Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
279/19.4T8LAG.E1
Relator: VÍTOR SEQUINHO
Descritores: LOCAÇÃO FINANCEIRA
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
Data do Acordão: 04/23/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Se o prédio objecto de contrato de locação financeira imobiliária se encontrar parcialmente dado de arrendamento a terceiro, a posição contratual do senhorio transmite-se, nos termos do disposto no artigo 1057.º do Código Civil, para o locatário financeiro.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 279/19.4T8LAG.E1

*


(…), Lda. propôs a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, contra (…), (…) e (…), Lda., formulando os seguintes pedidos: a) Ser considerada válida a declaração de oposição à renovação do contrato de arrendamento identificado em 4, supra, e que consta do documento 3, por via da comunicação efectuada em 10/11/2017; b) Ser decretado o despejo do arrendado, condenando-se a ré a efectuar a sua entrega imediata; c) Ser a ré condenada a pagar à autora a indemnização equivalente ao valor da renda mensal nos termos do artigo 1045.º, n.º 1, do Código Civil, sendo esta elevada para o dobro nos termos do n.º 2 do preceituado legal, caso a entrega do locado não venha a ser efectuada em prazo, na sequência da decisão judicial que a determine. Alegou, em síntese, ser locatária financeira de determinado prédio urbano e que o anterior proprietário deste último se opôs validamente à renovação do contrato de arrendamento, incidente sobre parte do mesmo prédio, de que era contraparte a ré.

A ré contestou, invocando a “ilegitimidade substantiva” da autora e sustentando que o contrato de arrendamento não se extinguiu.

A autora respondeu à excepção suscitada pela ré, sustentando que, apesar de não ser proprietária do prédio, foi investida na posse deste, por efeito do contrato de locação financeira, para o usar e fruir de acordo com os fins a que o mesmo se destina, pelo que adquiriu a posição de senhoria nos contratos de arrendamento das várias divisões independentes do prédio; relativamente à ré, a autora não a reconhece como arrendatária, tendo sido por isso que lhe solicitou a desocupação da parte do prédio que ocupa; concluiu, assim, no sentido da improcedência da excepção de ilegitimidade.

Foi proferido despacho saneador que julgou a autora parte ilegítima, absolvendo a ré da instância.

A autora recorreu do despacho saneador, tendo formulado as seguintes conclusões:

A) O presente recurso emerge do, aliás douto, despacho saneador/sentença, o qual julgou a autora/recorrente como parte ilegítima para a presente acção, absolvendo a ré da instância;

B) Com o devido respeito, a decisão recorrida deverá ser revogada, uma vez que a recorrente tem interesse directo em demandar, interesse esse manifestado na utilidade que resulta da procedência da acção, enquanto sujeita da relação material controvertida tal como é configurada pela autora;

C) A recorrente é locatária financeira do imóvel dos autos, foi investida na posse do prédio para o usar e fruir, de acordo com os fins a que o mesmo se destina, sendo da sua responsabilidade exercer quaisquer direitos referentes ao imóvel locado ou à sua utilização, designadamente no que respeita a dar de arrendamento, cobrar as respectivas rendas e exercer todos os direitos comuns a qualquer senhorio;

D) Nos termos do Decreto-Lei 149/95, de 24 de Junho, resulta que o locatário financeiro tem o direito a i) usar e fruir o bem locado, ii) defender a integridade do bem e o seu gozo, nos termos do seu direito e, iii) usar das acções possessórias, mesmo contra o locador, tudo conforme artigo 10.º, n.º 2, alíneas a), b) e e), do referido diploma legal;

E) Mas mais, resulta do contrato de locação financeira dos autos que compete à recorrente o exercício de qualquer acção ou direito contra qualquer terceiro – conforme cláusula 12 (parte final) das condições particulares do contrato de locação financeira imobiliária n.º (…);

F) A recorrente, embora não tendo um título jurídico de proprietário, enquanto locatária exerce, durante todo o período do contrato, um domínio sobre o bem dado em locação financeira – ou seja, um direito de o usar, retirando, em exclusividade, as suas utilidades – em termos de poder praticamente excluir o proprietário jurídico; aliás, a pretensão de ambos os contraentes é a de, após pagamento de todas as rendas do contrato, o bem ser definitiva e formalmente transferido para a esfera jurídica do locatário;

G) E mesmo durante o tempo pelo qual perdura o contrato, o locatário entra na posse material do bem dado em locação e, tal como um mero arrendatário, tem poderes de fruição temporária, pelo que, qualquer acto ilícito praticado contra o bem locado, não pode deixar de conferir-lhe legitimidade para demandar quem, com tais actos, o prejudicou;

H) A recorrente é titular de interesse relevante para efeitos de reclamar em juízo o despejo da ré, por forma a melhor usar e fruir do bem, com vista a retirar, em exclusividade, todas as utilidades e rentabilidades económico-financeiras que aquele é passível de proporcionar;

I) É pois inegável que a recorrente tem interesse directo em demandar, devendo ser considerada parte legítima para a presente acção;

J) A decisão recorrida violou o preceituado nos artigos 30.º, 277.º e 278.º do CPC.

A recorrida não contra-alegou.

O recurso foi admitido.


*


A única questão a resolver consiste em saber se a autora e ora recorrente tem legitimidade para propor a presente acção.

*


Resultam dos autos os seguintes factos com relevância para a decisão do recurso:

1 – Em 30.05.1989, (…) e mulher, (…), então proprietários do prédio urbano destinado a comércio e habitação sito na Praça (…), n.ºs 1 a 5, e Rua (…), n.ºs 2 a 10, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos sob o n.º …/19900316 da freguesia de São Sebastião, Concelho de Lagos, celebraram, na qualidade de senhorios, com a ora recorrida, na qualidade de inquilina, um contrato de arrendamento tendo por objecto o r/c com os n.ºs 1 e 2 da Praça (…) e números 2 e 4 da Rua (…) do ao prédio acima descrito;

2 – (…) adquiriu o prédio descrito em 1, por partilha extrajudicial, de (…);

3 – (…) adquiriu o prédio descrito em 1, por partilha extrajudicial, de (…);

4 – O Banco Comercial Português, SA comprou o prédio descrito em 1 a (…);

5 – Em 20.06.2018, o Banco Comercial Português, S.A. (como locador) e a recorrente (como locatária) celebraram um contrato de locação financeira tendo por objecto o prédio descrito em 1.


*


Resulta dos factos que acabámos de enunciar que o Banco Comercial Português comprou o prédio dos autos, dando-o em locação financeira à autora/recorrente, e que a ré/recorrida se apresenta como arrendatária de uma parte do mesmo prédio, discutindo-se se ainda o é efectivamente.

Perante o quadro factual descrito, o tribunal a quo considerou que a recorrente carece de legitimidade processual porquanto não é ela a titular do direito de propriedade sobre o prédio dos autos e, consequentemente, não é ela, mas sim o locador financeiro, quem ocupa a posição contratual do anterior senhorio.

A recorrente sustenta que, por efeito do contrato de locação financeira, adquiriu a posição contratual de senhoria nos diversos contratos de arrendamento sobre partes do mesmo, pelo que é ela quem tem legitimidade processual para a propositura da presente acção, em que está em discussão a validade da oposição à renovação de um desses contratos.

A resolução da questão de saber qual das partes do contrato de locação financeira imobiliária assume a posição contratual do senhorio quando o imóvel adquirido pelo locador financeiro tendo em vista a celebração daquele contrato se encontre total ou parcialmente arrendado envolve a análise, por um lado, do regime legal de transmissão da posição contratual do senhorio e, por outro, da natureza do contrato de locação financeira imobiliária.

O artigo 1057.º do CC estabelece que o adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato de locação sucede nos direitos e obrigações do locador, sem prejuízo das regras do registo. Se se considerar unicamente a redacção desta norma, conclui-se como na decisão recorrida. O contrato de arrendamento dos autos foi celebrado pelos então proprietários do imóvel, obviamente com base nesse direito, pelo que, com a venda do mesmo imóvel ao Banco Comercial Português, este último adquiriu a posição contratual de senhorio. Como a celebração do contrato de locação financeira não implica, como veremos, a transmissão do direito de propriedade sobre a coisa locada para o locatário financeiro, o locador financeiro mantém a posição contratual de senhorio, cabendo-lhe a si a legitimidade para a propositura da presente acção. Perante a alegação da recorrente segundo a qual ela é uma mera locatária financeira do imóvel e não a sua proprietária, teria de se concluir, face ao disposto no artigo 30.º do CPC, no sentido da sua ilegitimidade activa.

Porém, a questão acima enunciada não se resolve com tal simplicidade, antes se impondo uma interpretação do artigo 1057.º do CC que tenha em conta a natureza e os efeitos, quer do contrato de locação, quer do contrato de locação financeira.

O artigo 1022.º do CC define a locação como o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa mediante retribuição. Segundo o artigo 1023.º do CC, a locação diz-se arrendamento quando verse sobre coisa imóvel e aluguer quando incida sobre coisa móvel. O artigo 1031.º do CC estabelece que são obrigações do locador entregar ao locatário a coisa locada e assegurar-lhe o gozo da mesma para os fins a que se destina.

Perante o disposto nos artigos 1022.º e 1031.º do CC, facilmente se conclui que a cedência do gozo da coisa constitui um elemento essencial do contrato de locação. Se uma pessoa for titular de um direito de propriedade plena sobre uma coisa, será obviamente ela quem se encontra em condições de proporcionar esse gozo a outrem, como resulta do artigo 1305.º do CC. Já na hipótese de nos encontrarmos perante um direito de propriedade limitado por um direito real menor de cujo conteúdo típico faça parte o gozo da coisa, quem se encontra em condições de proporcionar este último a outrem não será o proprietário, mas sim o titular desse direito real menor.

O exemplo clássico desta última hipótese é a existência de um direito real de usufruto. O artigo 1439.º do CC define este último como o direito de gozar temporária e plenamente uma coisa ou direito alheio sem alterar a sua forma ou substância. O artigo 1446.º do CC estabelece que o usufrutuário pode usar, fruir e administrar a coisa ou o direito como faria um bom pai de família, respeitando o seu destino económico. O gozo pleno da coisa pelo usufrutuário priva, logicamente, o proprietário de tal poder enquanto o usufruto subsistir. Logo, quem tem legitimidade substantiva para ceder o gozo de uma coisa através de um contrato de locação não é o proprietário, mas sim o usufrutuário [cfr. artigos 1052.º, als. a) e b), e 1444.º, n.º 1, do CC][1].

Portanto, o locador não é forçosamente o proprietário da coisa locada. Pode não o ser logo desde a celebração do contrato de locação, como acontece na já referida hipótese de ser o usufrutuário da coisa locada quem outorga como locador. Mas também pode não o ser em consequência de vicissitude ocorrida posteriormente à celebração do contrato de locação. É neste ponto que nos interessa o disposto no artigo 1057.º do CC.

Imaginemos que o proprietário/locador onera o seu direito de propriedade com um direito de usufruto. O contrato de locação não fica imune a esta vicissitude. Ao invés, a constituição do usufruto, com a consequente cedência, com eficácia real, das faculdades de uso, fruição e administração da coisa locada ao usufrutuário (artigo 1446.º do CC), repercute-se, ao nível subjectivo, sobre o contrato de locação. Por via do disposto no artigo 1057.º do CC, o usufrutuário adquire a posição do proprietário no contrato de locação, tornando-se ele o locador. Atendendo ao conteúdo dos direitos envolvidos, a solução não poderia ser outra. Não faria sentido continuar a ocupar a posição de locador o titular de um direito real despojado do poder de gozo da coisa locada. Isto, realce-se, apesar da redacção algo estreita do artigo 1057.º do CC, que prevê a transmissão do direito com base no qual foi celebrado o contrato de locação, mas não a oneração desse direito por um direito real cujo conteúdo típico integre o gozo da coisa locada. Por via de uma interpretação extensiva, impõe-se concluir que, também nesta última hipótese, a posição contratual do locador se transmite[2].

Fica, assim, demonstrado que um não proprietário da coisa locada pode ocupar, originária ou supervenientemente, a posição de locador.

É altura de dar o passo seguinte. Verificar-se-á tal cisão entre as qualidades de proprietário e de locador na hipótese de a coisa locada ser um prédio comprado tendo em vista a celebração de um contrato de locação financeira? A resposta a esta questão passa necessariamente pela análise deste tipo contratual.

O artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24.06, define a locação financeira como o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados.

Se se atentasse apenas nesta definição legal, poder-se-ia supor que a locação financeira é um tipo contratual semelhante à locação, a que se adicionaria uma faculdade de compra, pelo locatário, findo o prazo da cedência do gozo da coisa. Todavia, não é assim. Há que atentar na globalidade do regime jurídico do contrato de locação financeira para caracterizar com rigor este tipo contratual.

A função típica do contrato de locação financeira é muito diversa da do contrato de locação. A locação financeira, que tem como vocação o apoio ao investimento[3], desempenha simultaneamente as funções de crédito e de garantia[4], não se tratando, simplesmente, de uma cedência temporária do gozo de uma coisa mediante retribuição, como acontece na locação, com opção de compra pelo locatário financeiro uma vez decorrido o prazo estipulado no contrato. Note-se, a propósito, que, para efeitos da aplicação do Decreto-Lei n.º 74-A/2017, de 23.06, que estabelece o regime jurídico dos contratos de crédito aos consumidores para imóveis destinados a habitação, o contrato de locação financeira é expressamente abrangido pela definição de contrato de crédito, constante do artigo 4.º, n.º 1, al. e), daquele diploma legal.

Em conformidade com tal função, “as rendas da locação financeira são rendas financeiras, ou seja, compostas, cada uma delas, por dois elementos: numa parte, a amortização do capital e, noutra parte, os juros do crédito concedido (podem ser, eventualmente, aqui incluídas outras despesas que o locador financeiro tenha tido que efectuar, assim como eventuais comissões administrativas ou de gestão). (…) Note-se que elas não permitem a amortização da totalidade do valor pago pelo bem – valor que constitui o crédito concedido pelo locador financeiro, por via indirecta –, sendo para o efeito ainda necessário o pagamento do valor residual (ou pelo valor decorrente da sua venda no mercado, ou da sua rentabilização através de outro contrato de locação financeira, ou mesmo de locação).”[5] Ou seja, as rendas não constituem, como na locação, uma mera contrapartida pelo gozo temporário da coisa locada.

No que concerne à função de garantia, citamos novamente L. Miguel Pestana de Vasconcelos: “(…) a locação financeira é um instrumento de financiamento garantido pela propriedade do bem, bem esse que o locador financeiro não quer explorar economicamente. Ele visa simplesmente a restituição do capital investido e dos juros. (…) Na locação pelo contrário, o locador pretende explorar economicamente o bem, cuja transferência não está em jogo. Ele recebe, como contrapartida, as rendas ou alugueres que consistem na sua retribuição por assegurar o gozo da coisa para o fim a que ela se destina [art. 1031.º, al. b)].”[6] O direito de propriedade do locador financeiro tem carácter meramente garantístico[7].

Contribui para a compreensão da natureza do contrato de locação financeira a caracterização do locador financeiro. Este “é, em regra, uma sociedade de locação financeira ou uma instituição de crédito, portanto um intermediário financeiro. Aqui se manifesta, desde logo, a vertente creditícia do negócio. No art. 4.º, n.º 1, al. b) do DL 298/92, alude-se à actividade das instituições de crédito, afirmando-se que os bancos podem efectuar “operações de crédito, incluindo… [a] locação financeira…” (cfr. ainda o art. 2.º, n.º 1, parte final DL 298/92).”[8] “(…) só podem exercer a “título profissional” (art. 8.º, n.º 2 RGICSF) a actividade de locação financeira os bancos [art. 4.º, n.º 1, al. b) RGICSF], as instituições financeiras de crédito (IFIC), bem como as sociedades de locação financeira (art. 1.º, n.º 1, do Dec-Lei n.º 72/95, de 15.04).”[9] Tendo em conta o seu objecto, não constitui vocação das entidades que se dedicam com habitualidade à celebração de contratos de locação financeira na qualidade de locadores explorar economicamente a coisa locada, nomeadamente ocupando a posição contratual de senhorio em contratos de arrendamento que sobre esta última recaiam. A finalidade por si prosseguida através da celebração de um contrato de locação financeira é, como referimos, conceder crédito, recuperá-lo e ser remunerado por tal concessão, garantindo o seu direito de crédito através da manutenção da titularidade do direito de propriedade sobre a coisa locada até ao momento em que o locatário financeiro exercer a faculdade de compra.

Sendo assim, “(…) o locador mantém-se na vigência do contrato o proprietário jurídico (mas não económico) da coisa, conquanto dela se desinteresse”[10]. Tal cisão entre a propriedade jurídica e a propriedade económica da coisa dada em locação financeira, cabendo a primeira ao locador e a segunda ao locatário, constitui um dos traços fundamentais deste tipo contratual, com repercussão, inclusivamente, no plano fiscal[11]. O locador mantém o direito de propriedade sobre a coisa, adquirido de terceiro tendo em vista a celebração do contrato de locação financeira, com a exclusiva finalidade de garantia do seu direito de crédito sobre o locatário. Como anteriormente referimos, o locador não explora economicamente a coisa locada. Ao invés, é o locatário quem procede a essa exploração económica, com cujo resultado certamente contará para pagar as rendas e, no final do contrato, o valor remanescente que lhe permitirá adquirir a propriedade jurídica da coisa locada. Numa palavra, apesar de não ser o proprietário jurídico da coisa locada, o locatário é o proprietário económico desta, exercendo, sobre a mesma, os poderes de uso e fruição que, em princípio, cabem ao proprietário – artigo 10.º, n.º 2, al. a), do Decreto-Lei n.º 149/95. Note-se, a propósito, que, nos termos do artigo 9.º, n.º 1, al. b), deste diploma legal, o locador concede, mas não assegura, ao locatário, o gozo da coisa para os fins a que esta se destina. A posição do locador financeiro caracteriza-se, pois, pela ausência da faculdade de gozo da coisa, não obstante ser o titular do direito de propriedade sobre a mesma.[12]

Mais, o direito que o locatário financeiro exerce sobre a coisa locada tem natureza real, constituindo um direito real de gozo. Como salienta Maria da Conceição Soares Fatela[13], “nenhum outro direito real limita de forma tão abrangente, e durante um período temporal tão longo, o direito de propriedade como o faz o direito do locatário financeiro.” Daí, nomeadamente, a possibilidade, decorrente do artigo 10.º, n.º 2, al. b), do Decreto-Lei n.º 149/95, que o locatário financeiro tem de recorrer à acção de reivindicação para defender o seu direito[14]. “Como decorre do artigo 1.º, o direito do locatário financeiro é um direito real que nasce com a tradição da coisa locada, e que se caracteriza, essencialmente, pela existência na esfera jurídica do locatário de dois direitos incindíveis: o direito de gozo da coisa locada e o direito potestativo de exercer a opção de compra da mesma.”[15]

Assim caracterizado o contrato de locação financeira, nomeadamente a posição de cada uma das partes relativamente à coisa locada, podemos concluir, com segurança, que é o locatário financeiro, como titular do poder de gozo da coisa enquanto o contrato vigorar, quem se encontra em condições de proporcionar esse mesmo gozo a outrem através de um contrato de locação. Esta conclusão é confirmada pelo disposto nos artigos 7.º e 10.º, n.ºs 1, als. g) e h), e 2, al. d), do Decreto-Lei n.º 149/95. Do artigo 10.º, n.ºs 1, als. g) e h), e 2, al. d), resulta que, se a lei permitir ou o locador financeiro autorizar, o locatário financeiro pode dar a coisa em locação nos termos do artigo 1022.º do CC. Já o locador financeiro, nos termos do artigo 7.º, apenas poderá dar a coisa em locação na hipótese de o contrato findar por qualquer motivo e o locatário financeiro não exercer a faculdade de compra. A razão deste último regime é óbvia: apenas na hipótese prevista no artigo 7.º o locador financeiro adquire o gozo da mesma coisa; até lá, por não ter esse gozo, não se encontra em condições de dar a coisa em locação.

Confirma este entendimento o disposto no artigo 2.º, n.º 2, do já citado Decreto-Lei n.º 74-A/2017, que estabelece que, com ressalva das excepções nele previstas, tal diploma legal se aplica aos contratos de locação financeira de bens imóveis para habitação própria permanente, secundária ou para arrendamento celebrados com consumidores. É, assim, a própria lei a prever expressamente a possibilidade de celebração, na qualidade de locatário, de contratos de locação financeira de bens imóveis destinados a arrendamento, em perfeita consonância com o acima exposto.

Sendo assim, deve entender-se que, estando a coisa que constitui objecto de locação financeira dada de arrendamento a terceiro, a posição do senhorio se transmite, num primeiro momento, para o locador financeiro por efeito da celebração do contrato de compra e venda em que este outorga como comprador e, num segundo momento, por efeito da celebração do contrato de locação financeira, para o locatário financeiro, em qualquer dos casos nos termos estabelecidos no artigo 1057.º do CC, interpretado nos termos expostos na primeira parte da presente fundamentação.

No caso dos autos, a autora/recorrente alega ser locatária financeira do prédio e pede a restituição de uma parte deste por quem, no seu entendimento, foi, mas já não é, arrendatário, bem como uma indemnização por uma ocupação que considera ser ilícita, por falta de título. Tendo ela adquirido, através da celebração de contrato de locação financeira, a qualidade de senhoria, tem, nos termos do artigo 30.º do CPC, legitimidade processual para a propositura da presente acção, mediante a qual pretende recuperar o gozo da parte do prédio ocupada pela recorrida.

Deverá, pois, o recurso ser julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida na parte em que julgou a recorrente parte ilegítima e, com esse fundamento, absolveu a recorrida da instância. Em vez disso, a recorrente deverá ser julgada parte legítima e os autos deverão prosseguir os seus termos.



*



Sumário:

(…)


*


Decisão:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso procedente, revogando-se a decisão recorrida na parte em que julgou a recorrente parte ilegítima e, com esse fundamento, absolveu a recorrida da instância. Em vez disso, julga-se a recorrente parte legítima e ordena-se o prosseguimento dos autos.

Custas a cargo da recorrida (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).

Notifique.


*


Évora, 23 de Abril de 2020

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

Mário Rodrigues da Silva

José Manuel Barata


__________________________________________________

[1] Cfr. Manuel Januário Gomes, Constituição da Relação de Arrendamento Urbano, Livraria Almedina, 1980, páginas 276 e 295-296.

[2] No sentido de a posição contratual do locador se transmitir, nos termos descritos no texto, na hipótese de constituição de usufruto sobre a coisa locada, cfr. Luís Menezes Leitão, Arrendamento Urbano, Edições Almedina, 8.ª edição, p. 114, Jorge Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, Livraria Almedina, 3.ª edição, p. 491-492, e António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, Edições Almedina, vol. XI, p. 862.

[3] Maria da Conceição Soares Fatela, A Locação Financeira Imobiliária e os Direitos Reais – Da Natureza Real do Direito do Locatário Financeiro, Edições Almedina, 2020, p. 87.

[4] L. Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito Bancário, Edições Almedina, 2.ª edição, páginas 274 e 278.

[5] L. Miguel Pestana de Vasconcelos, cit., p. 283. Veja-se, também, p. 294.

[6] Obra citada, p. 286.

[7] Idem, p. 292 e 295. Cfr, também, Fernando de Gravato Morais, Manual da Locação Financeira, Edições Almedina, 2.ª edição, p. 331.

[8] Fernando de Gravato Morais, cit, p. 329.

[9] L. Miguel Pestana de Vasconcelos, cit., p. 279.

[10] Fernando de Gravato Morais, cit, p. 331.

[11] Cfr. Maria da Conceição Soares Fatela, cit., p. 49: “(…) para efeitos tributários ficciona-se a existência de uma transmissão da propriedade equiparada à transmissão civil, tendo por base o facto de os direitos e obrigações já exercidos pelo vendedor e pelo comprador corresponderem, na prática, àqueles que teriam se a propriedade jurídica já tivesse sido, efectivamente, transmitida. Nestas situações, do ponto de vista fiscal, já há uma obrigação de tributação em sede de IMT, de IRC e de IRS. São exemplos desta situação: (…) o locatário financeiro.”

[12] Cfr. Maria da Conceição Soares Fatela, cit., páginas 380-381.

[13] Obra citada, p. 377.

[14] Maria da Conceição Soares Fatela, cit., páginas 373 e 376.

[15] Maria da Conceição Soares Fatela, cit, p. 377.