Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
627/16.9T8ABT-A.E1
Relator: PAULO AMARAL
Descritores: PRAZO PRESCRICIONAL
PAGAMENTO EM PRESTAÇÕES
Data do Acordão: 05/10/2018
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Sumário: Um contrato de mútuo pagável em prestações, mesmo que estas incluam juros, não é um contrato de prestações continuadas mas sim de obrigação única repartida ao longo do tempo.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 627/16.9T8ABT-A.E1
Acordam no Tribunal da Relação de Évora

(…) Banco S.A. propôs acção declarativa de condenação contra (…) e (…) pedindo que os RR. fossem condenados a pagar-lhe:
€ 14.359,92, a título de capital em dívida proveniente de um contrato de crédito pessoal;
€ 10,842,31, correspondentes a juros vencidos à taxa de 4%, acrescidos de imposto de selo sobre os juros à taxa legal de 4%, calculados sobre o montante de capital € 14.359,92, desde 25 de Dezembro de 1998 até 14 de Novembro de 2016 e juros vincendos desde 15 de Novembro de 2016 até efectivo e integral pagamento.
Alegou que celebrou com os Réus um contrato de crédito pessoal pelo montante de € 15.710,49, em 25 de Junho de 1998. O empréstimo seria pago em 60 meses.
A última prestação foi paga em 25 de Dezembro de 1998.
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A R. contestou invocando as seguintes excepções:
- prescrição por ter havido dação em cumprimento;
- prescrição das quotas de amortização pagáveis com os juros;
- prescrição dos juros de mora.
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O A. respondeu.
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Foi decidido julgar procedente a excepção da prescrição dos juros de mora. Entendeu-se que o crédito do Autor (quer a título de capital, quer a título de juros) estava prescrito a partir do dia 26 de Dezembro de 2003, apenas sendo exigível até 25 de Dezembro de 2003.
Na audiência preliminar foi ainda decidido relegar para a sentença a questão da dação em cumprimento.
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Deste despacho recorrem a Ré e o Autor.
O Autor defende que ao caso se aplica o artigo 309.º e não o artigo 310.º, do Código Civil, que diz respeito a prestações periodicamente renováveis e não ao pagamento de uma quantia repartida em prestações.
A Ré alega, por sua vez, que toda a obrigação se extinguiu por prescrição
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Os factos alegados que devem ser tidos em conta são os seguintes:
Em 25 de Junho de 1998, foi celebrado um contrato de crédito pessoal através do qual o A. emprestou aos RR. a quantia de € 15.719,49 que seria amortizável em 60 meses.
A última prestação paga pelos RR. foi a vencida em 25 de Dezembro de 1998.
O A. interpelou os devedores para pagarem a totalidade da dívida, acrescida de juros, em 27 de Abril de 2016.
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O problema é saber se este contrato, melhor dizendo, se as obrigações provenientes deste contrato prescrevem no prazo ordinário de 20 anos ou no prazo especial de 5 anos.
A Ré defende que é este último prazo porque as prestações que vão sendo pagas correspondem a quotas de amortização do capital, pagáveis com juros.
Ao invés, o A. defende que se aplica o primeiro prazo porque não estamos perante prestações periódicas mas sim perante um pagamento fraccionado no tempo.
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Diga-se desde já que concordamos com o A..
O caso dos autos é um contrato de mútuo (em que o dinheiro foi logo recebido) e não um contrato que obrigue a uma prestação que regularmente se renova, como é o caso dos pagamentos de rendas locatícias, foros (já extintos), rendas, pensões de alimentos, etc.. Nestes casos, os créditos «resultam de uma relação unitária duradoura (v.g., renda perpétua, enfiteuse, locação)» (Vaz Serra, «Prescrição Extintiva e Caducidade», BMJ, n.º 106, p. 109).
No caso dos autos isso não acontece pois que todo o dinheiro (dado o carácter real do contrato de mútuo) foi logo entregue aos Réus.
Conforme cita o A., escreve I. Galvão Telles que as «prestações periódicas resolvem-se em actos sucessivos (…) como a obrigação do inquilino de pagar as rendas ou a do fornecedor de fazer entregas à medida que forem solicitadas.
«Não se confunde com esta última categoria o caso de uma obrigação única dividida ou fraccionada em parcelas. Existe então uma prestação global que é efectuada por partes, escalonadas no tempo, as quais se dizem “prestações” num sentido especial da palavra. Pode apontar-se como exemplo uma venda a prestações ou um empréstimo de dinheiro em que se convencione o pagamento parcelado» (Direito das Obrigações, 7.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1997, pp. 39-40).
Como escreve ainda Antunes Varela, as prestações podem ser instantâneas, fraccionadas ou repartidas, e duradouras, cabendo dentro destas as prestações de execução continuada e as prestações reiteradas, periódicas ou com trato sucessivo. E acrescenta: a «distinção entre umas e outras [obrigações de prestação instantânea e obrigações de prestação continuada ou periódica] é essencial para a compreensão do disposto, entre outros lugares, nos artigos 307.º e 310.º» (Das Obrigações em Geral, vol. I., 9.ª ed., Almedina, Coimbra, 1998, p. 96).
São coisas diferentes a prestação periódica e o pagamento em prestações tal como são diferentes os regimes de incumprimento em cada uma delas.
No caso do incumprimento das prestações periódicas, se o devedor não cumprir, o credor pode pedir a sua condenação ao pagamento das prestações já vencidas assim como as que entretanto se vencerem, enquanto perdurar ou subsistir a relação subjacente. Em contrapartida, no caso de prestações fraccionadas, como é o caso dos autos, o credor poderá, na hipótese de ter celebrado um contrato de crédito ao consumo e caso haja incumprimento no pagamento de uma das prestações convencionadas, exigir o pagamento de todas as restantes, porquanto nos termos do artigo 781.º do Código Civil, a falta de realização de uma prestação importa o vencimento de todas as restantes (é neste sentido a alegação do recorrente no caso do ac. da Relação do Porto, de 24 de Março de 2104, embora sem sucesso; cfr., também, Antunes Varela, ob. cit., pp. 97-98).
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O A. não pediu o pagamento das prestações em falta acrescidas dos juros que integravam cada uma das prestações; pediu outrossim o pagamento do capital, por força da perda do benefício do prazo, acrescido de juros moratórios — o que é perfeitamente lícito (cfr. acs. do STJ, de 24 de Maio de 2007 e de 7 de Outubro de 2004, entre muitos outros).
A circunstância do não pagamento de uma prestação origina o imediato vencimento das demais, nos termos do art.º 781.º. A partir do momento em que uma prestação não é paga, não podemos mais falar em prestações; apenas podemos falar em dívida. É que já não há prestações a pagar.
O citado preceito legal é fundamental para permitir distinguir as (1.º) prestações (2.º) da dívida resultante do incumprimento de uma delas. A falta de pagamento de uma implica o vencimento imediato de todas. A partir do momento em que o devedor falha o pagamento de uma, ele não deve mais prestações — seja com juros ou sem juros. A partir do dito momento, o devedor só deve o capital, acrescido dos respectivos juros moratórios.
O caso não é, pois, de prestações em dívida.
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Entendemos assim que à dívida dos autos se aplica o art.º 309 e não o art.º 310.º.
O que significa, também, que a jurisprudência invocada nas alegações da R. não tem aqui aplicação – em princípio; esta jurisprudência, que aplica o art.º 310.º ao caso das prestações de capital e juros, tem por objecto algo diferente do nosso, uma vez que neste não estão em causa prestações daquele tipo. O que está aqui em causa é apenas uma dívida de capital (assim convertida pela perda do benefício do prazo).
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Importa, no entanto, ter argumentos para afirmar o que agora se afirmou, ou seja, que tal jurisprudência não é aqui aplicável.
Para isso, teremos de ver que casos concretos foram julgados em ordem em apurar da semelhança das situações com o nosso caso. Se essa semelhança não existir, o problema está resolvido por si; se essa semelhança existir, então das duas uma: aplica-se a jurisprudência ou não se aplica, explicando as razões disto.
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As decisões em análise são estas:
- da Relação de Lisboa, os acs. de 15 de Dezembro de 2016 e de 27 de Outubro de 2016; o já citado da Relação do Porto; da Relação de Coimbra, de 8 de Maio de 2007; da Relação de Évora, de 20 de Outubro de 2016 e de 21 de Janeiro de 2016; o ac. do STJ, de 27 de Março de 2014; acrescentamos, deste último Tribunal, o ac. de 29 de Setembro de 2016.
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Em todos estes casos se trata de um contrato de mútuo pagável em prestações, sendo que estas englobam capital e juros remuneratórios.
A certa altura, o devedor deixou de pagar as prestações.
Tudo leva, pois, a que se retirem, para o nosso caso, as mesmas conclusões, dada a igualdade das situações.
Mas não será assim.
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Por se tratarem de prestações com capital e juros, a jurisprudência decide como tem decidido; ou seja, entende tal forma de pagamento como sendo o pagamento de quotas de amortização de capital pagáveis com juros.
No citado ac. do STJ, de 27 de Março de 2014, escreve-se que, na «verdade, se é certo que a disciplina legal estatuída na alínea e) do art.º 310.º do C. Civil se não estenderá aos casos em que se verifica “uma única obrigação pecuniária emergente de um contrato de financiamento, ainda que com pagamento diferido no tempo”, o certo é que a realidade circunstancial que envolve o relacionamento contratual estabelecido entre o exequente e os executados se não propaga nesta realidade jurídico-substancial» (itálico e negrito no original). E logo adiante acrescenta: a «obrigação assumida pelos signatários do contrato, confirmamos nós, compartimentada num mútuo e respetivos juros, converteu-se numa prestação mensal de fraccionada quantia global que, desta forma, iria sendo amortizada na medida em que se processasse o seu cumprimento; e esta facticidade está abrangida pelo regime jurídico descrito no artigo 310.º, alínea e), do C. Civil».
Baseia-se, para tanto, num estudo de que reproduz estes trechos:
«…na situação prevista no artigo 310.º, alínea e), não estará em causa uma única obrigação pecuniária emergente de um contrato de financiamento, ainda que com pagamento diferido no tempo, a que caberia aplicar o prazo ordi­nário de prescrição, de vinte anos, mas sim, diversamente, uma hipótese distinta, resultante do acordo entre credor e devedor e cristalizada num plano de amor­tização do capital e dos juros correspondentes, que, sendo composto por diver­sas prestações periódicas, impõe a aplicação de um prazo especial de prescrição, de curta duração. O referido plano, reitera-se, obedece a um propósito de agilização do reembolso do crédito, facilitando a respectiva liquidação em presta­ções autónomas, de montante mais reduzido. Por outro lado, visa-se estimular a cobrança pontual dos montantes fraccionados pelo credor, evitando o diferimento do exercício do direito de crédito para o termo do contrato, tendo por objecto a totalidade do montante em dívida (sublinhado nosso).
«Prosseguindo nesta análise, completa este estudo que constituirão, assim, indícios reveladores da existência de quotas de amor­tização do capital pagáveis com juros: em primeiro lugar, a circunstância de nos encontrarmos perante quotas integradas por duas fracções: uma de capital e outra de juros, a pagar conjuntamente; em segundo lugar, o facto de serem acordadas prestações periódicas, isto é, várias obrigações distintas, embora todas emergentes do mesmo vínculo fundamental, de que nascem sucessivamente, e que se vencerão uma após outra”» (citação do acórdão).
A autora do estudo em questão, Ana Filipa Morais Antunes, começa por dizer que o art.º 310.º não se aplica aos casos em que existe uma única obrigação pecuniária emergente de um contrato de financiamento, ainda que com pagamento diferido no tempo, a que caberia aplicar o prazo ordi­nário de prescrição, de vinte anos. Aplica-se, antes, a outros casos em que o pagamento se faça de outra determinada maneira e em que existam obrigações periódicas, que nascem sucessivamente (o que é bem diferente de se vencerem sucessivamente). Mas no contrato de mútuo, qual é a obrigação periódica do mutuário? Qual é a obrigação que nasce em cada período de tempo que passa? Existe, desde início, a obrigação de pagar as prestações, sem dúvida, mas elas vencem-se, não nascem ao longo do tempo, não se renovam – daí a solução do artigo 781.º.
O que a jurisprudência vem afirmando, como dissemos e é revelado pelo trecho acima reproduzido, é que, sendo o pagamento da dívida em prestações com capital e juros, a obrigação converteu-se numa prestação mensal de fraccionada quantia global o que, logo de seguida, faz cair a situação no âmbito do art.º 310.º.
Fundamental, deste ponto de vista, é que sejam pagos juros em cada prestação. Com se escreve no Acórdão de 08 de Maio de 2007, da Relação de Coimbra, as quotas de amortização prescrevem, nos termos do art.º 310.º, «desde que o pagamento das fracções ou quotas de capital se processe de forma adjunta com os juros» (negrito nosso).
Claro, de igual modo, neste sentido é o ac. do STJ, de 29 de Setembro de 2016, em cujo sumário se pode ler: «apesar de obrigação de pagamento de quotas de capital se traduzir numa obrigação unitária, de montante predeterminado, cujo pagamento foi parcelado ou fraccionado em prestações – a circunstância de a amortização fraccionada do capital do capital em dívida ser realizada conjuntamente com os juros vencidos, originando uma prestação unitária e global, determinou por expressa determinação legislativa, a aplicabilidade a toda essa prestação do prazo quinquenal de prescrição» (negrito nosso). Escreve-se, já no texto, o seguinte:
«Note-se que efectivamente, no caso do débito do capital mutuado, estamos confrontados com uma obrigação de valor predeterminado cujo cumprimento, por acordo das partes, foi fraccionado ou parcelado num número fixado de prestações mensais; ou seja, em bom rigor, não estamos aqui perante uma pluralidade de obrigações que se vão constituindo ao longo do tempo, como é típico das prestações periodicamente renováveis, mas antes perante uma obrigação unitária, de montante predeterminado, cujo pagamento foi parcelado ou fraccionado em prestações.
«Porém, o reconhecimento desta específica natureza jurídica da obrigação de restituição do capital mutuado não preclude, sem mais, a aplicabilidade do regime contido no citado artigo 310º, já que – por explicita opção legislativa – esta situação foi equiparada à das típicas prestações periodicamente renováveis, ao considerar a citada al. e) que a amortização fraccionada do capital em dívida, quando realizada conjuntamente com o pagamento dos juros vencidos, originando uma prestação unitária e global, envolve a aplicabilidade a toda essa prestação do prazo quinquenal de prescrição.
«Ou seja, o legislador entendeu que, neste caso peculiar, o regime prescricional do débito parcelado ou fraccionado de amortização do capital deveria ser absorvido pelo que inquestionavelmente vigora em sede da típica prestação periodicamente renovável de juros, devendo, consequentemente, valer para todas as prestações sucessivas e globais, convencionadas pelas partes, quer para amortização do capital, quer para pagamento dos juros sucessivamente vencidos, o prazo curto de prescrição decorrente do referido artigo 310.º».
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O enfoque que se dá ao juro radica no ódio a esta figura, fruto da ideologia canónica medieval cuja proibição se fora «alargando cada vez mais e ultrapassara as fronteiras do direito canónico para se instalar na própria legislação civil» (M. J. Almeida Costa, Raízes do Censo Consignativo, Atlântida, Coimbra, 1961, pp. 10-11). Mas a própria Igreja, sempre condenando o juro, «sem abdicar de um só princípio, observa com realismo complacente a nova utilidade funcional do dinheiro» (idem, ibidem, p. 12). Como escreveu Coelho da Rocha, «eram declarados nullos taes contratos, e além disso castigados os usurarios com penas as mais severas»; mas «[c]omo este rigor (…) repugnava á natureza das cousas, ao desinvolvimento do commercio, e ás conveniencias sociaes, os mesmos, que condemnavam as usuras, começaram a inventar subterfugios com que se podesse iludir a letra do direito» e, daí, o nascimento dos contratos de compra de rendas ou censos (Instituições de Direito Civil Portuguez, 3.ª ed., t. II, IU, Coimbra, 1852, p. 717).
O problema era o risco que existia em a dívida acabar por ser muito superior, no final, do que o capital mutuado pois que cada pagamento que ia sendo feito era acrescido de juros a que se somavam mais juros em caso de mora ou incumprimento. Como escreve Vaz Serra (ob. et loc. cit., pp. 113-114), com «os juros parece deverem prescrever as quotas de amortização, se deverem ser pagas como adjunção aos juros (Código alemão, § 197.º), pois, se assim não fosse, poderia dar-se uma acumulação de quotas ruinosa para o devedor, apesar de, com a estipulação de quotas de amortização, se ter pretendido suavizar o reembolso e trata-lo como juros». Ou seja, o problema é o de as prestações em falta serem exigidas com juros; melhor dizendo, o perigo está em cada prestação, uma vez não paga, vencer juros; havendo várias em falta, cada uma delas vencer juros também sem que, no entanto, o contrato deixe de vigorar. Isto é, as prestações são autónomas entre si e vencem, cada uma (e tudo somado no cômputo final), juros. Esta situação é que aumenta grandemente a dívida e pode provocar a ruína do devedor. Daí o comentário de Planiol, Ripert e Radouant: «A razão essencial desta prescrição, que remonta ao nosso antigo direito francês, claramente indicada nos trabalhos preparatórios, é proteger o devedor contra a acumulação da sua dívida que, de divida de anuidades, pagas com os seus rendimentos, se transformaria em divida de capital susceptível de o arruinar, se o pagamento pudesse ser-lhe exigido de um golpe ao cabo de um número demasiado de anos» (citados por Vaz Serra, nota 675, a p. 107).
Nos casos em que as prestações são fixadas a forfait este problema não se coloca pois que as prestações estão definidas ab initio.
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Voltando ao citado ac. do STJ, de 29 de Setembro de 2016, temos de concordar com o primeiro trecho citado. Não há dúvida, e cremos que ninguém a suscita, que estamos perante uma obrigação única cujo pagamento é dividido no tempo.
Com o que já não concordamos é com a equiparação que se faz entre este tipo de prestações e as prestações periodicamente renováveis, equiparação esta estabelecida, segundo o acórdão, pelo art.º 310.º, al. e). Não estamos aqui perante uma simples equiparação mas uma conversão uma vez que é substituído um regime legal por outro; o regime próprio do incumprimento das obrigações instantâneas (mesmo que repartidas) é trocado pelo regime próprio do incumprimento das obrigações duradouras. Sendo a natureza e o tipo de cada prestação diferentes (num caso elas renovam-se, surgem periodicamente; no outro vencem-se ao longo do tempo), não vemos como seja possível aplicar a uma delas um regime que é próprio da outra.
Os trabalhos preparatórios, a que acima se fez alusão, inculcam a ideia que o art.º 310.º aplica-se a obrigações que tenham na sua base um contrato duradouro, cujas prestações se vão renovando (e não vencendo) ao longo do tempo. No contrato de mútuo em que o pagamento é fraccionado, não temos tal relação o que nos impede de aplicar outro regime, desde logo, aquele que se aplica a outro tipo de relações. Não há equiparação porque as figuras são distintas e não semelhantes; o que há é conversão do regime jurídico para o que não vemos lei que tal suporte.
Como escreve Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil Português, vol. I, t. IV, Almedina, Coimbra, 2005. p. 176), a «prescrição quinquenal do artigo 311.º [existe aqui um lapso manifesto pois aquele preceito refere-se a outra situação; do início da p. 177, conclui-se que se quer referir ao art.º 310.º] reporta-se a situações que têm em comum:
«- um direito de base dotado de certo porte;
«- prestações periódicas que dele se desprendem».
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O problema, como já se notou, radica no juro. É só por estarem convencionadas prestações que englobam o capital mutuado e juros remuneratórios desse capital, que a jurisprudência tem a orientação que tem.
Mas o juro é uma cláusula acidental do negócio, algo que as partes tanto podem prever como podem afastar (cfr. artigo 1145.º, nº 1, do Código Civil).
Isto tem uma consequência curiosa: as obrigações decorrentes do mesmo tipo de contrato (mútuo) estão sujeitas a prazos de prescrição diferentes consoante vençam juros ou não. Apenas pelo modo fraccionado como é paga a quantia mutuada, e desde que seja acompanhada de juros, altera-se o prazo de prescrição. E que esta solução choca mostra-se pela hipótese de se poder convencionar, num contrato de mútuo, o pagamento em prestações, mas sem juros. Aplica-se então o prazo do art.º 309.º e não já o do art.º 310.º (por causa de um elemento acessório do negócio jurídico). É estranho. Mas, estranho que seja, permite constatar que a preocupação do art.º 310.º não tem por alvo o contrato dos autos.
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Mas acresce outra coisa [e repetimos que não está em dúvida a caracterização das obrigações deste caso: «em bom rigor, não estamos aqui perante uma pluralidade de obrigações que se vão constituindo ao longo do tempo, como é típico das prestações periodicamente renováveis, mas antes perante uma obrigação unitária, de montante predeterminado, cujo pagamento foi parcelado ou fraccionado em prestações» (do citado ac. do STJ, de 29 de Setembro de 2016)].
A circunstância do não pagamento de uma prestação. origina o imediato vencimento das demais, nos termos do art.º 781.º. A partir do momento em que uma prestação não é paga, não podemos mais falar em prestações; apenas podemos falar em dívida. É que já não há prestações a pagar.
Então quais são as obrigações que estão prescritas? Quais são as prestações por cuja falta de pagamento o devedor pode invocar a prescrição?
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O despacho recorrido não as identifica o que é natural porque elas não existem. O que nele se escreve é o seguinte:
«Ora, no caso dos autos, tendo em consideração que foi alegado pela autora que a última prestação paga foi a vencida em 25/12/1998, foi nesta data que se venceram todas as demais prestações, porque se trata de um contrato de execução periódica, nele tendo começado a correr o prazo de prescrição de cinco anos, razão pela qual o crédito da autora (quer a título de capital quer a título de juros), está prescrito a partir de 26/12/2003, apenas sendo exigível a partir de 25/12/2003».
O português não se recomenda mas não é a gramática que está aqui em discussão.
Estando previsto o contrato terminar em Julho de 2003 (ele é de Junho de 1998 e as prestações mensais estabelecidas eram 60), quais são as prestações não prescritas a partir de Dezembro de 2003? Admitindo que serão aquelas que se venceriam depois de Dezembro de 1998, a pergunta é: quais são elas?
É, depois, o outro problema que surge: se as prestações se venceram todas (e o credor pode exigir o pagamento da quantia total mutuada), quais são as prestações sobre que incide a prescrição? E se tudo está prescrito, por que razão prosseguem os autos para julgamento?
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O citado preceito legal não é, geralmente, tido em conta nesta discussão onde a atenção se debruça sobre as prestações e não sobre a dívida resultante do incumprimento.
Dos acórdãos acima citados, apenas o da Relação de Lisboa, de 27 de Outubro de 2016, e o da Relação de Évora, de 21 de Janeiro de 2016, se lhe referem e nestes termos (respectivamente):
«É certo que, nos termos do disposto no art.º 781.º do Código Civil, o não cumprimento de uma prestação importa o vencimento da quantia global em dívida. Porém, como bem nota a sentença recorrida, para que tal aconteça é necessário que o credor interpele o devedor para proceder ao pagamento. Na verdade “o «vencimento imediato» significa «exigibilidade imediata» e não que o prazo de pagamento de todas as prestações seja o da primeira prestação”» (Lisboa).
«Consta do requerimento executivo que as prestações acordadas deixaram de ser pagas a partir do dia 8/01/1987. Assim, a partir desta data venceram-se todas as prestações acordadas, nos termos do art.º 781º, do C. Civil, uma vez que não foi acordado regime diferente do referido neste preceito.
«O facto de vencida uma quota e não paga, se vencerem todas as posteriores, “nada releva para o problema em causa, porque nesse caso a prescrição respeitará a cada uma das quotas de amortização e não ao todo em dívida” sendo que na aplicação do prazo de prescrição a que se alude na al. e) do art.º 310º do C. Cível, não obsta a que o não pagamento de uma das prestações provoque o vencimento das restantes, não sendo de aplicar o prazo prescricional ordinário, de 20 anos, previsto no art.º 309.º do C. Civil» (Évora).
Salvo o devido respeito, vencimento imediato não significa exigibilidade imediata; o que aquele significa é que não existem mais prestações a pagar e que toda a quantia em dívida daí resultante pode ser exigida a qualquer momento. E para este momento se definir concretamente já se exige a interpelação.
Por outro lado, afirmar que a prescrição respeitará a cada uma das quotas de amortização e não ao todo em dívida é esquecer que já não há prestações.
Como já mais acima se escreveu, a falta de pagamento de uma delas implica o vencimento imediato de todas. A partir do momento em que o devedor falha o pagamento de uma, ele não deve mais prestações – seja com juros ou sem juros. A partir do dito momento, o devedor só deve o capital, acrescido dos respectivos juros moratórios. Que assim é, basta pensar na hipótese de, depois de convertidas as prestações em uma única dívida não fraccionada (pela falta de pagamento de uma daquelas), o devedor pretender pagar uma prestação. O credor, nos termos do art.º 763.º, n.º 1, não é obrigado a aceitar tal pagamento.
Como se escreve no ac. da Relação de Coimbra, de 26 de Abril de 2016, o «vencimento imediato das prestações restantes, significa que o plano de pagamento escalonado anteriormente acordado deixa de estar em vigor, ocorrendo uma perda do benefício do prazo de pagamento contido em cada uma das prestações: desfeito o plano de amortização da dívida inicialmente acordado, os valores em dívida voltam a assumir a sua natureza original de capital e de juros» (sublinhados no original).
O art.º 781.º aplica-se ao caso porque, mais uma vez, estamos perante uma única obrigação pecuniária cujo pagamento é diferido no tempo. As prestações escalonadas no tempo não são autónomas entre si pois a sua existência radica numa só obrigação; daí que todas se vençam a partir do incumprimento de uma delas. Usando as palavras da autora citada do ac. do STJ acima transcrito, «está em causa uma única obrigação pecuniária emergente de um contrato de financiamento, ainda que com pagamento diferido no tempo».
E se não há prestações em dívida, a que se aplica então a prescrição?
Quais são as prestações, cada uma delas de per se, que estão prescritas?
Aplica-se a prescrição a prestações inexistentes?
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Permitimo-nos terminar este tema com uma citação de Menezes Cordeiro (ob. cit., p. 175):
«(…) [o art.º 310.º, al. e)] opera nos casos em que se tenha convencionado que o próprio capital iria sendo pago em prestações, com os juros; (…) a prescrição quinquenal apenas se irá aplicando escalonadamente, na medida do pagamento inicial».
E logo se seguida (p. 176), escreve:
«podemos acrescentar que na eventualidade do vencimento antecipado, já não se trata de ... quotas de amortização».
Cremos que isto diz tudo.
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Por estas razões, entendemos que ao caso dos autos não se aplica o disposto no art.º 310.º mas sim o disposto no art.º 309.º: o prazo de prescrição é o de 20 anos.
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Nas suas contra-alegações, a A. defende que a exigibilidade imediata da totalidade do capital não é automática, antes carece de interpelação pelo credor, baseando-se num ac. desta Relação, de 8 de Junho de 2017, que, por sua vez, se baseia numa passagem de Antunes Varela nestes termos: «o art.º 871º ao determinar o vencimento imediato das restantes prestações deve ser interpretado no sentido de que o inadimplemento do devedor gera o direito do credor de exigir dele a satisfação daquelas prestações e não no sentido de que o não pagamento de uma das prestações no prazo acordado determina, por si só, a entrada em mora do devedor quanto ao cumprimento das demais. Querendo lançar mão de tal direito, deverá o credor levar tal manifestação de vontade ao devedor, interpelando-o para cumprir a totalidade da obrigação».
O que o referido autor escreve é que não se deve interpretar o art.º 781.º «no sentido de que, vencendo-se imediatamente, ex vi leges, as prestações restantes, o devedor comece desde esse momento a responder pelos danos moratórios» (ob. cit., vol. II, 4.ª ed., 1990, p. 52).
Por isso, o vencimento das prestações é automático mas a sua exigibilidade não é – o que apenas tem por consequência que o credor não pode pedir juros de mora anteriores à interpelação do devedor. Na verdade, não estamos perante uma obrigação de prazo certo [art.º 805.º, n.º 2, al. a)] mas sim perante uma obrigação pura em que, «embora a prestação seja exigível desde o momento da sua constituição [data da falta de pagamento de uma prestação], só há mora depois de o devedor ser interpelado para cumprir» (idem, ibidem, p. 112).
Mas isto não significa que a dívida de capital não continue a existir. A falta de interpelação para cumprir não é extintiva da dívida; pode ter outras consequências mas não esta.
O prazo de prescrição que se aplica à dívida (resultante do vencimento imediato) é o prazo ordinário de 20 anos, a contar do incumprimento, prazo este que ainda não decorreu.
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No caso dos autos, temos que apenas em 27 de Abril de 2016, foram os Réus interpelados para pagarem a totalidade da dívida.
Por isso, não estando a dívida de capital prescrita, devem os Réus ser condenados no seu pagamento, acrescido de juros a contar da interpelação [não há, pois, o pressuposto da prescrição previsto no art.º 310.º, al. d), do Código Civil, uma vez que eles só se vencem com a interpelação].
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Por estes motivos, e embora se não tenha feita expressa referência, ao longo da exposição antecedente, às alegações da R., temos que o seu pedido neste recurso (declaração de extinção da totalidade da dívida) não procede.
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O processo prosseguiu para julgamento para conhecer da questão da dação em pagamento — o que agora se justifica plenamente pois que se irá discutir uma forma de extinção de uma dívida não prescrita.
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Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso do A. (…) Banco S.A., revoga-se o despacho recorrido e condenam-se os RR. (…) e (…) a pagarem-lhe a quantia de € 14.359,92, acrescida de juros a contar de 27 de Abril de 2016 e até integral pagamento.
Julga-se improcedente o recurso da R..
Custas pelo recurso do Autor por este e pela Ré na proporção, respectivamente, de 1/8 e 7/8.
Custas do recurso da Ré a cargo desta.
Évora, 10 de Maio de 2018.
Paulo Amaral
Francisco Matos (vencido; com recurso ao ajuizado designadamente no Ac. do STJ de 29/9/2016, já referido nos autos, julgaria improcedente o recurso do Autor e procedente o recurso da Ré e, em consequência, alteraria a decisão recorrida por forma a julgar prescrita a totalidade da dívida).
José Tomé de Carvalho

Sumário:
I- Pressuposto das obrigações prescritíveis ao abrigo do art.º 310.º, Cód. Civil, é a existência de uma relação duradoura, fonte de prestações periódicas.
II- A al. e) do art.º 309.º, Cód. Civil, só se aplica às prestações periódicas que, cada uma delas, vençam juros por atraso ou falta de cumprimento, mantendo-se o contrato duradouro.
III- Um contrato de mútuo pagável em prestações, mesmo que estas incluam juros, não é um contrato de prestações continuadas mas sim de obrigação única repartida ao longo do tempo.
IV- A falta de pagamento de uma prestação, cuja fonte é uma obrigação única, implica o vencimento das restantes pelo que não existem mais prestações mas apenas a dívida de capital e juros.
V- Nesta situação, os juros só se contam a partir da interpelação do devedor para o pagamento da dívida total.