Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
594/17.1T8ALR.E1
Relator: ANABELA LUNA DE CARVALHO
Descritores: HABILITAÇÃO DE HERDEIROS
IMPOSSIBILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
CONFUSÃO
Data do Acordão: 03/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - A decisão proferida em incidente de habilitação de herdeiros não constitui caso julgado formal, em relação à questão do prosseguimento ou não da ação de reconhecimento do direito e propriedade para efeitos patrimoniais (artigo 1785.º, n.º 3, do CC).
- A decisão que habilita a Ré do lado ativo, do ponto de vista substantivo fá-lo apenas como representante da herança indivisa por morte de seu pai.
- Logo, não há confusão (subjetiva) de direitos e obrigações na sua pessoa, porque na mesma pessoa não se reúnem as qualidades de credor e devedor da mesma obrigação, como previsto no artigo 868.º do Código Civil.
- É certo que a habilitação-incidente prevista nos artigos 351.º e seguintes do Código de Processo Civil implica uma modificação da instância quanto às pessoas (artigo 262.º, alínea a), do CPC), substituindo uma das partes na relação jurídica processual, pelos seus sucessores.
- Embora do ponto de vista processual a habilitação da Ré a coloque numa aparente contradição de posições processuais, há que atender ao facto de haver na ação uma co-demandante cujo interesse na ação se mantém intocável.
- Não pode essa demandante ver-se privada de deduzir e defender os direitos que relativamente ao imóvel, lhe possam porventura assistir.
- Atendendo à sempre que possível prevalência do fundo sobre a forma que decorre da filosofia do Código de Processo Civil (cfr. preâmbulo ao DL n.º 329-A/95, de 12/12), importará questionar se, do ponto de vista substantivo, se gerou uma situação de impossibilidade superveniente da lide que deva conduzir à extinção da instância, nos termos do disposto no artigo 277.º, alínea e), do CPC.
- Não há impossibilidade ou inutilidade da lide quando a ação continua a ter interesse para uma co-demandante, por ser ainda possível satisfazer-se à pretensão que esta quer fazer valer no processo.
- Daí que só ocorre inutilidade ou impossibilidade superveniente da lide, quando a extinção, por confusão, dos direitos e obrigações das partes atinja todos os litigantes.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 594/17.1T8ALR.E1
2ª Secção

Acordam no Tribunal da Relação de Évora:


I
Em 29/12/2017 (…) e mulher (…) intentaram a presente ação contra (…), maior, pedindo o reconhecimento do seu direito de propriedade, adquirido por usucapião, relativamente ao prédio urbano sito no concelho de Alpiarça que melhor identificam, outrora propriedade de (…), filho dos Autores e pai da Ré, falecido em 1986.

Usucapião essa decorrente da edificação duma moradia pelos Autores no formato unifamiliar, assente quer sobre aquele prédio quer sobre um outro contíguo dos AA., e na qual vieram a morar, entrando na sua posse ininterrupta e de boa fé, desde 1989.

Em 14/02/2018 a Ré apresentou contestação por exceção e impugnação.

Relativamente àquela invocou, entre o mais, a preterição de litisconsórcio necessário passivo, por ser casada no regime da comunhão de adquiridos. No âmbito da impugnação, alegou terem dos AA. apenas os direitos de mero uso e habitação, como sempre acordado com a Ré e, anteriormente à sua maioridade, com a mãe desta, em sua representação, direito esse insuscetível de conduzir à usucapião.

Por fim, pede a condenação dos AA. como litigantes de má-fé.

Os AA. deduziram o incidente de intervenção principal provocada do marido da Ré, (…), que foi citado e, em articulado próprio veio aderir à contestação da co-Ré (…).

Em 15/10/2019 foi proferido despacho saneador que ordenou o prosseguimento dos autos para conhecimento do objeto do litígio.

Em 19/10/2021 foi dado conhecimento ao processo do falecimento do Autor a 13/08/2021, tendo sido proferido despacho de suspensão da instância.

Habilitadas as herdeiras (Autora e Ré) foi declarada cessada a suspensão e designada a data de 22/06/2022 para a audiência de julgamento (despacho de 08/03/2022).

Em 20/06/2022 veio a Ré deduzir articulado superveniente requerendo a extinção da instância por impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, alegando que, a Ré, na qualidade de neta, foi habilitada herdeira legitimária do Autor (…), juntamente com a viúva deste, sua avó, a Autora (…).

Desse modo a Ré enquanto herdeira do Autor, passou a ser titular, juntamente com a viúva daquele, dos direitos que o Autor falecido se arrogava na presente ação e, assim, passou também a ocupar a posição de Autora. E, uma vez que a herdeira já figura como Ré, não pode assumir ambas as vestes em simultâneo na mesma ação.

Assim, pediu a extinção da lide por confusão, nos termos do disposto no artigo 868.º do Código Civil, uma vez que ela Ré assume, por via da habilitação de herdeiros, a posição ativa e passiva na situação material controvertida.

E, também porque, passando a Ré a ser também Autora na ação, pelo facto superveniente que é o decesso de seu avô (Autor), ocorre uma manifesta impossibilidade superveniente da lide – artigo 277.º, alínea e), do Código de Processo Civil.

Em 17/10/2022, o tribunal a quo decidiu declarar extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 277.º, alínea e), do CPC.

Inconformada com tal decisão veio a Autora recorrer assim concluindo as suas alegações de recurso:

i. Foi proferida sentença nos presentes autos que face ao decesso do A. determinou a extinção da instancia por inutilidade superveniente da lide.

ii. Os AA. peticionavam nos presentes autos que lhes fosse reconhecido o direito de propriedade sobre prédio detido pela R. onde foi edificada há mais de 30 anos a sua habitação, tendo desde então mantido a posse sobre o prédio da R. de forma pública, pacifica e de boa fé.

iii. O tribunal recorrido entendeu extinguir a instancia alegando para tal que a mesma não poderia prosseguir para a apreciação do pedido tanto mais que a R. passou a figurar também como A. atenta a habilitação promovida pela A..

iv. Tal não é correcto na medida em que a A. efetivamente habilitou-se nos autos, requerendo o seu prosseguimento contra a Ré.

v. A decisão a proferir a final, sendo a ação julgada procedente terá influência na proporção dos quinhões de cada uma das herdeiras.

vi. Isto porque reconhecida a usucapião da A. sobre esta figurará uma quota parte superior pois que o prédio da R. fará parte da herança do dissolvido casal.

vii. Ao invés, prevalecendo a tese da decisão recorrida temos que o direito da A. ficará sempre prejudicado na medida em que se vê privada de partilhar o bem que lhe pertence por o ter adquirido por usucapião, conjuntamente com o seu falecido marido.

viii. Aqui se centra a questão basilar do presente recurso que assenta em determinar qual o património do dissolvido casal que deverá fazer parte da herança por óbito do falecido Autor.

ix. É que procedendo a presente ação a quota parte da A. é manifestamente superior à da R. que terá apenas direito ao quinhão hereditário em representação de seu pai, pré-falecido.

x. A ré requerer a extinção da instância por impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, fundamentando o seu pedido no facto de ter sido habilitada nos presentes autos para prosseguir a acção do lado activo, o que não corresponde à verdade, ainda que, conjuntamente com a co-autora (…), sejam ambas herdeiras do primitivo co-autor (…).

xi. A presente acção foi proposta por (…) e mulher (…) contra (…), sendo o pedido formulado o seguinte: «Deve a presente ação ser julgada provada e procedente e ser reconhecido o direito de propriedade adquirido por usucapião, pelos AA. do prédio urbano sito na Rua (…), na freguesia e concelho de Alpiarça, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º (…)/Alpiarça, inscrito na matriz sob o artigo (…), que atualmente é parte do artigo (…)».

xii. À data da propositura da acção, (…) e (…) eram casados entre si no regime da comunhão geral de bens;

xiii. Por virtude do falecimento do co-autor ocorrido em 13/08/2021, a co-autora (…) deduziu incidente de habilitação de herdeiros requerendo a habitação nos presentes autos dela própria e da ré para prosseguirem a acção;

xiv. Em 14/01/2022 foi proferida sentença no apenso D (habilitação de herdeiros), nos termos da qual, como requerido, foram julgadas habilitadas para prosseguirem os termos da demanda, as herdeiras do autor (…), nomeadamente (…) e (…), não tendo sido apresentado recurso dessa decisão.

xv. Dispõe ao artigo 351.º, n.º 1, do CPC, que «1- A habilitação dos sucessores da parte falecida na pendência da causa, para com eles prosseguirem os termos da demanda, pode ser promovida tanto por qualquer das partes que sobreviverem como por qualquer dos sucessores e deve ser promovida contra as partes sobrevivas e contra os sucessores do falecido que não forem requerentes».

xvi. A habilitação-incidente prevista no mencionado normativo implica uma modificação da instância quanto às pessoas (262.º, alínea a), CPC), ou seja, a substituição de algumas das partes na relação jurídica processual em litígio, neste caso, por sucessão.

xvii. Como se referiu no Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 02/11/2010, Proc. 90/08.8TBSCG-A.L1-1, disponível em www.dgsi.pt, o incidente de habilitação é «(…) uma forma de modificação subjectiva da instância, que visa colocar um sucessor no lugar que o falecido ocupava no processo pendente, e a fim de a causa poder prosseguir com ele, ou seja, o habilitado apenas vai ocupar a posição do falecido, exercendo os direitos e cumprindo as obrigações que a este último competiam, ficando sujeito à sua anterior actuação processual e devendo aceitar a tramitação no estado em que a encontrar e apenas impulsionando para o futuro e dentro destes limites, o processo. Concluindo, a habilitação-incidental tem como desiderato (5) promover a substituição da parte primitiva pelo sucessor na situação jurídica litigiosa, ocorrendo uma modificação subjectiva da instância (artigo 270.º, alínea a), do C.P.C.), mediante a legitimação sucessiva do sucessor, enquanto tal e para a causa, ficando o seu efeito limitado a esta última, pois que o sucessor é habilitado não erga omnes, mas perante o litigante com o qual pleiteava o falecido (cfr. ainda José Alberto dos Reis , in CPC anotado, vol. I, 1982, pág. 575).

xviii. Vertendo ao caso dos autos, temos que, por via da habilitação operada, a Ré deverá figurar naquela posição processual, porque o que está em causa nos presentes autos é a determinação do direito de propriedade sobre bem que se encontra registado a seu favor.

xix. A autora e o decesso autor eram casados no regime da comunhão geral de bens, pelo que, destinando-se a presente acção ao reconhecimento da aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um bem imóvel, e existindo naturalmente o risco de, na sua improcedência, os autores ficarem sem esse bem no seu património, acção sempre teria de ser proposta – como foi(!) – por ambos os cônjuges, sendo certo que poderá sempre um dos cônjuges prosseguir com os autos para determinação do direito de propriedade sobre o imóvel que se encontra ainda registado a favor da R. mas que há-de figurar posteriormente na herança por óbito do A., atento o regime de bens da recorrente e seu falecido marido.

xx. Efetuou a recorrente incidente de habilitação por forma a que os autos pudessem prosseguir atenta a suspensão da instancia declarada.

xxi. No incidente de habilitação a recorrente requereu a sua habilitação, tendo requerido ainda que os autos prosseguissem seus termos contra a Ré.

xxii. Note-se que a circunstancia de ter falecido o cônjuge da A. não impede que os autos possam prosseguir.

xxiii. Não obstante tal, a procedência da presente ação terá influencia nos quinhões de cada uma das interessadas (A. e R.).

xxiv. Procedendo a ação o direito da A. incidirá sobre o prédio que se mostra descrito a favor da R., passando esta a deter sobre o mesmo, meação, quinhão e quota disponível por via de testamento outorgado pelo falecido A..

xxv. Terão sempre os presentes autos sendo o desfecho favorável à A. relevância para aquilatar da proporção dos quinhões hereditários de cada uma das herdeiras.

xxvi. Porque assim é, os autos deveriam ter prosseguido seus termos, determinando-se, assim, de acordo com o desfecho destes autos, qual o quinhão de cada uma das herdeiras.

xxvii. A herança corresponde a um património autónomo, cabendo a cada um dos herdeiros o direito a uma parte ideal, que representa uma quota-parte do património hereditário, sendo, por isso, apenas contitulares do direito à herança e não de cada um dos bens que integra o acervo hereditário.

xxviii. Pertinente se mostra o prosseguimento destes autos por forma a apurar qual a quota parte de cada um dos interessados na herança aberta por óbito do falecido A. (…).

xxix. Dito isto, podemos concluir que, por morte de “A”, o património do casal, como um todo, ficou a pertencer, na proporção das respectivas quotas, ao cônjuge sobrevivo e aos filhos do casal, reportando-se pois aquelas não a cada bem individualmente considerado, mas ao todo, sendo que releva o desfecho dos presentes autos para a determinação da proporção de cada quinhão.

xxx. A decisão recorrida violou o disposto nos artigos 34.º, 262.º, alínea a), 270.º, alínea a), 277.º, alínea e), 351.º, todos do C.P.C. e artigo 1682.º-A, n.º 1, alínea a), do C.C..

A final requer que se revogue a decisão proferida em sede de 1ª instância e em consequência se determine a baixa dos autos à primeira instância prosseguindo os autos para produção de prova nos termos requeridos na Petição inicial.

Contra-alegou a Ré nos seguintes termos:

1. Por douta decisão proferida em 17-10-2022 foi declarada extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide, nos termos do disposto no artigo 277.º, alínea e), do Código de Processo Civil, porquanto a Ré passou a assumir nos autos (…)

2. Esta douta decisão está devidamente fundamentada, estruturada e mostra-se juridicamente acertada à questão suscitada pela ora recorrida, por via do requerimento de 22-06-2022, pelo que não merece reparo.

3. De facto, a recorrida requereu a extinção da presente instância porquanto passou a assumir nos autos as duas posições: Ativa e Passiva, ou seja, Autora e Ré, na senda da douta sentença prolatada em 14 de janeiro de 2022, no apenso D.

4. Por meio da douta sentença supra, foram julgadas habilitadas para prosseguirem os termos da presente demanda, as herdeiras do autor (…), nomeadamente (…) e (…).

5. A douta sentença de habilitação de herdeiros não foi alvo de reclamação ou recurso, encontra-se transitada em julgado.

6. Recorde-se que, o impulso processual da habilitação de herdeiros foi da Autora.

7. Podendo ter optado por requerer apenas a habilitação de herdeiros da própria, a Autora não o fez, tendo requerido forma expressa a habilitação da própria e da Ré, para, conjuntamente, prosseguirem os termos da ação em substituição do falecido.

8. Como plasmado no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo n.º 90/08.8TBSCG-A.L 1-1, de 02-11-2010, disponível em www.dgsi.pt, citado pela recorrente nas suas doutas alegações de recurso e, pela douta decisão recorrida, “(...) a habilitação incidental respeita apenas à transmissão da posição jurídica litigiosa, a qual não tem que coincidir com a transmissão universal dos direitos do falecido (...)”.

9. Até prolação da decisão sob recurso a recorrida assumiu, cumulativamente, no processo a posição de Autora e de Ré, o que não é concebível, sendo incoerente, ilógico, confuso e representar uma aberratio processual.

10. Em boa hora o Tribunal a quo decidiu pela extinção da instância por impossibilidade e inutilidade superveniente da lide, evitando uma decisão ilógica e contraditória, não permitida pela ordem jurídica.

11. De facto, cremos que os autos estariam votados a uma “contradição insanável” pelo facto de a recorrida assumir, simultaneamente, no processo, a posição processual de Ré e de Autora.

12. A situação em litígio configurava um caso de litisconsórcio ativo necessário, por incidir sobre imóvel que constitui a casa de morada de família dos Autores, tal como circunstanciado na douta petição inicial.

13 . Portanto, tal significa que face aos contornos fácticos, seria sempre necessária a intervenção de ambos os cônjuges Autores para que se obtivesse o efeito útil da decisão judicial, como resulta da conjugação dos artigos 1682.º-A, n.º 1, alínea a), do Código Civil e 34.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, como bem evidencia a douta decisão sob recurso.

14 . Ao contrário do propugnado pela recorrente, os autos não configuram caso de litisconsórcio ativo voluntário, uma vez que tratando-se da casa de morada de família dos Autores, casados entre si no regime de comunhão geral (como decorre dos autos), qualquer ato de oneração ou disposição incidente sobre a casa de morada de família careceria do consentimento de ambos para ser válido, como decorre do artigo 1682.º-A do Código Civil.

15 . Pelo que, atento o litisconsórcio necessário e dada a matéria em apreço nos autos, cremos que, falecendo uma das partes torna-se, desde logo, impossível e inútil a continuação da lide, como decorre do número 3 do artigo 269.º do Código de Processo Civil, nem sendo necessária habilitação de herdeiros do falecido.

16. Não obstante, tendo a Ré sido habilitada como Autora, para prosseguir os termos do processo, situação processual que foi peticionada pela própria recorrente, que acatou o teor da douta sentença de habilitação de herdeiros proferida,

17. não pode, agora, a Autora recorrente eximir-se à consequência judicialmente determinada que operou a extinção da presente instância por impossibilidade e inutilidade superveniente da lide, sob pretexto do presente recurso.

18. Com o devido respeito, o recurso interposto não tem fundamento, configura uma estratégia vã para tentar reverter o efeito processual da douta sentença de habilitação de herdeiros, que nunca foi posta em causa pela recorrente.

19. O real objetivo da recorrente é definir o acervo da herança em prejuízo da neta, ora Ré, o que não lhe é permitido e nada tem que ver com o objeto deste processo, por conseguinte, com o devido respeito, as doutas conclusões de recurso elencadas sob os número V, VI, VII, VIII, IX, X, XI, XXIII, XXIV, XXV, XXVI, XXVII, XXVIII, XXIX, XXX representam uma argumentação falaciosa.

20. Portanto, bem decidiu o douto Tribunal a quo, declarando extinta a presente instância por impossibilidade superveniente da lide, ao abrigo do disposto no artigo 277º al. e) do Código de Processo Civil, dando-se aqui por reproduzidos todos os fundamentos da douta decisão prolatada, que deve manter-se na íntegra.

Assim sustenta a manutenção da decisão recorrida.


II

Na consideração de que o objeto dos recursos se delimita pelas conclusões das alegações (artigos 635.º, 3 e 639.º, 1 e 2, CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 608.º, in fine), é a seguinte a questão a decidir:

- Se a presente ação de reivindicação (não) se tornou supervenientemente impossível, em consequência do incidente de habilitação do Autor.


III

É a seguinte a factualidade a considerar, em parte já constante do relatório supra:

1 - A presente ação foi proposta por (…) e mulher (…) contra (…), sendo o pedido formulado o seguinte: «Deve a presente ação ser julgada provada e procedente e ser reconhecido o direito de propriedade adquirido por usucapião, pelos AA. do prédio urbano sito na Rua (…), na freguesia e concelho de Alpiarça, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º (…)/Alpiarça, inscrito na matriz sob o artigo (…), que atualmente é parte do artigo (…)».

2 - À data da propositura da ação, (…) e (…) eram casados entre si no regime da comunhão geral de bens;

3 - Por virtude do falecimento do coautor ocorrido em 13/08/2021, a coautora Maria Antónia Matias Arraiolos deduziu incidente de habilitação de herdeiros requerendo a habitação nos presentes autos dela própria e da ré para prosseguirem a ação;

4 - Em 14/01/2022 foi proferida sentença no apenso D (habilitação de herdeiros), nos termos da qual, como requerido, foram julgadas habilitadas para prosseguirem os termos da demanda, as herdeiras do autor (…), nomeadamente (…) e (…), não tendo sido apresentado recurso dessa decisão.


IV

Entendeu a decisão recorrida que:

“[u]ma vez que a sentença de habilitação já há muito se mostra transitada em julgado, procedem, assim, os argumentos da ré no sentido em que a respetiva habilitação nos autos para prosseguir a demanda do lado ativo, por virtude do falecimento do primitivo coautor, configura uma situação de impossibilidade superveniente da presente lide que, nos termos do disposto no artigo 277.º, alínea e), do CPC conduz à extinção da instância, que será declarada.

Por fim, resta referir que, contrariamente ao argumentado pela autora, presentemente, isto é, encontrando-se já a ré habilitada do lado ativo da ação, em substituição do primitivo coautor, os presentes autos nunca poderiam seguir os seus termos apenas com a autora do lado ativo, pois que a situação em litígio configura um caso de litisconsórcio necessário ativo, e não um caso de litisconsórcio voluntário como agora alegado pela autora.

Com efeito, dispõe o n.º 1 do artigo 34.º do CPC que devem «ser propostas por ambos os cônjuges, ou por um deles com consentimento do outro, as ações de que possa resultar a perda ou a oneração de bens que só por ambos possam ser alienados ou a perda de direitos que só por ambos possam ser exercidos, incluindo as ações que tenham por objeto, direta ou indiretamente, a casa de morada de família.”

Por seu turno, a lei substantiva estabelece que carece do consentimento de ambos os cônjuges, a alienação, oneração, arrendamento ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre imóveis próprios ou comuns, salvo se entre eles vigorar o regime da separação (artigo 1682.º-A, n.º 1, alínea a), do Código Civil).

Ora, a autora e o decesso autor eram casados no regime da comunhão geral de bens, pelo que destinando-se a presente ação ao reconhecimento da aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um bem imóvel, e existindo naturalmente o risco de, na sua improcedência, os autores ficarem sem esse bem no seu património, ação sempre teria de ser proposta – como foi – por ambos os cônjuges, sob pena de preterição de litisconsórcio necessário.»

Vejamos, pois.

A decisão proferida em incidente de habilitação de herdeiros, no apenso D, não constitui caso julgado formal, em relação à questão do prosseguimento ou não da ação de reconhecimento do direito e propriedade para efeitos patrimoniais (artigo 1785.º, n.º 3, do CC) a decidir nestes autos.

Tal decisão limitou-se a julgar como habilitadas para prosseguirem os termos da demanda, as herdeiras do autor (…), no caso, … (Autora) e … (Ré).

Nessa habilitação a Ré (…) surge habilitada do lado ativo apenas como representante da herança indivisa por morte de seu pai, pelo que, a esta herdeira não assiste o direito específico de propriedade sobre o bem em causa reclamado por seu pai, direito que subsiste na titularidade da herança indivisa.

Logo, não há confusão (subjetiva) de direitos e obrigações na sua pessoa, o que só acontece quando na mesma pessoa se reunem as qualidades de credor e devedor da mesma obrigação, como previsto no artigo 868.º do Código Civil.

A habilitada (…) não alcança do ponto de vista substantivo uma indistinção de posições perante um mesmo objeto.

É certo que a habilitação-incidente prevista nos artigos 351.º e seguintes do Código de Processo Civil implica uma modificação da instância quanto às pessoas (artigo 262.º, alínea a), do CPC), ou seja, provoca a substituição de uma das partes na relação jurídica processual em litígio, pelos seus sucessores. E que, do ponto de vista processual a posição da habilitada (…) coloca-a numa sobreposição de posições processuais aparentemente antagónicas.

Sucede que para além da habilitada (…) há mais uma requerente cujo interesse na ação se mantém intocável. E que no caso é a recorrente/Autora.

No caso concreto, não pode esta ver-se privada de deduzir e defender os direitos que relativamente ao imóvel, lhe possam porventura assistir, se se considerar que a habilitação da Ré (…) gera um quadro de “confusão legalmente inadmissível e que, como tal não pode subsistir”, como ponderou a sentença recorrida.

Atendendo à sempre que possível prevalência do fundo sobre a forma que decorre da filosofia do Código de Processo Civil (cfr. preâmbulo ao D-L n.º 329-A/95, de 12/12), importará questionar se, do ponto de vista substantivo, ou seja, numa apreciação de fundo, se gerou uma situação de impossibilidade superveniente da lide que deva conduzir à extinção da instância, nos termos do disposto no artigo 277.º, alínea e), do CPC.

A resposta que se impõe é negativa. Não se está perante essa impossibilidade de fundo.

Como bem refere a recorrente nas suas conclusões V. a IX.:

“[a] decisão a proferir a final, sendo a ação julgada procedente terá influencia na proporção dos quinhões de cada uma das herdeiras. Isto porque reconhecida a usucapião da A. sobre esta figurará uma quota parte superior pois que o prédio da R. fará parte da herança do dissolvido casal. Ao invés, prevalecendo a tese da decisão recorrida temos que o direito da A. ficará sempre prejudicado na medida em que se vê privada de partilhar o bem que lhe pertence por o ter adquirido por usucapião, conjuntamente com o seu falecido marido. Aqui se centra a questão basilar do presente recurso que assenta em determinar qual o património do dissolvido casal que deverá fazer parte da herança por óbito do falecido A. É que procedendo a presente ação a quota parte da A. é manifestamente superior à da R. que terá apenas direito ao quinhão hereditário em representação de seu pai, pré-falecido.”

Não pode haver impossibilidade ou inutilidade da lide quando a ação continua a ter interesse para uma co-demandante, por ser ainda possível satisfazer-se à pretensão que esta quer fazer valer no processo.

Daí que a jurisprudência venha a afirmar que só ocorre inutilidade ou impossibilidade superveniente da lide, quando a extinção, por confusão, dos direitos e obrigações das partes atinja todos os litigantes – nesse sentido o Acórdão do STJ de 17-11-2021 (Nuno Pinto de Oliveira), proc. n.º 391/17.4T8GMR.G1.S1, in www.dgsi.pt.

Entendimento que tem a nossa concordância.

Assim, tendo presente que a Ré (…) surge habilitada do lado ativo apenas como representante da herança indivisa por morte de seu pai, não como titular do direito subjetivo de que este se arroga, e que a ação continua a ter interesse para a co-demandante (…), não se verifica qualquer confusão de interesses nem impossibilidade que obste ao prosseguimento da lide.

Devendo a ação prosseguir.

Síntese conclusiva:

(…)


V

Termos em que, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida que se substitui por outra que julga não verificada a situação de impossibilidade superveniente da lide, devendo a ação prosseguir.

Custas pela Recorrida.

Évora, 02/03/2023

Anabela Luna de Carvalho (Relatora)

Mário João Canelas Brás (1º Adjunto)

Jaime Pestana (2º Adjunto)