Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1843/12.9TBBNV.E1
Relator: SILVA RATO
Descritores: MISERICÓRDIAS
ELEIÇÃO
TRIBUNAL ECLESIÁSTICO
Data do Acordão: 05/14/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - A aprovação dos corpos gerentes da Irmandade pelo Ordinário Diocesano ou pela Conferência Episcopal, implica a validação de todo o atinente processo eleitoral, desde a abertura do mesmo, passando pela admissão das candidaturas e culminando na votação eleitoral.
2 - Pelo que não é da competência dos tribunais judiciais portugueses o correspondente contencioso eleitoral.
Decisão Texto Integral: Acordam, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

Proc. N.º 1843/12.9TBBNV (Apelação)
Comarca de Santarém (Benavente – SCível- J1)
Recorrente: Santa Casa da Misericórdia de (…)
Recorridos: (…) e (…)
R31.2015

I. (…) e (…), intentaram a presente acção declarativa comum, sob forma ordinária, contra Santa Casa da Misericórdia de (…), pedindo que «seja declarada nula e sem qualquer efeito, a decisão da assembleia extraordinária realizada no dia 23.11.2012 que admitiu a recandidatura da lista A composta por treze candidatos a um terceiro mandato, em clara violação do disposto no n.º 4 do artigo 57.º do Decreto-lei n.º 118/83, de 25 de Fevereiro».
Alegaram para o efeito, em síntese, que: o pedido de recandidatura a um terceiro mandato de alguns dos irmãos que integram a Santa Casa da Misericórdia de (…) é manifestamente infundado; que a deliberação tomada em Assembleia Geral reunida em 23.11.2012 e que autorizou tal recandidatura é ilegal porquanto não foi antecedida do necessário espaço de discussão do assunto assim posto à consideração dos irmãos, por não permitido pela Mesa.
A Ré deduziu contestação, alegando que: o pedido de recandidatura a um terceiro mandato de alguns dos irmãos que integram a Santa Casa da Misericórdia de (…) é fundado; o mesmo foi posto à consideração da Assembleia Geral Ordinária em 30.03.2012, tendo ali merecido voto favorável da maioria dos irmãos ali presentes e representados; esse pedido foi novamente posto à consideração da Assembleia Geral, para tanto expressamente convocada, tendo merecido novamente voto favorável da maioria dos irmãos ali presentes e representados.
Os autores responderam, pugnando pela invalidade da deliberação assim tomada em 31.03.2012 por o respectivo objecto não constar da pertinente convocatória.

Efectuado julgamento, foi proferida sentença em que foi decidido o seguinte:
“Por todo o supra exposto, esta Secção Cível julga a acção procedente, por provada, e em conformidade, dando sentido útil ao pedido formulado pelos autores:
1. Declara a invalidade das deliberações tomadas em Assembleia Geral do réu, nas suas sessões de 30.03.2012 e de 23.11.2012, onde se permitiu a recandidatura para um terceiro mandato consecutivo (como suplente ou efectivo) dos irmãos que vieram a compor a Lista A que se apresentou a eleições no dia 30.11.2012, designadamente os melhor identificados no ponto 1.9 dos factos provados, anulando-as.
2. Condena o réu ao pagamento das custas processuais em função do respectivo vencimento, nos termos do artigo 527.º, n.º 1, do Código Civil.
3. Registe e notifique.
…”

Inconformada com tal decisão, veio a Ré interpor recurso de apelação, cujas alegações terminou com a formulação das seguintes conclusões:
1. O Tribunal a quo na Douta Sentença proferida julgou a acção procedente, por provada, e em consequência, declarou a invalidade das deliberações tomadas em Assembleia Geral da ré, aqui recorrente, nas suas sessões de 30.03.2012 e de 23.11.2012, onde se permitiu a recandidatura para um terceiro mandato consecutivo (como suplente ou efectivo) dos irmãos que vieram a compor a Lista A que se apresentou às eleições no dia 30.11.2012.
2. Todavia, sob o título “Da competência material deste tribunal para conhecer da presente causa”, reconhecendo – e bem – o facto de tratar-se de matéria muito discutida na jurisprudência qual seria o tribunal competente para julgar de questões relativas ao contencioso eleitoral nas Misericórdias, e ser ela de conhecimento oficioso, decidiu tomar posição quanto à mesma, concluindo “pela competência material dos tribunais comuns para conhecer da presente causa”.
3. Acontece que, ao fazê-lo, não foi tomado em consideração o facto de a recorrente ser uma associação de fiéis em forma de irmandade, constituída na ordem jurídica canónica cujos fins consistem na prática das catorze Obras de Misericórdia e de todas as outras expressões de acção e participação humanas interpretadas à luz da doutrina social da Igreja, visando a solidariedade social mas também a prática de actos de culto católico, de harmonia com o seu espírito tradicional, enfermado pelos princípios da doutrina e moral cristãs.
4. E, neste contexto da sua natureza jurídica de instituição erecta canonicamente, andou mal a decisão sobre a competência do tribunal civil e, consequentemente, a sentença proferida, ainda que apoiada também em jurisprudência.
5. É que, contrariamente ao nela a este respeito decidido, entre outros, nomeadamente os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 27.04.2009 e do S.T.J. de 27.01.2005, aderem à corrente que considera os tribunais comuns incompetentes para decidir as questões relativas à eleição dos corpos gerentes de uma Irmandade da Santa Casa da Misericórdia.
6. Assim, será materialmente competente para decidir questões relativas a conflitos ou irregularidades ocorridos com deliberações dos seus corpos gerentes, o tribunal eclesiástico.
7. Note-se ainda que, no caso dos autos, não estão em causa as eleições. Estão, isso sim, em causa deliberações de Assembleias Gerais prévias às eleições dos órgãos sociais nas quais, a Assembleia de Irmãos representa a autêntica e máxima soberania institucional.
8. Assim, diferente do douta sentença de que se recorre, entende-se que a vida interna da Instituição, sem repercussão no fim assistencial, é da competência do Ordinário Diocesano, logo do tribunal eclesiástico. E,
9. A deliberação da Assembleia Geral prévia de permitir a recandidatura de associados/Irmãos às eleições dos corpos sociais, com aprovação de regularidade de candidatura precedente à respectiva eleição, é um acto que não respeita ao fim de assistência ou de solidariedade social que a Instituição se propõe realizar, mas antes à sua vida interna.
10. A Assembleia Geral de Irmãos prévia às eleições e a Assembleia Geral eleitoral têm natureza e finalidades distintas. Naquela não se tratou de uma reeleição, não se afastou a necessidade de eleições, nem se prorrogou nenhum mandato.
11. A Assembleia Geral dos Irmãos prévia às eleições não é materialmente eleitoral, sendo que a vontade democrática plena é exteriorizada apenas e somente nas eleições.
12. A tutela do Estado definida nos arts. 32º e seguintes do DL nº 119/83, de 25.02, não se estende às eventuais irregularidades que envolvam processos eleitorais das Misericórdias por tal pertencer ao Ordinário Diocesano, nos termos do art. 48º do mesmo diploma legal.
13. Ao decidir como decidiu, a Sentença a quo violou o disposto nos artigos 64º e 96º do Código de Processo Civil.
Em face de todo o exposto, requere-se a V. Exas que julguem a presente Apelação procedente, com as necessárias consequências,
Assim fazendo a costumada Justiça!
... “

Cumpre decidir.
II. Em 1ª instância, foi dada como provada a seguinte matéria factual:
1.1 Os autores são irmãos da Santa Casa da Misericórdia de (…), tendo sido atribuído a (…) o n.º (…) e a (…) o n.º (…) [facto alegado no artigo 1.º da petição].
1.2 Em missiva datada de 13.03.2012 e sobre a qual foi aposto carimbo de entrada de 26.03.2012 pelos serviços do réu, quinze irmãos da Santa Casa da Misericórdia de (…), sem funções de gestão na mesma, dirigiram-se à sua Presidente da Assembleia Geral nos seguintes termos [facto alegado nos artigos 8.º, 18.º e 30.º da contestação; artigo 16.º da réplica]:
«1. Como é seguramente do conhecimento de V.ª Ex.ª e foi também comunicado a todos os irmãos pelo ofício/circular, datado de 12.11.2011, que temos em consideração para a elaboração do presente requerimento, o Lar de Idosos da nossa Santa Casa dispõe apenas de uma capacidade de 65 lugares, 15 dos quais estão cedidos e sob controlo do Centro Distrital de Segurança Social para o Centro de Acolhimento Temporário de Emergência de Idosos, ao abrigo de um Acordo de Cooperação celebrado em 1999.
2. É também do conhecimento de V.ª Ex.ª que a lotação do Lar está praticamente sempre esgotada, o que, nos tempos particularmente difíceis que vivemos, constitui uma grave dificuldade para a população idosa e carenciada do nosso Concelho que necessite de nele acolher-se para conseguir terminar a sua vida em condições de mínima dignidade.
3. Como é de todos nós sabido, nas antigas instalações onde funcionou a (…), na Herdade da (…), existem condições para ser construído, aproveitando parte do que lá já se encontra edificado por aquele, ainda que muito degradado, um novo Lar dotado de muito boas condições de habitabilidade.
4. Para tal, por iniciativa do actual Provedor da Santa Casa e com o apoio e o envolvimento da Câmara Municipal, seu Presidente e Técnicos, bem como do Arquitecto (…), autor do projecto, foi este já submetido à entidade competente (POPH-Apoio ao Investimento a Respostas Integradas de Apoio Social), sendo da responsabilidade da Instituição, nos moldes então previstos, apenas 10% do seu custo.
5. Ainda que tal projecto não venha, dadas as dificuldades económicas entretanto surgidas a nível da obtenção do financiamento previsto por parte do Fundo Social Europeu, a concretizar-se como foi previsto, a Santa Casa e o seu actual Provedor, como é referido no documento que supra se menciona, não desistiram ainda de tentar levar por diante, por qualquer outra via que surja possível, a construção do novo Lar.
6. Sendo esta uma obra de significativo interesse e necessidade para todos os irmãos e tendo ainda em consideração o conhecimento das qualidades, empenho, dedicação, capacidade e disponibilidade para tudo quanto à administração, cada vez mais difícil, em especial do ponto de vista económico, de que o nosso actual Provedor, Coronel (…), tem demonstrado possuir, decidimos dirigir a V. Ex.ª, Senhora Presidente da Assembleia Geral, este nosso requerimento com a finalidade de, nos termos do n.º 4 do artigo 57.º do Decreto-lei n.º 119/83, de 25.02, se procurar obter do órgão a que V. Ex.ª preside o reconhecimento expresso de que, nomeadamente pelos motivos expostos, é inconveniente para a Instituição, proceder à substituição do seu Provedor no final deste mandato.
7. Assim, porque estamos em ano de eleições e entendemos que será de todo o interesse para a nossa Instituição que se concretize a pretensão exposta, decidimos solicitar autorização prévia à Assembleia Geral para uma possível recandidatura nas próximas eleições de elementos dos órgãos que venham, entretanto, a completar dois mandatos, fazendo-o já a V. Ex.ª e esperando que a ela atenda na próxima Assembleia Geral.».
1.3 Em 30.03.2012, pelas 21 horas, teve lugar a Sessão Ordinária da Assembleia Geral, tendo como pontos da ordem de trabalhos: (a) informações e esclarecimentos sobre a actividade da Instituição; (b) apreciar e votar o relatório e contas de gerência relativos ao exercício de 2011 e o parecer do Conselho Fiscal; (c) outros assuntos do interesse da Instituição [facto alegado nos artigos 14.º e 17.º da réplica].
1.4 Sob aquele ponto (c) da ordem de trabalhos, por não constar da pertinente convocatória, a carta em 1.2 supra foi lida aos presentes pela Presidente da Mesa e o ali pedido posto a escrutínio por voto secreto, com 49 (quarenta e nove) votos a favor e 1 (um) voto em branco, contando os votos por procuração [facto alegado nos artigos 14.º, 15.º e 42.ºda contestação; artigos 14.º e 16.º da réplica].
1.5 Por escrito datado de 05.11.2012, a Presidente da Mesa da Assembleia Geral convocou os irmãos da Santa Casa da Misericórdia de (…) para uma Assembleia Geral a realizar no dia 23.11.2012, pelas 20 horas, tendo como único ponto de trabalhos a «consulta à Assembleia Geral sobre o reconhecimento da admissibilidade da recandidatura e respectiva reelegibilidade nominal dos Irmãos que tendo cumprido dois mandatos completos consecutivos nos órgãos sociais desta Santa Casa da Misericórdia se recandidatam para o mandato de 2013 a 2015, nos termos do disposto no artigo 57.º, n.º 4, do Decreto-lei n.º 119/83, de 25.02.» [facto alegado no artigo 16.º da contestação].
1.6 Por missiva datada de 22.11.2012 e sobre a qual foi aposto carimbo de entrada desse dia pelos serviços do réu, as irmãs (…) e (…) dirigiram-se à Presidente da Assembleia Geral daquela Santa Casa, requerendo que aquela convocatória fosse dada sem efeito, sob pena de a correspondente Assembleia vir a ser impugnada, com o fundamento de já existir uma lista candidata às eleições [facto alegado nos artigos 9.º, 12.º e 13.º da petição].
1.7 A Presidente da Mesa da Assembleia Geral não se pronunciou sobre o conteúdo do escrito em 1.6, que antecede [facto alegado no artigo 14.º da petição].
1.8 Em 23.11.2012, pelas 21 horas e 40 minutos, teve lugar a Sessão Extraordinária da Assembleia Geral, tendo como único ponto da ordem de trabalhos o descrito em 1.5, que antecede [facto alegado no artigo 9.º, 10.º da petição; artigo 6.º da contestação].
1.9 Dando início aos trabalhos, a Presidente da Mesa, explicitando que se pretendia ali que a Assembleia reconhecesse expressamente o proposto na ordem de trabalhos, procedeu à leitura em voz alta da missiva em 1.2, supra, após o que passou à leitura de um outro escrito, subscrito por si, por (…), com ela integrante da Mesa da Assembleia Geral, por (…), Provedor daquela Santa Casa, por (…), com este integrante da Mesa Administrativa, e por (…), integrante do Conselho Fiscal, datado de 15.11.2012, com o seguinte texto [facto alegado no artigo 36, 37.º.º da petição; artigos 7.º, 13.º, 17.º, 18.º e 19.º da contestação]:
«Os irmãos abaixo assinados, sensibilizados com o teor da carta subscrita por quinze irmãos, que foi submetida à Assembleia Geral de Março do corrente ano e aprovada por 49 votos a favor, 1 voto em branco, 1 voto nulo e 0 abstenções, concordam que nesta altura é inconveniente a sua substituição e por isso se recandidatam a um terceiro mandato, com a seguinte fundamentação:
A Mesa Administrativa e em particular o Provedor estão empenhados na construção do Lar da (…) e dado o excelente relacionamento com o Presidente da Autarquia foi possível obter o seu acordo de princípio para submeter à Assembleia Municipal, logo que exista possibilidade de financiamento, que a Autarquia se substitua ao Estado na comparticipação da construção, por compensação da alienação à Autarquia do terreno da praça de touros, havendo já para o efeito autorização da Assembleia Geral de 31.03.2010. Ressalvando-se no entanto que no caso de vir a ser possível obter o financiamento por via de candidatura POPH/Programas Operacionais, não se justificará a alienação do referido terreno, comparticipando apenas a Autarquia com o que é habitual nestas situações.
Na área da saúde, a actual Mesa Administrativa, em Agosto de 2011, na sequência de um Acordo de Cooperação que se viu obrigada a estabelecer e negociar com a ARS de Lisboa e Vale do Tejo, equipou e pôs em funcionamento o Bloco Operatório. Trata-se de um novo acordo que tem requerido contactos em permanência, quer com a ARS, quer com o Grupo Misericórdias da Saúde, que está em fase de renegociação, que requer continuidade e que se presume venha a ser extremamente difícil.
Na gestão da Instituição tem havido um cuidado extremo e prova disso é que dada a conjuntura actual e a perda significativa de receitas na área da saúde por motivo imputável exclusivamente à ARS de Lisboa e Vale do Tejo, por não cumprimento integral do Acordo de Cooperação, a Instituição nesta altura não tem dívidas nem empréstimos bancários e dispõe de uma situação de tesouraria muito favorável, o que lhe permite beneficiar de descontos de pronto pagamento.
Também o bom relacionamento da Mesa Administrativa com as diversas entidades leva a que não seja oportuna a substituição para facilitar a operacionalização das respostas sociais no âmbito da Santa Casa para enfrentar a crise que atravessamos.
Relativamente à recandidatura do Presidente do Conselho Fiscal, a sua actuação tem sido fundamental no controlo e acompanhamento da contabilidade da Instituição, pelo que devido à sua competência técnica é de reconhecer ser inconveniente proceder à sua substituição.
No respeitante à Mesa da Assembleia Geral, refere-se que esta apenas é um órgão representativo, da direcção e funcionamento do corpo gerente da Assembleia Geral, esta sim, um órgão deliberativo, pelo que os dois elementos se recandidatam nem precisariam de autorização prévia, mas no entanto, por uma questão de transparência e de concordância com os motivos invocados, submetem-se também à consulta prévia.
Em face do anteriormente referido, os signatários, por considerarem inconveniente nesta altura a sua substituição, decidiram recandidatar-se a um terceiro mandato, caso a Assembleia Geral o reconheça expressamente.».
1.10 Posto isto, a Presidente da Mesa pretendeu passar de imediato à votação, apresentando aos irmãos o boletim de voto, pelo que o irmão (…) pediu a palavra e no seu uso disse [facto alegado no artigo 15.º da petição; artigo 11.º da contestação]:
«Peço a palavra para suscitar uma questão prejudicial, concretamente a invocação da lei que é susceptível de influir na continuidade da ordem de trabalhos (violação da norma do nº 4 do artigo 57º do Decreto-Lei 119/83). A Assembleia foi convocada para se pronunciar sobre o reconhecimento da admissibilidade da recandidatura de irmãos que cumpriram dois mandatos. Em bom rigor, a Assembleia devia ter sido convocada para reconhecer ou não a inconveniência da substituição de tais irmãos. Tal convocatória pressupunha que a ordem de trabalhos contemplasse a discussão sobre os concretos motivos que obstam à substituição. Uma vez que tais motivos não foram sujeitos a discussão vê-se esta Assembleia impedida de os reconhecer em concreto. Nesta conformidade, a Assembleia, ouvida que foi a anunciada questão, terá de decidir se ela é ou não prejudicial da ordem de trabalhos.».
1.11 Não obstante, o assim requerido não foi posto à consideração daquela Assembleia Geral ou mereceu decisão por parte da Mesa da Assembleia Geral, passando-se de imediato à votação do ponto único da ordem de trabalho [facto alegado nos artigos 16.º, 20.º e 37.º da petição].
1.12 Assim, posta a escrutínio por voto secreto, obteve-se o seguinte resultado: (a) (…): 146 (cento e quarenta e seis) votos a favor, 65 (sessenta e cinco) votos contra, e 4 (quatro) votos brancos ou nulos; (b) (…): 141 (cento e quarenta e um) votos a favor, 62 (sessenta e dois) votos contra, e 12 (doze) votos brancos ou nulos; (c) (…): 146 (cento e quarenta e seis) votos a favor, 65 (sessenta e cinco) votos contra, e 4 (quatro) votos em branco ou nulos; (d) (…): 141 (cento e quarenta e um) votos a favor, 61 (sessenta e um) votos contra, e 13 (treze) votos em branco ou nulos; (e) (…): 143 (cento e quarenta e três) votos a favor, 65 (sessenta e cinco) votos contra, e 7 (sete) votos em branco ou nulos [facto alegado nos artigos 9.º, 21.º e 46.º da contestação].
1.13 Em 30.11.2012, entre as 18 horas e as 20 horas, teve lugar a Sessão Geral Eleitoral, onde se apresentaram duas listas, designadas de A e de B, admitidas pela Presidente da Mesa da Assembleia Geral [facto alegado nos artigos 3.º e 4.º da petição; artigos 1.º, 2.º, 10.º da contestação].
1.14 A lista A era composta por: (a) Mesa da Assembleia Geral: (1) efectivos: (…) (já com dois mandatos consecutivos), (…) (já com dois mandatos consecutivos), (…) e por (…) (já com dois mandatos consecutivos); (2) Suplentes: (…) e (…) (já com dois mandatos consecutivos). (b) Mesa Administrativa: (1) efectivos: (…) (já com dois mandatos consecutivos), (…) (já com dois mandatos consecutivos), (…), (…) (já com dois mandatos consecutivos) e por (…); (2) Suplentes: (…) (já com dois mandatos consecutivos), (…) e por (…) (já com dois mandatos consecutivos). (c) Conselho Fiscal: (1) (…) (já com dois mandatos consecutivos), (…) e por (…); (2) Suplentes: (…) (já com dois mandatos consecutivos), (…) (já com dois mandatos consecutivos) e por (…) (já com dois mandatos consecutivos) [facto alegado nos artigos 7.º e 11.º da petição].
1.15 Postas a escrutínio por voto secreto, a lista A obteve vencimento encontrando-se os seus elementos em exercício de funções naquela Misericórdia [facto alegado transversalmente nas peças processuais apresentadas pelas partes nestes autos].
1.16 A construção do Lar de Idosos da (…) havia sido prometida por parte dos elementos da supra referida lista A, entretanto repetentes, aquando da sua candidatura para o triénio 2009-2012 [facto alegado no artigo 22.º da petição; artigos 25.º e 26.º da contestação].
1.17 A construção do Lar de Idosos da (…) ainda não se iniciou, por dificuldade em obter financiamento junto do Fundo Social Europeu ou do Município de (…) [facto alegado nos artigos 23.º, 29.º da petição; artigos 26.º, 27.º e 32.º da contestação].
1.18 O Ordinário Diocesano homologou o acto eleitoral supra referido, por despacho de 11.12.2012 [facto alegado no artigo 57.º da contestação].

III. Nos termos do disposto nos art.ºs 635º, n.º 4, e 639º, n.º 1, ambos do C.P.Civil, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do disposto na última parte do n.º 2 do art.º 608º do mesmo Código.

A questão a decidir resume-se, pois, a saber se a decisão sobre o presente pleito cabe aos Tribunais Portuguese ou às Autoridades Canônicas.

A Ré, conforme se retira do n.º 1 do art.º 1º dos seus Estatutos (Compromisso da Santa Casa da Misericórdia de …), juntos a fls. 76-C a 76-V, “A Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de …, é uma associação de fiéis, constituída na ordem jurídica canónica para satisfação de carências sociais e para realização de actos de culto católico, tudo de harmonia com o seu espírito tradicional, informado pelos princípios da doutrina e da moral cristã.”
Dispondo o seu n.º 3 que “A Irmandade adquire personalidade jurídica civil e estará reconhecida como instituição privada de solidariedade social, mediante participação escrita da sua erecção canónica, feita pelo Ordinário Diocesano aos serviços competentes do Estado.
E o n.º 4 do mesmo preceito, “Em conformidade com a natureza que lhe provém da erecção canónica, a Irmandade está sujeita ao Ordinário Diocesano, de modo similar aos das demais associações de fiéis.”
Regendo-se, em conformidade com o art.º 69º dos mesmos Estatutos, “em todas as suas actividades, as determinações do Direito Canónico e as instruções legítimas da Igreja Católica que lhe forem aplicáveis, e, bem assim, as disposições do já citado Decreto-Lei n.º 519-G 2/79 e mais legislação vigente”.
A Ré, enquanto Irmandade da Misericórdia, encontra-se registada como Instituição Particular de Solidariedade Social (vide fls. 76-C).

O Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social, enquanto instrumento legal que define o regime jurídico dessas Instituições, está contido no Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de Fevereiro (que revogou o Decreto-Lei n.º 519-G 2/79), regulando o Capítulo II desse Estatuto, as actividades de solidariedade sociedade das organizações religiosas, contendo a sua Secção III, as disposições especiais para as Instituições da Igreja Católica.
Atenta a data dos factos em apreço, a redacção do Decreto-Lei n.º 119/83 a ter em conta, é a anterior à alteração dada ao Estatuto pelo Decreto-Lei 172-A/2014, de 14 de Novembro.
Dispõe o seu art.º 40º, enquanto norma geral para todas as organizações religiosas, que “As organizações e instituições religiosas que, para além dos fins religiosos, se proponham actividades enquadráveis no art.º 1º ficam sujeitas, quanto ao exercício daquelas actividades, ao regime estabelecido no presente Estatuto”.
Estipulando o art.º 48º, inserido na Secção III, sob epígrafe “Tutela da Autoridade Eclesiástica” que, “Sem prejuízo da tutela do Estado, nos termos do presente diploma, compete ao ordinário diocesano, ou à Conferência Episcopal, respectivamente, a orientação das instituições do âmbito da diocese, ou de âmbito nacional, bem como a aprovação dos seus corpos gerentes e dos relatórios e contas anuais”.

Em conformidade com a Concordata estabelecida entre o Estado Português e a Santa Sé, celebrada no ano de 2004, e no que interessa aos autos, está consagrado o seguinte:
Artigo 10
1. A Igreja Católica em Portugal pode organizar-se livremente de harmonia com as normas do direito canónico e constituir, modificar e extinguir pessoas jurídicas canónicas a que o Estado reconhece personalidade jurídica civil.
2. O Estado reconhece a personalidade das pessoas jurídicas referidas nos artigos 1, 8 e 9 nos respectivos termos, bem como a das restantes pessoas jurídicas canónicas, incluindo os institutos de vida consagrada e as sociedades de vida apostólica canonicamente erectos, que hajam sido constituídas e participadas à autoridade competente pelo bispo da diocese onde tenham a sua sede, ou pelo seu legítimo representante, até à data da entrada em vigor da presente Concordata.
3. A personalidade jurídica civil das pessoas jurídicas canónicas, com excepção das referidas nos artigos 1, 8 e 9, quando se constituírem ou forem comunicadas após a entrada em vigor da presente Concordata, é reconhecida através da inscrição em registo próprio do Estado em virtude de documento autêntico emitido pela autoridade eclesiástica competente de onde conste a sua erecção, fins, identificação, órgãos representativos e respectivas competências.
Artigo 11
1. As pessoas jurídicas canónicas reconhecidas nos termos dos artigos 1, 8, 9 e 10 regem-se pelo direito canónico e pelo direito português, aplicados pelas respectivas autoridades, e têm a mesma capacidade civil que o direito português atribui às pessoas colectivas de idêntica natureza.
2. As limitações canónicas ou estatutárias à capacidade das pessoas jurídicas canónicas só são oponíveis a terceiros de boa-fé desde que constem do Código de Direito Canónico ou de outras normas, publicadas nos termos do direito canónico, e, no caso das entidades a que se refere o nº 3 do artigo 10 e quanto às matérias aí mencionadas, do registo das pessoas jurídicas canónicas.
Artigo 12
As pessoas jurídicas canónicas, reconhecidas nos termos do artigo 10, que, além de fins religiosos, prossigam fins de assistência e solidariedade, desenvolvem a respectiva actividade de acordo com o regime jurídico instituído pelo direito português e gozam dos direitos e benefícios atribuídos às pessoas colectivas privadas com fins da mesma natureza.
Do que decorre, que às pessoas jurídicas canónicas, a quem é reconhecida personalidade jurídica civil, se aplica o direito português ou o direito canónico, em conformidade com o âmbito da actividade prosseguida por cada uma dessas instituições.
Tendo as Santas Casas da Misericórdia, como objecto social, para além da prossecução do culto religioso e actividades afins, uma actividade de cariz social e assistencial, afigura-se-nos que, neste âmbito, rege o direito português.

Sendo a Mesa Administrativa das Irmandades, eleita pelos respectivos irmãos, e tendo por incumbência a prossecução do objecto social da respectiva Irmandade que, como acima dissemos tem duas vertentes primordiais, uma ligada ao culto religioso, outra de cariz social e assistencial, põe-se a questão de saber qual o direito aplicável em caso de litígio sobre o processo electivo da Mesa Administrativa.
Habilmente, diremos nós, percebendo o legislador a complexidade da questão, estabeleceu no art.º 48º do Decreto-Lei n.º 119/83, que, relativamente às Irmandades que estejam reconhecidas como IPSS’s, cabe ao Ordinário Diocesano ou à Conferência Episcopal, conforme o âmbito territorial da Irmandade, aprovar os seus corpos gerentes, remetendo assim para as autoridades eclesiásticas, tal incumbência e retirando-a do foro do Estado Português.
A aprovação dos corpos gerentes da Irmandade pelo Ordinário Diocesano ou pela Conferência Episcopal, implica, a nosso ver, a validação de todo o atinente processo eleitoral, desde a abertura do mesmo, passando pela admissão das candidaturas e culminando na votação eleitoral.
Não faria sentido, a nosso ver, que fosse entendido de outro modo.
Acolhendo essa tese, o Acórdão do STJ, de 17/12/2009, proferido no Proc. n.º 743/08.0TBABT-A.E1.S1, citando o Acórdão do STJ de 10/07/85, diz-nos, a dado passo: “Assim, como refere no sobredito Ac. do STJ de 10-7-85 - que vimos seguindo de perto - sem prejuízo da tutela do Estado, que se manifesta, além de outros modos, através da sua intervenção nos actos discriminados no artº 32° e ss. do Estatuto (aquisição e alienação de bens, empréstimos, realização de inquéritos, sindicâncias e inspecções, destituição dos gerentes por actos reiterados de gestão prejudicial, requisição de bens para utilização em fins idênticos, etc.), as instituições da Igreja Católica - assim se acolhendo as prescrições do Código de Direito Canónico - estão submetidas à tutela da autoridade eclesiástica que, no tocante às que tenham âmbito diocesano, é exercida pelo competente Ordinário, o qual as orienta, aprova os seus corpos gerentes e os relatórios e contas anuais (artigo 48°)".
Ainda na esteira do mesmo aresto, "... se ao Ordinário diocesano cabe, por força da lei a aprovação dos corpos gerentes das Misericórdias, caber-lhe-á também, por necessária inerência, verificar a regularidade da eleição, sob pena de ter de aceitar-se que a sua aprovação haveria de resumir-se à aposição de uma chancela sem qualquer sentido prático e efeito útil' (sic).”

Feito este enquadramento, importa dar a solução à questão objecto do presente recurso, que acima enunciámos.
O presente litígio prende-se com as alegadas irregularidades cometidas no âmbito do processo eleitoral para a Mesa Administrativa Santa Casa da Misericórdia de (…) que levou à eleição, pela Assembleia Geral da Santa Casa da Misericórdia de (…), da Lista A, eleição essa que foi homologada pelo Ordinário Diocesano.

Como acima dissemos, e em face da legislação em vigor à data dos factos em apreço, sublinhe-se, sendo da competência do Ordinário Diocesano a aprovação da eleição dos Corpos Gerentes da Ré, que, necessariamente, antes da aprovação da eleição, terá que validar o processo eleitoral, que passará por questões tão diversas com a admissibilidade das Listas concorrentes e a regularidade das Assembleias Gerais realizadas no contexto do processo eleitoral, não competirá aos Tribunais Portugueses a apreciação de qualquer irregularidade desse processo eleitoral.

Consequentemente, pela procedência do recurso, declara-se o Tribunal “a quo” absolutamente incompetente, em razão da matéria, para conhecer do litígio vertido nos presentes autos, absolvendo-se a Ré da instância.
***
IV. Decisão
Pelo acima exposto, decide-se pela procedência do recurso, revogando-se a decisão recorrida e declarando-se o Tribunal “a quo” absolutamente incompetente, em razão da matéria, para conhecer do litígio vertido nos presentes autos, absolvendo-se a Ré da instância.
Custas pelos Apelados.
Registe e notifique.
Évora, 14 de Maio de 2015
Silva Rato
Assunção Raimundo
Abrantes Mendes