Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
664/22.4T8EVR.E1
Relator: MÁRIO BRANCO COELHO
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
SERVIÇO DOMÉSTICO
DESPEDIMENTO VERBAL
JUSTA CAUSA DE DESPEDIMENTO
ILICITUDE DO DESPEDIMENTO
Data do Acordão: 04/20/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1. O art. 29.º n.º 3 do DL 235/92, de 24 de Outubro (Regime do Contrato de Serviço Doméstico), exige ao empregador que, no momento da rescisão do contrato, refira ao trabalhador, expressa e inequivocamente, por escrito, os factos e circunstâncias que a fundamentam, para satisfação do seguinte objectivo: a concretização dos motivos do despedimento, de forma a permitir ao trabalhador o devido exercício do seu direito de defesa.
2. Ademais, estabelecendo o art. 31.º n.º 1 do DL 235/92 que o despedimento decidido com alegação de justa causa pode ser judicialmente declarado insubsistente, o tribunal só pode executar tal tarefa, com a necessária certeza e segurança jurídica, se o objecto da causa estiver precisamente definido, com delimitação na decisão de despedimento dos factos susceptíveis de serem apreciados para tal efeito.
3. A exigência de forma escrita é, assim, um requisito de licitude do despedimento, e o incumprimento dessa formalidade ad substantiam não permite ao tribunal conhecer de uma justa causa não devidamente invocada.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo do Trabalho de Évora, AA demandou BB, pedindo a declaração de ilicitude do despedimento e a condenação da Ré em indemnização correspondente a um mês de salário por cada ano completo de serviço ou fracção decorrido até à data do despedimento, no valor total de € 9.000,00, acrescido dos juros legais.
Alega ter sido admitida ao serviço da Ré em 2007, para lhe prestar serviços domésticos, tendo sido despedida verbalmente em 15.04.2021, sem comunicação de justa causa.
Contestando, a Ré argumenta que a A. foi admitida ao seu serviço apenas em 2017, e que os fundamentos do despedimento foram comunicados verbalmente e por escrito.

Após julgamento, a sentença julgou a acção improcedente, pelo que a A. introduz a presente instância de recurso, concluindo:
1. A A. foi admitida verbalmente o serviço da Ré, em 20 de Agosto de 2007 para, sob as suas ordens, direcção e fiscalização, e mediante retribuição, exercer diariamente as funções de prestação de serviços domésticos;
2. A A. manteve-se ininterruptamente ao serviço da ré, até ao dia 15 de Abril de 2021, auferindo nessa altura, e desde 01.01.2020, o salário líquido mensal de 600,00 €;
3. Em 15 de Abril de 2021, a autora compareceu ao serviço em casa da ré, cerca das 9H00, e perguntou-lhe porque razão os descontos eram feitos para a Segurança Social sobre o valor de 438,80 €, quando o seu vencimento líquido era de 600,00 €.
4. A ré mostrou-se aborrecida com essa pergunta, exaltou-se e disse-lhe que não a queria mais a trabalhar na casa dela, pediu as chaves que a autora tinha na sua posse e apontou-lhe a porta da rua dizendo-lhe “rua, está despedida, não a quero voltar a ver aqui”.
5. A Ré não comunicou os fundamentos do despedimento nem verbalmente nem por escrito à A. no momento em que a despediu;
6. Assim, a Ré violou o preceituado no artº 29º, nº 3, do Decreto Lei nº 235/92, de 24 de Outubro.
7. O Tribunal a quo, considerou erradamente que apesar de o despedimento ser formalmente ilícito, é substancialmente lícito porque se consideraram provados factos que consubstanciam justa causa de despedimento;
8. Contudo, essa decisão é inequivocamente contraditória com a matéria de facto dada como provada nos Pontos 10., 11. e 12. dos Factos considerados como provados que se são por reproduzidos.
9. Com efeito, a decisão de despedimento não decorreu dos factos considerados provados descritos nos pontos 18. a 21 da matéria provada mas sim da questão sobre o valor dos descontos para a Segurança Social.
10. Ou seja, o motivo do despedimento apurado nos autos não constitui justa causa de despedimento;
11. O nº 3 do artº 29 do Regime das Relações de Trabalho Emergentes de Contrato de Serviço Doméstico, estipula que “No momento da rescisão do contrato devem ser referidos pela parte que o rescinde, expressa e inequivocamente, por escrito, os factos e circunstâncias que o fundamentem”.
12. No caso dos autos, não foi comunicado, verbalmente nem por escrito à Autora, no momento do despedimento qualquer facto ou circunstância que impossibilitasse a manutenção do contrato.
13. Não tendo sido indicados os fundamentos do despedimento impõe-se que o mesmo seja considerado ilícito, com as legais consequências, sendo indevido e injustificado o recurso ao instituto do abuso de direito.
14. Ao recorrer ao instituto genérico do abuso de direito, o Tribunal a quo violou o espírito e a letra do artº 29 do indicado diploma.
15. Com essa decisão, o Tribunal a quo deixou entrar pela janela aquilo que não podia legalmente deixar entrar pela porta!
16. E abriu a porta à incerteza e à insegurança jurídica,
17. A decisão proferida é além do mais injusta e demonstra que o Tribunal a quo usou dois pesos e duas medidas para avaliar os comportamentos das partes.
18. Pois, foi a Ré que agiu ao arrepio das suas obrigações, tendo procedido a um despedimento ilícito, contrário à Lei e aos bons costumes, omitindo as razões do despedimento e as obrigações que lhe estavam impostas;
19. O recurso à aplicação do instituto do abuso de direito no caso em apreço, considerando os contornos concretos do despedimento em causa, é injustificado e indevido;
20. Além disso, afasta a aplicação da lei em clara violação do princípio da certeza e da segurança jurídica, enquanto pilares do estado de direito implícitos na constituição da República Portuguesa.
21. Sendo certo que a segurança e a certeza do direito são indispensáveis para que haja justiça e ordem.
22. Não tendo sido comunicadas à autora no momento do seu despedimento, de forma escrita e expressa, os fundamentos do despedimento, conforme é determinado pelo artº 29 do Regime Jurídico aplicável, o mesmo deve ser declarado ilícito.
23. Não tendo considerado o despedimento ilícito e condenado a Ré no pagamento da indemnização devida, o Tribunal a quo violou o disposto nos arts. 29.º n.º 3 e 31.º n.º 1 do Regime Jurídico das Relações de Trabalho Emergentes de Contrato de Serviço Doméstico.
24. A douta sentença recorrida deve ser revogada, julgando-se a acção procedente por provada, condenando-se a R. no pagamento da quantia peticionada;

A resposta sustenta a manutenção do julgado.
Produziu a Digna Magistrada do Ministério Público junto deste Tribunal da Relação de Évora parecer no sentido do provimento do recurso.
Cumpre-nos decidir.

O elenco fáctico considerado provado na sentença, e não impugnado, é o seguinte:
1. AA foi admitida verbalmente ao serviço de BB, em 20 de Agosto de 2007 para, sob as suas ordens, direcção e fiscalização, e mediante retribuição, exercer diariamente as funções de prestação de serviços domésticos.
2. No início do ano de 2008, BB começou a fazer os descontos devidos pela contratação de AA para a Segurança Social em nome da “Sociedade N..., Serviços Médicos, Unipessoal Lda.”, gerida pela Ré.
3. No exercício das suas funções, AA vigiava e cuidava dos pais da Ré, que eram pessoas idosas e doentes e se encontravam em casa da Ré, tendo estado alguns períodos acamados, confeccionava as refeições da família, fazia a limpeza e arrumação da casa e do jardim, lavava e tratava das roupas da família, fazia pinturas no interior da casa, jardim e muros e tratava dos animais de estimação.
4. Essas funções eram desempenhadas diariamente de acordo com as ordens e instruções dadas pela Ré, que fiscalizava a sua execução.
5. A A. cumpria horário de trabalho semanal, de segunda a sexta-feira, das 8H00 às 17H00, com uma hora de intervalo para almoço.
6. Desde a data em que foi admitida ao serviço da Ré, a A. recebeu sempre o salário mínimo nacional, que era pago ao mês, e que foi sendo anualmente actualizado.
7. A Ré nunca lhe entregou folhas de remuneração com indicação do valor do salário ilíquido e discriminação dos descontos que efectuava.
8. Em 2017, a Ré deixou de fazer os descontos para a Segurança Social em nome da sociedade acima referida a passou a fazê-los, enquanto entidade empregadora, em seu nome pessoal.
9. A A. manteve-se ininterruptamente ao serviço da Ré, nas descritas condições, até ao dia 15 de Abril de 2021, auferindo nessa altura, e desde 01.01.2020, o salário líquido mensal de 600,00 €, não lhe sendo entregues os recibos de remuneração.
10. No início da segunda semana de Abril de 2021, a A. tomou conhecimento que a Ré pagava as quotizações para a Segurança Social como se a mesma auferisse o vencimento mensal de 438,80€.
11. Em 15 de Abril de 2021, a A. compareceu ao serviço em casa da Ré, cerca das 9H00, e perguntou-lhe porque razão os descontos eram feitos para a Segurança Social sobre o valor de 438,80€, quando o seu vencimento líquido era de 600,00€.
12. A Ré mostrou-se aborrecida com essa pergunta, exaltou-se e disse-lhe que não a queria mais a trabalhar na casa dela, pediu as chaves que a A. tinha para entrar no portão do jardim e na porta de entrada da casa e apontou-lhe a porta da rua dizendo-lhe “rua, está despedida, não a quero voltar a ver aqui”.
13. A Ré saiu e, desde então deixou de ter acesso à casa onde prestava os seus serviços.
14. Em 20 de Abril de 2021, pelas 13h59, a A. recebeu no seu telemóvel a seguinte mensagem escrita enviada pela Ré a partir do seu telemóvel:
“De acordo com as informações da Segurança Social, e em conformidade com a lei, foram depositados na sua conta do BPI, 1.300 €, referentes ao seguinte:
- 300 € referentes a vencimento de 15 dias do mês de Abril;
- 600 € referentes a férias que não gozou;
- 200 € referentes a 10 dias de férias de 2021 em função do tempo que trabalhou este ano;
- 200 € referentes a 10 dias de subsídio de Natal em função do tempo que trabalhou este ano.”
15. A Ré depositou na conta da A. do Banco BPI as quantias supra indicadas.
16. Em 19 de Abril de 2021 a A. solicitou à Ré, através de carta registada com aviso de recepção, que assinasse a declaração de desemprego que anexou, uma vez que tinha sido despedida verbalmente.
17. Como resposta, a Ré enviou em 30 de Abril de 2021 à A. uma carta datada de 29 de Abril de 2021, por aquela recebida, com o seguinte teor:
«A minha constituinte não se opõe à assinatura da respectiva declaração, todavia, o motivo de cessão do contrato de trabalho terá sempre de ser, porque é verdade, por iniciativa do empregador com fundamento em justa causa de despedimento por facto imputável ao trabalhador.
Como aliás, lhe foi comunicado no dia em que lhe foi participado o despedimento e que uma vez mais se repete.
Uma vez que é do conhecimento de V. Exa. que a relação que construiu com a minha Constituinte desde que iniciou as suas funções de empregada doméstica na residência daquela se alterou completamente, tornando insustentável a manutenção do contrato de trabalho.
A minha Constituinte sempre a considerou como membro da família, tendo por si imensa consideração e estima, todavia, o facto de V. Exa. ter utilizado a doença oncológica da minha constituinte fazendo chacota – mais precisamente do facto de a mesma ter sito mastectomizada ao nível dos dois seios – junto de terceiros alheios à situação, dizendo que a minha constituinte “utilizava enchumaços para fazer de mamas”.
Situação que causou à Dra. BB, imenso sofrimento.
Com este comportamento, a D. AA violou o sigilo profissional a que estava obrigada.
Mais, por não ter a minha Constituinte concordado com a exigência feita por V. Exa., para alteração das condições de remuneração estabelecidas aquando da contratação, a D. AA descurou completamente as suas funções de empregada doméstica, limitando-se em oito horas diárias a preparar as refeições do agregado familiar, a alimentar os animais de estimação, 4 gatos e 3 cães, e a “fingir” que tratava da roupa.
Deixou de ter uma rotina de trabalho que tinha até então e que lhe permitia deixar a casa sempre limpa e arrumada, a roupa lavada e passada e as refeições diárias preparadas, sendo que, sempre que era confrontada pela minha constituinte com a falta de cumprimento das tarefas solicitadas a única resposta que lhe aprazia era: - “Esqueci-me”.
As orientações dadas pela minha constituinte deixaram de ser de tal ordem cumpridas, que a casa passou a estar sempre suja e desarrumada, a roupa sempre por passar a ferro, as camas por mudar e as casas de banho sem qualquer higiene, ao ponto de a minha constituinte ter de recorrer aos serviços de outra senhora para fazer o que a D. AA não fazia.
Assim:
- A Desobediência ilegítima às ordens dadas pela Minha Constituinte;
- O Desinteresse repetido pelo cumprimento, com as diligências devidas, das obrigações inerentes ao exercício das suas funções que lhe estevam cometidas;
- A Redução anormal da sua produtividade, e a
- Quebra de sigilo e a devassa da vida privada, levaram a que a relação que outrora V. Exa., e a minha constituinte mantiveram, fosse completamente arruinada, passando a ser insustentável a manutenção do contrato de serviço doméstico.
Assim, e em nosso entender, por todas as razões elencadas acima, houve lugar a despedimento por iniciativa da Minha Constituinte, com fundamento em justa causa por facto imputável a V. Exa, sendo essa a razão pela qual se devolve sem estar a assinada a Declaração de situação de desemprego.»
18. Em data não concretamente apurada, mas entre Abril e Junho de 2018, a A. comentou com terceiro que a Ré tinha um problema de saúde do foro oncológico, que tinha sido sujeita a cirurgia de mastectomia aos dois seios dizendo que a mesma “utilizava enchumaços para fazer de mamas”.
19. Facto que a Ré teve conhecimento em Março de 2021.
20. O que causou à Ré sofrimento.
21. Em data não concretamente apurada a A. deixou de limpar e arrumar a casa da Ré, de tratar da roupa e de higienizar as casas de banho.

APLICANDO O DIREITO
Da ilicitude do despedimento no contrato de trabalho no serviço doméstico
A sentença concluiu que havia ocorrido um despedimento em 15.04.2021 e que este era formalmente ilícito, por não ter sido observada a forma escrita, exigida pelo art. 29.º n.º 3 do DL 235/92, de 24 de Outubro.
Estas conclusões estão resumidas nos seguintes parágrafos da sentença:
«(…)é inequívoco que a ré foi, pela autora, despedida em 15 de Abril de 2021, porquanto os factos provados tornam claro, e assim foram de imediato apreendidos pelas partes, que nas circunstâncias de modo, tempo e lugar referidas em 11. e seguintes a ré foi, efectivamente, despedida. A declaração de vontade emita pela autora é clara e expressa no sentido de pôr termo ao contrato de trabalho e, sendo uma declaração receptícia, foi pela ré recebida e entendida nesses exactos termos.
Daqui decorre que o despedimento, ainda que verbal, produz efeitos, causando a extinção do contrato de trabalho. E se assim é, então a carta posteriormente enviada pela autora à ré comunicando-lhe os motivos do despedimento não reveste qualquer relevância porquanto, quando foi enviada pela autora à ré e por esta recebida, nada mais havia a extinguir pois o contrato de trabalho já havia sido, em data anterior, extinto, não tendo, por isso mesmo, qualquer efeito, designadamente a validação do despedimento já ocorrido.»
Reparando que, nestes parágrafos, a sentença troca a posição dos sujeitos processuais – quem produziu a declaração de despedimento, em 15.04.2021, foi a Ré, na sua qualidade de empregadora, e também foi esta quem enviou a carta de 30.04.2021, a qual foi recepcionada pela A., na sua qualidade de trabalhadora – o que dá lugar a mera rectificação do erro material cometido (art. 614.º n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil), deve, também, afirmar-se que estes fundamentos da sentença estão estabilizados, pois a Ré, na qua qualidade de parte vencedora, não requereu a ampliação do objecto do recurso, como o poderia ter feito ao abrigo do art. 636.º n.º 1 do Código de Processo Civil.
A sentença decidiu, no entanto, julgar a causa improcedente, pois apesar da ocorrência de um despedimento formalmente ilícito, porque não realizado pela forma escrita, este era “substancialmente lícito porque se provou a ocorrência de factos que consubstanciam justa causa”, pelo que ocorria abuso de direito por parte da A..
É este, pois, o tema do recurso: podia ter sido negada a pretensão da A. com fundamento em abuso de direito?
Para chegar à conclusão de ter ocorrido justa causa de despedimento, a sentença efectuou o seguinte raciocínio:
«(…)resulta da factualidade provada que a (Autora)[1] não cumpria, com a diligência devida, as obrigações inerentes ao exercício das funções que lhe estavam cometidas, o que já é grave, mas, para além disso, teceu, junto de terceiro, comentários despropositados e até mesmos jocosos sobre a saúde da ré, susceptíveis de a afectarem na sua auto-estima e bem-estar, o que de facto sucedeu, entendendo-se que se verificam assim preenchidas as alíneas b) e j) (esta por analogia, dada a similitude das situações aí previstas e a verificada no autos, por um lado, e por outro, a natureza meramente exemplificativa do preceito em análise), do art. 30.º do diploma em análise, verificando-se justa causa de despedimento, quer porque a autora não cumpria com a sua prestação de trabalho, quer porque face aos comentários tecidos, atenta a respectiva natureza e a completa devassa da vida privada da ré não podia deixar de se considerar irremediavelmente quebrada a relação de confiança que o contrato de trabalho doméstico, pela sua própria natureza, pressupõe.»
Vejamos, por uma questão de ordem, se foi devidamente invocada a justa causa de despedimento, e se o incumprimento dos deveres laborais por parte da trabalhadora era de tal forma intenso que justificava a aplicação do instituto do abuso de direito.
A sentença começa por identificar como justa causa o comentário identificado no ponto 18 da sentença, ocorrido entre Abril e Junho de 2018 e conhecido pela Ré em Março de 2021, que qualifica como despropositado e jocoso.
Porém, nada está provado quanto ao propósito ou despropósito com o qual tal comentário foi efectuado, como também não está provado que a intenção da A. tenha sido jocosa, no sentido de pretender fazer troça do estado de saúde da sua empregadora.
E tratando-se de facto ocorrido cerca de três anos antes do despedimento, deve colocar-se a seguinte questão: pode a trabalhadora ser confrontada com um fundamento de justa causa de despedimento, que não lhe foi comunicado atempadamente por escrito e em relação ao qual até se mostrava prescrito o direito de exercer o poder disciplinar, face ao disposto no art. 329.º n.º 1 do Código do Trabalho?
Quando o art. 29.º n.º 3 do DL 235/92, de 24 de Outubro, exige ao empregador que, no momento da rescisão do contrato, refira ao trabalhador, expressa e inequivocamente, por escrito, os factos e circunstâncias que a fundamentem, fá-lo pelos mesmos motivos que o art. 357.º n.º 5 do Código do Trabalho exige requisito idêntico no despedimento dos demais trabalhadores: a concretização dos motivos do despedimento, de forma a permitir ao trabalhador o devido exercício do seu direito de defesa.
Com efeito, o direito do trabalhador de impugnar a decisão do despedimento apenas pode ser exercido de forma consciente se este conhecer, de forma completa e exacta, quais os fundamentos que foram utilizados para tal decisão.
Ademais, estabelecendo o art. 31.º n.º 1 do DL 235/92 que o despedimento decidido com alegação de justa causa pode ser judicialmente declarado insubsistente, o tribunal só pode executar tal tarefa, com a necessária certeza e segurança jurídica, se o objecto da causa estiver precisamente definido, com delimitação na decisão de despedimento dos factos susceptíveis de serem apreciados para tal efeito.
Logo, apesar de existir doutrina que defende que a declaração de ilicitude do despedimento no serviço doméstico apenas pode ter por base motivos substantivos e não motivos formais ou procedimentais, pelo que a exigência legal de que a decisão de despedimento observe a forma escrita não teria valor ad substantiam, mas apenas ad probationem[2], devemos optar pela posição que considera a forma escrita como uma formalidade ad substantiam, na linha do que é a posição dominante na jurisprudência[3].
Por expressiva das razões que fundam este juízo, reproduzimos a seguinte passagem do Acórdão da Relação de Coimbra de 26.10.2018, citado em nota:
«(…) diz a recorrente que só a ilicitude resultante de razões substanciais (quando for julgado improcedente o fundamento [substancial] de não verificação da justa causa invocada) é que há lugar a indemnização.
Não perfilhamos este entendimento desde logo porque a lei fala genericamente de indemnização, não distinguindo se a ilicitude resulta de razões substanciais ou formais (art. 31.º do citado DL…); e onde a lei não distingue não é legítimo ao intérprete distinguir.
O despedimento ilícito quer tenha por base razões substanciais ou formais deve dar lugar a indemnização sob pena deste preceito se tornar “letra morta”.
Atentemos no seguinte exemplo:
A lei não atribui ao trabalhador o direito à reintegração. Esta só se operará se houver acordo das partes. Por outro lado, como adiante se verá, no serviço doméstico não há lugar ao pagamento dos denominados salários intercalares,
A colher a tese da recorrente estaria aberta a porta para a total desprotecção do trabalhador do serviço doméstico.
Bastava ao empregador não elaborar a comunicação de cessação com indicação expressa e inequívoca dos factos e circunstâncias que fundamentem a justa causa, de modo a que o despedimento fosse declarado formalmente inválido e, neste caso, ficaria liberto do pagamento da indemnização. Como se oporia à reintegração e não havendo lugar ao pagamento de salários intercalares, estaria encontrada a porta, e passamos a expressão, para os despedimentos “a custo zero”, situação que a lei certamente não quis e que implica uma desprotecção totalmente injustificável do trabalhador doméstico, mesmo considerando as especificidades deste serviço, o que se traduziria numa discriminação destes trabalhadores relativamente aos demais de outras áreas de actividade.»
Respondemos, pois, à pergunta acima colocada pelo seguinte modo: não tendo sido devidamente invocados os factos e circunstâncias que fundamentavam a decisão de despedimento, não podia a trabalhadora ser confrontada com uma justa causa invocada a posteriori, nem o tribunal podia dela conhecer.
Logo, a invocação de abuso de direito é deslocada: a exigência de forma escrita é um requisito de licitude do despedimento, por razões de certeza e segurança jurídica, e o incumprimento dessa formalidade ad substantiam não permite ao tribunal conhecer de uma justa causa não devidamente invocada.
Note-se que, mesmo no regime geral, o art. 389.º n.º 2 do Código do Trabalho admite o dever de indemnizar mesmo no caso de mera irregularidade do despedimento fundada em deficiências de procedimento por omissão das diligências probatórias relacionadas com a instrução requerida pelo trabalhador[4], embora se adiante, desde já, que não se enquadra no conceito de despedimento irregular a falta de forma escrita da decisão de despedimento, pois essa invalidade é cominada com as sanções aplicáveis ao despedimento ilícito – art. 382.º n.ºs 1 e 2 al. d) do Código do Trabalho.
Não se pode, pois, afirmar que o exercício do direito pela trabalhadora exceda, de todo, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo seu fim social ou económico, pois o que está em causa é a sanção devida por um despedimento ilícito, decidido em flagrante violação de princípios essenciais inerentes ao Estado de direito democrático, como a garantia do direito de defesa e a segurança jurídica.
Tem, pois, a A. direito à indemnização correspondente à retribuição de um mês por cada ano completo de serviço ou fracção, decorrido até à data em que foi proferido o despedimento, nos termos do art. 31.º n.º 1 do DL 235/92, tal como peticionou.

DECISÃO
Destarte, concede-se provimento ao recurso, revoga-se a sentença recorrida e condena-se a Ré a pagar à A. a quantia de € 9.000,00, acrescida de juros legais, contados desde a citação e até integral pagamento.
Custas pela Ré.

Évora, 20 de Abril de 2023

Mário Branco Coelho (relator)
Paula do Paço
Emília Ramos Costa

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[1] Corrigiu-se aqui outro lapso material ocorrido na sentença, de troca do sujeito processual – ali dizia-se que era a “Ré” quem não estava a cumprir as funções que lhe estavam cometidas.
[2] Esta é a posição defendida por:
Maria do Rosário Palma Ramalho, in Tratado de Direito do Trabalho, Parte IV – Contratos e Regimes Especiais, Almedina, 2019, pág. 304; e,
Filipe Fraústo da Silva, Sobre a exigência legal de forma escrita para o despedimento no contrato de serviço doméstico, na revista Questões Laborais (2000), Ano VII, n.º 16, págs. 232 a 237.
[3] Neste sentido se pronunciaram os Acórdãos da Relação do Porto de 21.02.2011 (Proc. 996/08.4TTPRT.P1), de 29.02.2016 (Proc. 1206/14.0T8MTS-A.P1) e de 06.11.2017 (Proc. 22377/16.6T8PRT.P1), bem como o Acórdão da Relação de Coimbra de 26.10.2018 (Proc. 121/07.0T8FIG.C1), todos publicados em www.dgsi.pt.
[4] Vide, a propósito do conceito de despedimento irregular e das suas consequências legais, o nosso Acórdão de 11.11.2021 (Proc. 757/19.5T8PTG.E1), também publicado em www.dgsi.pt.