Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | ANA BACELAR | ||
Descritores: | VIOLÊNCIA DOMÉSTICA REITERAÇÃO CRIME HABITUAL UNIDADE DE INFRACÇÕES PLURALIDADE DE INFRACÇÕES | ||
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Data do Acordão: | 06/06/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | I – De forma pacífica, o crime de violência doméstica – quando ocorre prática reiterada - tem sido doutrinalmente definido como crime habitual. II - Os crimes habituais não podem deixar de se considerar como “modalidade” dos crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo. E em crimes desta natureza, a incidência do tempo na unidade resolutiva que os caracteriza não pode deixar de se tomar em apreço, e até comprometê-la mesmo, se decorrer um largo hiato de tempo entre as múltiplas condutas. Neste mesmo sentido se tem pronunciado o Supremo Tribunal de Justiça, ao considerar que a interrupção dos atos criminosos durante um ano não autoriza a sua unificação. III – Em jeito de síntese, relativamente aos crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, pode dizer-se que - é seu requisito processual que o tipo incriminador suponha ou preveja a reiteração e que esta revele uma persistência da resolução criminosa, encerrando uma culpa agravada, que será medida de acordo com o número de condutas e respetiva ilicitude; - são seus requisitos substantivos positivos a homogeneidade da conduta do agente, a sua repetição no tempo, a violação do mesmo tipo de crime ou de tipos que protegem o mesmo bem jurídico e, em caso de crimes contra as pessoas, a identidade da vítima; - é seu requisito substantivo negativo a ocorrência de hiato ou hiatos significativos de tempo entre as diversas condutas, de tal forma que coloquem em crise, no âmbito da apreciação dos factos, que a repetição das condutas se deva a uma efetiva tendência ou hábito de vontade criminosa do agente. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação do Évora I. RELATÓRIO No processo comum n.º 565/21.3GELLE do Juízo Central Criminal de Faro [Juiz 2] da Comarca de Faro, mediante acusação pública, foi pronunciado: AA, nascido a 19 de julho de 1959 (…) pela prática, em concurso real e efetivo, de - dois crimes de violência doméstica, previstos e puníveis pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas b) e e), n.º 2, alínea a) e n.º 4, do Código Penal; - um crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea d), por referência aos artigos 2.º, n.º 1, alíneas m), an) e av), 3.º, n.º 2, alínea e), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro. O Arguido apresentou contestação escrita, onde nega a prática dos factos que lhe são imputados. Realizado o julgamento, perante Tribunal Coletivo, por acórdão proferido e depositado em 22 de fevereiro de 2023, foi decidido: «a) Absolver o arguido AA da prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, al. e) e n.º 2, al. a) do Código Penal; b) Condenar o arguido AA pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, al. a) do Código Penal, na pena de três anos e seis meses de prisão; c) Condenar o arguido AA pela prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86º, n.º 1, al. d) da Lei n.º 5/2006, de 23/2, na pena de seis meses de prisão; d) Condenar o arguido AA na pena única de três anos e nove meses de prisão; e) Suspender a execução da referida pena, pelo período de quatro anos, nos termos do disposto no artigo 50.º, n.º 1 e 5 do Código Penal, subordinada a regime de prova, mediante plano de reinserção social a elaborar pela DGRSP, e com sujeição às seguintes regras de conduta: a. obrigação do arguido, no prazo de 1 mês (a contar do trânsito em julgado), se inscrever e comparecer em consulta de psiquiatria, fim de obter aconselhamento adequado, devendo juntar aos autos, nos 15 dias posteriores, comprovativo do cumprimento; b. obrigação do arguido iniciar tratamento adequado ao alcoolismo na ETET, ficando obrigado a cumprir o tratamento que lhe for prescrito, com a comparência às consultas determinadas e toma de medicação prescrita, até que lhe seja concedida alta clínica; c. obrigação do arguido se sujeitar aos exames medicamente prescritos, necessários para execução do tratamento ou para deteção do consumo de bebidas alcoólicas; d. obrigação de frequência do Programa para Agressores de Violência Doméstica; f) Condenar o arguido AA nas penas acessórias de proibição de uso e porte de armas de fogo, pelo período de quatro anos, bem como de frequência de Programa para Agressores de Violência Doméstica, nos termos do art.º 152º, n.º 4 do Código Penal; g) Declarar perdidas a favor do Estado as armas apreendidas, determinando a sua entrega definitiva à PSP; h) Determinar o levantamento da apreensão do telemóvel do arguido, ficando o mesmo notificado para, no prazo de 60 dias, proceder ao seu levantamento sob pena de, não o fazendo, ser o mesmo declarado perdido a favor do Estado (art.º 186º, n.º 3 e 4 do Código de Processo Penal); i) Alterar o estatuto coativo do arguido, determinando a revogação da medida de obrigação de permanência na habitação bem como de proibição de contactos a que se encontra sujeito, e determinando que aguarde os ulteriores termos do processo sujeito a termo de identidade e residência; j) Ordenar a recolha de amostras de ADN do arguido, a fim de se proceder à sua inserção na base de dados de perfis de ADN em obediência ao disposto no artigo 8.º, número 2, da Lei 5/2008, de 12 de fevereiro; k) Condenar o arguido no pagamento das custas criminais, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça, acrescida dos encargos a que a atividade do mesmo houver dado lugar, sendo as custas do enxerto cível fixadas na proporção do respetivo decaimento, e tal sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que beneficia o arguido.» Inconformado com tal decisão, o Arguido dela interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões [transcrição]: «1º - Os depoimentos prestados em sede de produção de prova pelas Testemunhas BB e CC, que estão seriamente incompatibilizados com o pai, ora Recorrente, e com quem não mantêm qualquer relacionamento desde há anos, necessariamente, pela sua parcialidade, não são merecedores de credibilidade, pelo que não deveria o douto Tribunal “a quo” fundar a sua convicção com base, designadamente, nos mesmos. 2º - Os depoimentos das Testemunhas DD e EE, que são as únicas pessoalmente conhecedoras de todos os factos, não merecem menos credibilidades do que os demais, pelo que deveriam, tais depoimentos, ter sido valorizados, o que determinará a absolvição, e nunca a condenação na pesada pena que, a considerar-se de condenar, se espera reduzida. 3º - As discussões do casal Recorrente e DD, e que, livremente apreciadas, deverão resultar da prova, eram pontuais, sem especial e sentida gravidade, espaçadas no tempo, pelo que dificilmente se pode considerar verificada a prática do tipo do art.º 152.º do CP, que, perante a generalidade dos factos, não deveria ser punido com a excessiva pena única, nem por via do Cúmulo, que temos por indevidamente realizado, com a devida vénia por diverso entendimento. 4º - A credibilidade dos depoimentos de Testemunhas que não tiveram conhecimento pessoal de factos, é, necessariamente, menor do que aquelas que os presenciaram, não permitindo a livre apreciação da prova, fundamentar convicção desconforme com o declarado por Testemunhas, em Julgamento. 5º - Entre uns depoimentos de Testemunhas que não presenciaram factos, limitando-se a referir que ouviram sons compatíveis com … e a própria “vítima”, que os nega, a este depoimento se deverá conceder credibilidade, assim devendo resultar não provada a matéria imputada na Acusação, para além de que é colmo inocente que, Constitucionalmente, se presume o ora Recorrente. 6º - A circunstância de, tanto a DD, como a EE, continuarem a manter bom relacionamento com o Arguido, manifestando desejar continuar a viver com o mesmo, concede especial credibilidade aos seus depoimentos, em prejuízo daqueles que, parciais e incriminatórios, foram prestados pelos desavindos filhos do Arguido. 7º - Não resultou provada a dependência do consumo de álcool, por parte do Arguido, o que já resulta dos exames realizados em meio prisional, e resultou provado que a sua saúde, cuja doença lhe perturba o equilíbrio, o impede de o ingerir bebidas alcoólicas, pelo que sempre serão excessivas, quer as condições de suspensão da pena, quer as sanções acessórias. 8º - Não tendo resultado provada a data das gravações, para além de se desconhecer que tempo terá mediado entre elas, a que acresce a possibilidade de terem sido “montadas” escolhendo-se “passagens”, não deveriam as mesmas ter sido consideradas na formação da convicção do douto Tribunal “a quo”, o que impede a verificação da prática do tipo. 9º - As armas ilegais/proibidas estavam na posse do Arguido a título precário, e pelo mesmo explicado, pelo que, mesmo sendo perdidas (as ilegais, e não todas as apreendidas) não justificam a aplicação de pena superior a 100 dias de Multa, que nunca deverá fazer parte do cúmulo jurídico. 10º - Sendo um crime punível com pena de Multa, deverá ser esta a eleita, improcedendo o argumento de que a diversa natureza dos crimes justifica (não justifica, e contraria a Lei) que a pena deva ser de prisão, e fazer parte do Cúmulo Jurídico, aplicando-se uma pena única, o que não corresponde às regras de aplicação de penas, como se espera seja entendimento dessa Veneranda Relação. 11º - Sendo as necessidades de prevenção especiais, reconhecidas como medianas, excessiva será a pena parcelar de dois anos de prisão, que também deveria ser mediana, adequada e suficiente, por isso, a reduzir em sede de Recurso, que temos por merecedor de provimento. 12º - O mesmo se dirá relativamente ao crime de detenção de arma, punido com pena de Multa, como legalmente imposto, que não deverá ser superior a 100 dias, e não deverá integrar o Cúmulo Jurídico. 13º - Para além de excessivas, as penas parcelares, que deverão ser reduzidas, atenta a diversa natureza, não deverão integrar Cúmulo Jurídico, como o aconselha a Lei. 14º - A matéria de facto provada, relativamente às condições pessoais do Arguido, da mesma forma que justificam a suspensão da execução de pena, também dispensam a aplicação de condições, para além do regime de prova, e das demais sanções acessórias, entendimento que se espera seja acolhido por esta Veneranda Relação. 15º - A circunstância de não estar em causa a utilização de armas de fogo, justifica que não seja imposta a proibição de tal uso, pelo que tal proibição deverá ser revogada, e, independentemente, deverão ser entregues, a pessoa a indicar pelo Arguido, as armas legais, apreendidas, e não declaradas perdidas. 16º - Devia, pois, o douto Tribunal “a quo” ter absolvido o Arguido, ora Recorrente, e assim não se entendendo, sempre as penas parcelares se mostram excessivas, e a reduzir, bem como a pena única, resultando incorretamente realizado o respetivo Cúmulo Jurídico, de que não deverá fazer parte a pena que deverá ser de Multa, como se espera seja entendimento desta Veneranda Relação, que concederá provimento ao presente Recurso. 17º - Ao decidir diversamente, condenando o Recorrente na pena única que se tem por irregular e injusta, o douto Tribunal “a quo”, para além do Constitucional Princípio “in dubio pro reo”, violou o disposto o disposto nos artigos 40.º, 45.º, 47.º, 70.º, 71.º-2, 152.º do C. Penal, artigo 86.º-1 d) da Lei 5/2006, e 127º e 410º-2 do C. P. P., pelo que, merecendo provimento o presente Recurso, a não se entender dever haver lugar a absolvição, deverá revogar-se o douto Acórdão de Fls, a substituir por outro que condene o ora Recorrente em pena não superior a dois anos de prisão, pela prática do crime de violência doméstica, suspensa na sua execução, e na Multa não superior a 100 dias, à razão diária de € 5,00, pela detenção de arma proibida, assim merecendo provimento o presente Recurso. Nestes termos, e nos demais de direito que Vªs Exªs doutamente suprirão, a não haver reenvio do Processo, para repetição do Julgamento, merecendo provimento, o presente Recurso, deverá o douto Acórdão ora Recorrido ser revogado e substituído por outro que, a não considerar dever lugar a absolvição, condene o Arguido em pena não superior a dois anos, suspensa na sua execução, pela prática do crime de violência doméstica, e em Multa não superior a 100 dias, à razão diária de € 5,00, pela detenção de arma proibida, por se revelar excessiva a desadequada a aplicação de pena superior, sem aplicação de sanções acessórias, ou condições, para além do regime de prova, ordenando-se, ainda, a restituição, a quem se mostrar habilitado para o efeito, das demais armas, legais, apreendidas nos autos. Porém Vªs Exªs decidirão como for de JUSTIÇA» O recurso foi admitido. Respondeu o Ministério Público, junto do Tribunal recorrido, formulando as seguintes conclusões [transcrição]: «1. Salvo melhor opinião, não assiste razão ao ora recorrente. 2. Impugna o ora recorrente a matéria de facto dada como provada, designadamente os factos descritos nos pontos 6), 8), 9), 15), 16), 17), 18), 19), 24), 31), 38), 39) do aresto em crise. 3. Para tanto, o ora recorrente alega que a prova que foi produzida em sede de audiência de discussão e julgamento é insuficiente para considerar como provados os factos elencados nesses pontos. 4. Sumariamente, alega que os depoimentos prestados pelas testemunhas CC e BB não gozam de suficiente credibilidade face à animosidade para com o recorrente, sendo certo que o Tribunal a quo desvalorizou, infundadamente, os depoimentos prestados pelas testemunhas DD, EE e FF. 5. Deste modo, no entendimento do recorrente, o Tribunal a quo analisou e apreciou, erroneamente, os elementos probatórios em que se fundou para considerar provados os factos descritos nos pontos 6), 8), 9), 15), 16), 17), 18), 19), 24), 31), 38), 39) do aresto em crise. 6. A este propósito, entende o Ministério Público, ao invés do que sustenta o ora recorrente, que o encadeamento da dinâmica dos factos trazido pelos elementos de prova produzidos em sede de audiência de discussão e julgamento fundamentam de forma segura e inabalável os supra aludidos pontos da matéria de facto dados como assentes. 7. Desde logo, o apuramento da factualidade descrita nos aludidos pontos da matéria de facto dada como provada resultou da análise crítica e conjugada dos diversos elementos probatórios, os quais foram considerados pelo Tribunal a quo de forma correta, em função das regras da experiência comum, assumindo grande relevância para o apuramento da verdade material. 8. Com efeito, o Tribunal a quo valorou, assertivamente, os depoimentos de CC e DD que, por referência à oralidade e imediação, mereceram total credibilidade e verosimilhança, face às declarações titubeantes do ora recorrente e contraditórias perante os demais sinais dos autos (v.g. gravações reproduzidas em sede de audiência de discussão e julgamento cuja genuinidade é manifesta) e aos depoimentos manifestamente comprometidos e incredíveis das testemunhas DD e FF face às mais elementares regras da experiência comum. 9. Efetivamente, os depoimentos prestados pelas testemunhas CC e BB foram aqueles que, em conjugação com a oralidade e imediação, foram mais consentâneos com os demais sinais dos autos (v.g. fotografias, ficheiros áudios, identificação de mazelas físicas, etc…), ao passo que as declarações do ora recorrente se manifestaram como incongruentes com esses sinais e, inclusivamente, contraditórias, encontrando-se as mesmas vicissitudes nos depoimentos das testemunhas DD, FF e EE, circunstâncias que comprometeram, irremediavelmente, a sua credibilidade. 10. Deste modo, o Tribunal a quo fundamentou, convenientemente, essa sua convicção por referência aos depoimentos indicados na fundamentação da matéria de facto dada como provada, conjugando-os com os demais sinais dos autos, em função das regras da experiência comum. 11. Assim, o Tribunal a quo, conjugando e valorando esses elementos probatórios, em função das regras da experiência comum, concluiu, com verosimilhança e segurança inabalável, que ora recorrente perpetrou a factualidade constante dos pontos 6), 8), 9), 15), 16), 17), 18), 19), 24), 31), 38), 39) do aresto em crise. 12. Por conseguinte, o Tribunal a quo, ao valorar assertivamente os elementos de prova constantes dos autos e bem assim aqueloutros produzidos no decurso da audiência de discussão e julgamento, fixou, naturalmente, a factualidade que ora é colocada em crise pelo ora recorrente, fundamentando a sua convicção de forma exaustiva, objetiva e consentânea com as mais elementares regras da experiência comum. 13. Em suma, pugna-se pela inexistência de qualquer erro na apreciação e na valoração da prova pelo Tribunal a quo, não havendo qualquer reparo a fazer nessa matéria. 14. Por conseguinte, o Tribunal a quo não merece qualquer reparo nessa matéria (vide Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 30 de maio de 2012, relatado pelo Ex. º Juiz Desembargador, Dr.º Orlando Gonçalves, publicado na internet em www.dgsi.pt). 15. Em sede de determinação concreta da pena, o aresto em crise considerou, assertivamente, as consequências da conduta do ora recorrente e evidenciou, fundamentadamente, as especiais exigências de prevenção geral e especial. 16. Para tanto, o Tribunal a quo ainda atendeu, acertadamente, a necessidade de consciencialização do ora recorrente da gravidade da sua conduta. 17. Primeiramente, no que respeita à opção pela pena de prisão em detrimento da pena de multa relativamente ao crime de detenção de arma proibida, o Tribunal a quo justificou, assertivamente, que face à condenação do ora recorrente no crime de violência doméstica, em que apenas admite pena de prisão, tal implicaria, necessariamente, pela opção da pena de prisão nesse ilícito penal, por modo a evitar-se um cúmulo material de penas e aplicação de penas diferente natureza. 18. Por seu turno, em sede de penas parcelares, Tribunal a quo respeitou, integralmente, os postulados consagrados nos artigos 40º, 70º e 71º do Código Penal, bem como em sede de cúmulo jurídico na dosimetria da pena única, tendo, assertivamente, aplicado a sanção acessória de proibição de uso e porte de armas face à necessidade de prevenção adjuvante da pena principal e patente impetuosidade do ora recorrente. Por conseguinte, o recurso interposto não deverá de merecer provimento e, consequentemente, ser mantido o douto Acórdão nos seus precisos termos. V. Exas. Farão, como sempre, JUSTIÇA!» û Enviados os autos a este Tribunal da Relação, o Senhor Procurador Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer [transcrição]:«Nada obstando ao conhecimento do recurso, emite-se parecer no sentido da sua improcedência, sufragando a resposta do Magistrado do Ministério Público na primeira instância. Como bem refere, o encadeamento da dinâmica dos factos trazido pelos elementos de prova produzidos em sede de audiência de discussão e julgamento fundamentam de forma segura e inabalável os pontos da matéria de facto dados como assentes, tendo o tribunal a quo valorado, assertivamente, os depoimentos de CC e BB, que mereceram total credibilidade e verosimilhança no conjunto de toda a prova produzida. Face ao teor das motivações do recurso, a vexata quaestio consiste no essencial em saber se no caso se verifica erro de julgamento. Ora, ao fixar a matéria de facto nos exatos termos em que o fez, o tribunal a quo valorou correta e criteriosamente, sem dúvidas, a prova produzida, à luz das regras da lógica, da experiência comum e da normalidade da vida a que estava vinculado, sem extravasar os poderes/deveres que emergem dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, sem violação, por conseguinte, dos princípios in dubio pro reo e da livre apreciação da prova ofensiva de qualquer preceito constitucional. O tribunal valorou a prova em sentido diferente do entendimento do recorrente, é certo. Porém, não é suficiente pretender o reexame da convicção alcançada pelo tribunal de primeira instância apenas por via de argumentos que apontem para a possibilidade de uma outra convicção, antes seria necessário demonstrar que as provas indicadas impõem uma diversa convicção, ou, dito de outro modo, é indispensável a demonstração de que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica por violação de regras de experiência comum, o que, manifestamente, o recorrente não logrou fazer. Uma mera discordância subjetiva quanto a factualidade dada como provada, com base numa análise e valoração da prova diferente da efetuada pelo tribunal a quo e, daí partindo, chegar-se inexoravelmente a uma conclusão diferente, não basta para colocar em crise o fundadamente decidido como no caso. A prova produzida em audiência é livremente valorável pelo tribunal, não tendo outra limitação, em sede de prova, que não seja a credibilidade que mereça. Não basta que se diga que determinado facto está mal julgado, sendo necessário constatar-se esse mal julgado face às provas que especifica e a que o julgador injustificadamente retirou credibilidade. Atente-se que o artº412, nº3, al. b), do C.P.P. fala em provas que imponham decisão diversa. Por isso entendemos que a decisão recorrida só é de alterar quando for evidente que as provas não conduzam àquela, não devendo ser alterada quando, perante duas versões, o juiz optou por uma, fundamentando-a devida e racionalmente. Ora, no caso inexiste qualquer desconformidade insanável entre a prova produzida em julgamento, na qual o tribunal recorrido fundamentou a sua convicção e os factos que, com base em tal prova, veio a considerar provados, sendo certo que no juízo alcançado pelo tribunal não se vislumbra qualquer atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, porque a fundamentação da sentença tem suporte na regra estabelecida no art.127º do C.P.P.. “(…) a censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objetivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção. Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão” – cfr. Acórdão do T.C. nº198/2004, de 24/03/04, DR II Série, de 2/06/2004. Conclui-se, pois, que o tribunal "a quo" apreciou a prova de modo racional, objetivo e motivado, com respeito pelas regras da experiência comum, não competindo ao tribunal “ad quem” censurar a decisão recorrida com base na convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida, sob pena de se postergar o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art.127º do C.P.P., do qual decorre que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente. Como acima se mencionou, a apreciação da prova é regida pela regra geral contida no art.127º do C.P.P., de acordo com a qual o tribunal forma livremente a sua convicção, estando apenas vinculado às regras da experiência comum e aos princípios estruturantes do processo penal, nomeadamente ao princípio da legalidade da prova e ao princípio in dubio pro reo. A convicção do tribunal é formada antes de mais com base na conjugação e articulação crítica dos dados objetivos fornecidos pela prova documental, pericial e outras provas constituídas de apreciação vinculada. Prova não constante do elenco das provas proibidas, submetida ao contraditório e à imediação probatória processual e produzida ou examinada em audiência ou constante dos autos com conhecimento dos sujeitos processuais sem impugnação da sua validade (cfr. art.º 355.º do C.P.P.). Por outro lado a certeza judicial não se confunde com a certeza absoluta, física ou matemática, sendo antes uma certeza prática, empírica, moral, histórica – crf. Climent Durán, La Prueba Penal, ed. Tirant Blanch, Barcelona, p. 615. Toda a decisão judicial constitui - precisamente - a superação não só da dúvida metódica, como da “dúvida razoável” sobre a matéria da acusação e da presunção de inocência do acusado. Daí a submissão a um rígido controlo formal e material do processo de formação da decisão e do conteúdo da sua motivação, a fim de assegurar os padrões inerentes ao Estado de Direito moderno. In casu o tribunal recorrido valorou de forma exaustiva, minuciosa, congruente, plausível e conjugada os meios de prova de acordo com a experiência comum e com critérios objetivos, sendo que, pela conferência do texto da decisão recorrida, não se vislumbra que o julgador tenha tido dúvidas sobre a verificação dos factos que considerou assentes. Ao invés, a motivação da decisão de facto é bem esclarecedora quer quanto aos fundamentos que sustentaram a convicção formada, quer quanto ao percurso lógico seguido na sua formação, nenhuma falha ou incorreção se detetando no exame crítico da prova. Por conseguinte, foi em conformidade que o tribunal a quo concluiu que o ora recorrente cometeu os factos provados elencados nos pontos 6), 8), 9), 15), 16), 17), 18), 19), 24), 31), 38), 39) do Acórdão recorrido. Quanto à determinação da medida concreta das penas e ao cúmulo jurídico operado, com aplicação de pena única suspensa na sua execução acompanhada de regime de prova com sujeição a regras de conduta, os critérios de prevenção geral resultariam esvaziados a perfilhar o entendimento do recorrente, deixando a sociedade de crer na efetiva punição deste tipo de crimes, esvaziando quer o efeito socializador quer o efeito dissuasor das penas. Os critérios de prevenção especial emitiriam um perigoso sinal ao arguido, permitindo-lhe, ao invés de arrepiar caminho, optar pela prática de crimes. Como bem deixou expresso no texto da decisão recorrida o tribunal a quo, as necessidades de prevenção geral positiva fazem-se sentir de forma intensa, atenta a frequência com que estes tipos de ilícito são praticados, cumprindo reforçar a validade das normas, o que se mostra particularmente premente quanto ao crime de violência doméstica, crime que é praticado com uma frequência, intensidade e muitas vezes resultados funestos. Ao nível da prevenção especial, esta situa-se num patamar médio, porquanto o arguido demonstra insensibilidade perante os factos, não demonstrando qualquer interiorização quanto ao dano causado. Assim, bem, ponderou, e em síntese, a data dos factos, a gravidade das lesões físicas das agressões praticadas, o dolo direto, intenso, a anterior condenação do arguido por crime de ofensa à integridade física, a circunstância de deter mais do que uma arma, a não assunção da sua problemática alcoólica, a insensibilidade perante o dano que provocou, não mostrando qualquer arrependimento, não admitindo a prática dos factos, e a sua personalidade. A pena tem de ser como tal sentida, e daí estarem incluídos na finalidade que a norma visa proteger e nos efeitos que com a condenação se pretendem atingir todos os incómodos decorrentes do cumprimento da mesma, sendo certo que tais consequências negativas têm de se mostrar balizadas por critérios de justiça e proporcionalidade, observados no caso. Tudo ponderado, somos de parecer que deve ser mantido nos seus precisos termos o Acórdão condenatório.» Observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, nada mais se acrescentou. Efetuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência. Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir. II. FUNDAMENTAÇÃO De acordo com o disposto no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995[[1]], o objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso. As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no n.º 1 do artigo 379.º do mesmo diploma legal.[[2]] Posto isto, e vistas as conclusões dos recursos, a esta Instância são colocadas as questões: - da incorreta valoração da prova produzida em julgamento; - da desadequação, por excesso, das penas imposta – parcelares e em cúmulo jurídico; - da desadequação das condições de suspensão de execução da pena e das sanções acessórias; - da indevida integração da pena de multa no cúmulo jurídico. û No acórdão recorrido foram considerados como provados os seguintes factos [transcrição]:«1) O arguido viveu em comunhão de cama, mesa e habitação com DD desde data não concretamente apurada do ano de 2004 até ao dia 6 de dezembro de 2021. 2) O arguido e DD residiram sempre na Rua (…), residência propriedade de DD. 3) Da referida relação existe uma filha em comum, EE, nascida em 9 de janeiro de 2007, que residia com os pais. 4) Com o arguido e DD residiu também, entre meados do ano de 2004 e o ano de 2007, FF, nascida em 24 de Agosto de 1989, a qual é filha apenas de DD. 5) Com o casal residiram também, respetivamente, entre os anos de 2009 a 2012 e 2008 a 2012, CC, nascido em 23 de setembro de 1994 e BB, nascida em 5 de março de 1991, os quais são apenas filhos do arguido. 6) No período em que FF residiu com a sua mãe e com o arguido, este no interior da residência e na presença daquela, ingeria bebidas alcoólicas em excesso e dizia a DD, em tom de voz agressivo que ela não sabia nada, criticando-a por não fazer coisas como ele entendia deverem ser feitas. 7) No período em que BB e CC residiram com o arguido e DD, no interior da residência e na presença daqueles, com frequência praticamente semanal, o arguido discutiu com a companheira apelidando-a de “porca”, “cabra”, “poucochinha”, “burra”, “nojenta”, “badalhoca”, “puta”, dirigindo-se igualmente a expressão “não sabes fazer nada”. 8) No período temporal que BB residiu com o casal, e no interior do quarto destes, o arguido agrediu fisicamente DD pelo menos em duas vezes distintas, causando-lhe hematomas nos braços. 9) Ainda no período em que BB residia com o arguido e DD, o arguido, estando na cozinha a discutir com a companheira, despejou um recipiente com comida para cima da cabeça dela, o que fez na presença de BB. 10) Por diversas vezes, no decurso das discussões, DD gritou pelo nome de BB e CC, que ali residiam, pedindo ajuda, tendo aqueles intervindo para acalmar o arguido. 11) O arguido, na presença do seu filho CC quando este residia com ele, disse a DD, “cuidado que vais apanhar”. 12) Em data não concretamente apurada, no interior da residência e na presença de CC, que teria na altura 16 ou 17 anos, o arguido discutiu com DD, agarrou-a e prendeu-a pelo pescoço, debaixo do seu braço, enquanto a mesma gesticulava e gritava para que o arguido parasse, o que só ocorreu porque CC interveio. 13) Logo após, e tendo CC se ausentado da residência para se acalmar, DD telefonou ao mesmo, em pânico e a chorar, pedindo-lhe que regressasse pois caso não o fizesse seria pior para ela. 14) No período em que CC residiu com o arguido e DD, em datas e com uma frequência não concretamente apuradas, no interior da residência e na presença daquele, então ainda menor, o arguido agarrou DD com força pelos braços e pelo pescoço. 15) No Verão de 2020, mas em data não apurada, CC dirigiu-se à residência do arguido e de DD, a pedido desta, em virtude de o arguido se encontrar caído na estrada, alcoolizado, tendo uma poça de sangue junto à cabeça. 16) Na referida ocasião o mesmo disse para CC “as mulheres são todas umas putas”, referindo-se a DD. 17)No último fim-de-semana da Feira de Santa Iria de Faro, que decorreu nos dias 23 e 24 de outubro de 2021, o arguido e DD, bem como a filha EE, dirigiram-se à aludida feira, onde aqueles encetaram uma discussão devido ao facto do arguido ter ingerido bebidas alcoólicas em excesso e ter ficado embriagado, tendo DD dito ao arguido para que parasse de beber. 18) Após terem saído da aludida Feira, e já no interior da residência, o arguido continuou a discutir com DD, tendo-a apelidado de “puta dum cabrão” bem como proferiu as seguintes palavras: “Porquê que na te havia de bater oh parvalhona? (…) eu ia-te bater? eu? cala-te! parva! não tens nada na cabeça, a tua cabeça é oca, oca! (…) parece uma esfera! Parece mesmo uma esfera! Parva! Burra!”; “hoje na tou pra brincadeira, portanto baixas a bola já”; “cala-te, pah! és uma anormal, cala-te! estupida tu que és estupida”; “acabou! Isso é a tua opinião pah! (…) a tua opinião não prevalece!” “aperto-te o pescoço, pá outra vez aperto-te o pescoço”, “vai, pro caralho, puta dum cabrão”, “como é cum gajo vai, vai aqui vai ali com esta vaca de merda faz sempre a fita, pah! Faz sempre fita.”, “mal criada, tu sabes, tu sabes lá o teu lugar, tens noção? (…) Mete-te no teu lugar. (…) o teu lugar quando tou contigo na rua, tu baixas a bola. (…) xiu! na tou a ver nada. o teu papel (..) não é tares-me a opor ou a contrariar, queres perguntar alguma coisa, falas em casa, na rua na tejas la armada em cobra”. 19) No decurso dessa discussão, o arguido puxou os cabelos de DD, desferiu uma chapada e apertou o seu pescoço, bem como atirou objetos na sua direção, tendo-lhe acertado com os mesmos na zona da cabeça. 20) No final do mês de outubro de 2021 ou início do mês de novembro de 2021 o arguido voltou a discutir com DD tendo-a agredido fisicamente com apertões no pescoço e empurrões. 21) Pelo menos uma vez, no decurso das discussões referidas supra, o arguido atirou loiça para o chão, provocando a sua quebra. 22) Nas circunstâncias descritas no ponto anterior, o arguido apelidou DD de “puta dum cabrão”, “estúpida”, “puta”, “vaca”, “cabra”, “és uma merda”, dizendo-lhe ainda “agora vou dormir um bocadinho prá quela cama onde o outro te fodia”. 23) A filha do casal, EE, que ouviu o que sucedia nas situações descritas em 17 a 22, e chovava perante o que ouvia, não interveio com medo de que o arguido também a agredisse. 24) Em data não concretamente apurada, mas certamente em novembro de 2021, o arguido, disse a EE que lhe fazia um sorriso novo com uma faca. 25) Após os factos supra descritos, ocorridos entre o final do mês de outubro de 2021 e o início do mês de novembro de 2021, EE ficou com medo do arguido, receando que o mesmo pudesse fazer mal à sua mãe. 26) Quando EE tinha cerca de 4 ou 5 anos de idade, o arguido desferiu um estalo na sua face. 27) No início do Verão de 2021, em data não apurada, EE encontrava-se a ler na sala de estar ao lado da sala onde se encontrava o arguido, que tinha acabado de chegar a casa, vindo uma vez mais embriagado. 28) Logo após, sem motivo aparente, o arguido perguntou à EE, porque motivo estava ali naquele local e porque não estava na sala onde o mesmo queria que ela estivesse. 29) Tendo EE respondido que as pretensões daquele não faziam sentido, o arguido desferiu-lhe uma estalada na face. 30) Em data não apurada, cerca do ano de 2020, o arguido estava a treinar um dos seus canídeos quando o mesmo ingeriu uma pequena uma pequena ave que era destinada ao treino para a prática venatória. 31) Tendo o arguido se dirigido ao cão para lhe bater, a filha interpôs-se para defender o cão, tendo o arguido desferiu naquela um murro de punho fechado, atingindo-a na cabeça, na zona da fronte, o que lhe provocou dores. 32) O arguido dizia à filha EEque chorar é sinal de fraqueza. 33) Por diversas vezes, com uma frequência não concretamente apurada, por altura do Verão, nomeadamente no Verão de 2021, quando a menor EE se encontrava na piscina da habitação, o arguido mergulhou a cabeça dela debaixo de água, o que a filha não gostou. 34) Por diversas vezes, com uma frequência não apurada e em datas não apuradas, o arguido, apelidou a filha de “cobra”. 35) Na sequência de uma discussão que manteve com a filha, o arguido apelidou-a de “puta”, “vaca” e “cabra”. 36) Os factos que ocorreram em outubro/novembro de 2021, bem como outras circunstâncias não apuradas, levaram EE, em data não apurada, mas situada em novembro de 2021, a efetuar cortes nos seus braços. 37) Em data não concretamente apurada, EE perguntou à sua irmã BB “quanto tempo falta para o pai morrer”. 38) No dia 6 de dezembro de 2021, no interior da sua residência, o arguido detinha na sua posse: a. uma faca de borboleta, de marca Albacete, com o comprimento total de 23,5 cm e comprimento de lâmina de 11 cm, a qual se encontrava no interior de um armário existente no escritório da habitação; b. um boxer, vulgarmente designado por “soqueira”, instrumento metálico ou de outro material duro destinado a ser empunhado e a ampliar o efeito resultante de uma agressão, o qual se encontrava no interior de uma caixa em cima do sofá, existente no hall de entrada; c. um bastão extensível, composto por duas secções telescópicas em metal, e empunhadura rugosa, com o comprimento total de 49 cm, o qual se encontrava no interior uma das gavetas de um móvel existente na sala de jantar. 39) O arguido sabia que, ao agir da forma considerada provada atuava na residência comum que mantinha com DD, e que os factos eram presenciados pelos seus filhos, sendo estes menores. 40) O arguido sabia que, ao agir da forma descrita, maltratava física e psicologicamente DD, sua companheira e mãe da sua filha, e por isso, pessoa a quem devia particular respeito, bem sabendo que a atingia no seu corpo e saúde, bem como na sua honra e consideração, que a ameaçava de forma apta a causar-lhe receio pela sua integridade física, bem como pela vida, que com isso a humilhava, sendo esse o seu propósito reiterado e conseguido. 41) O arguido sabia que maltratava física e psicologicamente EE, sua filha, ainda menor, para com quem tinha um especial dever de proteção, bem sabendo que a atingia no seu corpo e saúde das vezes que a agrediu fisicamente, bem como a ofendeu na sua honra e consideração. 42) O arguido sabia que ao praticar contra DD os factos que resultaram provados, na presença da sua filha, provocava a esta sofrimento, fazendo a menor ficar com medo, temendo por que algo de mal pudesse suceder àquela, e num meio que deveria ser tido por esta como protetor, não se tendo coibido, ainda assim, de agir conforme quis e agiu. 43) O arguido conhecia as características do boxer, do bastão extensível e da faca borboleta que foram encontradas na sua posse, conforme descrito no facto 39 supra, bem sabendo que não estava autorizado a detê-las, como efetivamente o fez. 44) O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, com conhecimento de que os seus comportamentos eram proibidos e penalmente puníveis por lei. Das condições pessoais e antecedentes criminais do arguido 45) O arguido é oriundo de um agregado familiar com um estrato socioeconómico mediano, cuja dinâmica relacional foi caracterizada normativa em termos psicoafectivos. 46) O arguido tem o 12º ano de escolaridade, tendo depois frequentado curso técnico profissional numa Escola Agrícola, que não terminou, vindo depois de cumprir o serviço militar obrigatório, a laborar em diversas áreas até ingressar, aos 27 anos, na Polícia Judiciária. 47) É inspetor da Polícia Judiciária em Faro desde 1996. 48) O seu primeiro casamento originou quatro filhos, tendo a rutura marital ocorrido em 2003, embora o processo de divórcio não viesse a ser decretado por ter sobrevindo o falecimento do cônjuge. 49) A rutura conjugal é atribuída pelas filhas do arguido à sua personalidade autoritária/dominadora, potenciada pelo consumo de bebidas alcoólicas, sendo que este consumo também era habitual no cônjuge. 50) Auferia cerca de € 1.800,00 mensais, e a companheira cerca de € 600,00. 51) Desde 2019 (aos 60 anos de idade) que se encontrava na situação de Reserva de Disponibilidade, tendo optado por manter-se ativo, mas de baixa clínica desde janeiro de 2020. 52) Desde 2010 (aquando de queda com TCE, no local de trabalho), o arguido apresentou situações clínicas (acidentes no âmbito de síndrome vertiginoso) que requereram intervenção cirúrgica e diversos períodos de baixa clínica (encontrando-se pendente cirurgia ao ombro), tendo o último período de atividade ocorrido em 2018/2019. 53) Reside em casa própria, pagando de prestação pelo mútuo bancário cerca de €800,00. 54) Durante o período de prisão preventiva, AA registou um comportamento coadunante com as normas vigentes em meio prisional, encontrando-se a medida de OPHVE a decorrer normativamente, recebendo o apoio da companheira e de um dos irmãos, que asseguram a satisfação das suas necessidades, 55) Já em prisão preventiva frequentou consultas de alcoologia tendo, em agosto de 2022, face ao contexto de vida do arguido, sido entendido não haver indicação para toma de medicação ou manutenção das consultas. 56) Por acórdão transitado em julgado no dia 29/10/2021, foi condenado pela prática, em 3/7/2017, pelo crime de ofensa à integridade física, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de € 8,00.» Relativamente a factos não provados, consta do acórdão que [transcrição]: «Não se logrou provar que: a) No período em que FF residiu com a sua mãe e com o arguido, no interior da residência e na presença daquela, este último, em datas e com uma frequência não concretamente apuradas, desferiu empurrões em DD. b) Numa dessas ocasiões, ocorrida em data não apurada, no aludido período, o arguido encontrava-se a discutir com DD e, estando aquele junto ao barbecue e FF presente no local, o mesmo atirou uma panela na direção de DD, que estava na cozinha, não lhe tendo acertado. c) Em data não concretamente apurada, após FF ter deixado de residir com a sua mãe e o arguido, o arguido encontrava-se no quarto do casal com DD, sito no primeiro andar da aludida residência, e, de forma não apurada, agrediu-a fisicamente. d) FF, ao ouvir a discussão, subiu as escadas tendo ouvido a sua mãe a gritar “Bate-me, bate-me mais!”. e) Em data não concretamente apurada o arguido gritou diretamente aos ouvidos de DD, que se encontrava com enxaqueca, o que BB presenciou. f) O descrito em 7 ocorresse com frequência quase diária. g) O arguido tivesse desferido empurrões e puxado os cabelos de DD na presença de BB. h) Ainda no período em que BB residiu com o casal, aqueles encontravam-se no interior do quarto do casal, estando o arguido alcoolizado e a discutir com a companheira. i) Na referida ocasião DD gritou pelo nome de BB pedindo-lhe ajuda, ao que esta última de imediato acorreu ao quarto onde os mesmos se encontravam e dirigiu-se ao arguido, seu pai, dizendo-lhe que saísse do quarto ou que, caso o mesmo não o fizesse, iria embora de casa e chamaria as autoridades policiais. j) Nessa sequência, o arguido, embriagado, saiu do quarto e desceu as escadas com a sua filha EE ao colo. k) Ato contínuo, DD, atento o estado em que se encontrava o arguido e com receio que o mesmo caísse nas escadas com a sua filha, foi atrás daquele tentando impedir o mesmo de sair dali com a filha ao colo. l) Nesse momento, o arguido disse a DD “A filha é minha. Se eu me for embora ela vai comigo!”. m) Na ocasião descrita em 9. dos factos provados, o arguido puxou os cabelos e empurrou DD. n) Após BB ter deixado de residir com o arguido esteve cerca de 3 anos sem ver DD, sua madrasta, bem como com a sua irmã, EE, pois o arguido não permitia que aquela visse a irmã sem ser na presença daquele. o) Nas discussões que mantinha com a companheira o arguido tenha verbalizado “acabo contigo” e “acabo com isto tudo”. p) Numa dessas discussões, ocorrida em data não concretamente apurada, no aludido período em que CC ali residia, o arguido disse a DD, na presença daquele “Deves querer morrer”. q) Na sequência da agressão descrita em 12. dos factos provados, DD ficou com um corte no lábio. – a testemunha descrevendo os factos não apresentou qualquer recordação desta lesão, admitindo que o sangue que viu fosse proveniente do nariz ou da boca. r) Nas ocasiões descritas em 14 o arguido também puxasse os cabelos de DD. s) Em datas e em circunstâncias não concretamente apuradas, o arguido efetuou disparos com arma de fogo contra a janela da cozinha da habitação, bem como contra a janela da cozinha exterior. t) Desde que FF, CC e BB deixaram de viver com o arguido e a sua companheira, os mesmos já viram esta última por diversas vezes com nódoas negras compatíveis com marcas de agressões, bem como com um corte no lábio. u) Em data e em circunstâncias não concretamente apuradas, o arguido desferiu um murro numa das portas interiores da residência, concretamente na porta que fica ao fundo das escadas, tendo danificado a mesma, a qual se encontra danificada até à atualidade. v) Durante o ano de 2021, pelo menos em três ocasiões, EE, em pânico, telefonou ao irmão CC, pedindo-lhe que fosse lá a casa em virtude de o arguido se encontrar a discutir com DD. w) Pelo menos em três ocasiões, ocorridas após os meses de outubro e novembro de 2021, em datas não concretamente apuradas, no interior da residência, o arguido agrediu fisicamente de forma não apurada, DD, tendo os sons das pancadas desferidas pelo mesmo no corpo daquela sido ouvidos por EE, que também ali se encontrava. x) Numa dessas situações, ocorrida em data não concretamente apurada, sendo já de noite, EE, que se encontrava no corredor próximo da sala onde se encontrava a ofendida DD e o arguido, ouviu este último agredir a sua mãe com um murro, tendo a ofendida DD dito em seguida para o arguido “tu deste-me um soco?”. y) Nessa mesma ocasião, o arguido apertou o pescoço da ofendida DD, tendo a menor EE ouvido sons compatíveis com aquela a sentir falta de ar. z) Na referida ocasião, o arguido ainda desferiu estaladas na face de DD, o que foi ouvido por EE. aa) O arguido alguma vez tivesse apontado uma faca na direção da companheira. bb) O arguido disse a DD que lhe despejava seis balas em cima da cabeça. cc) De forma praticamente diária, nos últimos meses, o arguido discutia com DD, apelidando-a, entre outros, de “puta”, “vaca”, “cabra”, “cobra”. dd) Noutra ocasião, ocorrida em data não concretamente apurada, quando o arguido se encontrava na cozinha, na companhia de DD e da sua filha EE, estando todos a jantar, o mesmo, encontrando-se já embriagado, disse para DD “Vai mas é lavar a loiça”. ee) O arguido desde tenra idade da filha EE que dava pontapés nas suas pernas. ff) O arguido tenha por hábito dizer a DD para não chorar, pois chorar é sinal de fraqueza. gg) O arguido mergulhava a cabeça da filha debaixo de água, fazendo aquela sentir-se mal, e sem ar. hh) O arguido quando se encontrava embriagado e aborrecido por motivos não apurados, com EE, apelidava-a de “cobra”, expressão que proferia com intenção de a ofender, o que conseguiu e logrou alcançar. ii) O arguido, ao agir da forma que se considerou provada contra a companheira, tenha atingido a dignidade pessoal da sua filha.» A convicção do Tribunal recorrido, quanto à matéria de facto, encontra-se fundamentada nos seguintes termos [transcrição]: «A convicção do Tribunal acerca da matéria de facto dada como provada e como não provada fundou-se no conjunto da prova produzida recorrendo às regras de experiência e fazendo-se uma apreciação crítica da mesma. Sendo que o arguido prestou declarações sobre os factos, todas as suas declarações foram no sentido de negar a prática dos factos, bem como negando manter um padrão abusivo de consumo de bebidas alcoólicas. Assumindo que em algumas ocasiões falaria com um tom de voz mais elevado e que no decurso da relação conjugal com DD existiram discussões entre o casal, negou que alguma vez tivesse agredido fisicamente a companheira, indo explicando alguns dos factos descritos na acusação, contextualizando-os de forma bastante distinta daquela que o Ministério Público o fez no libelo acusatório. Sendo que foi evidente que pretendeu descredibilizar os filhos BB e CC, referindo até que aquela esteve internada na unidade de psiquiatria do hospital, declarou que não se reconhece nas gravações que foram realizadas e que constam nos autos e que essas poderão ter sido alteradas por um programa informático, conduta que a sua filha BB seria capaz de adotar, referindo que os filhos CC e BB eram muito ciumentos em relação à sua companheira tendo também ciúmes da irmã EE. Relativamente à filha EE o arguido assumiu ter desferido um estalo na sua face, quando a mesma teria cerca de 5 anos, numa situação em que estando na ilha da Culatra ela desapareceu, sendo que na situação descrita na acusação com o cão, veio a dar-lhe com a mão na cabeça porque pretendia atingir o cão, que estava rosnar e ela se meteu no meio, atingindo-a por acidente e sem gravidade tanto que ela nem chorou. Tudo o demais que aconteceu entre eles, como as brincadeiras na piscina ou o apelidar de “cobrinha” eram apenas brincadeiras. No que se refere às armas de que se encontrava acusado de deter ilicitamente o arguido explicou que as mesmas eram pertença da Polícia Judiciária, tendo-as trazido para a residência inadvertidamente, mas tendo a intenção de as devolver. A versão do arguido foi corroborada pelo testemunho de DD. Descrevendo os filhos do companheiro, CC e BB, como pessoas ciumentas e problemáticas, retratou uma relação conjugal comum, sem a existência de agressões físicas e com a existência de algumas discussões conjugais onde, ocasional e mutuamente dirigiam expressões injuriosas ao outro. Negando que o companheiro ingerisse bebidas alcoólicas em excesso explicou que as gravações existentes nos autos se deveu a terem decidido encenar uma discussão de forma a enganar a BB, sendo que toda esta situação se deveu a um plano delineado por maldade por aquela, que levou até as suas filhas a mentirem. Inquiridas as testemunhas BB e CC, filhos do arguido, prestaram ambos depoimentos que se consideram credíveis, pois que se mostraram sinceros, sem demonstrarem qualquer contrariedade ou animosidade, sendo sempre espontâneos, sendo que em nenhum momento demonstraram qualquer sentimento que se pudesse entender ser sinónimo de maldade, ciúme ou vingança para com o seu pai e DD, ou mesmo para com a irmã EE. As duas testemunhas, unânimes no sentido do pai ser uma pessoa autoritária, agressiva, com consumos regulares e excessivos de bebidas alcoólicas, descreveram os factos que ocorreram quando viviam com o casal, bem como algumas situações que ocorreram quando já havia cessado a coabitação. Também foram unânimes de que quando já não viviam com o casal, a irmã EE contava-lhes do que sucedia na residência e que foi esta quem gravou vários áudios com as discussões que ouvia os pais terem, áudios que remeteu para eles, resultando que existiram outros para além daqueles que vieram a ser juntos aos autos e cujo teor foi transcrito para auto – vide fls. 90 a 95, e de fls. 98 a 112. O Tribunal também inquiriu a testemunha FF, filha de DD e que também viveu com o casal. Sendo que a testemunha se apresentou com um depoimento que se nos afigurou comprometido, já resultava do declarado pela testemunha CC que esta testemunha poderia não pretender depor com toda a verdade e relatar todos os factos de que tinha conhecimento, pois que a sua mãe não pretendia ser “ajudada”. Sendo que das suas declarações não resultou ter presenciado quaisquer agressões físicas, a testemunha referiu que a irmã EE, já há 3 anos, referia que os pais tinham discussões frequentes, o que a deixava triste, sendo que apresentou a queixa que originou este processo perante o que a BB lhe contou sobre a existência de uma discussão grave, no entanto só já depois do pai ser preso é que ouviu as gravações, tendo aí reconhecido as vozes da mãe e do arguido. Referiu também que o arguido era verbalmente agressivo, o que era potenciado pelo ingerir de bebidas alcoólicas, e implicativo, impondo a sua vontade. Tendo sido confrontada com o que declarou quando apresentou a denúncia, e que está vertido no auto de notícia de fls. 4, referiu que naquele momento se encontrava perturbada, sabendo que a sua mãe é feliz com o arguido e que também a sua irmã quer muito voltar a viver com o pai. Já as demais três testemunhas a cuja inquirição se procedeu, nomeadamente GG, HH e II, não revelaram conhecimento dos factos imputados ao arguido, depondo sobre as características da sua personalidade e sobre a sua inserção social. O Tribunal procedeu ainda à valoração das declarações prestadas por EE, prestadas nos termos do art.º 271.º do Código de Processo Penal, sendo que da sua globalidade resulta que o arguido, contrariamente ao que afirma, ingeria bebidas alcoólicas que alteravam o seu comportamento, fazendo-o frequentemente, e que as gravações que foram juntas aos autos foram realizadas pela sua filha EE sem a intervenção de qualquer programa de alteração de voz ou sofrendo qualquer adulteração. Sendo que se afigura a este Tribunal que o depoimento de EE sofreu influências de terceiros, como resulta desde logo quando a mesma refere que um episódio de agressão física ocorrido quando tinha talvez quatro anos “não foi nada comparado com o que está nos autos”, resultando que a testemunha pretendeu fazer crer que os episódios relevantes foram aqueles que gravou, na altura da Feira de Faro, e onde ouviu o pai a bater na mãe, em duas vezes distintas, negando qualquer estado de agressividade permanente ou frequente por parte do pai. Sendo que nessa diligência processual se procedeu à leitura das declarações que EE havia prestado anteriormente, a mesma negou que o ali declarado fosse verdade, mantendo que só em duas ocasiões, que explicou, o pai a agrediu fisicamente. No entanto, no decurso do seu depoimento, e de forma descritiva e pormenorizada, veio a descrever mais uma situação de agressão, bem como veio a descrever outros comportamentos assumidos pelo seu pai. Atente-se que se podemos colocar algumas reservas quanto à total veracidade do declarado é por defeito e nunca por excesso, sendo claro que a EE pretendeu desculpabilizar os comportamentos do pai e, tal como a sua mãe, pretende voltar a retomar a vida como era antes da sua detenção. O Tribunal atendeu também aos documentos que constam dos autos, ainda que não se tenha procedido à sua leitura, uma vez que do conhecimento de todos os sujeitos processuais e submetidas a contraditório, tendo-se também valorado os exames periciais às armas que constituem objeto do processo. Assim: Relativamente aos pontos 1 a 3 dos factos provados, o Tribunal atendeu ao declarado quer pelo arguido quer por DD, atendendo também ao documento de fls. 178, e ainda ao declarado por EE quanto aos seus elementos de identificação. No que concerne aos pontos 4 e 5 considerados provados resultou do declarado pelo arguido e pelas testemunhas FF, CC e BB, resultando, no que a esta última se refere, que houve um interregno no período de coabitação, mas a que não se fez referência porquanto não assume qualquer relevância. Para considerar provado o constante do ponto 6, atendeu-se às declarações de FF. Sendo certo que a testemunha não confirmou a verificação de outras condutas que vinham imputadas ao arguido, e tal não obstante, como referimos supra, ter sido evidente que a testemunha pode, de forma intencional, não ter de descrito ao Tribunal todas as situações que presenciou, na ausência de qualquer outro meio de prova, esta é a única realidade que o Tribunal pode dar como provada, até porque as demais pessoas que poderiam esclarecer estes factos, arguido DD, negam a sua verificação. Já o feito constar no ponto 7 considerado provado, pese embora o arguido negar a sua prática e DD admitir o verbalizar mútuo, em contexto de discussões, de algumas expressões como parvo, parvalhona, estúpida/o, dos testemunhos prestados por CC e BB resultou claro e transparente que estas não eram expressões proferidas de forma mútua, mas sim dirigidas pelo arguido à companheira de forma a humilhá-la. Sendo certo que as testemunhas foram incapazes de concretizar o número de vezes em que as situações de violência verbal ocorreram e foram por si presenciadas, foi evidente, da conjugação dos dois depoimentos que as discussões ocorriam com uma frequência a mínima de uma vez por semana, nelas sendo proferidas as expressões que resultaram provadas. Resultando que existem períodos de tempo que as testemunhas BB e CC residiram simultaneamente com o casal, da conjugação dos seus depoimentos resulta que existiram diversas situações que apenas foram presenciadas por um deles, até porque não estavam sempre em casa, pelo que nenhuma perplexidade nos causou a circunstância de descreverem específicas situações que o outro não presenciou. No que se refere ao provado no ponto 8, há que atentar que do depoimento de BB não resultou que tivesse visualizado qualquer ato de agressão física que fosse praticado pelo seu pai contra a companheira, no entanto resultou que, em plúrimas vezes, ouviu os gritos de ambos no quarto do casal, ouvindo a madrasta gritar para ele a largar que a estava a magoar, sendo que, se DD nunca contava o que sucedia, alguns dias depois destas discussões visualizava hematomas nos seus braços. E, atente-se que também CC no seu depoimento declarou que também presenciou estas situações. É certo que as testemunhas não viram o que sucedeu no interior do quarto de casal, mas a idade que as mesmas tinham àquela data já permitia uma avaliação mais objetiva do que ouviam, sendo evidente que o seu depoimento é no sentido do que sucedia era violento e não uma brincadeira. As regras da experiência, aliadas aos factos que viremos a considerar provados infra quanto à ocorrência de agressões físicas, não podem senão determinar que consideremos que se DD gritava para que o arguido a largasse, que a estava a magoar e apresentava, nos dias seguintes, hematomas nos braços, foi porque o arguido, de forma intencional, a magoou fisicamente. Sendo que o depoimento das testemunhas é no sentido de que estas situações ocorreram diversas vezes, apelando a uma pluralidade, a que o libelo acusatório também concretizou, teremos que considerar como provado que tal sucedeu pelo menos duas vezes, uma vez que a indefinição não poderá prejudicar o arguido. Já o considerado provado sob o ponto 9 resultou do depoimento prestado por BB. Mostrando-se assertiva quanto ao que presenciou, o Tribunal não poderia deixar de dar-lhe credibilidade, sendo que as explicações que arguido e DD deram para esta situação são mais compatíveis com um qualquer filme de animação ou comédia. Segundo o arguido e a companheira o sucedido não passou de acidente, indo o arguido deitar fora o esparguete, que cozinhou mal, quando tropeçou ou escorregou, saltando a panela no ar e a comida caindo, segundo o arguido para cima dos dois, segundo a testemunha atingindo-a a si. Estas versões são incompatíveis, mas perante o que vimos dizendo estamos convictos que é a versão de BB que deve merecer credibilidade, sendo que a testemunha não teve qualquer dúvida de que a comida foi despejada por cima da cabeça. Os factos vertidos nos pontos 10, 11 e 14 considerados provados resultou das declarações espontâneas de CC, sendo que nada coloca em causa a sua credibilidade. O descrito nos pontos 12 e 13 considerados provados resultou do depoimento da testemunha CC, que descreveu a situação, incluindo o ter visto sangue no braço que o pai tinha encostado à face de DD. Sendo que o arguido pretendeu fazer crer que esta situação foi efabulada pelo filho, porque o cabelo da DD, que estava com a cabeça no seu colo prendeu-se por acidente e ele pretendia soltá-lo, estas declarações mais não são do que uma tentativa de se desresponsabilizar, sendo evidente que o arguido não assume nenhuma das suas condutas, apenas tentando, com o auxílio da sua companheira, colocar em causa a credibilidade dos seus filhos, fazendo ataques frágeis mas censuráveis à sua idoneidade e mesmo sanidade mental – vide o requerimento de fls. 954 a 956 subscrito por DD, em alguns segmentos repetido no depoimento que prestou em audiência de julgamento. O vertido nos pontos 15 e 16 foi considerado provado com base no testemunho espontâneo e credível de CC, sendo que, como resulta do depoimento deste e da sua irmã, o estado de alcoolismo do arguido ter-se-á agravado em 2019, altura em que a ingestão de um só copo de bebida já alterava o seu estado comportamental. Como refere CC era percetível quando o pai estava alcoolizado, até porque arrastava a voz e exalava odor a álcool, o que também sucedeu neste dia. Novamente a explicação alternativa do arguido, e da companheira, não logrou convencer-nos, sendo que esta negação permanente da existência de um problema de consumo abusivo de bebidas alcoólicas se mostra completamente inverosímil, até porque, como resulta do documento junto a fls. 947, o arguido, aquando do cumprimento de prisão preventiva, frequentou consulta médica nesse espectro clínico. No que se refere aos factos considerados provados sob os pontos 17 a 23, o Tribunal atendeu à conjugação dos depoimentos de EE, em sede de declarações para memória futura, da testemunha DD e das declarações do arguido. Sendo que o arguido assume que na Feira se deu uma discussão com a companheira porque a mesma, injustamente e em público, o acusou de ter bebido, tendo a discussão continuado na residência, as transcrições das conversas que mantiveram não correspondem à verdade porque ou adulteradas ou até descontextualizadas. Também DD assumiu a verificação da discussão mas ainda referindo que até acusou o companheiro de ter ingerido bebias alcoólicas sem que tal correspondesse à verdade. Sendo que esta declaração da testemunha não pode merecer qualquer credibilidade, por totalmente despropositada e desrazoável – “acusa-se” alguém de ter ingerido bebidas alcoólicas quando tal não corresponde à verdade? -, apenas visando convencer o Tribunal que o arguido não consome bebidas alcoólicas de forma excessiva, a testemunha EE mostrou-se, neste segmento fáctico, segura e sem hesitações, certamente porque consciente de que tinha gravado, e remetido à sua irmã BBnão só as discussões ocorridas no fim de semana da Feira, mas também a discussão que ocorreu alguns dias depois. E não só a testemunha confirmou que realizou três gravações da discussão que se deu após a vinda da Feira, como declarou ter ouvido os sons compatíveis com as agressões físicas e a voz da mãe a referir a sua ocorrência, vendo, após as duas discussões, vermelhões no pescoço da mãe. Sabendo-se, por esta última testemunha, que foram gravados 5 áudios, sendo dois da última testemunha, estes foram remetidos para a testemunha BB, como esta o declarou, sendo que foram do extraídos do seu telemóvel, pelo que, não se poderá atender à data que constam nos autos de transcrição, uma vez que poderão corresponder à data de receção e não à data da gravação. A audição das gravações permite denotar a violência, o desespero na voz de DD, o riso do arguido, a quebra de objetos, os barulhos compatíveis com agressões, os choros, o desespero quer de DD quer de EE, sendo que a intenção do arguido e de DD de nos fazerem crer que houve alterações nas gravações ou de que estas são uma encenação não são credíveis, mas sim uma tentativa, inútil e fracassada, de iludir o Tribunal. Atente-se que o Tribunal valorou essas gravações, cuja transcrição consta nos autos, porquanto, tal como já em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, se considerou que as mesmas não constituem qualquer meio de prova proibido, pois que o autor da gravação, ainda que não tenha a autorização do titular do direito à palavra e à sua transitoriedade, realiza a gravação com vista à demonstração dos factos com relevância criminal – neste sentido Ac. do Tribunal da Relação do Porto, processo n.º 308/16.3GAVFR.P2, de 24/9/2020). Foi igualmente fundado nas declarações de EE que se considerou provado o seu estado de espírito aquando da audição destas discussões, bem como o considerado provado no ponto 25, sendo que este receio que sentia foi, por via das suas declarações, restringido em consequência dos factos ocorridos em outubro/novembro de 2021, não resultando das suas declarações que o medo e receio fossem em relação à sua própria pessoa mas sim em relação à sua mãe, até porque, como a testemunha declarou, foi este receio que a levou a partilhar as gravações com a irmã. Também do depoimento de BB resultou que as confidências da irmã revelavam preocupação para com a mãe, nunca tendo percecionado quaisquer sentimentos de insegurança, medo, pânico da própria em relação ao pai. Já o vertido no ponto 24 foi considerado provado pela valoração da mensagem de texto transcrita a fls. 89. Sendo que esta mensagem foi transcrita do telemóvel de BB, a análise das comunicações contidas no telemóvel do arguido – vide fls. 303 e ss. – permitem concluir que o número do remetente é aquele que se encontra registado no telemóvel do arguido como sendo o da sua filha. Resultando dos depoimentos de BB, CC e EE que esta última comunicava aos irmãos o que sucedia no relacionamento dos pais, ao nível das discussões existentes, não podemos deixar de inferir que se esta remeteu a mensagem a dar conta da situação foi porque, pelo menos, ouviu esta situação a ocorrer, embora se desconheça se a visualizou ou se alguma faca foi manuseada. Relativamente aos factos provados de 26 a 31, os mesmos fundam-se essencialmente nas declarações de EE em sede de declarações para memória futura. Como já referido supra se o depoimento desta não nos mereceu inteira credibilidade foi por ser percetível que a mesma estava a ocultar factos de que tinha conhecimento, sendo patente um discurso de proteção em relação ao progenitor. Sendo que o arguido assume um episódio que poderá ser o vertido em 29., contextualizando como um ato de desespero na sequência do desaparecimento da filha numa ida à praia, já as duas outras situações contextualiza-as n mesmo espaço de tempo e lugar mas com contornos distintos, quase como sendo uns meros toques quase ou mesmo acidentais, o que não nos logra convencer. Efetivamente, não podemos deixar de dar inteira credibilidade ao depoimento de EE, e considerar assim provada a factualidade que a mesma de forma clara e coerente imputa ao pai. O considerado provado em 32 resultou do declarado por EE, a quem, pelos motivos já sobejamente explicitados, concedemos credibilidade. Já o constante do ponto 33 resultou também do depoimento daquela, tendo a testemunha explicado que esta era uma brincadeira do seu pai, mas que a achou menos apropriada, sendo que a testemunha CC também referiu que esta conduta do pai não era mais do que uma brincadeira, não resultando dos depoimentos que da mesma resultasse qualquer dano para a saúde ou integridade física da EE ou mesmo uma situação similar a um afogamento. Já o referido nos pontos 34 e 35 considerados provados resulta da valoração do depoimento de EE em sede de declarações para memória futura, sendo que, mesmo não admitindo o arguido os factos descritos no ponto 35, e contextualizando o constante de 34. em termos tais que determinou que considerássemos não provado o demais que na acusação vinha descrito, não se pode deixar de considerar credível o declarado pela testemunha, pelos motivos já aduzidos supra. O considerado no ponto 36 resultou dos depoimentos de BB e EE, resultando que foram os sentimentos que a menor vivenciou na sequência das duas discussões descritas supra na sequência dos acontecimentos da Feira de Santa Iria, que determinaram que a menor viesse a autoinfligir os cortes que estão retratados nas fotografias de fls. 273 a 283 dos autos. No entanto, a testemunha também declarou que não só estes acontecimentos determinaram esta ocorrência como também outras circunstâncias o determinaram, sendo que, quando prestou declarações, a mesma se recusou a esclarecer de forma mais pormenorizada o sucedido. Para considerar provado o constante do ponto 37 atendeu-se ao declarado por BB, que o declarou porquanto foi a si que a questão foi colocada, num contexto de preocupação para com a mãe. Já o constante do ponto 38 considerado provado resultou da valoração do auto de busca e apreensão, devidamente acompanhado da respetiva reportagem fotográfica, constante de fls. 202 e ss., sendo que as concretas características desses objetos resulta da valoração dos exames periciais constantes de fls. 580 a 585 dos autos. Para prova do considerado provado de 39 a 44, o tribunal atendeu aos factos objetivos considerados provados, inferindo-se a sua verificação, até porque tal se impõe por regras de experiência. De atentar sendo aqueles elementos internos da consciência do agente, os mesmos podem inferir-se de presunções naturais ou regras de experiência, resultando claro que quem atua da forma como se considerou provado pretende atingir aquele resultado, sendo que não se poderá olvidar que a consciência da ilicitude resulta implícita dos próprios factos porquanto é do conhecimento geral que os mesmos são proibidos (neste sentido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/10/92, in www.dgsi.pt). Relativamente ao constante do ponto 43 considerado provado, impõe-se referir que o Tribunal não concedeu qualquer credibilidade ao arguido quando declarou que apenas detinha de forma provisória e precária os objetos, porquanto os mesmos eram propriedade da Polícia Judiciária, tendo-os trazido para casa por desconhecimento apenas tendo-se demorado a devolvê-los, o que sempre foi a sua intenção. Não poderia o tribunal acreditar nesta justificação, e tal por vários motivos. Deparamo-nos perante armas, pelo que se as mesmas fossem pertença da Polícia Judiciária deveria existir um registo, sendo que a circunstância de uma apreensão não poder ser imputada a um agente concreto não determina que não se lavre o competente auto ou que exista um registo de que uma arma foi encontrada e deu entrada nas instalações policiais. Mas, ainda que considerássemos possível a falta de rigor na instituição ou dos seus funcionários, se o arguido tivesse transportado as armas para a residência por o desconhecer, por terem sido acondicionadas por terceiro, e sempre pretendendo devolver as mesmas, porque as teria em três locais distintos da residência, guardadas misturadas com tantos outros objetos de sua propriedade? Não colhe… o auto de busca é claro e as fotografias da reportagem fotográfica mais ainda, demonstrando que estes objetos não mereceram um tratamento de tratamento de bem alheio. Assim, estamos em crer que o arguido, sabendo das características destes objetos e da ilicitude da sua detenção, era o seu proprietário. Relativamente aos factos atinentes às suas condições pessoais e antecedentes criminais, atendeu-se ao bem fundamentado relatório da DGRSP, também corroborado nalguns pontos pelo declarado pelo arguido e por DD, bem como pelas demais testemunhas, bem como se atendeu ao teor do seu certificado de registo criminal. Relativamente aos factos não provados, tal resultou de não ter sido feita prova da sua ocorrência, porquanto à sua verificação ninguém se referiu, ou por ter resultado como provado que ocorreram de forma distinta ou com distinta abrangência temporal, ou mesmo porque dos depoimentos resultou que os factos não ocorreram, sendo de consignar que pese embora se tenham considerados como não provados factos onde se imputavam agressões físicas ou a verbalização de expressões ofensivas da honra, os mesmos encontravam-se descritos como sendo factos ocorridos em momentos temporais distintos dos que resultaram provados, inexistindo qualquer contradição entre uns e outros. De atentar que se decidiu não fazer constar dos factos provados/não provados quaisquer alegações/imputações genéricas ou conclusivas, bem como se decidiu não tomar em consideração as referências a meios de prova, como considerámos as transcrições das gravações nos segmentos onde se aludia às verbalizações de DD (pontos 52, 54, 55, 59, 60 da acusação para a qual remeteu o despacho de pronúncia), bem como o descrito nos pontos 37, 44, 46 da acusação.» û Conhecendo.«O ato de julgar é do Tribunal, e tal ato tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção. Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objetivos para uma formação lógico-intuitiva. Como ensina Figueiredo Dias (in Lições de Direito Processual Penal, 135 e ss.) na formação da convicção haverá que ter em conta o seguinte: - a recolha de elementos – dados objetivos – sobre a existência ou inexistência dos factos e situações que relevam para a sentença, dá-se com a produção da prova em audiência; - sobre esses dados recai a apreciação do Tribunal – que é livre, art.º 127.º do Código de Processo Penal – mas não arbitrária, porque motivada e controlável, condicionada pelo princípio da persecução da verdade material; - a liberdade da convicção, aproxima-se da intimidade, no sentido de que o conhecimento ou apreensão dos factos e dos acontecimentos não é absoluto, mas tem como primeira limitação a capacidade do conhecimento humano, e portanto, como a lei faz refletir, segundo as regras da experiência humana; - assim, a convicção assenta na verdade prático-jurídica, mas pessoal, porque assume papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis- como a intuição. Esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objetivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objetiváveis). Para a operação intelectual contribuem regras, impostas por lei, como sejam as da experiência a perceção da personalidade do depoente (impondo-se por tal a imediação e a oralidade) a da dúvida inultrapassável (conduzindo ao princípio in dubio pro reo). A lei impõe princípios instrumentais e princípios estruturais para formar a convicção. O princípio da oralidade, com os seus corolários da imediação e publicidade da audiência, é instrumental relativamente ao modo de assunção das provas, mas com estreita ligação com o dever de investigação da verdade jurídico-prática e com o da liberdade de convicção; com efeito, só a partir da oralidade e imediação pode o juiz perceber os dados não objetiváveis atinentes com a valoração da prova. A Constituição da República Portuguesa impõe a publicidade da audiência (art.º 206.º) e, consequentemente, o Código Processo Penal pune com a nulidade a falta de publicidade (art.º 321.º); publicidade essa que se estende a todo o processo – a partir da decisão instrutória ou quando a instrução já não possa ser requerida (art.º 86.º), querendo-se que o público assista (art.º 86.º/a); que a comunicação social intervenha com a narração ou reprodução dos atos (art.º 86.º/b)); que se consulte os autos, se obtenha cópias, extratos e certidões (art.º 86.º/c)). Há um controlo comunitário, quer da comunidade jurídica quer da social, para que se dissipem dúvidas quanto à independência e imparcialidade. A oralidade da audiência, que não significa que não se passem a escrito os autos, mas que os intervenientes estejam fisicamente perante o Tribunal (art.º 96.º do Código de Processo Penal), permite ao Tribunal aperceber-se dos traços do depoimento, denunciadores da isenção, imparcialidade e certeza que se revelam por gestos, comoções e emoções, da voz, p. ex.. A imediação que vem definida como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de tal modo que, em conjugação com a oralidade, se obtenha uma perceção própria dos dados que haverão de ser a base da decisão. É pela imediação, também chamado de princípio subjetivo, que se vincula o juiz à perceção à utilização à valoração e credibilidade da prova. A censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objetivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção. Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão.»[[3]] O Tribunal recorrido fixou os factos que considerou como provados e não provados, por referência à acusação apresentada pelo Ministério Publico, e fundamentou, de forma clara e cabal as razões por que assim decidiu. Não é a bondade dessa decisão que, neste momento, nos interessa. É a factualidade fixada que suscita dificuldades relativamente ao número de crimes que, perante ela, é possível imputar ao Arguido AA. O crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º do Código Penal, na sua vertente de ofensas dirigidas ao unido de facto, visa prevenir e reprimir a violência no seio da família, que se considera – e bem – inadequada, grave e perniciosa em termos individuais e coletivos. O recato tradicionalmente associado à família não pode, nem deve, constituir um obstáculo à tutela do direito penal, desde logo por ser menos gravosa que a violência praticada fora dessa esfera – entre familiares e, nomeadamente, entre unidos de facto, existe dever acentuado de respeito cuja violação, pelas consequências que acarreta, exige intervenção. A ratio do indicado tipo de crime não se encontra, no entanto, na proteção da comunidade familiar ou conjugal, mas na proteção da pessoa humana, enquanto membro de um concreto e determinado agregado familiar. E o tipo de crime em questão abarca todos os comportamentos que, de forma reiterada ou não, lesam a dignidade da pessoa humana, que se revelam em maus tratos físicos ou psíquicos, abrangendo, as ofensas corporais, os castigos corporais, as ameaças, as humilhações, as provocações, as pequenas privações de liberdade e de movimentos e as ofensas de cariz sexual. O bem jurídico protegido é plural e complexo, visando essencialmente a saúde – física e psíquica e/ou mental –, mas não deixando de incluir a proteção da dignidade humana, no âmbito de uma específica relação interpessoal. A reiteração de comportamentos que podem integrar a prática do crime de violência doméstica coloca a questão – comum a outros tipos legais (v.g. crimes sexuais, de tráfico de droga, de lenocínio) –, inegavelmente difícil, de proceder à contagem do número de crimes. «A doutrina e a jurisprudência têm resolvido este problema, de contagem do número de crimes, que de outro modo seria quase insolúvel, falando em crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, em que se convenciona que há só um crime – apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas, constituiriam um crime - tanto mais grave [no quadro da sua moldura penal] quanto mais repetido. Ao contrário do crime continuado [cuja inserção doutrinária também nasceu, entre outras razões, da dificuldade em contar o número de crimes individualmente cometidos ao longo de um certo período de tempo], nos crimes prolongados não há uma diminuição considerável da culpa, mas, antes em regra, um seu progressivo agravamento à medida que se reitera a conduta [ou, em caso de eventual “diminuição da culpa pelo facto”, um aumento da culpa enquanto negligência na formação da personalidade ou de perigosidade censurável”]. Na verdade, não se vê que diminuição possa existir no caso, por exemplo, do abuso sexual de criança, por atos que se sucederam no tempo, em que, pelo contrário, a gravidade da ilicitude e da culpa se acentua [ou, pelo menos, se mantém estável] à medida que os atos se repetem. O que, eventualmente, se exigirá para existir um crime prolongado ou de trato sucessivo será como que uma “unidade resolutiva”, realidade que se não deve confundir com “uma única resolução”, pois que, “para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua atividade sem ter de renovar o respetivo processo de motivação” (Eduardo Correia, 1968: 201 e 202, citado no “Código Penal anotado” de P. P. Albuquerque). Para além disso, deverá haver uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga no tempo, em que os tipos de ilícito, individualmente considerados são os mesmos, ou, se diferentes, protegem essencialmente um bem jurídico semelhante, sendo que, no caso dos crimes contra as pessoas, a vítima tem de ser a mesma.»[[4]] De forma pacífica, o crime de violência doméstica – quando ocorre prática reiterada - tem sido doutrinalmente definido como crime habitual. «Crimes habituais são aqueles em que a realização do tipo incriminador supõe que o agente pratique determinado comportamento de forma reiterada, até ao ponto de ela poder dizer-se habitual».[[5]] «O crime habitual, no sentido que à expressão confere a atual legislação, é um crime em que a consumação se protrai no tempo (dura) por força da prática de uma multiplicidade de atos “reiterados". Que a persistência temporal na consumação se não dá mediante a prática de um só ato, mas de uma multiplicidade deles - eis o que distingue o crime habitual do crime permanente; que os atos que vão consumando o crime são, não sucessivos, mas reiterados - eis o que distingue o crime habitual do crime contínuo. O ponto central da definição do crime habitual é, por isso, o que deve entender-se por "atos reiterados". (...) Apenas se pode admitir a "consumação por atos reiterados" (um crime habitual) em casos especiais – o mesmo é dizer, nos casos e termos em que isso é expressamente possibilitado pelo tipo de crime. (...) Como a doutrina indica, os crimes "habituais" (seja qual for o entendimento a dar à "habitualidade" do crime, o mesmo é dizer, à "reiteração" dos atos de que se compõe) correspondem a casos especiais em que a estrutura do facto criminoso se apresenta ou, pelo menos, pode apresentar mais complexa do que habitualmente sucede e se desdobra numa multiplicidade de atos semelhantes que se vão praticando ao longo do tempo, mediante intervalos entre eles.»[[6]] A tutela do direito penal, face ao disposto no n.º 1 do artigo 30.º do respetivo compêndio, reporta-se, por regra, a atos isolados, dando origem a que cada ato configure um crime autónomo. Situações ocorrem, no entanto, em que se impõe prevenir acontecimentos distintos. Para o que se configuraram, doutrinariamente, construções tendentes a punir num mesmo crime variados atos de execução de um ou de distintos tipos consagrados na lei. No artigo 119.º do Código Penal, que se reporta ao início do prazo de prescrição do procedimento criminal, acolheram-se algumas das referidas construções – as do crime permanente [na alínea a) do seu n.º 2], do crime continuado [na alínea b) do seu n.º 2], do crime habitual [na alínea b) do seu n.º 2]. E no n.º 3 do artigo 19.º do Código de Processo Penal reconhecem-se os crimes que se consumam por atos sucessivos ou reiterados, também designados por crimes prolongados, de trato sucessivo ou exauridos. Os crimes habituais não podem deixar de se considerar como “modalidade” dos crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo. E em crimes desta natureza, a incidência do tempo na unidade resolutiva que os caracteriza «não pode deixar de se tomar em apreço, e até comprometê-la mesmo, se decorrer um largo hiato de tempo entre as múltiplas condutas (…). É decisiva a conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente e que funda o critério de definição da unidade ou pluralidade de infrações , escreve o Prof. Eduardo Correia , in Unidade e Pluralidade de Infrações , pág.96 . A pluralidade de atos, prossegue aquele penalista , in op. cit. , pág. 97 , só não determina uma pluralidade de ações típicas na medida em que cada uma delas exprime um puro explodir ou “ déclancher “, mais ou menos automático , da carga volitiva correspondente ao projeto criminoso inicial , ensinando as regras da psicologia que se entre os factos medeia um largo espaço de tempo os últimos da cadeia respetiva já não são a mera descarga dos primeiros, exigindo um novo processo deliberativo.»[[7]] Neste mesmo sentido, e mais recentemente se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça – acórdão citado na nota de rodapé 4 –, ao considerar que «a interrupção dos atos criminosos durante um ano não autoriza a sua unificação». Posto isto, e quanto aos crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, - é seu requisito processual que o tipo incriminador suponha ou preveja a reiteração e que esta revele uma persistência da resolução criminosa, encerrando uma culpa agravada, que será medida de acordo com o número de condutas e respetiva ilicitude; - são seus requisitos substantivos positivos a homogeneidade da conduta do agente, a sua repetição no tempo, a violação do mesmo tipo de crime ou de tipos que protegem o mesmo bem jurídico e, em caso de crimes contra as pessoas, a identidade da vítima; - é seu requisito substantivo negativo a ocorrência de hiato ou hiatos significativos de tempo entre as diversas condutas, de tal forma que coloquem em crise, no âmbito da apreciação dos factos, que a repetição das condutas se deva a uma efetiva tendência ou hábito de vontade criminosa do agente. E quanto ao crime de violência doméstica – na sua vertente de ofensas dirigidas ao unido de facto, de forma reiterada –, não resta senão concluir que, enquanto crime de reiteração, abrange a prática de uma multiplicidade de condutas, reiteradas (e não sucessivas) ao longo de determinado período de tempo (sem hiatos significativos), que se praticaram na pessoa do cônjuge, ainda que de natureza diversa, desde que todas elas se tenham reportado a maus tratos, físicos ou psíquicos. Com o que se pretende acentuar, convocando as palavras de Plácido Conde Fernandes que «É o estado de agressão permanente que permite concluir pelo exercício de uma relação de domínio ou de poder, proporcionada pelo âmbito familiar ou quase-familiar, deixando a vítima sem defesa numa situação humanamente degradante.»[[8]] Lida a matéria de facto constante do acórdão recorrido, a conduta do Arguido, considerada como crime na 1.ª Instância, ocorreu (i) no período compreendido entre 2004 e 2012 [factos constantes dos pontos 4) a 14)], (ii) no Verão de 2020 [factos constantes dos pontos 15 e 16], e (iii) entre 23 e 24 de outubro e o início do mês de novembro de 2021 [factos constantes dos pontos 17 a 22]. Considerando os lapsos de tempo que decorreram entre 2012, o Verão de 2020 e o final de outubro/início de novembro de 2021, não nos resta senão considerar que são significativos e que impedem a unificação das condutas do Arguido descritas como provadas nos pontos 4) a 14), 15) e 16) e 17) a 22). Pelo que tais factos integram a prática de três crimes e não de um único crime. No acórdão recorrido, os Senhores Juízes que o subscreveram limitaram-se a considerações genéricas sobre a previsão do artigo 152.º do Código Penal e à afirmação da prática de um crime de violência doméstica. Não tendo abordado o problema que se acabou de enunciar, temos de admitir que a 1.ª Instância não o vislumbrou. E que foi omitida pronúncia. Recorde-se que a omissão de pronúncia, reportando-se a questões que o Juiz deve apreciar, inclui todas aquelas que os sujeitos processuais interessados submetam à apreciação do Tribunal, e as que sejam de conhecimento oficioso, isto é, de que o Tribunal deva conhecer independentemente de alegação e do conteúdo concreto da questão controvertida, quer digam respeito à relação material, quer à relação processual. A omissão de pronúncia acarreta a nulidade do acórdão – artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal. Concretamente, a sua invalidade e a invalidade de todos os atos a ele subsequentes. Nulidade que se revela insuscetível de correção, nesta Relação, porque impõe o cumprimento prévio do disposto no n.º 3 do artigo 358.º do Código de Processo Penal – comunicação de alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na pronúncia], acarretando, ainda, que fique prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas pelo Recorrente. Por fim, com o estrito propósito de auxiliar no entendimento da decisão acabada de proferir e de colaborar na boa decisão da causa, cumpre referir: (i) Que a proibição da reformatio in pejus vale também para os casos em que se procede a novo julgamento, por anulação do primeiro decretada por Tribunal Superior, em recurso interposto apenas pelo arguido – ou também pelo Ministério Público, mas apenas em benefício daquele –, não podendo, assim, o Tribunal de 1.ª Instância agravar a situação do arguido recorrente Neste sentido, podem consultar-se, entre vários outros, os acórdãos - do Tribunal Constitucional n.º 502/2007, de 10 de outubro de 2007; - do Tribunal da Relação de Coimbra, de 29 de fevereiro de 2012, proferido no processo n.º 896/11.0PAMGR.C1; - do Tribunal da Relação de Lisboa, de 22 de maio de 2012, proferido no processo n.º 611/09.9PDOER.L2-5; - do Tribunal da Relação de Coimbra, de 20 de junho de 2012, proferido no processo n.º 325/07.4GCVIS.C2; - do Supremo Tribunal de Justiça, de 11 de outubro de 2012, in Coletânea de Jurisprudência – Acórdãos do STJ, Ano XX, Tomo III, página 199; - do Tribunal da Relação do Porto, de 14 de maio de 2014, proferido no processo n.º 158/10.0GBLMG.P2; - do Tribunal da Relação de Évora, de 2 de junho de 2015, proferido no processo n.º 2411/09.7GBABF.E2; - do Tribunal da Relação de Lisboa, de 14 de maio de 2019, proferido no processo n.º 2507/09.5TASXL.L2-5; - do Tribunal da Relação de Lisboa, de 8 de outubro de 2019, proferido no processo n.º 700/16.3PHLRS.L2-5; - do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11 de outubro de 2022, proferido no processo 232/20.5PCLSB-L2-5, todos acessíveis em www.dgsi.pt (ii) Considerando o período em que FF, CC e BB residiram com o Arguido e DD, os factos descritos, como provados, nos pontos 6), 8), 9), 10), 11) 12), 13) e 14), suscitam alguma perplexidade. Porque da previsão do artigo 152.º do Código Penal resulta que «a exigência de uma delimitação factual que permita a subsunção àqueles conceitos genéricos é uma preocupação quotidiana de quem acusa, defende e julga, que não pode ser desvirtuada por abusivas e, portanto, inaceitáveis, generalizações. (…) em termos práticos, maus-tratos significa o exercício de violência. Mas o conceito necessita de ser escalpelizado e tem sido intensamente objeto de análise na jurisprudência e doutrina, considerando os problemas que suscita em termos de definição do tipo e repetição de atos de violência praticados. “O tipo apresenta-se assim deliberadamente fragmentário, no que respeita à definição das condutas penalmente relevantes, pois prescreve na realidade que não são todos os maus-tratos que são passíveis de ativar a reação penal, mas tão só aqueles infligidos de modo intenso ou reiterado. “… a comissão de crime de maus-tratos a cônjuge implica a prática reiterada ou minimamente repetida de atos de violência, ou a prática de uma conduta violenta singular, desde que a mesma se revista de específicos foros de gravidade”.» [[9]] Assim, neste tipo de crimes onde a reiteração e intensidade do agir humano está no centro da definição de um tipo penal muito amplo (maus-tratos, violência doméstica, tráfico de droga), a precisa indicação e concretude dos factos necessários à integração no tipo é elemento essencial do julgamento. E é, na sequência, o cerne do direito de defesa. Se a alegação factual – em qualquer imputação penal - não pode ser facilitada pelo uso de formas gerais, imprecisas, sem individualização de cada um dos factos, com utilização de fórmulas “vagas, imprecisas, nebulosas, difusas, obscuras”, neste tipo de crime a exigência é muito maior dada a amplitude do tipo penal. Aliás, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça neste campo é clara e insofismável, quer a propósito do crime de tráfico de droga, quer a propósito de crimes de maus-tratos e violência doméstica, sempre onde se pretende ultrapassar a dificuldade de prova de múltiplos factos pela imputação genérica e, logo, por presunção. Porque a isso se resume esta prática: acusa-se por presunção factual, pretendendo-se a condenação por presunção factual. Assim, só de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de STJ: 5 - Não são "factos" suscetíveis de sustentar uma condenação penal as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado ("procediam à venda de produtos estupefacientes", "essas vendas eram feitas por todos e qualquer um dos arguidos", "a um número indeterminado de pessoas consumidoras de heroína e cocaína", "utilizavam também "correios", "utilizavam também crianças", etc.). 6 - As afirmações genéricas, contidas no elenco desses "factos" provados do acórdão recorrido, não são suscetíveis de contradita, pois não se sabe em que locais os citados arguidos venderam os estupefacientes, quando o fizeram, a quem, o que foi efetivamente vendido, se era mesmo heroína ou cocaína, etc. Por isso, a aceitação dessas afirmações como "factos" inviabiliza o direito de defesa que aos mesmos assiste e, assim, constitui uma grave ofensa aos direitos constitucionais previstos no art.º 32º da Constituição - (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-05-2004 - Proc. 04P908, Rel. Cons. Santos Carvalho); I - O princípio ou cláusula geral estabelecido no n.º 1 do art.º 32.º da CRP significa, ao aludir a todas as garantias de defesa, que ao arguido, como sujeito processual, devem ser assegurados todos os direitos, mecanismos e instrumentos necessários e adequados para que possa, em plena liberdade da vontade, defender-se, designadamente para que possa contrariar a acusação ou a pronúncia, através de um julgamento imparcial, realizado com total independência do juiz, em procedimento leal e justo, sendo certo que a individualização e clareza dos factos objeto do processo são indispensáveis para que o arguido possa valida e eficazmente contraditar a acusação ou a pronúncia, única forma de se poder defender - (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21-02-2007 - Proc. 06P4341, rel. Cons. Oliveira Mendes); VI – Não se podem considerar como “factos” as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado, pois a aceitação dessas afirmações para efeitos penais inviabiliza o direito de defesa e, assim, constitui uma grave ofensa aos direitos constitucionais previstos no art.º 32.º da Constituição. Por isso, essas imputações genéricas não são “factos” suscetíveis de sustentar uma condenação penal - (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Acórdão do STJ de 15-11-2007 - Proc. 07P3236, rel. Cons. Santos Carvalho); III - Como vem sendo afirmado pela jurisprudência dominante do STJ, as imputações genéricas, designadamente no domínio do tráfico de estupefacientes, sem qualquer especificação das condutas em que se concretizou o aludido comércio e do tempo e lugar em que tal aconteceu, por não serem passíveis de um efetivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado, não podem servir de suporte à qualificação da conduta do agente. IV - Por isso, será de ter por não escrita aquela imputação genérica. (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02-04-2008 (Proc. 07P4197, rel. Cons. Raul Borges); XX - Resultando da matéria de facto apurada apenas que (aqui se excluindo factualidade abrangida por anterior condenação judicial), após 03-11-2003, o arguido, que havia estado preso e voltara a viver com a mulher e as filhas, “continuou a consumir bebidas alcoólicas e, por algumas ocasiões, em datas não apuradas”, agrediu aquela “com bofetadas” e que com “frequência era chamada a Polícia àquela residência”, impõe-se concluir que a descrição da conduta do arguido considerada provada se mostra algo indefinida, vaga e genérica, tanto em relação ao tempo e ao lugar da prática dos factos, como relativamente aos próprios factos integradores das agressões e respetivas motivação e consequências, não se encontrando esclarecido o número de ocasiões em que tal ocorreu, a quantidade de bofetadas em causa ou qualquer elemento relativo à forma e intensidade como foram desferidas, ao local do corpo da ofendida atingido e às suas consequências, em termos de lesões corporais ou de efeitos psíquicos, também se desconhecendo, além do contexto de consumo de álcool, a motivação da conduta em causa, sendo certo que não se encontra assente qualquer facto integrador do elemento subjetivo constitutivo do tipo legal. XXI - Esta imprecisão da matéria de facto provada colide com o direito ao contraditório, enquanto parte integrante do direito de defesa do arguido, constitucionalmente consagrado, traduzindo aquela uma mera imputação genérica, que a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem entendido ser insuscetível de sustentar uma condenação penal – cf. Acs. De 06-05-2004, Proc. N.º 908/04 - 5.ª, de 04-05-2005, Proc. N.º 889/05, de 07-12-2005, Proc. N.º 2945/05, de 06-07-2006, Proc. N.º 1924/06 - 5.ª, de 14-09-2006, Proc. N.º 2421/06 - 5.ª, de 24-01-2007, Proc. N.º 3647/06 - 3.ª, de 21-02-2007, Procs. N.ºs 4341/06 - 3.ª e 3932/06 - 3.ª, de 16-05-2007, Proc. N.º 1239/07 - 3.ª, de 15-11-2007, Proc. N.º 3236/07 - 5.ª, e de 02-04-2008, Proc. N.º 4197/07 - 3.ª. (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02-07-2008 - Proc. 07P3861, Rel. Cons. Raul Borges).»[[10]] III. DECISÃO Em face do exposto e concluindo, decide-se - declarar a nulidade do acórdão proferido e a invalidade de todos os atos a ele subsequentes; - determinar, nos termos e para os efeitos acima referidos, que o Tribunal de 1.ª Instância se pronuncie quanto ao número de crimes cometidos pelo Arguido AA e, sendo disso caso, seja dado prévio cumprimento ao disposto no artigo 358.º, n.º 3 do Código de Processo Penal. Sem tributação. û Évora, 2023 junho 6Ana Luísa Teixeira Neves Bacelar Cruz
Renato Amorim Damas Barroso Maria de Fátima Cardoso Bernardes _______________________________ [1] ] Publicado no Diário da República de 28 de dezembro de 1995, na 1ª Série A. |