Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
62/14.3YREVR.E1
Relator: MARIA ISABEL DUARTE
Descritores: ESCUSA DE JUIZ
Data do Acordão: 06/03/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: INCIDENTE DE ESCUSA DE JUIZ
Decisão: DEFERIDO
Sumário:
I – Deve ser deferido o pedido de escusa de juiz que interveio em julgamento anterior, no âmbito do qual, a arguida no processo que agora lhe foi distribuido, fora ouvida como testemunha, por factos parcialmente idênticos aos que agora está acusada e que foram dados como provados naquele julgamento.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em Conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

I – Relatório

1.1. A Mm.ª Juíza de direito, A., titular do 2.º Juízo de Competência Especializada Criminal do Tribunal Judicial de Faro, vem, ao abrigo do disposto nos artigos 43º, n.º 2 do Código de Processo Penal, requerer lhe seja concedida escusa de intervir Processo Abreviado n.º --/13.8 ZFFAR, que correm termos naquele tribunal, alegando que:

“(…) os referidos autos foram distribuídos ao 2.º Juízo Criminal de Faro no dia 8 de Abril de 2014 c conclusos para recebimento da acusação e designação de data para julgamento. Nesse dia foi solicitado que fosse apresentado em mão o Processo Comum Colectivo n.º --/13.3 ZRFAR, no qual a signatária participara no julgamento, cujo acórdão fora proferido a 15 de Janeiro de 2014, tendo já transitado em julgado.

Analisados os dois processos, facilmente se verifica que os factos pelos quais a arguida Z. se encontra acusada no âmbito do Processo Abreviado n.º --/13.8 ZFFAR são parcialmente idênticos aos que foram dados como provados no âmbito Processo Comum Colectivo n.º --/13.3 ZRFAR onde aquela foi ouvida como testemunha, em declarações para memória futura.

Com efeito, no âmbito do Processo Abreviado n.º ---/13.8 ZFFAR, a arguida encontra-se acusada da prática dos seguintes factos:

1. No dia 14 de Abril de 2013, cerca das 06h45m, a arguida Z. que se encontrava com o seu filho K., de cinco anos de idade, nascido em 13 de Dezembro de 2007, ambos de nacionalidade iraniana, apresentou-se nas boxes de controlo de saída do território nacional do posto de fronteira do Aeroporto Internacional de Faro, em Faro, e exibiu um passaporte inglês com o número xxxx em nome de AA, como se fosse o seu documento de identificação, no qual constava a sua fotografia e exibiu o passaporte inglês, como sendo o documento de identificação do seu filho, em nome de NA, de nacionalidade inglesa, nascido em 02 de Abril de 2008, no qual constava a fotografia do seu filho K.

2. A arguida quando exibiu o seu passaporte e o do seu filho, pretendia viajar com destino a Bristol, no Reino Unido.

3.Sucede porém, que os elementos identificativos dos referidos passaportes não pertenciam à arguida e ao seu filho, tendo-se constatado que esses documentos fornam emitidos como documentos de identificação dos cidadãos de nacionalidade inglesa AA, nascida em 24 de Julho de 1980 e do menor NA nascido cm 02 de Abril de 2008.

4. Da análise efectuada aos referidos passaportes apresentados pela arguida, constatou-se que os mesmos não são verdadeiros, que apresentam deficiências, designadamente, a substituição da página biográfica e a substituição das fotografias dos titulares dos passaportes pelas fotografias da arguida e do seu filho.

5. A arguida sabia e conhecia que os passaportes que detinha c que exibiu ao funcionário do Aeroporto de Faro e através dos quais pretendi» viajar para o Reino Unido não eram verdadeiros.

6. A arguida pretendia dessa forma, obter um beneficio que não lhe em devido e colocou cm causa o crédito que merecem os documentos autênticos.

7. A arguida agiu deliberada, livre e conscientemente, e sabia que sua conduta era proibida e punida por lei.

No âmbito do Processo Comum Colectivo n.º ---/13.3 ZRFAR, no qual a signatária interveio na audiência de julgamento e subscreveu o acórdão condenatório foram valorados como provados, entre outros, os seguintes factos:

1. A cidadã de nacionalidade iraniana Z. pretendia emigrar, na companhia do seu filho K. do Irão para a Inglaterra;

2. Para o efeito, familiares da arguida solicitaram a organização de tal viagem a uma pessoa cuja identidade não foi apurada;

3 A viagem e o seu plano implicavam a deslocação da cidadã e do seu filho para a Bélgica, local onde deveria ser contactada (e foi efetivamente) por uma outra pessoa) o qual lhe deu instruções sobre os ulteriores planos para ingresso em território inglês) o que implicava viagem até Faro depois embarque para Inglaterra;

4. Todos os documentos de viagem, como bilhetes de avião da Bélgica para Faro e dois passaportes com dados de identificação distintos dos da cidadã e do seu filho e alegadamente omitidos pelas autoridades do Reino Unido) foram enviados por correio por pessoa não identificada para o Hotel, na Bélgica onde Z. estava hospedada;

5. Nessa altura a cidadã iraniana recebeu dois passaportes:

a} um Passaporte do Reino Unido) com o n.º ---, emitido em 28 de Agosto de 2009 e com validade de 28 de Agosto de 2019, a favor de uma tal AA, cidadã de nacionalidade inglesa nascida em 24 de Julho de 1980 em Teerão - estando ainda aposta no documento uma fotografia da cidadã Z;

b) um Passaporte do Reino Unido, com o n.º ---, emitido em 15 de Fevereiro de 2012 e com validade até 15 de Fevereiro de 2017, a favor de um tal NA, cidadão de nacionalidade inglesa nascido cm 2 de Abril de 2008 em Londres - estando ainda aposto no documento uma fotografia do cidadão K;

6. Todavia, ambos os documentos não correspondiam aos originais por substituição da página biográfica.

7. Com efeito, o Passaporte com o n.º --- havia sido emitido a favor de DB (o verdadeiro titular do eludido documento) e o Passaporte com o n.º ---a favor de RS (a verdadeira titular do aludido documento),

8.Ainda na Bélgica o arguido contactou com aquela Z e acompanhou a mesma até ao Aeroporto de Charleroi e daí até ao Aeroporto de Faro;

9. Desta forma, cerca das 12 horas e 50 minutos do dia 13/04/2013, o arguido e aqueles dois cidadãos (Z. e filho) chegaram a Faro a bordo do voo FR6312;

10. Após desembarcarem o arguido chamou um táxi que conduziu os três até ao estabelecimento de hotelaria denominado “Dandy”, sito na Rua José Estêvão, nesta cidade de Faro.

11. Foi o arguido quem reservou e pagou o quarto, além de ter pago a alimentação de todos.

12. O arguido entregou os bilhetes de avião de Faro para Bristol a Z;

13.Entretanto, a cidadã Z. entregou ao arguido o seu Passaporte verdadeiro, bem como o do seu filho;

14. No dia seguinte, 14/04//2013, pelas 05 h e 10 m, uma carrinha de transporte de passageiros (que faz serviços de táxi para a referida pensão) deslocou-se àquela unidade hoteleira e apanhou Z e K, tendo-os, de seguida, transportado até ao aeroporto internacional de Faro - tendo o arguido permanecido no quarto da pensão;

15. Pelas 06 horas e 30 minutos do mesmo dia, aquela cidadã e o menor foram interceptados no controlo de saídas daquele aeroporto, quando tentavam viajar para Bristol (Reino Unido) - no voo FR8248 - tendo-se ambos identificado com aqueles documentos britânicos, emitidos em nome de AA e de NA;

16. A mesma cidadã iraniana Z foi então detida por uso de documentos falsificados - tendo-se iniciado então contra a mesma os autos de inquérito com o NUIPC --/13.8ZFFAR (que correu termos nos Serviços do MP de Faro)”;

Dispõe o artigo 43.º n. º 1, do Código de Processo Penal que" A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando ocorrer o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade".

Acrescenta. o n.º 4 do mesmo preceito que “O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos n.º 1 e 2".

Ora, no caso, considerando que os factos constantes da acusação são, com excepção do dolo, idênticos aos factos já valorados como provados no processo comum colectivo n.º---/13.3 ZFFAR, teme a signatária que aos olhos do cidadão comum (em que se insere a arguida) a sua intervenção possa vir a ser considerada suspeita ou não imparcial.

Por conseguinte, pese embora a signatária não se sinta afectada na sua imparcialidade, por considerar que podem suscitar-se graves suspeitas quanto à mesma, pede a V. Exa. escusa de intervir no processo, ao abrigo do disposto no artigo 43º n.ºs. 1 e 4, do Código de Processo Penal.
(…)”.
1.2. Neste Tribunal da Relação, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto teve vista dos autos e emitiu douto parecer, concluindo que o pedido de escusa deve ser concedido, atentos os seus fundamentos.

1.3. Foram colhidos os vistos legais.

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2. Fundamentação
2.1. Analisando os autos registam-se as seguintes ocorrências determinantes para a decisão do presente incidente:

Os autos de Processo Abreviado n.º --/13.8 ZFFAR foram distribuídos ao 2.º Juízo Criminal de Faro no dia 8 de Abril de 2014 e conclusos para recebimento da acusação e designação de data para julgamento. Nesse dia foi solicitado que fosse apresentado em mão o Processo Comum Colectivo n.º --/13.3 ZRFAR, no qual a signatária participara no julgamento cujo acórdão fora proferido a 15 de Janeiro de 2014, tendo já transitado em julgado.

Analisados os dois processos, facilmente se verifica que os factos pelos quais a arguida Z se encontra acusada no âmbito do Processo Abreviado n.º --/13.8 ZFFAR são parcialmente idênticos aos que foram dados como provados no âmbito Processo Comum Colectivo n.º --/13.3 ZRFAR onde aquela foi ouvida como testemunha, em declarações para memória futura.

Os factos constantes da acusação são, com excepção do dolo, idênticos aos factos já valorados como provados no processo comum colectivo n.º --/13.3 ZFFAR.

Por isso, a Sr.ª Magistrada Judicial, requerente, considera que aos olhos do cidadão comum (em que se insere a arguida) a sua intervenção possa vir a ser considerada suspeita ou não imparcial.
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3. O Direito

3.1. O princípio fundamental da independência dos Tribunais, consagrado no art. 203º, da Constituição da República Portuguesa - “os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei” - relaciona-se com a caracterização dos mais importantes direitos dos cidadãos - direitos, liberdades e garantias - tem como corolário o princípio da imparcialidade, definida, pela Declaração Universal dos Direitos do Homem (art. 10º, cf. art. 30º), como uma garantia fundamental de cada ser humano (“toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativamente julgada por um tribunal independente e imparcial (…)”, proclamada também pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem (art. 6º, nº 1) (vide Ac. R.P, de 05-02-23, proferido no Proc. n.º 6730/04).

A garantia de independência dos tribunais é complementada pela independência dos juízes e pela obrigação de imparcialidade que sobre estes recai, destas decorrendo a sua irresponsabilidade.

O art. 4º, nº 1, da LOFTJ, na sequência do art. 216º, da Lei Fundamental, determina que “os juízes julgam apenas segundo a Constituição e a lei”, encontrando-se a sua independência assegurada no nº 2, do mesmo art. 4º, “pela existência de um órgão privativo de gestão e disciplina da magistratura judicial, pela inamovibilidade e pela não sujeição a quaisquer ordens ou instruções”, sem embargo do dever de acatarem as decisões proferidas nos recursos instaurados das suas decisões.

O Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, ed. Verbo, 1996, p. 199, adianta: “A organização judiciária está estruturada na busca da independência dos juízes e tutela do direito de defesa em ordem a assegurar as máximas garantias de objectiva imparcialidade da jurisdição.”

O Prof., Cavaleiro Ferreira Curso de Processo Penal, 1, 237-239, refere: “'Não se trata de confessar uma fraqueza; a impossibilidade de vencer ou recalcar questões pessoais, ou de fazer justiça, contra eventuais interesses próprios; mas de admitir ou não admitir o risco do não reconhecimento público da sua imparcialidade pelos motivos que constituem fundamento da suspeição ... ”.

Portanto, tendo em vista, por um lado, a obtenção das máximas garantias de objectiva imparcialidade da jurisdição e, por outro lado, assegurar a confiança da comunidade relativamente à administração da justiça, a lei adjectiva regule a questão atinente à capacidade subjectiva do juiz, no CPP vigente sob a epígrafe “Dos Impedimentos, Recusas e Escusas”.

3.2. Acresce que o artº. 43º, nº 1, do CPP, preceitua que “A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”, e o n.º 2, do mesmo normativo estabelece que “Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do nº 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do art. 40º, determinando o nº 4 do mesmo normativo que “O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos nºs 1 e 2”

Tem sido constante que o determinante, num pedido de escusa, é a avaliação do cidadão médio, representativo da comunidade, isto é, se, num circunstancialismo concreto, pode, o mesmo fundadamente, sus­peitar que o juiz, influenciado pelo facto invocado, deixa de ser isento ou imparcial e injusta­mente o prejudique.

A jurisprudência tem, uniformemente, entendido que a seriedade e a gravidade do motivo causador do sentimento de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz só são susceptíveis de conduzir à recusa ou escusa do mesmo quando objectivamente consideradas.

Este tribunal, tem vindo a pronunciar-se sobre este incidente. A título de exemplo, indicam-se:

O Ac da Relação de Évora de 06-12-2005, no Recurso Penal 2347/05-1, que refere: “Subjacente ao instituto da recusa, encontra-se a premente necessidade de preservar até ao possível a dignidade profissional do magistrado visado e, igualmente, por decorrência lógica, a imagem da justiça, em geral, no significado que a envolve e deve revesti-la, constituindo uma garantia essencial para o cidadão que, inserido num estado de direito democrático como o nosso, submeta a um tribunal a apreciação da sua causa”;

O Ac da Relação de Évora de 05-03-96, in Colectânea de Jurisprudência, ano XXI-1996, tomo lI, p. 281, entende: “ Para o efeito de apresentação do pedido de escusa, o que importa é determinar se um cidadão médio, representativo da comunidade, pode, fundadamente, suspeitar que o juiz, influenciado pelo facto invocado, deixe de ser imparcial e, injustamente o prejudique. - ''Não importa, aliás, que na realidade das coisas, o juiz permaneça imparcial; interessa, sobretudo, considerar se em relação com o processo poderá ser reputado imparcial, em razão dos fundamentos de suspeição verificados.”.

3.3. Analisando o caso “sub judice”, é óbvio que a magistrada judicial requerente justifica que não deverá intervir nesse processo, uma vez que se o fizer a sua intervenção será sempre considerada suspeita.

Efectivamente, os valores que subjazem à administração da Justiça exigem que nenhuma suspeição possa levantar-se sobre aquele [que] julga, quer no âmbito interno do processo - entre as partes envolvidas - quer externamente. Valerá aqui a necessidade de fazer coincidir a realidade com a aparência, não bastando sê-lo haverá também que parecê-lo.

Quando a imparcialidade da jurisprudência possa ser posta em causa, em ra­zão da ligação do juiz com o processo ou porque nele já teve intervenção nessa ou noutra qua­lidade que faça, legitimamente, suspeitar da sua imparcialidade, há necessidade de o afastar do processo.

Não se pode afirmar, como é lógico, que, face ao circunstancialismo invocado, a senhora juíza não é magistrada idónea para intervir no processo, em que é arguida uma pessoa das suas relações. Mas, se tivesse a possibilidade de apreciar os factos ajuizados, com a serenidade e o distanciamento exigíveis no desempenho do cargo, sempre, objectivamente, a repercussão pública do caso não deixaria de comprometer a imagem pública da imparcialidade e confiança na administração da justiça.

Todavia, no caso “sub judice”, considerando que os factos constantes da acusação são, com excepção do dolo, idênticos aos factos já valorados como provados no processo comum colectivo n.º --/13.3 ZFFAR, deve questionar-se, face ao entendimento e percepção do cidadão comum (em que se insere a arguida) se a sua intervenção pode vir a ser considerada suspeita ou não imparcial.

Concluindo, em face do exposto e considerando que não basta a objectiva independência e imparcialidade subjectiva do juiz; não basta sê-lo, importa também parecê-lo, para que nenhuma dúvida se suscite relativamente a qualquer decisão proferida no processo em causa pela Mmª Juiz, para que se ponha em causa a sua imparcialidade ou isenção, tendo em atenção o disposto no citado art. 43º, nºs 1, 2 e 4, do CPP e com os fundamentos expostos, defere-se o pedido de escusa.

4. Decisão

Termos em que acordam os Juízes que compõem esta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder a requerida escusa da Mm.ª Juíza de Direito Requerente, em intervir nos referidos Autos de Processo Abreviado n.º --/13.8 ZFFAR, que devem, para o efeito, ser remetidos ao Mmo. Magistrado Judicial que, de harmonia com as leis de organização judiciária, deva substituí-la, nos termos do art.º 46° do CPP.

Sem tributação.

(Processado e revisto pela relatora que assina e rubrica as restantes folhas, nos termos do art. 94 n.º 2 do CPP).

Évora, 03/06/2014

Maria Isabel Alves Duarte

José Martins Simão