Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
697/20.5T8PTM.E1
Relator: ISABEL DE MATOS PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: PEÃO
EMBRIAGUEZ
CULPA DO LESADO
Data do Acordão: 03/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O condutor que desvia o veículo do passeio quando se apercebe de um peão na faixa de rodagem que, seguindo de costas, quando o veículo vai a passar, se vira para a frente repentinamente, desequilibrando-se para o seu lado direito, invadindo ainda mais a faixa de rodagem, não tendo o condutor tempo de evitar o embate, dada a imprevisibilidade e repentismo do comportamento do peão, ficando impedido de desviar mais o veículo por causa dos veículos que circulavam em sentido contrário, não resulta adstrito a indemnizar o lesado pelos danos sofridos com o embate.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Ré: (…) – Companhia de Seguros, SA
Recorrido / Autor: (…)

Trata-se de uma ação declarativa de condenação no âmbito da qual o A peticionou a condenação da R a indemnizá-lo pelos danos patrimoniais sofridos, não patrimoniais e danos futuros, num total de € 144.660,47 (a título de danos patrimoniais, diretamente suportados, a quantia de € 34.660,47 e a título de danos não patrimoniais, a quantia de € 110.000), acrescida de juros de mora contados à taxa legal sobre as quantias peticionadas desde a citação e até integral pagamento, à exceção dos contados sobre os danos não patrimoniais, os quais serão devidos desde a data da condenação.
Alegou, para tanto e em resumo, que no dia 8 de abril de 2017, pelas 22h13, seguia a pé pelo passeio na Rua (…), no sentido Portimão-Praia da Rocha, acompanhado com diversos amigos, e foi embatido com violência pela lateral direita do veículo automóvel Mercedes Benz C200, com a matrícula (…), conduzido por (…), seguro na seguradora R., o que lhe provocou danos cuja indemnização reclama.
O Instituto da Segurança Social, IP – Centro Distrital de Faro apresentou-se a requerer o reembolso do subsídio de doença que concedeu provisoriamente ao Autor no montante de 1.425,54 euros, em consequência do sinistro ocorrido em 08 de abril de 2017.
A R, em sede de contestação, pugnou pela improcedência da ação, já que o acidente é imputável, em exclusivo ao A, que seguia na faixa de rodagem, animado pela influência do álcool no seu sangue, tendo-se desequilibrado e invadido ainda mais a faixa de rodagem por onde circulava o veículo seguro no preciso momento em que passava no local.

II – O Objeto do Recurso
Decorridos os trâmites processuais legalmente previstos, foi proferida sentença julgando a ação parcialmente procedente, decidindo:
«1. Condenar a Ré a pagar 70% da indemnização devida ao Autor pelos danos patrimoniais – relativos a despesas suportadas, roupa e perda de remuneração –, num total de 14.217,42 euros (catorze mil duzentos e dezassete euros e quarenta e dois cêntimos), acrescido de juros a contar da data da citação até integral e efetivo pagamento;
2. Condenar a Ré a pagar 70% da indemnização devida ao Autor pelos danos patrimoniais (biológico e futuros), num total de 63.000 euros (sessenta e três mil euros), acrescido de juros a contar do trânsito em julgado da sentença e até integral e efetivo pagamento.
3. Condenar a Ré a pagar 70% da indemnização devida ao Autor pelos danos não patrimoniais, num total de 14.000 euros (catorze mil euros), acrescido de juros a contar do trânsito em julgado da sentença e até integral e efetivo pagamento.
4. Condeno a Ré a pagar 70% dos danos futuros que eventualmente venham a surgir como consequência do acidente, até ser retirado todo o material metálico de consolidação que o Autor tem.
5. Condenar a Ré em 70% do pedido deduzido pelo Instituto da Segurança Social, IP – Centro Distrital de Faro, pelo subsídio de doença que concedeu provisoriamente ao Autor no montante de 997,88 euros.
6. Condenar o Autor e a Ré nas custas, na proporção do decaimento.»

Inconformada, a R. apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que a absolva dos pedidos. Concluiu a alegação de recurso nos seguintes termos:
«I. Face à dinâmica do acidente consubstanciada designadamente pelos factos dados como provados nos pontos 8, 10, 11, 12, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20 e 21 dos factos provados é imputável em exclusivo ao peão ora A. a responsabilidade pela sua ocorrência.
II. O acidente ocorreu de noite e dentro da faixa de rodagem quando o peão tinha passeio para circular, mas fazia-o de costas para o transito e dentro da via destinada aos veículos.
III. Face à situação o automobilista desviou-se do peão e passá-lo-ia sem problemas não fora a atitude do peão que, quando estava já a ser passado pelo veiculo automóvel, de forma imprevista e repentina, virou-se e desequilibrou-se, invadindo ainda mais a faixa de rodagem de forma a embater no retrovisor direito deste, uma vez que a frente do veiculo já o tinha passado.
IV. Nenhum outro comportamento era exigível ao automobilista que não podia prever o inusitado comportamento do A invadindo mais ainda a faixa de rodagem quando estava a ser ultrapassado, razão pela qual o automobilista ficou impedido de desviar mais o seu veículo.
V. O automobilista circulava dentro da sua faixa de rodagem em localidade (Portimão) com os faróis acesos o que permitiria ao peão vê-lo e evitá-lo.
VI. Ao comportamento do peão, de todo desconforme com as regras estradais, foi necessariamente influenciado pela TAS de 2,20g/l que na circunstância apresentava.
VII. O peão podia e devia ter tido comportamento diferente o qual foi a causa única e exclusiva do acidente.
VIII. Os pontos 48, 49 e 54 da matéria de facto dada como provada devem ser dados como não provados, por tal o impor por um lado a circunstância sobre eles não ter sido produzida qualquer prova documental ou testemunhal para além das declarações de parte do A e por outro por tais declarações imporem até que tais factos sejam dados como não provados.
IX. As transcritas declarações de parte do A impõem que os factos dados como provados nos pontos 48 e 49 sejam dados como não provados, por o A. ter declarado nunca ter feito urgências e que a partir de maio de 2017 iria dedicar-se a tempo inteiro a estudar para o exame que pretendia fazer em novembro de 2017.
X. O ponto 54 deve igualmente ser dado como não provado uma vez que o A declarou, nas suas transcritas declarações que não iria trabalhar para o CHUA a partir de maio de 2017 a fim de estudar para o exame marcado para novembro do mesmo ano, razão pela qual nunca receberia nesse período qualquer salário.
XI. Face à alteração da matéria de facto os montantes fixados relativamente aos danos patrimoniais sofridos pelo A, devem ser deduzidos do valor contabilizado com remunerações relativas a urgências e salários entre maio e novembro de 2017 que se não verificaram nem nunca se verificariam.
XII. O valor atribuído ao dano biológico sofrido pelo A. mostra-se exagerado devendo ser fixado em € 40.000,00.
XIII. Foram violadas para além do mais as disposições conjugadas dos artigos 22.º, 99.º e 100.º do C.E. e 483.º do Código Civil.»
Não foram apresentadas contra-alegações.

Cumpre conhecer das seguintes questões:
- da exclusiva responsabilidade do A na produção do acidente;
- da impugnação da decisão relativa à matéria de facto relativamente a danos sofridos.

III – Fundamentos
A – Os factos provados em 1.ª Instância
1. No dia 8 de abril de 2017, o Autor (…), seguia na faixa de rodagem (via), junto ao passeio, na Rua (…), no sentido Portimão-Praia da Rocha, junto ao edifício “(…)”.
2. O Autor estava acompanhado com diversos amigos e seguia do lado esquerdo da faixa de rodagem, no sentido contrário ao dos veículos que seguem da Praia da Rocha para Portimão.
3. Pelas 22h13, o peão e Autor foi embatido pela lateral direita do veículo automóvel de marca e modelo Mercedes Benz C200, com a matrícula (…), conduzido por (…), residente em Quinta (…), 8400-000 Estômbar, Mexilhoeira da Carregação.
4. O acidente ocorreu numa via reta, com boa visibilidade e presença de sinalização vertical de aproximação de lombas, que existem, elevadas, no local, o que obriga os condutores a uma maior atenção na condução e até redução de velocidade.
5. A velocidade no local é de 50 Km/h.
6. Após o embate o Autor foi projetado para o chão.
7. O veículo automóvel imobilizou-se a uma distância de pelos menos 21,5 metros do embate.
8. O condutor do veículo automóvel circulava no sentido sul-norte, dirigindo-se para Portimão vindo da Praia da Rocha.
9. Tinha um largo espaço visível à sua frente e uma via de largura de 6,30metros.
10. Seguia a velocidade não concretamente apurada, de cerca de 40 km/h.
11. Na via onde ocorreu o acidente foram construídas duas lombas redutoras de velocidade antes das passadeiras de peões naquele local existentes.
12. O Autor no momento do acidente apresentava uma taxa de álcool no seu sangue de 2,20 G/L.
13. O Autor havia estado com o seu grupo de colegas de trabalho numa festa de aniversário, na qual ingeriu diversas bebidas alcoólicas, desde o início da tarde até perto da hora do acidente.
14. O Autor invadiu a faixa de rodagem onde seguia o (…).
15. Em ambos os lados da via de trânsito onde ocorreu o acidente existem passeios destinados à circulação de peões.
16. Imediatamente antes do embate o Autor encontrava-se dentro da faixa de rodagem, de costas para o (…) e virado para o grupo que seguia mais atrás de si em direção à Praia da Rocha.
17. O (…) desviou-se do Autor mas quando ia a passar pelo mesmo o Autor virou-se para a frente repentinamente e desequilibrou-se para o seu lado direito, invadindo ainda mais a faixa de rodagem.
18. O embate deu-se completamente dentro da faixa de rodagem destinada à circulação do (…).
19. O embate deu-se no espelho retrovisor direito do (…) num primeiro momento, tendo ato continuo o peão embatido também ao longo de todo o lado direito do (…).
20. O embate deu-se a uns 3 metros após a passadeira e o Autor não pretendia, nem estava a atravessar a estrada, antes circulava na mesma em grande animação com os seus colegas, sendo certo que estes seguiam pelo passeio.
21. Dada a imprevisibilidade e repentismo do comportamento do Peão, o condutor do (…) não teve tempo de evitar o embate, ficando impedido de desviar mais o veículo atendendo que circulavam outros veículos em sentido contrário.
22. O Autor, no momento do acidente, encontrava-se ainda com um copo na mão.
23. O Autor apresentou queixa crime contra o condutor do (…), sob o NUIPC 948/17.3PAPTM, o qual foi integrado no processo n.º 778/17.2PAPTM que correu termos no DIAP – 1ª Secção de Portimão, tendo sido o mesmo arquivado.
24. Em virtude do acidente acima descrito, o Autor foi evacuado de ambulância o Serviço de Urgência do Centro Hospitalar da Universidade do Algarve, unidade de Portimão, diretamente para a Sala de reanimação.
25. O Autor apresentava deformidade rotacional do 1/3 distral da perna direita com fratura exposta da tíbia grau II e do perónio, lesão de desluvamento retrocalcâneana à direita e ferida articular do joelho esquerdo com exposição do aparelho extensor e fratura cominutiva impactada do côndilo femural interno.
26. O Autor necessitou de intubação endotraqueal e ventilação e de intervenção cirúrgica com redução da fratura e osteotaxia tibiotibial com fixador AO (2 pinos proximais+2 distais); lavagem abundante, desinfeção e encerramento de desluvamento do retropé; lavagem abundante a baixa pressão e reparação da asa interna da rótula esquerda.
27. Após, o Autor foi transferido para a Unidade de Cuidados Intensivos de Faro para vigilância.
28. O Autor regressou à Unidade de Portimão no dia 9 de abril, onde ficou internado na UIDA durante três dias para manutenção da vigilância até à sua transferência no dia 11 de abril para a unidade de Ortopedia.
29. O Autor ficou internado naquela unidade do hospital durante 64 dias, até nova intervenção cirúrgica, no Bloco Operatório, para desbridamento excisional da úlcera resultante da lesão de desluvamento retro-calcâneana à direita.
30. O Autor teve alta no dia 14 de junho de 2017, com posterior seguimento com o médico Ortopedista.
31. No dia 19 de julho o Autor foi sujeito a novo internamento na unidade de Ortopedia e a nova intervenção cirúrgica para remoção do fixador externo, até à alta médica no dia 21 de julho, sempre com seguimento do médico Ortopedista.
32. No dia 15 de novembro de 2017, o Autor foi novamente internado no serviço de Ortopedia, em virtude de pseudo-artrose infetada da tíbia direita, tendo sido novamente sujeito a intervenção cirúrgica, com abordagem do foco de pseudartrose, osteotomia do calo ósseo hipertrófico e colocação de cavilha revestida por antibiótico 315/9 mm após rimagem do canal medular, e teve alta no dia 12 de dezembro.
33. Não obstante o tempo decorrido, o Autor manteve ferimentos que careceram de atenção, designadamente pseudoartrose da tíbia direita, com infeção ainda em estudo, estando a ser seguido no CHUA-Portimão e no Hospital Privado de Alfena, por médico ortopedista especialista em infeções osteoarticulares e que obrigou a nova intervenção cirúrgica neste hospital (no dia 03/10/2018).
34. O Autor manteve consultas médicas com médico ortopedista, especialista em patologia do joelho, em Setúbal, com indicação de intervenção cirúrgica ao joelho para reconstrução do côndilo femoral interno do joelho esquerdo, dados os sinais de osteonecrose que apresentava.
35. O Autor foi obrigado a diversas sessões de fisioterapia, desde o primeiro internamento na Ortopedia até junho de 2018, com prescrição por tempo indeterminado de programa de reabilitação motora após as intervenções cirúrgicas e até à sua funcionalidade.
36. O Autor foi sujeito a diversos exames para diagnóstico e avaliação da evolução das intervenções, mormente Raio-X, TAC, RMN, Cintigrafia óssea, Biópsia Óssea, Ecografia, Eco-Dopples e análises de sangue, de follow-up e intervenção atempada de intercorrências verificadas.
37. O Autor ainda manteve tratamentos médicos no Porto, seguido pelo especialista Dr. (…), por recomendação da comunidade médica do CHUA-Algarve dadas as várias intervenções cirúrgicas a que foi submetido sem que se verificasse resolução e porquanto não existe na região do Algarve ortopedista com diferenciação na área específica de infeções e outras complicações associadas a próteses e outros implantes ortopédicos.
38. Continua o Autor a ser seguido no Hospital Privado de Alfena, sem periodicidade certa, em função das necessidades, o qual foi aconselhado por parte da equipa de Ortopedia do Centro Hospitalar da Universidade do Algarve, unidade de Portimão, pois o Prof. Dr. (…), é um ortopedista que exerce a sua prática na parte norte do país, com área de interesse específica em infeções e outras complicações associadas a próteses e outros implantes ortopédicos, com diversos prémios e distinções científicas.
39. O veículo automóvel que embateu no Autor encontrava-se seguro na (…) – Companhia de Seguros, S.A., mediante acordo denominado “contrato de seguro de responsabilidade civil” titulado pela apólice n.º (…), em vigor à data do sinistro.
40. O Autor desde o dia 8 de abril de 2017, já foi sujeito a, pelo menos, cinco intervenções cirúrgicas, havendo ainda necessidade de fazer pelo menos mais uma cirurgia para retirar uma cavilha.
41. O Autor esteve internado no hospital mais de cem dias.
42. O Autor sofreu grandes dores em todos os membros inferiores, bem como na região abdominal com limitação de movimento, que ainda hoje persiste.
43. Até à data a Ré não suportou quaisquer tratamentos que o Autor necessitou e ainda necessita para a sua recuperação.
44. Com o tratamento das lesões sofridas despendeu o Autor em medicamentos, a quantia de 298,29 euros (duzentos e noventa e oito euros, e vinte e nove cêntimos).
45. Em taxas moderadoras e despesas hospitalares pagas ao Centro Hospitalar da Universidade do Algarve, Hospital dos Lusíadas em Albufeira, Hospital de Setúbal, Hospital de Vila Franca de Xira, Hospital da Cruz Vermelha, Hospital da Luz, Hospital Privado de Alfena despendeu o Autor o valor global de 4.761,83 euros (quatro mil setecentos e sessenta e um euros e oitenta e três cêntimos).
46. Em despesas associadas e diretamente ligadas com deslocações ao hospital para as intervenções cirúrgicas e tratamentos, incluindo passagens aéreas, o Autor despendeu o valor de 1.403,22 euros (mil, quatrocentos e três euros e vinte e dois cêntimos).
47. O Autor desenvolvia à data do acidente a sua atividade profissional na área da saúde como Médico.
48. De maio de 2017 até outubro de 2017 previa fazer urgências no Centro Hospitalar Universitário do Algarve uma vez por semana, num período de 12 horas cada turno, à razão de 225 euros líquidos por dia de urgência.
49. Devido ao acidente de viação, ficou o Autor impedido de prestar o seu serviço no Centro Hospitalar da Universidade do Algarve, durante seis meses, perdendo a totalidade do montante de 5.400 euros (225x4 semanas=900x6 meses).
50. Do acidente resultou a destruição dos seguintes objetos: Camisa Massimo Dutti no valor de 30 euros; calções da marca Springfield no valor de 30 euros; um par de óculos Ray Ban no valor de 100 euros, tendo ficado a roupa e óculos (lentes) inutilizados.
51. No âmbito da sua atividade profissional, o Autor estava a frequentar o ano zero, que ocorre antes do efetivo exame médico de escolha para a especialidade.
52. Em virtude do acidente, viu-se o Autor impossibilitado de estudar e, consequentemente, realizar o exame Harrison, que dita a ordem pela qual os médicos escolhem a especialidade, com toda a frustração que isso trouxe.
53. Este exame seria realizado em novembro de 2017 e para ele se vinha preparando, como qualquer médico, para atingir a entrada na especialidade pretendida, e seguir a carreira da sua vida.
54. Por força do acidente de viação ficou privado da sua remuneração mensal ilíquida de 1.566,42 euros (mil quinhentos e sessenta e seis euros e quarenta e dois cêntimos), entre maio de 2017 e novembro de 2017, no valor médio mensal de 1.216,60 euros.
55. As lesões causadas ao Autor pelo atropelamento, para além das dores em todo o corpo, causaram a diminuição da sua força e movimentos, ficando diminuída a sua capacidade de pegar em objetos pesados.
56. Durante mais de um ano o Autor sofreu constantes pesadelos e perturbações do sono, sempre num estado de ansiedade diretamente provocado pelas imagens que reteve do acidente de viação em que se viu envolvido.
57. O Autor nasceu em 20.07.1987, tendo à data dos factos descritos 30 anos de idade.
58. Antes do acidente, o Autor era uma pessoa saudável, sem quaisquer perturbações ou limitações físicas, desenvolvendo uma profissão bem remunerada e com perspetivas de progresso rápido bem como participando em várias atividades desportivas, no que se viu coartado pelo que aconteceu.
59. O Autor está impedido de jogar futebol, praticar surf e participar em qualquer atividade desportiva.
60. O Autor sente-se frustrado, triste, desanimado, porquanto, tanto a nível pessoal como profissional, as sequelas irão refletir-se de forma constante.
61. Também a sua vida profissional ficou adiada pelo menos um ano.
62. Para consolidação das fraturas quer no membro inferior direito quer no membro inferior esquerdo, foi colocado fixador AO (2 pinos proximais, mais dois distais).
63. Estes fixadores de consolidação são por definição provisórias, o que implica igualmente a sua retirada passado o período fixado medicamente. 64. O Autor é beneficiário do Centro Distrital de Faro com o n.º (…).
65. Em consequência do sinistro ocorrido em 8 de abril de 2017, tendo o Autor ficado temporariamente incapacitado para o exercício da sua atividade profissional, o Centro Distrital de Faro, concedeu provisoriamente subsídio de doença ao Autor no montante de 1.425,54 euros (Mil, quatrocentos e vinte e cinco euros e cinquenta e quatro cêntimos) respeitante ao período compreendido entre 26.09.2018 e 12.11.2018.
66. No Relatório da perícia médico-legal de avaliação do dano corporal realizado a 15.01.2021, conclui-se “(…) A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 25/03/2019. Período de Défice Funcional Temporário Total sendo assim fixável num período de 325 dias. Período de Défice Funcional Temporário Parcial sendo assim fixável num período 389 dias. Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total sendo assim fixável num período de 325 dias. Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Parcial sendo assim fixável num período de 389 dias. Quantum Doloris fixável no grau 5/7. Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica fixável em 15 pontos, sendo de admitir a existência de Dano Futuro. As sequelas descritas são, em termos de Repercussão Permanente na Atividade Profissional, são compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares. Dano Estético Permanente fixável no grau 4/7. Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer fixável no grau 4/7. Ajudas técnicas permanentes: ajudas medicamentosas; tratamentos médicos.

B – O Direito
Da exclusiva responsabilidade do A na produção do acidente
Conforme decorre do disposto no artigo 483.º do CC, são requisitos do direito de indemnização o facto voluntário, a ilicitude do mesmo facto, o nexo de imputação do facto ao lesante, a ocorrência de danos e o nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano verificado. Trata-se de uma causa de pedir complexa que é integrada pelos diversos pressupostos de facto que condicionam a aplicabilidade das regras do instituto da responsabilidade civil.
Na medida em que a presente ação é proposta contra a seguradora, àqueles pressupostos acresce a existência de um contrato de seguro de responsabilidade civil que reveste a natureza de contrato a favor de terceiro.
Atenta a questão suscitada no âmbito do presente recurso, importa considerar o seguinte:
- incumbe ao lesado a prova da culpa do autor da lesão, salvo se houver presunção legal de culpa (artigo 487.º, n.º 1, do CC);
- na esfera de acidentes de viação, a culpa emerge da violação das regras ou da omissão dos cuidados que disciplinam a circulação rodoviária, o que gera responsabilidade civil do infrator e a inerente obrigação de reparar os danos daí resultantes;
- no âmbito da circulação estradal, existe ainda a obrigação de indemnizar independentemente de culpa (responsabilidade pelo risco), já que o titular da direção efetiva de qualquer veículo de circulação terrestre que o utiliza no seu próprio interesse retira as vantagens decorrentes da sua circulação, deve responder pelos riscos próprios do mesmo (artigo 503.º do CC);
- as regras atinentes à responsabilidade pelo risco só são aplicáveis no caso de ausência de culpa do ou dos intervenientes (artigo 505.º do CC).
A Recorrente (Ré Seguradora) sustenta que o Recorrido (Autor) não logrou demonstrar que recai sobre o condutor do veículo automóvel a responsabilidade pelo seu atropelamento, antes tendo resultado evidenciado que deve ser exclusivamente imputada A, o peão lesado, tal responsabilidade.
Ora vejamos.
Os factos provados relativamente às circunstâncias de tempo e de lugar são os seguintes:
- o evento teve lugar no dia 8 de abril de 2017, pelas 22h13, junto ao passeio, na Rua (…), junto ao edifício “(…)”, do lado esquerdo da faixa de rodagem, atento o sentido de marcha Portimão – Praia da Rocha;
- trata-se de uma via reta, com boa visibilidade e presença de sinalização vertical de aproximação de lombas, que existem, elevadas, no local, o que obriga os condutores a uma maior atenção na condução e até redução de velocidade;
- a velocidade no local é de 50 Km/h;
- a circulação nesse local no sentido sul-norte, em direção a Portimão vindo da Praia da Rocha, dispõe de espaço visível em frente e uma via de largura de 6,30 metros;
- nessa via foram construídas duas lombas redutoras de velocidade antes das passadeiras de peões naquele local existentes;
- em ambos os lados da via de trânsito existem passeios destinados à circulação de peões;
- o embate deu-se a uns 3 metros após a passadeira.
Relativamente à dinâmica que antecedeu o embate, provou-se o seguinte:
- o Autor (…) seguia na faixa de rodagem (via), junto ao passeio, no sentido Portimão-Praia da Rocha, no sentido contrário ao dos veículos que seguem da Praia da Rocha para Portimão;
- o Autor estava acompanhado com diversos amigos;
- o Autor havia estado com o seu grupo de colegas de trabalho numa festa de aniversário, na qual ingeriu diversas bebidas alcoólicas, desde o início da tarde até perto da hora do acidente.
- o Autor no momento do acidente apresentava uma taxa de álcool no seu sangue de 2,20 G/L;
- o Autor não pretendia nem estava a atravessar a estrada, antes circulava na mesma em grande animação com os seus colegas, sendo certo que estes seguiam pelo passeio;
- o condutor do veículo automóvel circulava no sentido sul-norte, dirigindo-se para Portimão vindo da Praia da Rocha;
- seguia a velocidade não concretamente apurada, de cerca de 40 km/h;
- o Autor invadiu a faixa de rodagem onde seguia o (…);
- imediatamente antes do embate, o Autor encontrava-se dentro da faixa de rodagem, de costas para o (…) e virado para o grupo que seguia mais atrás de si em direção à Praia da Rocha;
- o (…) desviou-se do Autor mas, quando ia a passar pelo mesmo, o Autor virou-se para a frente repentinamente e desequilibrou-se para o seu lado direito, invadindo ainda mais a faixa de rodagem;
- dada a imprevisibilidade e repentismo do comportamento do Peão, o condutor do (…) não teve tempo de evitar o embate, ficando impedido de desviar mais o veículo atendendo que circulavam outros veículos em sentido contrário;
- o embate deu-se completamente dentro da faixa de rodagem destinada à circulação do (…);
- o embate deu-se no espelho retrovisor direito do (…) num primeiro momento, tendo ato continuo o peão embatido também ao longo de todo o lado direito do (…);
- após o embate o Autor foi projetado para o chão;
- o veículo automóvel imobilizou-se a uma distância de pelos menos 21,5 metros do embate.
Dos factos provados que não resulta que o condutor do veículo automóvel tenha violado norma estradal ou omitido qualquer cautela que lhe seja imposta pelas normas que regulam a circulação estradal. Não violou o dever de circular conservando a distância suficiente dos passeios que permita evitar acidentes nem a regra de adequação da velocidade; não consta que seguisse a velocidade tal que fosse de considerar desadequada ao local ou às concretas circunstâncias então verificadas.
Na verdade, o condutor do veículo automóvel observou o regime inserto no artigo 13.º, n.º 1, do CE, relativa à circulação a distância de segurança de bermas e passeios: desviou-se do Autor mas, quando ia a passar pelo mesmo, este virou-se para a frente repentinamente, desequilibrou-se para o seu lado direito, invadindo ainda mais a faixa de rodagem; dada a imprevisibilidade e repentismo do comportamento do peão, o condutor não teve tempo de evitar o embate, ficando impedido de desviar mais o veículo, atendendo que circulavam outros veículos em sentido contrário.
Já “a regra estradal de que os condutores devem especialmente fazer parar o veículo no espaço livre à sua frente”, o artigo 24.º, n.º 1, do CE, “significa deverem assegurar-se, no exercício da condução automóvel, de que a distância entre o veículo e qualquer obstáculo visível é suficiente para, em caso de necessidade, o fazerem parar, o que não envolve a exigibilidade de previsão, em cada momento, do surgimento inopinado de obstáculos na via ou imprudência de terceiros.”[1] “O condutor de um veículo não é obrigado a prever ou contar com a falta de prudência dos restantes utentes da via - veículos, peões ou transeuntes - antes devendo razoavelmente partir do princípio de que todos cumprem os preceitos regulamentares do trânsito e observam os deveres de cuidado que lhes subjazem.”[2] “Não é exigível que o condutor de um veículo automóvel preveja, em cada momento, o surgimento inopinado de obstáculos decorrentes da imprudência de terceiros ou da violação, por estes, de normas de direito rodoviário. Não pode, pois, exigir-se ao condutor de um automóvel que conte com a atuação da vítima (…), que se aventurou a atravessar, a correr, alheio ao trânsito rodoviário, uma via com separação se sentido (…), de forma imprevista e inconsiderada.[3]
Não se acompanham os argumentos esgrimidos na decisão recorrida no sentido de que o condutor do veículo devia tê-lo imobilizado antes de se aproximar do peão e devia ter buzinado, alertando o peão para a sua presença esperando, então, que o peão retomasse o passeio. É que:
- o condutor desviou-se do peão para a direita;
- quando ia a passar pelo mesmo, o Autor virou-se para a frente repentinamente, desequilibrou-se para o seu lado direito, invadindo ainda mais a faixa de rodagem;
- o condutor do (…) não teve tempo de evitar o embate, dada a imprevisibilidade e repentismo do comportamento do peão;
- não pôde desviar mais o veículo para a direita atendendo que circulavam outros veículos em sentido contrário;
- inexiste o dever de buzinar.
O condutor atuou com a prudência devida, não lhe sendo exigível que imobilizasse o veículo, pois não é previsível que o peão, perante a aproximação de veículo, invada ainda mais a faixa de rodagem. Está provado que a conduta do peão foi imprevisível e repentina, e que essa conduta repentina é que foi causal do embate. Embate que o condutor não pôde evitar.
Por outro lado, o artigo 22.º do CE, referindo-se aos sinais sonoros, estabelece os casos em que é permitida a respetiva utilização. Não é imposto, por nenhuma norma que regula a circulação estradal, o dever de buzinar. Donde, a não utilização de sinal sonoro não pode consubstanciar conduta ilícita e culposa. Além de que está por demonstrar que o acionamento da buzina do veículo desencadeasse conduta diversa no peão, naquele concreto enquadramento.
Nestes termos, a conduta desenvolvida pelo condutor do veículo automóvel não se mostra revestida de ilicitude e culpa.
O mesmo não se diga da conduta desenvolvida pelo A.
Nos termos do disposto no artigo 99.º, n.º 1, do CE, os peões devem transitar pelos passeios (…) ou, na sua falta, pelas bermas. Segue o n.º 2, cujas als. a) e b) estabelecem que os peões podem transitar pela faixa de rodagem, com prudência e por forma a não prejudicar o trânsito de veículos, quando efetuem o seu atravessamento ou na falta dos locais referidos no n.º 1 ou na impossibilidade de os utilizar.
Ora, o A seguia na faixa de rodagem, de costas para o sentido de circulação automóvel no local, sendo certo que existia ali passeio; de forma imprevisível e repentina, virou-se e desequilibrou-se para o seu lado direito, invadindo ainda mais a faixa de rodagem da faixa de rodagem. Manifestamente, não observou os deveres de cuidado que lhe são impostos na qualidade de peão. O que foi causa direta e exclusiva do embate de que foi vítima.
Excluído está, portanto, o dever de indemnizar a cargo da Recorrente Seguradora – artigo 505.º do CC.
Procede o recurso, afigurando-se inútil das demais questões suscitadas.

As custas recaem sobre o Recorrido – artigo 527.º, n.º 1, do CPC.

Sumário: (…)


IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela total procedência do recurso, em consequência do que se revoga a decisão recorrida, absolvendo a Ré dos pedidos contra si formulados.

Custas pelo Recorrido.

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Évora, 2 de março de 2023
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões
Ana Margarida Leite

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[1] Ac. STJ de 29/04/2004, no Proc. 1302/04 da 7.ª secção (relator Salvador da Costa).
[2] Ac. STJ de 25/3/2004, no Proc. 4193/2003, in C.J.,1, pág. 140.
[3] Ac. STJ de 19/10/2004 (relator Araújo de Barros).