Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
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| Relator: | SILVA RATO | ||
| Descritores: | INSOLVÊNCIA FORTUITA | ||
| Data do Acordão: | 02/10/2010 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO CÍVEL | ||
| Decisão: | REVOGADA A DECISÃO | ||
| Sumário: | I – O artigo 188º, nº 4, do CIRE tem que ser interpretado no sentido de que a decisão que o juiz proferir, enquanto garante da legalidade, após o parecer do administrador da insolvência e a promoção do M.P. concordantes no sentido da qualificação da insolvência como fortuita, tenha que conter uma apreciação sobre a legalidade dessas propostas, em face do plasmado nos autos, podendo sempre o juiz, em caso de dúvida, determinar a realização de diligências para verificar da legalidade das mesmas. II – Após os Pareceres do Administrador da Insolvência e do M.P. e antes de decidir sobre a qualificação da insolvência, devem todos os interessados ser previamente ouvidos, sob pena de ocorrer uma irregularidade que, por poder influir na apreciação da causa, constituir nulidade, nos termos do artigo 201º, CPC. | ||
| Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA I. Neste processo de insolvência, decretada que foi a insolvência da Requerida “A”, foi aberto o Incidente de Qualificação da Insolvência. Nesse Incidente, o Sr. Administrador da Insolvência e o M.P. propuseram a qualificação da insolvência como fortuita. A fls. 163 desses autos (cuja cópia está junta a fls. 40 destes autos) foi proferido o seguinte despacho: "Considerando que, tanto o senhor administrador da insolvência como o Ministério Público propuseram a qualificação da insolvência como fortuita, em conformidade com o disposto no art.º 188°, n.º 4 do C.I.R.E, qualifico como fortuita a insolvência de “A”. Por requerimento de fls. 175 a 179 do processo principal (cuja cópia está junta a fls. 34 a 38 destes autos), veio a credora “B”, arguir, nos termos do art.° 201° do CPC, a nulidade do citado despacho, por falta de notificação do parecer emitido pelo Administrador da Insolvência e da promoção do M.P., e ainda a nulidade do despacho por omissão de pronúncia e falta de fundamentação. Por despacho de fls. 201 a 203 do processo principal (cuja cópia está junta a fls. 3 a 5 destes autos) foram declaradas improcedentes as arguidas nulidades. Inconformada, veio a credora “B” interpor recurso de apelação, cujas alegações terminou com a formulação das seguintes conclusões: "Quanto à notificação dos pareceres do M.P. e Administrador de Insolvência: a) De acordo com a interpretação expendida na decisão recorrida. «a tramitação do incidente de qualificação de insolvência encontra-se esgotantemente regulada no CIRE, não havendo qualquer lacuna que importe integrar, (. . .) recorrendo ao regime constante do CPC ( . .) efectivamente o CIRE não impõe que os aludidos pareceres tenham de ser previamente notificados aos credores (. . .) ». b) Tal doutrina, vertida na decisão recorrida, viola o disposto no artigo 9º, nº 1, do Código Civil, e arrepia desde logo ao que já em Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 20-06-2006 foi decidido, considerando que « da mera circunstância de o dito normativo não estipular "expressis verbis" a notificação do parecer em apreço, não é lícito extrapolar para a inferência oposta, já que, dada a especial relevância dos interesses em jogo, isso apenas seria possível no caso de explicita determinação nesse sentido». c) O princípio do contraditório, plasmado no art.º 3º. Nº 3. do CPC e violado pela decisão recorrida, constitui garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, directa ou indirectamente, com o objecto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão. Por outro lado, Se o escopo dos artigos 188º e seguintes, do CIRE, é a defesa não só da economia nacional e do Estado, mas também dos interesses dos credores, (Ac. do Tribunal da Relação do Porto, de 13-10-2008); e se do art.º 188º, nº 4, do CIRE decorre o dever de o juiz declarar a ilegalidade dos pareceres do Administrador da insolvência e do Ministério Público a que se referem os números 2 e 3, sempre que estes não obedeçam aos requisitos formais e materiais aí previstos, é de concluir que tais pareceres e tal decisão admitem sempre reclamação: o que pressupõe que quem dela pode reclamar tenha conhecimento do teor daqueles pareceres. Assim, e) Não se dar aos Credores qualquer possibilidade de aferir da actuação do Administrador de insolvência, ou do Tribunal, manifestando em relação a ela a crítica e contrariedade tidas por Justificadas, é decidir ao arrepio dos direitos processuais de índole constitucional, a um processo igual, justo e por isso compaginável com o Estado de Direito democrático (art.º 2º da Constituição da República Portuguesa). f) Constituindo grave violação do princípio do contraditório e do direito de defesa dos Credores, aqui consubstanciado numa actuação incisiva e eficaz, no desenvolvimento do processo, bem como da proibição de decisões surpresa, ínsitos no artº 20º, nº 1, dessa Lei Fundamental, incompreensível até, atendendo a que sede do incidente de qualificação da insolvência não prevalecem razões de especial urgência, Quanto à violação do art.º 188º, nº 4, do CIRE: g) A decisão recorrida indeferiu a nulidade invocada (por omissão de pronúncia e falta de fundamentação) sobre o despacho a que alude o art.º 188º, nº 4, do CIRE, entendendo nenhum dever de controle caber ao Tribunal, sobre os pareceres referidos nos nºs 2 e 3 daquele artigo Ou seja, desobrigando o Tribunal de decidir motivadamente sobre o cumprimento dos requisitos e formalidades legalmente prescritas, relativas àqueles pareceres e bem assim de verificar que tais pareceres são compagináveis com os demais factos conhecidos nos autos, no que respeita à actuação dos representantes legais da Insolvente. Porém, h) É de assinalar que, à data em que foram juntos os pareceres e proferida decisão do incidente da qualificação da insolvência, já a ora Recorrente tinha apresentado (em 27/01/2009) um requerimento, REQUERENDO EXPRESSAMENTE A QUALIFICAÇÃO DA INSOLVENCIA COMO DOLOSA e dando conta de factos que importam tal qualificação, ao que acresce que «Dentro dos respectivos e bem amplos poderes inquisitórios para julgamento e decisão do incidente da qualificação da insolvência - art. 11º do CIRE - pode o juiz basear a sentença em factos mesmo não alegados pelas partes, contanto que sobre os mesmos tenha havido a possibilidade da parte se pronunciar, sob pena de violação do direito de defesa (arts 3º, nº/s 1 e 3 do CPC e 20º da CRP)» Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 25-10-2007. i) O art. 188.º, n.º 4, do C.I.R.E., não pode ser interpretado no sentido de que o juiz está vinculado à qualificação da insolvência como fortuita, sob pena de se subtrair ao tribunal a resolução do conflito de interesses, conferindo à decisão conteúdo integralmente heterodeterminado, pelos pareceres do administrador da insolvência e do Ministério Público que, sem que haja nisto qualquer desprimor, não se integram na noção constitucional de "tribunal". j) Se nos termos do art.º 11º do CIRE, o Juiz do processo detém poderes que lhe permitem (que o OBRIGAM a) autonomamente investigar os factos de que depende a qualificação da insolvência como culposa, então, logicamente, não pode estar vinculado aos pareceres emitidos pelo Administrador de insolvência e Ministério Público. Pelo que, k) Tal interpretação do art. 188, nº 4, do CIRE, constitui grosseira violação da reserva constitucional da jurisdição, plasmada no art. 202, nº 2 e 203, ambos da Constituição da República Portuguesa, não justificada pela salvaguarda de qualquer outro direito ou interesse constitucionalmente protegido, sequer pela celeridade: Vide, sobre tal questão, Acórdão do Tribunal Constitucional, de 6 de Maio de 2008, I Secção, Processo nº 143/08. Ora, E, l) Violando ainda o princípio da Justiça, da razoabilidade decisões judiciais e da proporcionalidade, equivalendo a admitir que o Tribunal ficaria vinculado a proferir uma decisão "homologatória" fundada em factos inverosímeis, e a pareceres que não cumprem as formalidades legalmente prescritas, ilógicos e incompagináveis com aos demais elementos dos autos, como ocorre quando se propõe a qualificação de uma insolvência como fortuita, de uma sociedade que deixou um passivo de meio milhão de euros e sem qualquer activo, após se apresentar à insolvência 6 meses depois de ser constituída, através de procurações com o capital social imediatamente levantado de €5.000,OO, com sede numa vivenda onde nunca foi exercida qualquer actividade comerciai. m) Tal interpretação é absolutamente literal, violando também o art.º 9º do Código Civil do qual resulta a necessidade, evidenciada pela mais autorizada doutrina, de interpretação sistemática do art. 188º n.º 4, do CIRE, compaginando-o com os poderes-deveres de investigação plasmados no art.º 11º do mesmo Código, que vinculam o juiz a autonomamente indagar os factos e declarar qualquer ilegalidade ou incongruência dos pareceres a que ali se alude. n) Com o uso da expressão "de imediato", plasmada no art.° 188º, nº 4, do CIRE, só pode querer o legislador querer referir-se à situação oposta àquela que resulta do disposto no artigo 188.º, n 5, 6 e 7, ou seja, prevendo que a decisão é imediata, sem que se siga a notificação do devedor dos sujeitos afectados pela qualificação como culposa para se oporem, querendo, no prazo de 15 dias, e bem assim, impondo a insusceptível de recurso daquela decisão, sendo essa a única interpretação conforme à constituição e às regras plasmadas no artigo 9º, nº 1, do Código Civil, também violado pela decisão recorrida." II. Nos termos do disposto nos art.°s 684°, n.º 3, e 690°, n.º 1, ambos do C.P.Civil, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do disposto na última parte do n.º 2 do art.° 660° do mesmo Código. As questões a decidir resumem-se, pois, a saber: a) Se o parecer do Sr. Administrador da Insolvência e a promoção do M.P. devem ser notificados aos interessados para que eles se possam pronunciar sobre o teor dos mesmos, ao abrigo do disposto no n.º3 do art.º 3° do CPC. b) Se a decisão de qualificação da insolvência padece de falta de fundamentação e de omissão de pronúncia. Prendem-se as questões acima referidas, no essencial, com a interpretação do disposto no n.º 4 do art.° 188° do CIRE, que dispõe o seguinte:"Se tanto o administrador da insolvência como o Ministério Público propuserem a qualificação da insolvência como fortuita, o juiz profere de imediato decisão nesse sentido, a qual é insusceptível de recurso". Da leitura desta disposição, poderia retirar-se, numa interpretação puramente literal, que havendo concordância de posições entre o administrador da insolvência e o M.P. sobre a qualificação da insolvência como fortuita, ao juiz caberá apenas o singelo e acrítico papel de apor a sua chancela de conformação. Ora a interpretação das normas não deve cingir-se à mera letra da lei, devendo partir acima de tudo de uma interpretação que tenha em conta a unidade do sistema jurídico e em particular dos princípios constitucionais que o moldam (art.º 9° do Cód. Civ.). Nos termos do art.° 202° da Constituição da República Portuguesa, aos Tribunais, enquanto Órgãos de Soberania, cabe administrar a Justiça, assegurando a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos e não permitindo a violação da legalidade democrática. Sendo inalienável tal reserva de jurisdição, tendo em conta o princípio constitucional da separação de poderes (artº 203° da CRP). Daí que a norma em apreço (n.° 4 do art.° 188° do CIRE), tenha que ser interpretada no sentido de que a decisão que o juiz proferir, enquanto garante da legalidade, após o parecer do administrador da insolvência e a promoção do M.P. concordantes no sentido da qualificação da insolvência como fortuita, tenha que conter uma apreciação sobre a legalidade dessas propostas, em face do plasmado nos autos, podendo sempre o juiz, em caso de dúvida, determinar a realização de diligências para verificar da legalidade das mesmas (art.º 11º do CIRE) (vide neste sentido Carvalho Fernandes Código da Insolvência ... Anotado, vol II, em nota ao art.º 188°). Sendo de afastar a interpretação literal da norma, tal como foi acolhida na 1ª Instância de que a decisão do Tribunal estava acriticamente vinculada ao parecer do administrador da insolvência e da concordante promoção do M.P., pelo que não faria sentido ouvir os interessados processuais sobre o teor desses pareceres - afigura-se-nos que, em abono do direito de defesa dos seus interesses, e tendo em conta o dever de colaboração das partes na realização da justiça, devem todos os interessados ser previamente ouvidos sobre o parecer do administrador da falência e a promoção do M.P. (art.º 20° da C.R.P. art.ºs 3°, n.º 3 e 519°, ambos do CPC e art.º 17° do CIRE). Concluindo, após o parecer do administrador da insolvência e a promoção do M.P. concordantes no sentido da qualificação da insolvência como fortuita, deve ser assegurado o princípio do contraditório, ouvindo-se os interessados processuais sobre a matéria, após o que caberá ao juiz do processo proceder a um juízo crítico sobre a legalidade desses parecer e promoção, nomeadamente tendo em conta a posição sobre a matéria dos diversos interessados processuais, e consequentemente decidir sobre a qualificação da insolvência. Procede assim a arguida nulidade de omissão de notificação dos interessados nos autos, do parecer do Sr. Administrador da Insolvência e da promoção do M.P., omissão essa que pode influir na apreciação da causa (art.° 201° do CPC), pelo que se revoga o despacho recorrido e se anulam os actos praticados no Incidente de Qualificação da Insolvência, após a junção aos autos do parecer do Sr. Administrador da Insolvência e da promoção do M.P., nomeadamente a decisão de qualificação do incidente. Fica assim prejudicado o conhecimento da questão acima elencada sob a alínea b). *** III-Decisão Face ao exposto, revoga-se o despacho recorrido e, considerando procedente a nulidade de omissão de notificação aos interessados processuais do parecer do Sr. Administrador da Insolvência e da promoção do M.P., anulam-se os actos praticados no Incidente de Qualificação da Insolvência após a junção aos autos desses parecer e promoção, nomeadamente a decisão do incidente de qualificação da insolvência. Sem custas. Registe e notifique. Évora, 10 de Fevereiro de 2010 |