Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
226/18.0T8BJA.E1
Relator: ANABELA LUNA DE CARVALHO
Descritores: REGISTO PREDIAL
PRESUNÇÃO REGISTRAL
Data do Acordão: 01/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
- Sendo embora pacífico que “A presunção da titularidade do direito de propriedade constante do artigo 7.º do Código do Registo Predial não abrange a área, limites, estremas ou confrontações dos prédios descritos no registo, pois o registo predial não é, em regra, constitutivo e não tem como finalidade garantir os elementos de identificação do prédio”,não poderá o titular ativo registado beneficiar da presunção de propriedade resultante do registo se não se considerar, até prova em contrário, serem, se não exatas, pelo menos aproximadas, as áreas e localizações nele indicadas.
- A descrição e individualização da propriedade resultante do registo tem de partir de alguma definição, sob pena de apenas se registarem factos ocos e vazios, perdendo o registo a sua utilidade publicitária (princípio da especialidade), ainda que se conceda poder existir alguma margem de erro nomeadamente quanto a elementos de identificação que pressuponham cálculos ou especiais conhecimentos técnicos.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Évora
I
A..., com residência habitual na Venezuela e com os demais sinais dos autos, intentou ação de reivindicação contra B…, residente em Loures, com os demais sinais dos autos, pedindo o seguinte:

a) Declarar-se a Autora dona e legítima proprietária do terreno correspondente ao quintal localizado nas traseiras do seu imóvel, condenando-se o Réu a reconhecer a Autora o direito de propriedade sobre esse terreno;

b) Condenar-se o Réu a restituir à Autora a parte do imóvel (terreno-quintal), que ilicitamente ocupa, entregando-lhe livre de pessoas e coisas;

c) Condenar-se o Réu a demolir o muro que edificou ao longo do terreno / quintal da Autora que confina com a via pública;

d) Condenar-se o Réu numa sanção pecuniária compulsória de € 50,00/dia, após a citação e entrega efetiva do terreno à Autora.

Invocou para tanto, beneficiar da presunção de propriedade de determinado prédio, prédio esse que confina com o prédio do Réu, tendo ambos área coberta e descoberta; o seu prédio tem e sempre teve dois quintais (um pequeno em frente à casa, atravessado pela via pública e um outro maior situado nas traseiras) à semelhança das restantes casas da rua. Os quintais traseiros da Autora e do Réu encontravam-se delimitados. A Autora por razões de segurança, uma vez que não vive em Portugal mandou colocar tijolos à frente da porta traseira que dá para o quintal traseiro. O Réu adquiriu o imóvel em 2010 e, em 2015 procedeu à demolição de parte do muro que separava ambos os quintais ocupando a área integral do quintal traseiro do prédio da Autora. E edificou um muro ao longo do seu quintal que confina com a via pública e, ao longo do quintal da Autora, com um portão a que apenas o Réu acede, para fazer crer que tudo lhe pertencia, o que fez de forma ilegítima e de má fé, contra a sua vontade (tendo disso participado ao Ministério Público); inexiste título que legitime a alteração de áreas constantes do registo predial que o Réu efetuou com acréscimo da área do seu prédio.

O Réu contestou.

Alegou que o prédio da Autora não possui qualquer área (quintal) nas traseiras; não existe ou existia muro a separar as indicadas áreas; até à sua intervenção toda a área de logradouro estava em completo abandono; o Réu procedeu à limpeza da aludida área (terreno) e construiu um muro e portão; foi elaborado um levantamento topográfico com vista à retificação de áreas e, a área reivindicada pertence-lhe.

E deduziu pedido reconvencional, com vista ao reconhecimento do direito de propriedade do Réu sobre o prédio descrito na Conservatória de Registo predial de Beja sob o n.º 44 da freguesia de Cabeça Gorda, com a área de 471,25m2.

A A. replicou impugnando que o Réu reconvinte seja proprietário da área de 471,25m2. O prédio do R. até 09.09.2013 tinha uma área total de apenas 288m2, sendo a área descoberta 181m2. Foi esta a área que adquiriu ao Banco Santander em 2010. Posteriormente à compra, mais concretamente em 2013 solicitou uma alteração de área e passou a ter registada uma área aumentada em 185,23 m2. Não tem, contudo, qualquer título que o legitime a beneficiar deste acréscimo. Tal aumento de área sacrificou em igual medida a área do prédio da Autora. A área da A. encontra-se registada desde 2000 e, a do Réu apenas desde 2013, prevalecendo aquela face à antiguidade. Pede, por fim seja julgado improcedente o pedido reconvencional.

Realizado o probatório e o julgamento, o Tribunal a quo proferiu sentença julgando:

a) A ação improcedente e, em consequência, absolveu o Réu dos pedidos.

b) O pedido reconvencional procedente e, em consequência, condenou a Autora/Reconvinda a reconhecer o direito de propriedade do Reconvinte, sobre o prédio descrito na Conservatória de Registo Predial de Beja sob o n.º 44 da freguesia de Cabeça Gorda, com a área de 471, 25m2.

Inconformada com tal decisão veio a Autora recorrer concluindo do seguinte modo as suas alegações de recurso:

1 - O prédio da Autora foi adquirido por sucessão hereditária, no ano de 2000, e já nessa data tinha registada a área coberta de 80 m2 e uma área descoberta de 215m2, o que perfaz uma área total de 295 m2.

2 - Por seu turno, o Réu adquiriu o seu prédio no ano de 2010, e nessa data o prédio tinha registada uma área descoberta de 181m2. , sendo a área total de 288m2.

3 - A partir de 2013, ou seja, 3 anos após o Réu ter adquirido o prédio, requereu uma alteração do registo, acrescentando assim ao seu prédio mais 183,25.

4 - Em consequência da alteração, pedida pelo R., passou a ter uma área total de 471,25m2, sendo 107m2 de área coberta e 364,25 de área descoberta.

4 - Não deixa de ser curioso e esclarecedor que nenhum dos anteriores proprietários do prédio do Réu o tivesse feito.

5 - Quanto à prova testemunhal, o Tribunal a quo, considerou os depoimentos das testemunhas arroladas pela Autora, ambíguos e vagos.

6 - Testemunhas que residem na localidade de Cabeça Gorda há várias décadas, tendo uma delas sido presidente de junta de freguesia durante vários anos.

7 - Esta testemunha, José David Brincheiro, disse conhecer a Autora da localidade e exerceu anteriormente as funções de Presidente da Junta de Freguesia,

8 - Disse ainda existir um quintal nas traseiras do prédio da Autora,

9 - Quanto ao depoimento prestado pelas testemunhas arroladas pelo Réu dir-se-á o seguinte:

10 - Conforme resulta da sentença as testemunhas Jorge Raposo e Felipe Palma disseram “que nunca viram outra pessoa a usar aquela área sem ser o Réu, após ter adquirido o prédio”

11 - E se mais ninguém o fez, à exceção do Réu, tal significa também que a anterior proprietária do prédio, a Sra. Sónia Cristina Barbeiro Martins Ferreira - testemunha arrolada pela A. também não o fez.

12 - E se esta testemunha não o fez, quando esta testemunha diz que usava o terreno entre muros, como é obvio, não usando a parcela de terreno reivindicada pela Autora, (como foi dito pelas citadas testemunhas,) e fazendo referência a entre muros, só poderia ser o muro separador dos dois quintais, que a Autora sempre alegou existir, e que foi derrubado pelo R. e cujos vestígios ainda existem, como se sustenta adiante.

11 - Aliás , se atentarmos nos docs. juntos aos autos a Fls 78, que consiste na planta que faz parte dos docs. apresentados pelo A. com o pedido de registo da retificação das áreas do logradouro, verifica-se nessa plana a existência de um pequeno muro, o qual em sede de inspeção judicial o Réu disse ter re(contruído) para proteger uma pequena churrasqueira.

12 - O que não se duvida que tenha sido edificado pelo Réu, bastando para tal olhar atentamente a foto constante dos autos (a cores), foto E) do auto de Inspeção, para concluir que o reboco desse muro é relativamente recente, ou seja os seus elementos construtivos não remontam à época referida pela Autora, de quando os autores da herança habitavam a casa, há mais de 30 ou 40 anos.

13 - Um olhar atento à foto (a cores) permite verificar que esse muro foi construído sobre um pré existente, cujo reboco antigo é visível e se projeta para além da perpendicular da parede da cozinha da casa do Réu.

14 - E se comparamos essa mesma planta, com a planta ((fls 82) apresentada em 09/09/2013 com a declaração Mod. 1 de IMI, apresentada pelo Réu nessa data já na qualidade de proprietário do prédio há cerca de 3 anos, verifica-se a delimitação do quintal do Réu na parte que confronta com o quintal da Autora e por esta reivindicado, desde aquele mesmo ponto e até à rua Teixeira Gomes..

15 - Muro que se encontra assinalado nas plantas, nesta última ao longo de toda a linha divisória dos prédios da Autora e do Réu, que “nasce” junto ao canto da cozinha do prédio do Réu e se prolonga até à rua Teixeira Gomes.

16 - Documentos estes que não foram devidamente valorados pelo tribunal a quo e que com o devido respeito entendemos tratar-se de um erro notório na apreciação da prova.

17 -Um olhar atento às fotos (F) do auto de inspeção judicial, revela que existe uma uniformidade no estado da degradação da parede, inclusive em redor da porta (agora tapada pelo Réu) algo que não aconteceria se a porta tivesse sido aberta pela Autora, após a data de aquisição do prédio, pois nesse caso seria notória a diferença entre a superfície da parede já existente e o reboco de acabamento circundante da porta.

18 - O Tribunal a quo, entendeu que o Réu se encontra na posse da parcela de terreno em questão.

19 - E entendeu assim apenas porque as testemunhas arroladas pelo Réu assim o disseram.

20 - Devia no entanto, com todo o respeito, ter ido mais além para poder chegar a essa conclusão ou não.

21 - Desde logo, conforme resulta do auto de inspeção, fotos C) o muro que o Réu construiu, com um portão enorme e completamente fechado, devido à sua altura não permite ver nada a partir do exterior.

22 - Portanto se as testemunhas viram alguma atuação do Réu que se pudesse inserir no conceito de posse, teria de ser anteriormente à data da construção do referido muro, o que não foi referido por elas.

23 - Em todo o caso, o preenchimento do conceito de posse há-se ser muito mais que o derrube de um muro (divisório) existente e a construção de um outro com um portão( na rua Teixeira Gomes).

24 - Terá de haver pelo menos uma atuação da qual se possa depreender que determinada pessoa age em relação a uma determinada coisa como se seu proprietário fosse.

25 - Nomeadamente a forma como cuida e trata e mantém essa coisa.

26 - No caso dos autos e como ilustram as fotos D e E do auto de inspeção, é notória a diferença entre o estado de conservação da parte do prédio do Réu e a parte do prédio da Autora.

27 - Sendo evidente que o prédio do Réu apesar de não se encontrar em ótimo estado de conservação, mas, ainda assim faz uma grande diferença comparativamente à parte e paredes envolventes e totalmente degradada do terreno (quintal) reivindicado pela Autora.

28 - Daqui se concluindo, que os anteriores proprietários da casa do Réu, e o próprio Réu, fizeram manutenção apenas da área do quintal do Réu, certo é que nunca fizeram a manutenção daquele espaço reivindicado pela Autora, nomeadamente a pintura das paredes, porque o acesso lhes estava vedado devido à existência do muro, que a Autora reafirma ter sido derrubado pelo Réu.

29 - E não obstante o muro ter sido derrubado, mesmo posteriormente, certo é que o Réu também não fez aí qualquer manutenção.

30 - Preocupou-se antes sim em construir o muro bem alto na rua Teixeira, por forma a ocultar todo aquele espaço e se da parte da Autora não existisse nenhuma oposição (como existiu) após trataria do resto, é o que se terá de concluir.

31 - Na foto n. 3 E) do auto de inspeção encontra-se assinalada a linha onde a autora alega ter existido o muro separador dos quintais.

32 - Sendo notório que foi feita pelo Réu uma escavação no terreno reivindicado pela Autora por forma a criar uma rampa para permitir o acesso aquela zona através da rua Teixeira Gomes, local onde o Réu colocou o portão de acesso.

33 - Essa rampa, porque se estende na sua largura para além da linha azul, linha esta correspondente à localização do muro, forçosamente este foi destruído pelo Réu, aquando da realização daquela obra.

34 - De onde se conclui também que ambos os quintais estariam ao mesmo nível. Ou seja, a um nível superior ao da rua Teixeira Gomes e não só apenas o da Autora como concluiu o tribunal a quo.

33 - Razões estas supra expostas pelas quais se entende que o Tribunal a quo não deveria ter considerado provado o ponto 6 ou seja “Desde a data de aquisição, o Réu tem procedido à limpeza e manutenção da área coberta e descoberta, num total de 471,25 m2” .

34 - Pelo contrário, deveria ter sido considerado provado que aquela área de terreno com aprox. 180m2, correspondente a 30mX6m é propriedade da Autora

Bem como que,

35 - O Réu apropriou- de forma ilícita e de má fé daquela área, bem sabendo que não era propriedade sua e que com essa atuação lesava os direitos da Autora.

O DIREITO

36 - Como resulta dos docs. juntos aos autos a área do prédio da Autora encontra-se registada desde o ano 2000.

37 - Contrariamente só em 2013, e sendo já o Réu proprietário do prédio há 3 anos, é que foi pedido por este o registo da aumento da área do seu prédio.

38 - Conforme resulta dos docs. juntos aos autos, aquando da compra do seu prédio o Réu adquiriu um prédio com uma área descoberta de 181m2 e não de 364,25 m2.

39 - Pelo que forçoso será concluir que a posse relativamente aquela área reivindicada pela Autora, a existir sempre seria não titulada, pelo que se presume de má fé, conforme resulta dos arts 1258º e 1260 n.º 2 do CC.

40 - Decorre dos factos, não só dos provados, mas também daqueles que deveriam ter sido considerados provados e não foram, que o Réu e apenas o Réu e não os anteriores proprietários do seu prédio, algures após 2010, data em que adquiriu o seu prédio, apropriou-se daquela parcela de terreno por aparentar estar abandonada.

41 - Mas não está provado que estava convencido de que a Autora o tinha abandonado.

42 - Portanto, não ilidiu a presunção legal de que é possuidor de má fé.

43 - Assim, como não dispõe de título de aquisição nem de registo da mera posse, é de 20 anos o tempo necessário para a aquisição do direito de propriedade daquela parcela de terreno pertencente ao imóvel da Autora e art. 1296º do CC). Tempo que não decorreu.

44 - Ainda que se considerasse estarmos perante um concurso de presunções, como parece ter sido o entendimentos do Tribunal a quo, ao remeter para o art. 1268n.º 1 do CC, a sentença deveria ter sido outra.

Pois,

45 - Verificando-se no caso um concurso de presunções, resultante da posse para o Réu, nos termos do art. 1268º n.º 1 do CC e do registo para a Autora, nos termos do art. 7º do CRP, o mesmo é resolvido pelo citado 1268º n.º 1, fazendo prevalecer a mais antiga, ou seja, nesta caso o registo a favor da Autora.

46 - Uma vez que, o registo da Autora remonta a 2000, e a posse do R, a existir não poderá ser anterior a 2010, ano em que adquiriu o prédio.

47 - Consequentemente deveria ter sido condenado o R. reconvinte e não a Autora reconvinda.

Nestes termos e nos mais de direito que V. Exas doutamente suprirão, deve o presente recurso ser considerado procedente e provado e, por via dele ser revogada a sentença recorrida que condena a Autora Reconvinda e substituída por outra que condene o Réu reconvinte conforme peticionado na Petição Inicial, fazendo-se desse modo JUSTIÇA

Contra-alegações do Réu:

Conclusões:

1. A Autora Recorrente vem recorrer da Douto sentença do Tribunal a quo por entender que a mesma a) foi concebida à revelia da prova produzida face aos factos objeto do litígio e correspondentes temas da prova; b) desconsidera totalmente a prova documental junta pela Autora Recorrente, verificando-se um erro notório do Tribunal a quo quanto à valoração dos documentos juntos aos autos e c) subsumiu os factos provados a uma mera interpretação literal e estrita, contrária às normas de interpretação normativa.

2. A Autora Recorrente recorre da matéria de facto e de direito, nomeadamente, “quanto ao facto provado em 6) (que, de acordo com o vertido na Douta sentença do Tribunal a quo, se deduz que seja: “desde a data da aquisição, o Réu tem procedido à limpeza e manutenção da área coberta e descoberta, num total de 471,25m2”) e a uma incorreta subsunção dos factos ao direito, bem como a uma incorreta interpretação do artigo 1268.º n.º 1 do CC.”, cfr. ponto I.1. das suas alegações de recurso.

Sucede que:

3.1. Quanto à matéria de facto, a Autora Recorrente limita-se a tecer interpretações, da sua própria lavra e imaginação, sobre i) o teor dos depoimentos das testemunhas arroladas, sem qualquer referência sequer à passagem da gravação do depoimento em referência, bem como, ii) das fotografias juntas aos autos no decurso do auto de inspeção e demais documentos, tudo feito de uma forma deveras vaga, imprecisa e sem rigor;

3.2 Quanto à matéria de direito, a Autora Recorrente, contrariando a argumentação que expendeu em sede de articulados e de produção de prova em julgamento, procura, agora, esmiuçar novo raciocínio com base na figura jurídica da posse não titulada, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 1258.º e seguintes do CC., contrariando, por inerência, argumentação de facto que, a própria, desenvolveu nos seus articulados e já em sede de alegações.

4. Ora, o ónus da prova, relativamente à alegada propriedade da parcela de terreno objeto dos presentes autos, impendia sobre a Autora Recorrente, não tendo esta logrado efetivar essa mesma prova; o que por si só gera consequências processuais no âmbito dos presentes autos.

5. Face ao exposto, vai a admissibilidade do recurso, desde já, impugnada em toda a sua extensão, por violação do disposto nos números 1 a 3 do artigo 639.º e alíneas a) e b) do n.º 1 e alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º, ambos do CPC.

6. Caso assim não se entenda, por mero dever de patrocínio mais se explana que as alegações da Autora Recorrente improcedem por falta de produção de prova e inveracidade dos factos que apresenta, como bem demonstrado em sede de julgamento.

Vejamos:

7. Em apreço estavam três questões cerne objeto do presente litígio e que constituíram os temas da prova. Perceber:

7.1. Qual a concreta configuração e confrontação da parcela de terreno identificada no artigo 36.º a) da petição inicial aperfeiçoada;

7.2. A aquisição do direito de propriedade sobre a parcela de terreno referida supra;

7.3. Se o Réu, ora Recorrido, ocupou ilegitimamente a parcela do terreno referida supra e, em caso afirmativo, em que termos.

8. Ora, o Tribunal tem a obrigação legal, e até mesmo constitucional, de assegurar uma análise crítica e criteriosa das aludidas questões, bem como, de toda a produção de prova, aplicando-lhe o direito correspondente – o que aqui, inquestionavelmente, sucedeu.

9. Contudo, a Autora Recorrente não logrou produzir a prova, que sobre si impendia, fundamentalmente não logrou provar que o Réu não é, efetivamente, o legítimo proprietário da parcela de terreno que aquela a si invoca pois, naturalmente não tinha como.

10. As questões arguidas pela Autora Recorrente tocam, no entender do Réu Recorrido em duas matérias distintas. A primeira, ainda que de forma subtil, na fundamentação da própria sentença e a segunda, numa eventual modificação da decisão de facto com base na reapreciação da prova produzida.

11. Mais, a Autora Recorrente ao pretender uma reapreciação da prova por desrespeito à exigências da lei de processo, nos moldes em que o faz no ponto 3 inserido no ponto II das suas alegações, isto é, invocando uma “mera interpretação literal e estrita, contrária às normas de interpretação normativa”, apresenta, no entendimento do Réu Recorrido, alguma imprecisão quanto ao disposto na lei, em sede de fundamentação da sentença que importa clarificar.

12. Neste âmbito, importará, sempre, em primeiro lugar, precisar toda a realidade fáctica tida por provada e só depois submeter os factos a tratamento jurídico adequado, tudo em cumprimento do disposto no artigo 607.º, n.º 3, n.º 4 e 5 do CPC, – o que, in casu, sucedeu.

13. “O Juiz deve, por isso, proceder a uma análise atenta de todo o processo, com especial incidência sobre os articulados, documentos juntos com eles ou posteriormente ou outras peças processuais e é nesta operação – determinar se esse facto se deve considerar provado face ao respetivo regime legal probatório – que consiste, no fundo, o exame crítico de que fala o artigo 659.º n.º 3”, cfr. Juiz Desembargador Fernando Manuel Pinto de Almeida, in Ação de formação do CEJ, sobre a fundamentação da sentença cível, realizada na sala de audiências do Tribunal da Relação do Porto.

14. Pelo que a intervenção do Tribunal superior está, naturalmente, limitada às situações em que o erro no julgamento de facto resulta não de uma desajustada ponderação das provas produzidas, à luz do princípio da livre apreciação, mas de uma incorreta aplicação dos critérios legalmente definidos relativamente à sua admissibilidade ou ao seu valor.

15. Como bem explicitam os primeiros quatro parágrafos da página 4 da Douta sentença do Tribunal a quo: (…) “A convicção do Tribunal, com vista à formulação de juízo de verificação e falsificação das restantes circunstâncias fácticas alegadas pelas partes fundou-se na análise crítica e reflexiva da prova documental carreada aos autos, da livre apreciação da prova testemunhal e das declarações de Parte, à luz de critérios de lógica e de experiência.

O punctum crucis do presente juízo de verificação e falsificação radica em duas questões fácticas conexas: se a área descoberta do prédio pertencente à Autora engloba, ou não, dois logradouros (um localizado à frente e outro nas traseiras do prédio) e, correlativamente, da pertença da área existente nas traseiras dos dois prédios.

Hic et nunc, cumpre referir crítica e reflexivamente que os depoimentos e declarações produzidas se desvelaram parcialmente ambíguos e vagos, o que radicou, por um lado, no conhecimento indirecto (total/parcial) da realidade em causa, por outro, na vaguidade do depoimento, por falta de contacto, por incoerência ou por mera formulação de juízo opinativo sobre as áreas pertencentes a cada um dos prédios, por comparação com os dados objectivos apurados e as características do local.

A vaguidade é decisiva por não permitir a exacta identificação da área a que reportavam nos respectivos depoimentos e quando referiam a existência de uma área localizada nas traseiras do prédio da Autora, logo punham em causa a existência de uma área localizada à sua frente (como é alegado por parte da Autora).”

16. Assim, com relevo, tanto a Caderneta Predial do imóvel do Réu Recorrido como a Certidão do Registo Predial demonstram, precisamente, a titularidade da sua propriedade, a sua descrição com quintal/logradouro e área, pelo que todos os documentos, referentes ao seu imóvel estão legalmente conformes. Tal como decorre dos Documentos 3 e 4 da PI e dos Documentos juntos a fls 71 a 82 dos autos.

17. O registo predial tem essencialmente como finalidade dar publicidade à situação jurídica dos prédios, atento o artigo 1.º do CRP; sendo a aquisição de imóveis um facto sujeito a registo obrigatório ao abrigo da al. a) do n.º 1 do artigo 2.º e al. a) do n.º 1 do artigo 8.º-A do CRP.

18. Nos termos do artigo 2.º do mesmo Código estão sujeitos a registo: “a) os factos jurídicos que determinem a constituição, o reconhecimento, a aquisição ou a modificação dos direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície ou servidão”; (…) e) a mera posse; (…)”.

19. Os factos sujeitos a registo produzem efeitos relativamente a terceiros, logo que o registo se encontre efetuado – efeito erga omnes, o que sucede, garantidamente, desde 2013.

20. Assim, o Réu Recorrido respeitou e cumpriu as obrigações legalmente impostas, nomeadamente, o registo de aquisição, bem como, o registo de correção de áreas da sua propriedade.

21. O Registo foi administrativamente bem instruído e provem – como documentalmente provado (a fls 71 a 82 dos autos) - de “erro de medição”, pelo que o processo administrativo previsto no artigo 30.º do CRP está conforme. Na mesma senda, e perante caso similar, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 05/07/2007, Proc. 2708/06-3, Relator Acácio Neves, entre outros.

22. Mais, “Com primordial relevo, ante a natureza das circunstâncias fácticas em causa, atendeu-se à inspeção judicial ao local realizada, vide auto de 09-06-2021 (ref.ª Citius 31892094), mas também ao teor dos documentos e mapas e fotografias juntos aos autos (em anexo à contestação e à petição inicial aperfeiçoada e, ainda, às informações prestadas pela Conservatória de Registo Predial – ref.ª Citius 1477535 de 07-03-2019 - e Autoridade Tributária e Aduaneira (Serviço de Finanças de Beja) – ref.ª Citius 1479660 de 11-03-2019, que fundaram o pedido de rectificação de áreas efectuado por parte do Réu)”, cfr. último parágrafo da pg. 5 da Douta sentença do Tribunal a quo.

23. À contrario, a caderneta predial do imóvel da Autora Recorrente é bem clara ao referir, expressamente, em sede de descrição do prédio apenas que: “(…) tem um quintal em frente que lhe serve de logradouro.”

24. Ora, “O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”, cfr. artigo 7.º do CRP. Trata-se, como sabido, de uma presunção “juris tantum” que decorre do artigo 349.º do CC. e que quem a tem a seu favor escusa de provar o facto a que ela conduz, nos termos do n.º 1 do artigo 350.º do CC.

25. A Autora Recorrente não logrou ilidir a aludida presunção nos termos da Lei.

Não impugnou os factos comprovados pelo registo e não requereu o cancelamento do registo, nos termos do artigo 8.º n.º 1 do CRP.

26. A Autora Recorrente não invocou qualquer nulidade de registo, atento o disposto no artigo 16.º do CRP e, muito menos, a provou. Ainda que, sempre seria de referir que uma eventual declaração de nulidade do registo não prejudica os direitos adquiridos a título oneroso pelo terceiro de boa fé, nos termos do n.º 2 do artigo 17.º do CRP e que uma eventual ação de nulidade de registo, a ter fundamento, já poderia ter sido interposta pelo próprio Ministério Público, aquando do conhecimentos dos factos, nos termos do n.º 3 da mesma norma.

27. Para conseguir a elisão da presunção legal derivada do registo, há que provar (e para isso alegar) os factos demonstrativos de que a titularidade da propriedade inscrita não corresponde à verdade – e tal ónus incumbe ao impugnante do registo.

28. Não se pretenda, portanto, displicentemente, ignorar o trabalho das Entidades Administrativas competentes para certificação e elaboração de registos.

29. Ficou, também, provado e é do conhecimento generalizado da vizinhança que o terreno em discussão nos presentes autos pertente ao Réu Recorrido, tem sido cuidado e tratado por este desde 2010 e não se confunde com o da Autora Recorrente, ao contrário do que esta procurou fazer crer.

30. Tanto assim é que, igualmente, ficou provado que a Autora Recorrente procurou criar um acesso ao quintal traseiro do Réu Recorrido partindo parede sua, criando um buraco – chamemos de porta, elevada do chão – a que a GNR local ordenou que fosse tapada, por ilicitamente feita, como se verifica dos autos da GNR e do auto de inspeção do Tribunal juntos aos autos.

31. “O exercício de poderes de facto sobre o terreno é, aqui, inequívoco, ao contrário da posição da Autora, esta, por falta de elementos epistemicamente relevantes”, cfr. pg. 7 da Douta Sentença do Tribunal a quo.

32. “Forçoso é concluir que ante a corroboração da versão fáctica alegada por parte da Réu, o mesmo exerce poderes de facto sobre a globalidade da área coberta e descoberta – procedeu à limpeza e manutenção, procedeu à edificação de um portão nas traseiras do prédio, na zona que dá acesso à Rua Teixeira Gomes, bem como procedeu à requalificação do pequeno muro situado no terreno localizado nas traseiras do seu prédio e à limpeza de todo o terreno – tendo assim a propriedade presumida e, na ausência de prova em contrário, vide n.º 2 do artigo 350.º do Código Civil, o seu direito de propriedade sobre a área global do seu prédio, o que implica, sem necessidade de maiores considerandos, que pedido reconvencional seja procedente (reconhecimento de direito de propriedade)”, cfr. último parágrafo da página 10 da Douta sentença do Tribunal a quo.

33. “Concluindo: 􀁄) no que concerne à versão alegada por parte da Autora, inexiste qualquer elemento probatório que permita a conclusão de que a abertura (entaipada), identificada no ponto D) do auto de inspeção, tivesse existência prévia; inexiste, ainda, qualquer elemento que sustente a utilização da área em causa nos autos; inexiste qualquer elemento, observado, no local, que permita a conclusão que a configuração geográfica do seu prédio englobasse parte da área localizada nas traseiras do prédio; do muro (reconstruído por parte do Réu) no interior do local verifica-se a inexistência de qualquer elemento que permita a conclusão de que o mesmo se prolongaria até à Rua Teixeira Gomes.

Coloca-se, assim, decisivamente em crise, por ausência de elementos epistemicamente relevantes, que o prédio tivesse um quintal/terreno/logradouro localizado nas respectivas traseiras e que a Autora (ou os seus antecedentes o usassem).

􀁄) no que concerne à versão alegada por parte do Réu, o punctum crucis, que permite sustentar a diferença face à posição da Autora, é que não só temos, comprovado facticamente, o uso daquela área global, como temos a referência de que, anteriormente, tal área era utilizada em exclusivo e na sua globalidade; a que acresce que, na ausência de elemento contrário, inexiste razão suficiente para pôr em causa os documentos entregues aquando da actualização e rectificação da área, por corresponderem à área que o mesmo utiliza e verificada no local.

34. Não foi produzida prova em contrário. (…)”,cfr. pg 7 e 8 da Douta sentença do Tribunal à quo.

35. Não há, portanto, subjacente qualquer raciocínio lógico relativamente à agora alegada posse não titulada por parte da Autora Recorrente relativamente à parcela de terreno objecto dos presentes autos num quintal que nem se faz constar na documentação, das Entidades Administrativas competentes, junta aos autos.

36. O que o artigo 1268.º do CC faz é estabelecer uma presunção – a de que quem está na posse de uma coisa é titular do direito correspondente aos actos que pratica sobre ela – o que, em momento algum, se verifica aplicar à Autora Recorrente relativamente à parcela de terreno que a si procura chamar, por não ser nem ter sido sua e por nunca dela usufruir e cuidar.

37. Perante tudo o exposto, não colhe a tese que a Autora Recorrente procurou verter nos pontos I a III e em sede de direito das suas alegações de recurso.

Nestes termos e nos demais termos de Direito, sempre com o douto suprimento de Vossas Excelências, requer-se a não admissão do recurso por violação do disposto nos números 1 a 3 do artigo 639.º e alíneas a) a b) do n.º 1 e alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º, ambos do CPC. Caso assim não se entenda, deve o recurso ser julgado totalmente improcedente, confirmando-se, na íntegra, o teor da Douta decisão recorrida,

Fazendo-se, assim, JUSTIÇA.


II

O Tribunal a quo deu como provados os seguintes factos:

1. O prédio urbano, destinado a habitação, sito na Rua dos Bairros Alegres, n.º 16, freguesia de Cabeça Gorda, concelho de Beja, encontra-se inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 370 e descrito na Conservatória do registo predial de Beja sob a ficha 742/20000908.

2. A aquisição, por sucessão hereditária, do aludido prédio a favor da Autora encontra-se inscrita mediante a apresentação n.º 7 de 2000/09/08.

3. O prédio urbano, destinado a habitação, sito na Rua dos Bairros Alegres, n.º 18, freguesia de Cabeça Gorda, concelho de Beja, encontra-se inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 1067, que teve origem no artigo 372, e descrito na Conservatória do registo predial de Beja sob a ficha 44/19850923.

4. A aquisição, por compra, a favor do Réu, do aludido prédio, encontra-se inscrita mediante a apresentação n.º 5380 de 2010/12/22.

5. O Réu procedeu junto da competente Conservatória de Registo Predial e junto do Serviço de Finanças à atualização das áreas (coberta e descoberta) do seu prédio, sendo que, para tal, procedeu, além do mais, a um levantamento topográfico e à reunião da documentação necessária junto das referidas entidades.

6. Desde a data de aquisição, o Réu tem procedido à limpeza e manutenção da área coberta e descoberta, num total de 471,25 m2.

7. O Réu procedeu à edificação de um portão nas traseiras do prédio, na zona que dá acesso à Rua Teixeira Gomes, bem como, à requalificação do pequeno muro situado no interior do terreno localizado nas traseiras do seu prédio e à limpeza de todo o terreno.


III


Na consideração de que o objeto dos recursos se delimita pelas conclusões das alegações (arts. 635º, 3 e 639, 1 e 2 CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art.608º in fine), são as seguintes as questões a decidir:
I- Do erro no julgamento de facto
II- Do erro no julgamento de direito

Em ambos os tipos de controvérsia está em causa o direito de propriedade da Autora sobre uma parcela de terreno localizada nas traseiras do prédio da Autora/apelante (com aproximadamente 30 metros de comprimento por 6 metros de largura, segundo a autora); a correlativa violação do seu direito de propriedade por parte do Réu por ocupação dessa parcela, que, ao contrário da sua pretensão não integra o seu prédio.
Importa um enquadramento prévio da questão:
Sendo as regras gerais de repartição do ónus da prova (art. 342º CC) cabe ao autor fazer prova do direito de que arroga.
Na ação de reivindicação o autor pode invocar e provar o título de aquisição do direito (a aquisição derivada), mas essa prova, só por si, não é suficiente porque não alcança a bondade do título de aquisição do alienante, e do anterior a este e assim sucessivamente, em cadeia e em relação ao passado (aquisição originária).
Uma prova por demais difícil, se não impossível.
Como refere Luís A. Carvalho Fernandes in Lições de Direitos Reais, 6ª ed. p. 277
“Esta necessidade de prova sucessiva – a diabólica probatio das ações de reivindicação, que pode remontar a séculos, sofre, porém, duas relevantes atenuações, decorrentes do regime da usucapião e das presunções possessória e registal.
No primeiro caso, como a usucapião é uma forma de aquisição originária que destrói o direito anterior, feita a prova da posse boa para usucapião (facilitada pelo regime da acessão e da sucessão na posse) e da correspondente aquisição, provada fica a titularidade do direito.
As presunções possessória e registal atuam por via diversa, mediante a inversão do ónus da prova. Se o autor beneficiar delas, cabe ao réu fazer a prova que as iliba”.
A apelante invocou a presunção registal de propriedade sobre a “porção” de terra reclamada (porquanto em crise não está um imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial, mas apenas, uma porção de terreno com características de logradouro).
Juntou para efeito certidão da Conservatória de Registo Predial de Beja, para provar essa presunção (doc. 2 da pi).
Lê-se em tal certidão a descrição de um prédio urbano situado em Cabeça Gorda, “Rua dos Bairros Alegres”, com a área total de 295m2, área coberta: 80m2, área descoberta: 215m2, inscrito na matriz com o nº 370, composto de edifício de rés-do-chão, confrontando a norte com Manuel A. Gato, a sul com José F. Montes Palma, poente e nascente com Bairros Alegres, adquirido por A... (ora apelante) por sucessão hereditária em 08/09/2000.
O mesmo artigo matricial (370) mostra-se identificado no Serviço de Finanças de Beja, conforme certidão da caderneta predial que igualmente juntou (doc. 1 da p.i.), da qual se retira a seguinte descrição:
“Prédio urbano de rés do chão que se destina a habitação e tem um quintal em frente que lhe serve de logradouro.
Afetação: habitação. Nº de pisos: 1. Tipologia/divisões: 3
Área total do terreno: 295m2. Área de Implantação do edifício: 80m2. Área bruta de construção: 80m2.
Titular: A... ”
A certidão de registo predial individualiza o prédio da apelante, como tendo uma área total de 295m2, área coberta de 80m2 e área descoberta: 215m2, não indicando se essa área descoberta se situa na frente ou nas traseiras. É a caderneta predial que refere que o quintal que lhe serve de logradouro se situa à frente.

Sendo embora pacífico que “A presunção da titularidade do direito de propriedade constante do artigo 7.º do Código do Registo Predial não abrange a área, limites, estremas ou confrontações dos prédios descritos no registo, pois o registo predial não é, em regra, constitutivo e não tem como finalidade garantir os elementos de identificação do prédio”, conforme entre muitos, o Acórdão de 12-01-2021 (Pedro de Lima Gonçalves), in www.dgsi.pt, não poderá o titular ativo registado beneficiar da presunção de propriedade resultante do registo se não se considerar, até prova em contrário, serem, se não exatas, pelo menos aproximadas, as áreas e localizações nele indicadas.
A descrição e individualização da propriedade resultante do registo tem de partir de alguma definição, sob pena de apenas se registarem factos ocos e vazios, perdendo o registo a sua utilidade publicitária (princípio da especialidade), ainda que se conceda poder existir alguma margem de erro nomeadamente quanto a elementos de identificação que pressuponham cálculos ou especiais conhecimentos técnicos.
Aqui chegados e, focando-nos por ora apenas no registo de propriedade em nome da Autora, porque é este que agora importa definir para ajuizar da extensão do seu efeito presuntivo de propriedade, diremos que a localização física do logradouro (área descoberta) e sua disposição em relação à casa (área de construção ou área coberta), surge um enigma.
Já assim o havia referido o tribunal a quo: “O punctum crucis do presente juízo de verificação e falsificação radica em duas questões fácticas conexas: se a área descoberta do prédio pertencente à Autora engloba, ou não, dois logradouros (um localizado à frente e outro nas traseiras do prédio) e, correlativamente, da pertença da área existente nas traseiras dos dois prédios”
Não tendo, contudo, com o devido respeito, conseguido uma resposta consequente à questão.
Já acima referimos que a descrição predial não indica se essa área descoberta, que assentamos que existe, se situa na frente ou nas traseiras da casa. Ou em ambas. A caderneta predial, sim, refere que o quintal que serve de logradouro à casa se situa à frente. E, oferece um número identificativo para todo o prédio, de que o registo se apossa.
Contudo, a frente da casa da Autora (que por facilidade de interpretação será identificada como o nº 16 da Rua do Bairro dos Alegres) confina com estrada, mais precisamente a Rua do Bairro dos Alegres.
Então, se considerarmos frente a que confina com a Rua dos Bairros Alegres, esse logradouro não existe enquanto parte integrante do prédio da Autora, porque este confina com estrada. Se tomarmos em conta a mesma orientação de princípio, esse logradouro ou fica nas traseiras (dando para a Rua Teixeira Gomes), ou fica para lá da estrada (R. do Bairro dos Alegres) sem ligação à casa, o que, não sendo impossível se mostra mais difícil de conceber.
A testemunha (…), ex-presidente da Junta de Freguesia da Cabeça Gorda, cargo que exerceu durante 26 anos, pôs em causa a existência de uma área na parte frontal do imóvel.
Referiu no seu depoimento, conhecer bem a localidade e a Rua (bairro ) do Bairros dos Alegres e a Rua Teixeira Gomes. Conheceu de passagem. Nunca entrou na casa. Sabe a localização. Tinha um quintal grande para trás que dava para a Rua Teixeira Gomes.
À pergunta: e tem algum quintal para a frente, respondeu: “Não lhe sei dizer. Há ali um conjunto de casas que tem quintal para a frente. Não sei se é o caso”.
Reafirmando depois: “Não tenho a menor dúvida que o nº 16 tem um quintal para trás que dava para a Rua Teixeira Gomes”.
Ou seja, não tendo conseguido precisar se a casa tinha quintal à frente, a testemunha garantiu que a casa da A. tinha quintal atrás.
A A. referiu na p. i. que o seu prédio tem e sempre teve dois quintais, um pequeno à frente de casa, atravessado pela via pública e um outro maior nas traseiras da casa. O R. contestou que a A. tivesse um quintal nas traseiras da habitação.
Aquando da definição do objeto da perícia a Mmª Julgadora a quo, aceitando nessa parte a sugestão das partes, ordenou por despacho de 07-03-2019 que:
“O objeto da perícia deverá abranger os seguintes quesitos:
1 – Quais as áreas cobertas ou descobertas dos prédios identificados sob os pontos 1 e 2 da petição inicial?
(…)
6 - Qual a concreta configuração e confrontação da parcela de terreno identificada no artigo 36.º a) da petição inicial aperfeiçoada?”, ou seja, o terreno da apelante.”
A planta de localização dos prédios junta em 11-03-2019 pela autoridade tributária e aduaneira, a solicitação do tribunal, mostra que o prédio 16 (da apelante) confina à frente com estrada.
O Relatório de perícia, junto em 06-11-2020, à pergunta 1 (1 – Quais as áreas cobertas ou descobertas dos prédios identificados sob os pontos 1 e 2 da petição inicial?) respondeu:
“R: Na casa da autora, está inscrito na conservatória como área coberta 80 m2, mas na realidade tem 59.8m2. Na casa do Réu está inscrito na Conservatória uma área coberta de 107 m2 e na realidade tem 118.4 m2. A área descoberta que está a ser utilizada pelo Réu é de 344.8m2.”
E, à pergunta 6 (6 - Qual a concreta configuração e confrontação da parcela de terreno identificada no artigo 36.º a) da petição inicial aperfeiçoada?”, ou seja, o terreno da apelante.”) respondeu:
“R: Na área descoberta não existe muro a separar os dois prédios, mas existe sim vestígios de um muro. Foram feitas obras de requalificação na casa do Réu. Em 2010 existia apenas uma rede de malha de ferro a confrontar a via pública na entrada traseira do terreno da Autora e agora existe um muro com um portão fechado a cadeado utilizado pelo Réu.”
Ou seja o relatório de perícia não respondeu às perguntas: qual a área descoberta do prédio da autora e, qual a concreta configuração e confrontação dessa área descoberta.
No decurso da audiência de julgamento o Mmº Juiz a quo realizou uma inspeção ao local, tendo feito registar em auto (09-06-2021) um registo fotográfico acompanhado das informações que teve por pertinentes.
Para o que ora importa:
Nas duas primeiras fotografias (A) identifica a frente dos dois imóveis: o 18 do Réu e o 16 da Autora/apelante. Sendo visível que a frente de ambos confina com estrada.
Nas duas fotografias seguintes (B) identifica a existência de um “pequeno” logradouro situado à frente do prédio n.º 16, ou seja, da Autora. Não deixou consignado que tal logradouro não tem ligação física ao prédio da Autora, mas tal resulta das imagens anteriores. Apenas registou a sua perceção de “pequeno”, o que não tem, com todo o respeito, qualquer relevância probatória.
Aqui chegados, persiste a dúvida: a Autora tem registado um logradouro, com determinada área (ainda que possa ser aproximada). Onde se localiza essa área (ainda que de forma aproximada): à frente ou nas traseiras, ou em ambos os locais e, qual a real dimensão da mesma.
Dúvidas que a nosso ver devem ser resolvidas, devendo o relatório de perícia dar cabal resposta às perguntas 1 e 6, nomeadamente quanto à área descoberta do prédio da Autora e sua configuração e confrontação.
A Autora tem a seu favor uma presunção fundada em registo. Sabemos onde começa mas não onde acaba. Tendo o tribunal determinado esse probatório sem controlar o resultado.
E tal resultado não é inócuo na definição do prédio registado.
Citando o acórdão do STJ de 19-09-2017 (Alexandre Reis) in www.dgsi.pt:
“Se, como se disse, as realidades prediais objeto de direitos reais não se alcançam com o recurso a elementos identificativos dos prédios constantes nas descrições prediais, já não é completamente certeira a conclusão de que o teor destas é absolutamente inócuo para vir a ter por assente a existência dum prédio. É que, como já se advertiu no Acórdão desta Secção de 12-02-2008, «este entendimento não pode ser acolhido acriticamente, antes devendo ser ponderado em termos hábeis», porque, «mau grado os limites da presunção resultante do registo é certo que, sob pena de se esvaziar completamente o seu conteúdo, há que atentar nos precisos termos da inscrição e verificar se foram provados, ou improvados, quesitos em sentido oposto».
Só depois de definido o âmbito da presunção do registo, se poderá decidir se a A. tem ou não de provar uma causa de aquisição originária da propriedade sobre a “porção” de terra reclamada (porquanto em crise não está um imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial, mas apenas, reforça-se, uma porção de terreno) e, qual o efeito elidível do registo do Réu.
(…)
IV
Pelo exposto, nos termos do art. 662, 2, c) do CPC, acorda-se em anular a decisão proferida na 1ª instância, por não constar da perícia realizada resposta cabal aos pontos 1 e 6 dos quesitos formulados, que se afigura indispensável, devendo os autos baixar para que a 1ª instância determine o suprimento dessa deficiência, mantendo-se válida a demais prova produzida.

Sem custas.

Évora, 13 de janeiro de 2022

Anabela Luna de Carvalho (Relatora)
Maria Adelaide Domingos
José António Penetra Lúcio