Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
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| Relator: | ANABELA LUNA DE CARVALHO | ||
| Descritores: | REGULAÇÃO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS PARTICIPAÇÃO MENOR PROVAS | ||
| Data do Acordão: | 12/07/2023 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Sumário: | 1 - A lei consagra o princípio-regra da audição obrigatória da criança, apenas excecionado se esta, face à sua idade e maturidade, não tiver capacidade de compreensão dos assuntos em discussão. 2 - Ao promover e instituir o princípio-regra da audição obrigatória da criança, o legislador quis que, no âmbito dos processos tutelares cíveis, a ação de regulação das responsabilidades parentais não se reconduzisse a um mero processo de partes, fazendo da participação da criança, não apenas um elemento probatório essencial na avaliação do seu superior interesse, mas o próprio meio de prossecução do seu superior interesse. 3 - A violação deste direito afeta a validade das decisões finais dos correspondentes processos por corresponder a um princípio geral com relevância substantiva, não sendo adequado aplicar-lhe o regime das nulidades processuais, ou seja, conduz à anulação da decisão. (Sumário da Relatora) | ||
| Decisão Texto Integral: | Apelação n.º 1292/23.2T8TMR-A.E1 2ª Secção
Acordam no Tribunal da Relação de Évora I Corre termos ação de regulação do exercício das responsabilidades parentais, respeitantes aos menores (…) e (…). A ação foi instaurada em 29/08/2023 e, à data, os menores (…) e (…) encontravam-se a residir em (…) com a progenitora, mantendo o progenitor a sua residência em (…), na que foi até data recente, casa de morada de família. Para definição de um regime provisório foi marcada uma Conferência de Pais. Antes da sua realização, por requerimento de 25/09/2023 o progenitor requereu a audição do menor (…), então com 9 anos de idade, evidenciando o facto de o mesmo “possuir discernimento suficiente para prestar declarações sobre os assuntos que diretamente lhe digam respeito”. Dada a proximidade da data o tribunal a quo decidiu relegar para o momento da Conferência, a decisão quanto a tal audição. Na conferência de pais foi tentado o acordo, o que não se logrou, em particular quanto à determinação da residência das crianças após a separação dos progenitores, estando a mãe em (…) e o pai em (…). Consta da respetiva ata o seguinte Despacho quanto à audição do menor (…): “Considerando a idade da criança e as referências que foram feitas quanto às dificuldades que o jovem sente ao deixar a casa do pai, como por outro lado, as condutas que o pai terá assumido para com este no que se prende com censuras físicas, não se procede, por ora, à audição do menino.” II Pelo tribunal a quo foram fixados os seguintes factos: 1 - O (…) nasceu a 20-08-2014; 2 - O (…) nasceu 19-07-2019; 3 - São ambos filhos da requerente e do requerido; 4 - Os meninos viveram em (…) até final de Agosto de 2023; 5 - Até aí frequentaram escola e equipamento de infância em (…); 6 - A partir de final de Agosto de 2023 estão a viver com a mãe em (…), (…); 7- Desde meados de Setembro de 2023, o (…) frequenta a 4.ª classe em escola na (…), onde está integrado com alunos do terceiro ano. 8 - O (…) frequenta Jardim de Infância e ATL na área de residência da mãe; 9 - Desde meados de setembro de 2023 que os meninos têm estado com o pai aos fins de semana, no período compreendido entre o final da tarde de sexta feira até ao final da tarde de domingo, indo o pai buscar os meninos à escola da área de residência da mãe, e a mãe vindo recolher os meninos à residência do pai em (…); 10 - O (…) gosta de estar com o pai; 11 - O (…) descreve censuras físicas que o pai lhe terá feito há cerca de dois anos com uma colher de pau e relatou outras abordagens físicas ocorridas na oficina da empresa do pai que o levaram a ter receio de contrariar o pai; 12 - O (…) hoje não sente receio de confrontar ou contrariar o pai; 13 - O (…) sente saudades dos amigos que tinha na sua casa em (…); 14 - A mãe tem receio que o pai possa assumir comportamentos violentos para com os filhos, nomeadamente no que toca a castigos corporais e entende que o pai se apresenta instável emocionalmente, tendo por adequado, para bem de todos, a realização de avaliação psicológica; 15 – O pai entende que a mãe assume uma conduta diferenciada para com os filhos, censurando o (…) e não corrigindo o (…); 16 - A mãe entende que o pai procura manipular os meninos no sentido de os atrair para um regime de residência habitual consigo, com convívios em fins de semana e férias com a mãe; 17 – O pai entende que a mãe procura pressionar emocionalmente os seu filho (…) para que não queira residir habitualmente com o pai; 18 - Na primeira quinzena de Setembro não terão ocorrido convívios das crianças com o pai por estes não terem logrado chegar a consenso quanto à sua implementação; 19 - O pai não concorda com o desenraizar dos seus filhos do seu ambiente de (…), e entende a atitude da mãe como ilícita; 20 - A mãe saiu de casa e participou factos às autoridades que se poderão enquadrar no crime de violência doméstica, de que terá sido autor o requerido; 21 - A mãe concorda que, caso os meninos fiquem a residir habitualmente consigo, os mesmos convivam com o pai na interrupção letiva antes das férias do Natal, e metade das férias do Natal e metade das férias de Verão; 22 - O pai defende que os filhos devem residir habitualmente consigo por dispor de melhores condições em termos de escolas e acompanhamento do que aquele que têm junto da mãe, e não coloca entrave ao convívio dos meninos com a mãe. Oficiosamente este Tribunal da Relação adita o seguinte facto, com base na motivação referida na sentença: 23 - O Tribunal a quo assentou a sua convicção nas declarações colhidas de cada um dos pais.
Com base em tais factos foi fixado o seguinte regime provisório: “I - A residência habitual das crianças deverá ser com mãe, cabendo a gestão dos atos de particular importância a ambos os pais. II - Quanto a convívios, a proposta apresentada afigura-se equilibrada dentro do afastamento geográfico e dos compromissos de escola de cada um dos meninos, com a seguinte concretização: - O pai estará três fins de semana consecutivos com as crianças, interpolados por um fim de semana com a mãe. - A interrupção letiva antes do Natal será passada na íntegra com o pai. - No período de férias de Natal, os meninos estarão com a mãe desde o termo das aulas até ao dia 25 de Dezembro pelas 10:00 horas e das 10 horas do dia 25 de Dezembro até à véspera do retomar das aulas com o pai. - As recolhas das crianças serão feitas pelo pai na escola ou em casa da mãe, sendo estas no período de interrupção letiva, e a mãe irá buscar os meninos a casa do pai. - As entregas serão realizadas pelas 18:00 horas, com exceção da do Natal. - Atenta a diferente residência das crianças, importa definir obrigação alimentar a vigorar no imediato que, considerando a permanência destas com o pai e a residência com a mãe, se fixa em 120,00 euros para cada criança, a liquidar até ao dia 10 por depósito ou transferência bancaria para o IBAN que vier a ser indicado. Trata-se de um valor mínimo que se vem sendo praticado em Tribunal. - No próximo fim de semana os meninos estarão com a mãe e depois iniciam-se os três fins de semana que cabem ao pai. III – Determina-se a realização de audição técnica especializada. IV - Oportunamente agendar-se-á data para a continuação da conferência.”
Inconformado com o despacho que indeferiu a audição do menor (…), requerida pelo Requerido, bem como com a decisão fixou o regime provisório supra, veio este recorrer assim concluindo as suas alegações de recurso: I. Em 25.09.2023 (Requerimento com REF: 46597096) foi requerida pelo Recorrente a audição do menor (…), quanto à decisão a adotar nos presentes autos. II. O douto tribunal a quo indeferiu o requerido, “considerando a idade da criança e as referências que foram feitas quanto às dificuldades que o jovem sente ao deixar a casa do pai, como por outro lado, as condutas que o pai terá assumido para com este no que se prende com censuras físicas, não se procede, por ora, à audição do menino.” III. Ora, é unanimemente aceite que os processos da jurisdição de família têm como pressuposto salvaguardar, em todas as decisões, o superior interesse da criança, entendendo-se como criança “todo o ser humano menor de 18 anos, salvo se nos termos da lei que lhe for aplicável, atingir a maioridade mais cedo, cfr. artigo 1.º da Convenção sobre os Direitos da Criança”. IV. No que se refere à nossa legislação interna realce-se, em matéria de processo de regulação das responsabilidades parentais ou alteração do regime das responsabilidades parentais, o que se mostra estabelecido nos artigos 35.º, n.º 3 e 42.º, n.º 5, do RGPTC (Lei n.º 141/2015, de 8.09, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 24/2017, de 24.05), que refere que “A criança com idade superior a 12 anos ou com idade inferior, com capacidade para compreender os assuntos em discussão, tendo em atenção a sua idade e maturidade, é ouvida pelo tribunal, nos termos previstos na alínea c) do artigo 4.º e no artigo 5.º, salvo se a defesa do seu superior interesse o desaconselhar.” V. Por outro lado, ainda, na alínea c) do citado artigo 4.º, sob o título “Audição e participação da criança”, salienta-se que “a criança, com capacidade de compreensão dos assuntos em discussão, tendo em atenção a sua idade e maturidade, é sempre ouvida sobre as decisões que lhe digam respeito, preferencialmente com o apoio da assessoria técnica ao tribunal, sendo garantido, salvo recusa fundamentada do juiz, o acompanhamento por adulto da sua escolha sempre que nisso mostre interesse.” VI. Este mesmo princípio mostra-se, ainda, reforçado no já citado artigo 5.º, em cujo n.º 1, se refere que “A criança tem direito a ser ouvida, sendo a sua opinião tida em consideração pelas autoridades judiciárias na determinação do seu superior interesse.” VII. Da concatenação destas disposições legais resulta que presentemente é assegurada à criança uma ampla e extensiva oportunidade de ser ouvida nos processos judiciais que lhe digam respeito, sendo a sua opinião tida em consideração na fixação do que seja, no caso concreto, o seu superior interesse. VIII. O artigo 5.º do RGPTC estabelece a audição da criança em duas situações distintas: a primeira, para que a criança possa manifestar a sua opinião, a atender na decisão a tomar (cfr. nºs 1 e 4); a segunda, para que sejam tomadas declarações à criança, sempre que tal o justifique, para que o seu depoimento possa ser considerado como meio probatório (cfr. nºs 6 e 7). IX. Resulta da análise do Requerimento junto aos autos pelo Requerido, em 25.09.2023 (Requerimento com REF: 46597096), que foi requerida a audição do menor (…) para que a criança pudesse manifestar a sua opinião, a atender na decisão a tomar, cfr. n.ºs 1 e 4 do artigo 5.º do RGPTC. X. Estas declarações têm um formalismo diferenciado, não revelando como meio probatório, visando, tão só, a audição do menor para que este possa exprimir a sua opinião, a atender em sede de decisão. XI. As declarações requeridas pelo Requerido, a prestar pelo menor, ocorrem sem a presença dos progenitores e, inclusive, dos seus mandatários pelo que não se perceciona a razão de ser do indeferimento da audição do menor, que tem 9 anos de idade, reconhecendo-lhe o progenitor capacidade de compreensão, maturidade e discernimento, para ser ouvido no contexto dos autos de regulação das responsabilidades parentais. XII. Da prova carreada para os autos e da factualidade assente, não resulta que seja desaconselhável a audição do menor (…). XIII. Conforme mencionado no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 30.04.2020, prolatado no âmbito do processo n.º 371/12.6TBAMT-F.P1, disponível para consulta em www.dgsi.pt: “Ora, na esteira de jurisprudência que se vem firmando sobre esta matéria, a ponderação acerca da maturidade da criança terá de se revelar na decisão, somente estando dispensada a justificação para a sua eventual não audição quando for notório que a sua baixa idade (que se tem considerado ser o caso de crianças com idade inferior a três anos – o que não é o caso do B… que tem doze) não o permite ou o aconselhe. Dito de outro modo, quando a criança não é ouvida, sobretudo quando ela tem 12 anos, como ora sucede, terá sempre de existir um despacho a refletir a necessidade ou não da sua audição, devidamente fundamentado, não podendo, pois, com o devido respeito, o tribunal desconsiderar, sem mais, a audição da criança/jovem, audição essa que, como já se expôs, é um direito seu, seja para exprimir a sua opinião, seja, ainda, para ficar inteirado da decisão que o tribunal julga ser, à partida, a mais adequada ao seu superior interesse, explicitando-a e procurando obter a adesão voluntária do menor (em função da sua idade e da sua maturidade) à medida que tendencialmente o tribunal tenha por aplicável no caso.” XIV. O menor (…), desde o final do mês de Agosto de 2023, apenas está com o Requerido aos fins de semana, contudo continua a manifestar perante o Requerido e perante terceiros, que é sua vontade viver com o pai. XV. O Requerido não manipula os menores nesse sentido, conforme alega a Requerente, inexistindo qualquer evidência nesse sentido. XVI. A Requerente desconsidera a vontade dos menores para evidenciar a sua própria vontade, fazendo crer que esta é a vontade das crianças, o que não corresponde à verdade. XVII. Ante o exposto, entende-se que o despacho que indeferiu a tomada de declarações do menor (…), ao abrigo do disposto nos n.ºs 1 e 4 do artigo 5.º do RGPTC, datado de 3 de outubro de 2023, configura uma falta processual e, ainda, uma clara violação de regras de direito material, afetando a validade da decisão recorrida, a qual deverá ser anulada, determinando que seja ouvido o menor (…) quanto à decisão a adotar nos presentes autos. Por outro lado, XVIII. O douto tribunal a quo dá por assente que os menores comprometerão o seu projeto de vida junto da mãe, para justificar a fixação do presente regime provisório nos termos em que foi definido. XIX. Ora, a questão que se impõe debelar é se estaremos a definir o melhor projeto de vida para estas crianças ou o melhor projeto de vida destas crianças junto da mãe, sempre visando uma decisão imparcial e neutra? XX. Tratamos de questões distintas pois que o que releva nestes autos, salvo o devido respeito, é compreender qual é o melhor projeto de vida para estas crianças, seja com o pai ou com a mãe, que sempre viveram e estudaram, em (…), até serem deslocadas ilicitamente pela mãe, que no mesmo dia em que deslocou os menores para (…), sem o conhecimento e consentimento do Requerido, decidiu revelar que era, alegadamente, vítima de violência doméstica. XXI. Há que equacionar qual a credibilidade desta denúncia, que ocorre na mesma data em que as crianças são deslocadas (27.08.2023), sendo que estamos perante uma união conjugal que durou 12 anos. XXII. Sendo certo, que os menores têm uma relação de afetividade forte com ambos os progenitores, o facto é que as crianças têm como referência a sua vida em (…), onde sempre viveram e estudaram, onde têm os seus amigos e familiares paternos e até família materna, e o seu pai. XXIII. Acresce que, não obstante, o Requerido entender que a Requerente possui relação de afetividade forte com as crianças, o facto é que a mesma não revela a estabilidade emocional que se impõe neste tipo de conflitos parentais e tal decorre da forma como a Requerente tratou os menores e a relação destes para com o Requerido até à data da realização da conferência de pais. XXIV. Os menores e o Requerido foram expostos a constrangimentos indiscritíveis, que obviamente abalaram psicologicamente quer o Requerido, quer estas crianças. XXV. O Requerido teve de fazer uso de força policial, designadamente a GNR, inúmeras vezes, para conseguir estar, às vezes, 2 minutos com os filhos. Esta situação denota uma imaturidade atroz na gestão de um assunto muito sensível, que é a relação destas crianças com o progenitor. XXVI. Depois, note-se que foi o douto tribunal a quo que considerou que a realização da conferência de pais na data de 3 de outubro de 2023, não comprometeria a frequência escolar dos menores, contudo justifica a fixação da residência dos menores junto da mãe porque estes frequentam equipamento escolar na área da residência da mãe, há cerca de meio mês. Ora, esta situação não se mostra razoável pois que o agendamento da conferência de pais foi um facto que não esteve sobe o domínio do Requerido e que não poderá ser utilizado para justificar o superior interesse dos menores. XXVII. Pois que, por tudo o exposto se entende que as crianças deverão regressar aos equipamentos escolares que frequentavam até à data da sua deslocação ilícita, bem como à sua residência junto do progenitor e que não deverá ser “validada” a conduta ilícita da Requerente ao alterar a residência destes menores, sem o consentimento do Requerido, ou, em alternativa, decisão judicial para o efeito. XXVIII. Validar a conduta da Requerente seria fazer tábua-rasa da lei e do que preconiza o Código Civil a este respeito, nos n.ºs 1 e 2 do seu artigo 1906.º, que ora se passa a citar: “1. As responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida do filho são exercidas em comum por ambos os progenitores nos termos que vigoravam na constância do matrimónio, salvo nos casos de urgência manifesta, em que qualquer dos progenitores pode agir sozinho, devendo prestar informações ao outro logo que possível. 2. Quando o exercício em comum das responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida do filho for julgado contrário aos interesses deste, deve o tribunal, através de decisão fundamentada, determinar que essas responsabilidades sejam exercidas por um dos progenitores.” XXIX. No caso em concreto, inexistiu qualquer urgência manifesta que justificasse a conduta da Requerente, pois que os menores nunca estiveram em perigo junto do Requerido, tanto mais que a Requerente concordou que o douto tribunal a quo fixasse visitas com o progenitor. XXX. Os menores verbalizam junto do Requerido a sua vontade de residir com o pai, tendo ambos plena consciência que o farão sem a presença da mãe, pois que já passou um mês e meio desde a data da separação de facto dos pais, encontrando-se os mesmos, inclusive, já divorciados. XXXI. É, ainda, de evidenciar que não se concorda, com a justificação do douto tribunal a quo para fixar o presente regime provisório, de que os menores estão integrados, bem cuidados e organizados, juntos da mãe, porquanto tal não resulta das declarações dos progenitores, nem tampouco da prova carreada para os autos, pois a própria mãe asseverou em sede de conferência de pais que o (…) gosta de estar com o pai, que hoje este não sente receio de confrontar ou contrariar o pai (sendo estas declarações credíveis) e, ainda que, o (…) sente saudades dos amigos que tinha na sua casa, em (…). XXXII. Ora, estas preocupações do menor, que conta com 9 anos de idade, verbalizadas perante o Requerente e perante a Requerida, evidenciam desorganização a nível emocional, instabilidade no seu dia-a-dia, o que justifica as reações que o mesmo tem frequentemente de choro e irritabilidade. XXXIII. A factualidade supra exposta e a documentação junta aos autos, permite concluir que a Requerente evidencia sentimento de posse sobre os menores, através de manipulações emocionais e de impedimentos práticos, ao ponto de privar totalmente o outro progenitor de lhes aceder (veja-se a participação n.º …/23, elaborada pelo Posto Territorial de … da Guarda Nacional Republicana, junta aos autos em 20.09.2023). XXXIV. Com efeito, a matéria indiciada nos presentes autos e a documentação carreada para os mesmos, impunha decisão diversa da decisão recorrida, pelo que, desde já, se requer que seja revogado o despacho recorrido, na parte em que fixou a residência dos menores junto da Requerente. XXXV. Ora, no caso vertente, andou mal o douto tribunal a quo ao ter dado como provado que o superior interesse das crianças ficará salvaguardado fixando-se a sua residência junta da Recorrida, sendo que se impunha decisão em sentido contrário, razão pela qual deverá ser revogado o despacho recorrido e substituído por decisão que fixe a residência junto do Recorrente. Acresce que, XXXVI. Para formar a sua convicção, referiu o douto tribunal a quo que, teve em consideração, as declarações dos progenitores. XXXVII. Ora, salvo o devido respeito, que é muito, entende o ora Recorrente, que andou mal o douto tribunal a quo na sua decisão de ter considerado suficiente as declarações dos progenitores para dar como provado que os menores estão bem integrados, bem cuidados e organizados, junto da mãe, dando-se por reproduzido o alegado supra em B). XXXVIII. Conforme supra exposto, o tribunal a quo não tinha elementos suficientes e seguros para concluir pela fixação da residência junto da Recorrida. XXXIX. Cabia ao douto tribunal, conforme mencionado supra, ter ouvido o menor (…), em declarações. XL. Inexistem factos suficientes que permitam ao tribunal a quo decidir pela fixação de residência junto da progenitora, pelo que deverá o despacho recorrido ser anulado em conformidade com o disposto no artigo 662.º, n.º 2, al. c), do CPC, aplicável subsidiariamente ao presente processo, por força do disposto no artigo 65.º do RGPTC, devendo ser substituído por outro que determine a audição do menor (…), e, ainda, a realização das diligências necessárias a apurar sobre as condições de vida da Recorrida e do Recorrente. A final requer que o despacho recorrido seja revogado e substituído por decisão que fixe a residência dos menores junto do progenitor e, ainda, que determine a ampliação da matéria de facto, nos termos propugnados.
Em resposta o Ministério Público concluiu deste modo as suas alegações: 1- Porque o menor (…) tem apenas 9 anos de idade, nos termos do disposto no artigo 35.º, n.º 3, do RGPTC, a sua audição não se assumia como obrigatória. 2- Face ao que resulta dos pontos identificados com os números 7 e 8 dos factos considerados indiciariamente provados indicados na decisão recorrida e ao que foi afirmado na fundamentação de tal decisão recorrida, o que se procurou com a mesma foi evitar uma nova rutura na vida das crianças. 3. Para que se pudesse indicar que a decisão recorrida fez uma incorreta apreciação da matéria de facto dada como adquirida necessário se tornava que a recorrente indicasse quais os factos considerados indiciados que imporiam uma decisão diferente daquela que foi tomada, o que o recorrente não fez. 4. O artigo 38.º do RGPTC impõe ao juiz que, em sede de conferência, decida provisoriamente sobre o pedido formulado, isto quando os progenitores aí estejam presentes ou representados e não cheguem a acordo. 5. Nos termos do disposto no artigo 38.º do RGPTC o regime provisório deve ser fixado em conferência de pais em função dos elementos que constem no processo nesse momento, isto sem qualquer obrigatoriedade de o juiz diligenciar pela obtenção de quaisquer outros meios de prova para além de ouvir as partes e sem prejuízo de posterior alteração da decisão em resultado de outros elementos que venham a ser carreados para os autos. 6. Porque ambos os pais estiveram presentes e acompanhados pelos seus mandatários, o Mmº Juiz não podia deixar de decidir provisoriamente em sede de conferência de pais, e foi o que fez. 7. Foi com base nas declarações prestadas em sede conferência que foram dados como indiciados os factos assinalados nos pontos 1 a 22 da decisão recorrida. 8. Da valoração da matéria indiciada efetuada pelo Mmª Juiz o que se extrai é que se considerou que a manutenção das crianças junto da mãe era a decisão que, no imediato, mais estabilidade traria àquelas, decisão com a qual se concorda em absoluto. Entendendo, assim, que foi correta a decisão do Tribunal, não tendo ela violado nenhuma das normas legais citadas pelo recorrente, sustentou o Ministério Público, a manutenção da decisão recorrida. II O objeto do recurso integra as seguintes questões: - Se deveria ter sido deferida a audição do menor (…). - Em caso afirmativo, se o despacho que indeferiu a tomada de declarações do menor (…) configura uma falta processual apta a afetar a validade da decisão recorrida, com consequente anulação da mesma, determinando-se que seja ouvido o menor quanto à decisão a adotar nos presentes autos. - Se, não comprometendo a validade da anterior regulação provisória, deve ainda assim ter lugar como diligência necessária para ponderação em futura reapreciação. - Se se concluir pela validade da recusa de audição, importa apurar se a decisão provisória não salvaguardou o superior interesse dos menores (…) e (…), nomeadamente no respeitante à fixação da residência destes, devendo em consequência ser alterada, fixando-se a residência com o progenitor. III A factualidade a considerar extrai-se do relatório antecedente, que sequenciou a tramitação dos autos. IV Apreciação jurídica: As questões do recurso convocam os seguintes princípios e regulação normativa: O princípio da audição da criança que deriva do princípio fundamental do «superior interesse da criança», consagrado este no artigo 3.º da Convenção dos Direitos da Criança (20 de Novembro de 1989), assim enunciado: «1 - Todas as decisões relativas a crianças, adotadas por instituições públicas ou privadas de proteção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança.» O artigo 12.º da Convenção dos Direitos da Criança concretiza esse princípio da audição: «1 - Os Estados Partes garantem à criança com capacidade de discernimento o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre as questões que lhe respeitem, sendo devidamente tomadas em consideração as opiniões da criança, de acordo com a sua idade e maturidade. 2 - Para este fim, é assegurada à criança a oportunidade de ser ouvida nos processos judiciais e administrativos que lhe respeitem, seja diretamente, seja através de representante ou de organismo adequado, segundo as modalidades previstas pelas regras de processo da legislação nacional.» Estes princípios colocam a criança como sujeito de direito e com direitos.
Na legislação nacional, importa referir as seguintes disposições: O artigo 4.º da Lei n.º 141/2015, de 08 de Setembro que regula o Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC), que estabelece: «Princípios orientadores 1 - Os processos tutelares cíveis regulados no RGPTC regem-se pelos princípios orientadores de intervenção estabelecidos na lei de proteção de crianças e jovens em perigo e ainda pelos seguintes: a) Simplificação instrutória e oralidade – a instrução do processo recorre preferencialmente a formas e a atos processuais simplificados, nomeadamente, no que concerne à audição da criança que deve decorrer de forma compreensível, ao depoimento dos pais, familiares ou outras pessoas de especial referência afetiva para a criança, e às declarações da assessoria técnica, prestados oralmente e documentados em auto; b) Consensualização - os conflitos familiares são preferencialmente dirimidos por via do consenso, com recurso a audição técnica especializada e ou à mediação, e, excecionalmente, relatados por escrito; c) Audição e participação da criança – a criança, com capacidade de compreensão dos assuntos em discussão, tendo em atenção a sua idade e maturidade, é sempre ouvida sobre as decisões que lhe digam respeito, preferencialmente com o apoio da assessoria técnica ao tribunal, sendo garantido, salvo recusa fundamentada do juiz, o acompanhamento por adulto da sua escolha sempre que nisso manifeste interesse. 2 - Para efeitos do disposto na alínea c) do número anterior, o juiz afere, casuisticamente e por despacho, a capacidade de compreensão dos assuntos em discussão pela criança, podendo para o efeito recorrer ao apoio da assessoria técnica.»
O artigo 5.º do mesmo RGPTC que prevê: «Audição da criança 1 - A criança tem direito a ser ouvida, sendo a sua opinião tida em consideração pelas autoridades judiciárias na determinação do seu superior interesse. 2 - Para efeitos do disposto no número anterior, o juiz promove a audição da criança, a qual pode ter lugar em diligência judicial especialmente agendada para o efeito. 3 - A audição da criança é precedida da prestação de informação clara sobre o significado e alcance da mesma. 4 - A audição da criança respeita a sua específica condição, garantindo-se, em qualquer caso, a existência de condições adequadas para o efeito, designadamente: a) A não sujeição da criança a espaço ou ambiente intimidatório, hostil ou inadequado à sua idade, maturidade e características pessoais; b) A intervenção de operadores judiciários com formação adequada. 5 - Tendo em vista o cumprimento do disposto no número anterior, privilegia-se a não utilização de traje profissional aquando da audição da criança. 6 - Sempre que o interesse da criança o justificar, o tribunal, a requerimento ou oficiosamente, pode proceder à audição da criança, em qualquer fase do processo, a fim de que o seu depoimento possa ser considerado como meio probatório nos atos processuais posteriores, incluindo o julgamento. 7 - A tomada de declarações obedece às seguintes regras: a) A tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo a criança ser assistida no decurso do ato processual por um técnico especialmente habilitado para o seu acompanhamento, previamente designado para o efeito; b) A inquirição é feita pelo juiz, podendo o Ministério Público e os advogados formular perguntas adicionais; c) As declarações da criança são gravadas mediante registo áudio ou audiovisual, só podendo ser utilizados outros meios técnicos idóneos a assegurar a reprodução integral daquelas quando aqueles meios não estiverem disponíveis e dando-se preferência, em qualquer caso, à gravação audiovisual sempre que a natureza do assunto a decidir ou o interesse da criança assim o exigirem; d) Quando em processo-crime a criança tenha prestado declarações para memória futura, podem estas ser consideradas como meio probatório no processo tutelar cível; e) Quando em processo de natureza cível a criança tenha prestado declarações perante o juiz ou Ministério Público, com observância do princípio do contraditório, podem estas ser consideradas como meio probatório no processo tutelar cível; f) A tomada de declarações nos termos das alíneas anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela deva ser possível e não puser em causa a saúde física e psíquica e o desenvolvimento integral da criança; g) Em tudo o que não contrarie este preceito, aplica-se, com as necessárias adaptações, o regime processual civil previsto para a prova antecipada.»
Também a alínea j) do artigo 4.º da Lei n.º 147/99, de 01 de setembro, designada Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP), prevê como princípio orientador da intervenção para a promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo o seguinte princípio: «Audição obrigatória e participação – a criança e o jovem, em separado ou na companhia dos pais ou de pessoa por si escolhida, bem como os pais, representante legal ou pessoa que tenha a sua guarda de facto, têm direito a ser ouvidos e a participar nos atos e na definição da medida de promoção dos direitos e de proteção;
Deste elenco normativo resulta agora o princípio-regra da audição obrigatória da criança, apenas excecionado se esta, face à sua idade e maturidade, não tiver capacidade de compreensão dos assuntos em discussão. Ao promover e instituir o princípio-regra da audição obrigatória da criança, o legislador quis que, no âmbito dos processos tutelares cíveis, a ação de regulação das responsabilidades parentais não se reconduzisse a um mero processo de partes, fazendo da participação da criança não apenas um elemento probatório essencial na avaliação do seu superior interesse, mas o próprio meio de prossecução do seu superior interesse. A criança deve ter a oportunidade de expressar a sua opinião. Temos, pois, que, o artigo 4.º, alínea c), do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC), consagra o princípio da audição obrigatória da criança. No caso concreto este direito não foi respeitado com o fundamento de que “a idade da criança e as referências que foram feitas quanto às dificuldades que o jovem sente ao deixar a casa do pai, como por outro lado, as condutas que o pai terá assumido para com este no que se prende com censuras físicas, não se procede, por ora, à audição do menino”, o que, com todo o respeito teria da nossa parte uma leitura diferente. A idade da criança (9 anos) assegura já uma certa capacidade de discernimento e compreensão da vida familiar e das dificuldades que a família atravessa com a rutura da vida conjugal dos pais. A referência às dificuldades que o menor evidencia em deixar a casa do pai e, a referência a anteriores comportamentos do pai quanto a castigos físicos, serão razões de reforço para o menor ser ouvido e não impedido de ser ouvido. O risco de traumatizar uma criança se colocada a falar sobre estes assuntos sérios, que no despacho não está invocado, mas subentende-se da fundamentação, deverá ser razão apenas para redobrar a prudência e acuidade no seu interrogatório, mas não para o evitar. Excluir a criança dessa audição não nos parece, pois, ter sido uma decisão legítima. Tem sido nesse sentido a jurisprudência nacional que vem interpretando, o direito da criança a ser ouvida, sem qualquer limite de idade, desde que revele capacidade de manifestar a sua vontade e a sua opinião. Reafirmar o direito da criança a ser ouvida e a ser tida em consideração a sua opinião, não significa que a decisão a tomar respeite integralmente essa opinião, mas que seja considerada na ponderação dos interesses em causa e que respeite o seu superior interesse. Sendo aconselhável que a criança ao ser consultada para exprimir a sua opinião, seja informada sobre as possíveis consequências de se agir em conformidade com a sua opinião, ou de se agir em desconformidade com essa opinião, de modo a que se sinta num processo leal e transparente. No que respeita à violação do direito de audição da criança ou do jovem, o Supremo Tribunal de Justiça já se pronunciou no seu Acórdão de 14/12/2016, Proc. 268/12.0TBMGL.C1.S1 (Maria dos Prazeres Pizarro Beleza) in www.dgsi.pt, considerando que a audição da criança não pode ser encarada apenas como um meio de prova, tratando-se antes de um direito da criança a que o seu ponto de vista seja considerado no processo de formação da decisão que a afeta, constituindo um meio privilegiado de prossecução do superior interesse da criança e a violação deste direito afeta a validade das decisões finais dos correspondentes processos por corresponder a um princípio geral com relevância substantiva, não sendo adequado aplicar-lhe o regime das nulidades processuais, ou seja, conduz à anulação da decisão. Sendo este o seu sumário: «I - A audição da criança num processo que lhe diz respeito – no caso, de promoção e proteção – não pode ser encarada apenas como um meio de prova, tratando-se antes de um direito da criança a que o seu ponto de vista seja considerado no processo de formação da decisão que a afeta. II - O exercício do direito de audição, enquanto meio privilegiado de prossecução do superior interesse da criança, está, naturalmente, dependente da maturidade desta. III - A lei portuguesa atual, seguindo os diversos instrumentos internacionais, alterou a forma de determinar a obrigatoriedade dessa audição, tendo passado a prever – onde antes se estabelecia que era obrigatória a audição de criança com mais de 12 anos “ou com idade inferior quando a sua capacidade para compreender o sentido da intervenção o aconselhe” – que a criança deve ser ouvida quando tiver ”capacidade de compreensão dos assuntos em discussão, tendo em conta a sua idade e maturidade” (artigo 4.º, alínea c), do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 08-09). IV - A ponderação acerca da maturidade da criança terá de se revelar na decisão, só estando dispensada a justificação para a sua eventual não audição quando for notório que a sua baixa idade não a permite ou aconselha. V - A falta de audição da criança afeta a validade das decisões finais dos correspondentes processos por corresponder a um princípio geral com relevância substantiva, não sendo adequado aplicar-lhe o regime das nulidades processuais.» No seguimento desta que temos como a melhor jurisprudência, é de anular a decisão que regulou provisoriamente as responsabilidades parentais, que subsistirá apenas como instrumento regulador provisório até que nova decisão seja tomada com a audição que se impõe, a fim de prevenir um agravamento de instabilidade na vida dos menores. Sendo assim, e pelas razões expostas, anula-se a decisão em recurso, a fim de o menor ser ouvido, ficando prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas.
Sumário: (…) V Pelo exposto, acorda-se em anular a decisão recorrida, ordenando, em consequência, que os autos baixem à 1.ª instância, a fim de o tribunal proceder à audição do menor, nos termos e para os efeitos que supra se deixaram exarados, com a subsequente prolação de nova decisão. Sem custas. Évora, 07 de dezembro de 2023 Anabela Luna de Carvalho (Relatora) Maria Domingas Simões (1ª Adjunta) Cristina Dá Mesquita (2ª Adjunta) |