. A A. e R., enquanto viveram um com outro, residiram numa casa sita no Casal (…), Foral dos (…), em Vale de (…), a qual foi edificada após o casamento e pelo casal num prédio que faz parte da herança indivisa aberta por óbito de (…) e (…), avós paternos da A..
2. Tal casa foi resultado do processo de reconstrução de uma casa antiga na qual a A. havia morado com os pais.
3. A A. e demais herdeiros dos avós paternos daquela acordaram verbalmente que uma outra casa, sita no mesmo Casal (…) e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo (…), a qual é composta de cozinha, corredor, sanitário, dois quartos e sala, lhe seria atribuída a ela em sede de partilhas.
4. A casa referida em 3 encontra-se desabitada desde o óbito da avó da A., ocorrido em 5 de Setembro de 2012.
5. É a A. quem tem as chaves da casa referida em 3.
6. A A. reside na casa referida em 1, com o filho menor do casal, cuja guarda lhe está atribuída desde 27 de Setembro de 2005, por sentença proferida no processo n.º 1654/05.7TBSTR, que correu termos no 2.º Juízo Cível do Tribunal de Santarém.
7. Aos fins-de-semana, a filha já maior do casal, que estuda em Lisboa, pernoita também na casa referida em 1.
8. A A. aufere de vencimento o montante mensal líquido de € 472,13.
9. O R. apenas pernoita na casa referida em 1 ao fim-de-semana, residindo na zona de Lisboa durante o resto da semana.
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Por uma questão de clareza e lógica na análise das questões a resolver, impõe-se conhecer, em primeiro lugar, do recurso do R. na parte respeitante a própria atribuição da casa à A..
Com efeito, se se decidir que esta não necessita da casa ou que, por qualquer outro motivo, não se lhe deve atribuir o direito de arrendamento, é claro que a questão (suscitada pela A.) da renda e seu montante fica prejudicada.
Por outro lado, e uma vez que a lei limita o arrendamento a atribuir a um ex-cônjuge quando a casa seja bem comum ou próprio do outro, importa também ver em primeiro lugar se o R. necessita dela.
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O R. defende que a casa lhe deve ser atribuída, isto é, ser ele o arrendatário.
Alega, para isso, que a A. tem a posse de uma outra casa de habitação composta de cozinha, corredor sanitário dois quartos e sala, sendo aquela quem tem consigo as respetivas chaves e dela dispõe livremente.
Mais alega que com a atribuição do uso da casa de morada de família ao cônjuge Mulher, o cônjuge Marido vê-se obrigado a ir residir com os pais, pois não tem outra casa, ficando numa situação de dependência, sendo ele o mais atingido com o divórcio quanto à estabilidade da habitação familiar.
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Em relação ao primeiro argumento, está provado que a A. e demais herdeiros dos avós paternos acordaram verbalmente que uma outra casa, sita no mesmo Casal (…) lhe seria atribuída a ela em sede de partilhas. Desconhece-se se tais partilhas foram feitas ou se a A. alguma vez tomou posse da casa. Assim, não se pode afirmar logo que a A. tem outra casa. Por outro lado, inexistindo qualquer acto de posse (a casa está desabitada desde Setembro de 2012), também não vemos que a A. tenha algum direito sobre ela ou que a sua posição perante a casa possa ser juridicamente tutelada (por meio da defesa da sua posse que, aliás, tudo indica que não existe).
Por isso, entendemos que, para já (isto é, sem prejuízo de posteriores alterações nesta situação), não podemos dizer que a A. tem outra casa no mesmo local e que não necessite daquela que era a de morada da família.
O segundo argumento é improcedente pois nada diz que o marido necessite da casa dos autos quando afinal mora em Lisboa e apenas se desloca a Santarém aos fins-de-semana. O facto de o marido se ver obrigado a passar os fins-de-semana em casa de seus pais não é a mesma coisa que adoptar a casa destes como sua residência.
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Além disto, devemos ter em conta que o critério legal, embora sucinto, é o da necessidade da casa: o «direito ao arrendamento da casa de morada da família (…) deve ser atribuído ao cônjuge ou ex-cônjuge que mais precise dela» (Pereira Coelho e Guilherme Oliveira, Curso de Direito da Família, vol. I, 5.ª ed., IUC, Coimbra, 2016, p. 756; itálico no original). Dentro deste critério amplo, devemos ainda considerar o interesse dos filhos, isto é, o que seja melhor para eles. Por isso, não é despiciendo o facto de a A. viver na casa dos autos com os filhos do casal (cfr. o ac. da relação do Porto, de 26 de Maio de 2015). Como escreve Antunes Varela, «o primeiro factor que a lei manda naturalmente considerar para o efeito é o da actual necessidade de cada um dos cônjuges, tendo em conta também, se for caso disso, a posição que cada um deles fica a ocupar, depois da dissolução do casamento, em face do agregado familiar» (Cód. Civil Anotado, vol. IV, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1992, p. 570; itálico nosso).
É certo que a filha maior do casal estuda em Lisboa e passa os fins-de-semana em Santarém mas isto não significa, ao contrário do que acontece com o R., que ela resida em Lisboa. Está, como qualquer estudante, deslocada. Acresce que o filho menor, que foi confiado à A., mora com esta na casa em questão.
Por isso, e face ao disposto no art.º 1793.º, Cód. Civil, entendemos que é a A. quem mais necessita da casa.
Assim, improcede a primeira parte do recurso do R..
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Chegados aqui, e não havendo razão para atribuir o direito ao arrendamento ao R., importa analisar a alegação da A. que diz respeito à titularidade da casa.
A A. alega que a casa é um bem próprio seu e não, como o tribunal pareceu entender, uma benfeitoria. Como escreve: «não obstante os factos dados como provados indicarem claramente que o imóvel em questão é um bem próprio da Recorrente, o Tribunal a quo decide olvidar tal facto e ficcionar uma comunhão de direitos sobre o imóvel e, com este pressuposto, fixar uma renda à ora Recorrente».
A casa foi construída depois do casamento num prédio que era herança dos avós da A.. Escreve-se na sentença: «tal edificação, independentemente de ser uma benfeitoria ou um prédio com existência jurídica autónoma, na medida em que é/era utilizada pelo casal como casa de morada de família, não pode rá deixar de ser considerada como susceptível de ver o respectivo uso atribuído a um deles até à partilha».
São incidentes diferentes e com alcance bastante diverso a atribuição da casa de morada de família até à conclusão da partilha e a constituição de um direito de arrendamento sobre ela atribuído a um dos ex-cônjuges. O primeiro é um incidente do processo de divórcio (art.º 931.º, n.º 7, Cód. Proc. Civil) e o segundo é um efeito do divórcio (citado art.º 1793.º) – (cfr., sobre isto, o ac. do STJ, de 26 de Abril de 2012).
Na primeira situação é indiferente que a casa seja bem comum do casal ou próprio de um deles; trata-se de uma regulação provisória até que as partes realizem a partilha das meações. Findo isto, a casa é atribuída ao ex-cônjuge que com ela ficou por força da partilha ou continua na titularidade daquele que era já o seu dono (bem próprio).
Na segunda situação não estamos perante uma regulação provisória. Pelo contrário, constitui-se, ex novo, um direito ao arrendamento a que se aplicam as disposições comuns do arrendamento para habitação e que vigorará enquanto a lei assim o determinar (trata-se também de um arrendamento vinculístico).
O que foi decidido na primeira instância e o que constitui o objecto do presente recurso é só a segunda situação.
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A lei permite que o tribunal dê de arrendamento a qualquer dos cônjuges a casa de morada de família, quer esta seja comum quer própria do outro (mais uma vez, destacamos esta expressão).
Daqui se retira a conclusão que o tribunal não pode dar de arrendamento a casa ao ex-cônjuge (como inquilino) que seja o seu dono porque ela é um bem próprio seu. Estaríamos aqui perante uma confusão, no sentido análogo ao utilizado no art.º 868.º, Cód. Civil: não se pode reunir na mesma pessoa as qualidades de senhorio e arrendatário, sendo que, neste caso, a posição de senhorio deriva do direito de propriedade. Para evitar tal, a lei permite que se dê de arrendamento um bem próprio mas só ao cônjuge que não é o proprietário.
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Ora, no caso presente, temos que a casa foi edificada em prédio que não era nem é do R.; este e a A. edificaram a casa em terreno da herança dos avós da A.. A contribuição do R., que se desconhece qual seja em concreto, tem a sua causa jurídica no casamento. Não se trata de um terceiro que nenhuma relação jurídica tenha com o prédio, sendo que só nesta situação a acessão opera (cfr. Pires de Lima e Antunes varela, Cód. Civil Anotado, vol. III, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1984, p. 163). Assim, e perante os elementos de facto que temos perante nós, entendemos que a acessão (que seria fonte do direito de propriedade) não tem aqui aplicação.
Pelo que resta a figura das benfeitorias que, como é sabido, não confere, não criam direito de propriedade sobre a coisa que delas foi objecto (cfr. art.º 1273). Se, por via disto, houver créditos do R. em relação à A., isso será apurado e liquidado em partilhas e em nada contraria ou altera o direito de propriedade da A. sobre o prédio.
Pelo exposto, concluímos que a casa é bem próprio da A..
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Sendo assim, e como já se disse, não é possível dar de arrendamento à A. um bem que é seu, que não é bem comum do casal.
Por isso, não se pode manter a decisão recorrida que criou um direito ao arrendamento a favor da A., com a consequente obrigação do pagamento de uma renda ao R., que incida sobre a casa de morada de família uma vez que esta é bem próprio dela.
Pela mesma razão, perde sentido estar a discutir o montante da renda pois que não será nenhuma fixada.
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Pelo exposto, julga-se procedente o recurso da A. e improcedente o recurso do R., em função do que se revoga o despacho recorrido.
Custas, por ambos os recursos, pelo R..
Évora, 7 de Junho de 2018
Paulo Amaral
Francisco Matos
José Tomé de Carvalho