Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
837/14.3T8LLE-F.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: EXECUÇÃO DE DECISÃO ESTRANGEIRA
LIQUIDAÇÃO DO CRÉDITO
Data do Acordão: 09/26/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1. A dívida é líquida quando esteja avaliada em dinheiro ou quando o título contenha todos os elementos necessários para essa ponderação.
2. Se o título for uma sentença, a respectiva interpretação tem de fazer-se de acordo com o que tiver sido articulado na acção e na fase executiva .
3. A liquidação pode fazer uso de informações posteriores relativamente à taxa de juro hipotecária fixada mensalmente por uma determinada instituição bancária.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo nº 837/14.3T8LLE-F.E1
Tribunal da Comarca de Faro – Juízo de Execução de Loulé – J1
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Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
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I – Relatório:
Na presente execução proposta por (…) e (…) contra “(…) – (…), Tecnologia, Construções, Lda.” e (…) foi interposto recurso do despacho proferido a fls. 598 a 600 dos autos.
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O título executivo apresentado à execução é uma sentença proferida pelo Tribunal de Ontário (General Division), no Canadá, datada de 20/04/1998, a qual foi revista por acórdão do Tribunal da Relação de Évora.
Nos termos dessa decisão a primeira requerida foi condenada a pagar ao primeiro requerente e mulher a quantia de CND$ 2.657.561,00 (dois milhões, seiscentos e cinquenta e sete mil e quinhentos e sessenta e um dólares canadianos), a qual inclui os juros vencidos até 20 de Abril de 1998, acrescida de juros vincendos após essa data, calculados à taxa de 16,5%, computados, anualmente, até à data do pagamento.
A primeira requerida foi ainda condenada a pagar ao segundo requerente e mulher a quantia de CND$ 1.753.053,00 (um milhão, setecentos e cinquenta e três mil e cinquenta e três dólares canadianos), a qual inclui os juros vencidos até 20 de Abril de 1998, acrescida de juros vincendos após essa data, calculados à taxa de juro hipotecária fixada mensalmente pelo Banque National de Paris (Canadá) no seu balcão principal em Toronto, Canadá, até à data de pagamento.
Foi ainda condenada a pagar aos requerentes a quantia de CDN$ 20.000,00 (vinte mil dólares canadianos), a título de reembolso de custas de parte, a qual vence juros de 6% ao ano até integral pagamento.
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Os exequentes são titulares de hipoteca sobre um lote de terreno para construção sito em Vilamoura, que foi adquirido pela exequente (…).
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No despacho recorrido foi decidido que os elementos a ter em conta na liquidação a efectuar em fase posterior. De igual modo, o Tribunal determinou que o exequente juntasse aos autos determinados elementos necessários à boa elaboração daquela operação. Mais se decidiu que a execução prosseguiria os seus termos e que a suspensão da mesma ficaria condicionada à realização de um depósito.
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Na sequência da prolação do despacho recorrido os exequentes vieram juntar documentação emitida pelo BNP Paribas (Toronto) relativa à lista de taxa de juros aplicáveis à segunda parcela acima identificada.
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Foi efectuada liquidação com base na documentação facultada pelo BNP Paribas.
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Inconformada com tal decisão, a recorrente (…) apresentou recurso de apelação e o articulado de recurso continha as seguintes conclusões:
«1 – O requerimento executivo deveria indicar o valor do capital, a data de vencimento da obrigação e a taxa de juro.
2 – A falta de indicação de tais elementos impossibilita o Tribunal de promover a execução.
3 – Reconhecidas tais omissões deve o Tribunal ordenar, de imediato, a rejeição ou o aperfeiçoamento do requerimento executivo.
4 – O Tribunal não pode fixar arbitrariamente, nem que seja de forma provisória, o valor da quantia executiva.
5 – O douto despacho violou o disposto nos artigos 802º, 805º, 812º e 820º do Código de Processo Civil.
Pelo exposto deve o douto despacho proferido ser revogado e substituído por outro que determine a rejeição ou o aperfeiçoamento imediatos do requerimento executivo, suspendendo-se o processo executivo até esse momento e declarando-se a nulidade dos actos praticados e que estavam dependentes do conhecimento do valor da quantia exequenda».
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A parte contrária contra-alegou onde defendeu o indeferimento do recurso. *
Admitido o recurso, foram observados os vistos legais. *
II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha.
Analisadas as alegações de recurso o thema decidendum está circunscrito à apreciação da alegada errada interpretação do Tribunal recorrido quanto à operação de falta de liquidação prévia efectuada.
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III – Dos factos com interesse para a justa resolução do recurso:
Os factos com interesse para a justa solução da causa são os que constam do relatório inicial.
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IV – Fundamentação:
Toda a execução deverá estar baseada numa obrigação que se revista de certeza, liquidez e exigibilidade [1] [2] [3] [4] [5] [6] [7] [8].
A questão controvertida passa por averiguar se a liquidação da obrigação em discussão depende (ou não) de uma operação de simples cálculo aritmético.
Confrontam-se aqui duas posições antagónicas: a da recorrente que entende que a definição da liquidez teria de processar-se integralmente no requerimento executivo e a do Tribunal «a quo» que sustenta a viabilidade da liquidação ser operacionalizada posteriormente por depender de simples cálculo aritmético.
Sempre que for ilíquida a quantia em dívida, o exequente deve especificar os valores que considera compreendidos na prestação devida e concluir o requerimento executivo com um pedido líquido (artigo 716º, nº 1, do Código de Processo Civil, a que corresponde o artigo 805º do Código de Processo Civil então vigente).
Quando a execução compreenda juros que continuem a vencer-se, a sua liquidação é feita a final, pelo agente de execução, em face do título executivo e dos documentos que o exequente ofereça em conformidade com ele ou, sendo caso disso, em função das taxas legais de juros de mora aplicáveis (artigo 716º, nº 2, do Código de Processo Civil, a que corresponde o artigo 805º do Código de Processo Civil então vigente).
Fundando-se a execução em sentença, a oposição só pode ter como fundamento a incerteza, inexigibilidade ou iliquidez da obrigação exequenda, não supridas na fase introdutória da execução.
Todavia, como resulta da interacção entre a sentença emanada do Tribunal Canadiano – e revista pelo Tribunal da Relação de Évora – com o requerimento executivo, a obrigação aqui em discussão é certa, exigível e líquida, tanto à luz do artigo 802º da legislação do pretérito como por via da aplicação da disciplina actualmente precipitada no artigo 713º do Código de Processo Civil.
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No âmbito da acção executiva, como resulta do disposto no artigo 716º (idêntica solução constava da letra do artigo 805º do anterior Código de Processo Civil), o exequente poderá apresentar o pedido de liquidação no requerimento executivo nos casos aí previstos, devendo nessa peça processual especificar os valores que considera compreendidos na prestação devida e concluir pela formulação de um pedido líquido[9] [10] [11] [12] [13].
A obrigação diz-se líquida quando se encontra determinada em relação à sua quantidade, isto é, quando se sabe exactamente quanto se deve (quantum debeatur)[14], ou quando essa quantidade é facilmente determinável através de uma operação de simples cálculo aritmético com base em elementos constantes do próprio título. Consequentemente, a obrigação será ilíquida quando, apesar de a sua existência ser certa, o seu montante ainda não se encontrar fixado[15] [16].
Numa visão mais ampla, Miguel Teixeira de Sousa advoga que a obrigação será líquida não só quando já está determinada, mas também quando é determinável em relação à sua quantidade[17].
Aquilo que importa assim decifrar é se a quantificação a operar assenta em factos que estão abrangidos pela segurança do título executivo ou que podem ser oficiosamente conhecidos pelo Tribunal e agente de execução[18], não dependendo, por conseguinte, da averiguação de outras premissas[19] [20].
No domínio da liquidação da obrigação exequenda, por força da validade intrínseca do próprio título, é de acautelar que o caso julgado incide «sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão»[21], sendo que «não é de excluir que se possa recorrer à parte motivatória da sentença para reconstruir e fixar o verdadeiro conteúdo da decisão»[22].
Na senda de Lebre de Freitas preconizamos que a liquidação dependerá do simples cálculo aritmético quando a mesma possa realizar-se exclusivamente com base no que consta do título executivo e, por isso, sem recurso a quaisquer elementos a ele estranhos[23].
Da conjugação destes contributos temos para nós que a dívida é líquida quando esteja avaliada em dinheiro ou quando o título contenha todos os elementos necessários para essa ponderação. Se o título for uma sentença, a respectiva interpretação tem de fazer-se de acordo com o que tiver sido articulado na acção e, buscando argumentos na lição de Duarte Nazareth, em alguns casos a liquidação pode ter lugar acerca do que se compreende virtualmente na sentença[24].
Sobre um caso paralelo já foi editada jurisprudência[25] e estamos perante um caso de putativa iliquidez[26], em que basta fazer contas[27], porquanto a liquidação depende de simples cálculo aritmético por se estar perante uma dívida patrimonial devidamente delimitada e todos os factos de suporte necessários à concretização da operação de definição estão compreendidos na sentença.
Não se apresenta a hipótese judicanda no contexto de uma condenação genérica ou de uma universalidade e nem a prévia operação de cálculo pressupõe qualquer litígio substancial sobre a matéria da prestação devida ou de um acto prévio conformador da escolha, determinação ou concentração da mesma.
Na verdade, o valor da dívida está definido por sentença tanto na dimensão quantitativa como qualitativamente e o acto decisório declarativo é taxativo quanto aos juros aplicáveis[28]. E ficou assim tão só por esclarecer qual o montante evolutivo desses juros.
No próprio requerimento inicial executivo os exequentes especificaram e procederam ao cálculo dos montantes abrangidos na prestação devida e concluem a pretensão executiva com um pedido líquido, no qual inclui os juros já vencidos, sendo que relativamente aos juros que se continuarem a vencer a matéria é regulada nos termos estatuídos no nº 2 do artigo 716º do Código de Processo Civil.
Mesmo que existisse erro ou deficiência da liquidação da obrigação de capital ou dos juros, tal não importava a extinção da acção executiva[29], não impedia a propositura da acção executiva nem justifica a suspensão da causa nos termos peticionados pela recorrente.
A terminar e como já resulta da argumentação precedente, os elementos indispensáveis e necessários para fixar o objecto da prestação são escrutináveis a partir da leitura da sentença declarativa e a concretização do objecto da prestação depende de simples cálculo aritmético e daí decorre que não existe fundamento para revogar o despacho recorrido. Por conseguinte, julga-se improcedente o recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.
A matéria atinente ao cálculo da liquidação e da existência anatocismo é objecto de recurso distribuído autonomamente.
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V – Sumário:
(…)
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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar improcedente o recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da recorrente (artigo 527º do Código de Processo Civil).
Notifique.
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(acto processado e revisto pelo signatário nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 138º, nº 5, do Código de Processo Civil).
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Évora, 26/09/2019
José Manuel Galo Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho
Isabel Maria Peixoto Imaginário
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[1] João de Castro Mendes, Direito Processual Civil, Vol. III, edição da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa 1989, págs. 279-289.
[2] Carlos Lopes do Rego, Requisitos da Obrigação Exequenda, in A Reforma da Acção Executiva, Themis – Revista da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, págs. 67-77.
[3] Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 11ª edição, Almedina, Coimbra 2009, págs. 117-133.
[4] Miguel Teixeira de Sousa, A Reforma da Acção Executiva, Lex, Lisboa 2004, págs. 77-80.
[5] Lebre de Freitas, A Acção Executiva Depois da Reforma da Reforma, Coimbra Editora, 5ª edição, Coimbra 2009, págs. 84-96.
[6] Ana Paula Costa e Silva, A Reforma da Acção Executiva, Coimbra Editora, Coimbra 2003, págs. 23-25.
[7] Marco Carvalho Gonçalves, Lições de Processo Civil Executivo, Almedina, Coimbra 2016, págs. 133-149.
[8] José Maria Gonçalves Sampaio, A Acção Executiva e a Problemática das Execuções Injustas, Edições Cosmos, Lisboa 1992, págs. 68-88.
[9] Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo, A Ação Executiva Anotada e comentada, 2ª edição, Almedina, Coimbra 2016, pág. 111.
[10] Lebre de Freitas, A Acção Executiva Depois da Reforma da Reforma, Coimbra Editora, 5ª edição, Coimbra 2009, págs. 96-100.
[11] Miguel Teixeira de Sousa, A Reforma da Acção Executiva, Lex, Lisboa 2004, págs. 77-80.
[12] Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 11ª edição, Almedina, Coimbra 2009, págs. 127-133.
[13] Rui Pinto, Manual da Execução e Despejo, Coimbra Editora, Coimbra 2013, págs. 228-229.
[14] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/11/2003, in www.dgsi.pt.
[15] Marco Carvalho Gonçalves, Lições de Processo Civil Executivo, Almedina, Coimbra 2016, pág. 144.
[16] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20/10/2014, in www.dgsi.pt. Propugna que «I – A liquidação de condição genérica depende de simples cálculo aritmético se assenta em factos que ou estão abrangidos pela segurança do título executivo ou são factos que podem ser oficiosamente conhecidos pelo Tribunal e agente de execução. II – Diversamente, não depende de simples cálculo aritmético (embora implique, também, por definição, um cálculo aritmético) se assenta em factos controvertidos, que não estão abrangidos pela segurança do título executivo, e que não são notórios nem de conhecimento oficioso. III – Para que a execução se possa fundar em liquidação que não dependa de simples cálculo aritmético, nos termos previstos nos nºs 4 e 5 do CPC, é necessário que não vigore o ónus de proceder à liquidação no âmbito do processo de declaração».
[17] Acção Executiva Singular, Lex, Lisboa 1998, pág. 107.
[18] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01/06/2004, in www.dgsi.pt.
[19] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20/10/2014, in www.dgsi.pt.
[20] Para Abrantes Geraldes (in Títulos Executivos, Themis – Revista da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, ano IV, nº 7, 2003, págs. 56 a 60) «uma solução que procure conjugar critérios de mera racionalidade com o elemento de ordem literal que assenta no artigo 46º, nº 1, al. a) [a que corresponde actualmente 703º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil] exige que a exequibilidade apenas seja admitida em situações em que inequivocamente resulte da sentença a definição do conteúdo e dos demais requisitos de exigibilidade da obrigação, de modo a afastar o risco de ocorrência de um efeito-surpresa extraído de uma sentença sem conteúdo condenatório».
[21] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil, Lex, Lisboa 1996, pág. 578.
[22] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/05/1996, in CJ STJ, Tomo II, pág. 55.
[23] Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, pág. 254.
[24] Elementos do Processo Civil, 4ª edição, Vol. II, pág. 26.
[25] Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 25/02/2016 e do Tribunal da Relação de Évora de 08/08/2016, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[26] Configure-se a hipótese de retirar a alocução «a liquidar em execução de sentença» e a parte decisória não configuraria uma hipótese de absoluta iliquidez. Neste domínio, acompanhamos a tese de Miguel Teixeira de Sousa que afirma que a obrigação é líquida quando é determinável em relação à sua quantidade (cfr. nota de rodapé nº 23).
[27] Eduardo Paiva e Helena Cabrita, O Processo Executivo e o Agente de Execução – A tramitação da Acção Executiva face às alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 226/2008, de 20 de Novembro, 2ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra 2010, pág. 76.
[28] No sentido de os juros corresponderem à indemnização devida ao credor pelo incumprimento temporário da obrigação pode consultar-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19/11/2013, in www.dgsi.pt.
[29] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22/05/2003, in www.dgsi.pt.