Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
232/15.7JDLSB.E1
Relator: CARLOS BERGUETE COELHO
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 11/29/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I – A tomada de declarações para memória futura, constituindo exceção ao princípio da imediação, obedece a exigências de tutela da personalidade da testemunha (evitar os danos psicológicos implicados na evocação sucessiva pela declarante da sua dolorosa experiência e a sua exposição em julgamento público) e visa proteger a integridade da prova testemunhal.

II – Se é certo que todos os meios de prova relevantes para a descoberta da verdade e boa decisão da causa devem ser produzidos em audiência, em sintonia com o princípio definido no art. 340.º do CPP, a subjacente necessidade tem de estar implícita e, esta, haverá de ser apreciada, no que aqui interessa, pela requerida proteção conferida à menor, vítima de crime sexual, tendencialmente no sentido de que a mesma não se veja desvirtuada, sob pena das razões que estiveram subjacentes à tomada de declarações para memória futura serem, em si mesmas, esquecidas.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

1. RELATÓRIO

Nos autos de processo comum, com intervenção do tribunal colectivo, com o número em epígrafe, da Instância Central da Comarca de Évora, o arguido M. foi pronunciado, pela prática, em autoria material, em concurso efectivo e na forma consumada, de um crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 1, e 177.º, n.ºs 1, alínea b), e 5, do Código Penal (CP), de um crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 1, e 177.º, n.ºs 1, alínea b), e 5, do CP, de quatro crimes de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 1, e 177.º, n.ºs 1, alínea b), e 5, do CP, de dois crimes de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.ºs 1, alínea d), e 2, do CP, e de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, alínea b), do CP.

Hospital do Espírito Santo, EPE, deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido/demandado, no montante de € 860,23, acrescido de juros moratórios à taxa em vigor, a título de danos patrimoniais.

O arguido contestou a pronúncia, invocando a existência da nulidade prevista no art. 120, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Penal (CPP) e negando ter praticado qualquer dos actos imputados.

Em audiência de julgamento, na sessão que ocorreu em 11.05.2016, a assistente, MR, através da sua mandatária, formulou o seguinte requerimento:

A alegada vítima de abusos sexuais S. prestou, nos termos e para os efeitos do disposto no artº 271º do C.P.P., declarações para memória futura, declarações essas que foram já ouvidas em sede de audiência de julgamento.

Não obstante, após o relato que lhe foi feito do teor do depoimento das testemunhas na última sessão de julgamento, suponho, fez-me saber da sua pretensão de ser ouvida por este Tribunal, preferencialmente na presença do arguido.

Em vista do apuramento da verdade e porque legalmente admissível, sugere-se a Vª Exª o deferimento de tal pretensão.

O Ministério Público pronunciou-se no sentido do indeferimento.

A defesa nada opôs ao requerido e manifestou subscrevê-lo integralmente.

Após deliberação do Coletivo, proferiu-se despacho, segundo o qual:

«Dispõe o artº 271, nº 8 do CPP que, a tomada de declarações (para memória futura) não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica da pessoa que o deva prestar".

A menor S. prestou declarações para memória futura. Tais declarações são perfeitamente audíveis e compreensíveis.

A repetição das mesmas em julgamento revela carácter excepcional e tem que ser fundamentada.

Os assistentes, não fundamentaram a sua pretensão. A defesa, por sua vez, não indicou os pontos concretos que, na sua perspectiva contém contradições com outros depoimentos prestados em julgamento.

Pese embora, aparentemente, tivesse sido a menor a solicitar a sua nova inquirição, não tendo estado presente em audiência de julgamento, certamente tal pretensão foi sugestionada por terceiro que, assistiu aos trabalhos.

A S. tem 16 anos. Não é crível que a prestação de depoimento sobre factos relativos a alegada prática de abusos sexuais de que terá sido vítima, na presença do alegado agressor (arguido), não a prejudique psiquicamente. A repetição das declarações prestadas no contexto de julgamento apenas, deve efectivada, caso se mostre absolutamente essencial ao apuramento da verdade. Está em causa o interesse da protecção da menor que, no caso em concreto, prevalece, sobre qualquer outro interesse.

A "vontade" da alegada vítima não pode aqui ser valorada, pois manifestamente foi condicionada por terceiros. Cabe ao Estado, na última linha proteger a menor, quando os seus representantes legais, não o conseguem fazer. É esse o sentido da Lei de Protecção das Testemunhas (artº 28, nº 2 da Lei 93/99, de 14/07).

Neste sentido, "vide" por todos, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11-01-2012, disponível em www.dgsi.pt, segundo o qual:

“VII - Manteve-se, mesmo quanto às vítimas dos indicados crimes, a menção de que as declarações prestadas para memória futura apenas seriam tomadas cm conta na audiência se tal fosse necessário, se bem que se tenham restringido os pressupostos da audição dessas testemunhas na audiência através da introdução da exigência suplementar de o respectivo depoimento não pôr em causa a saúde física ou psíquica de quem o devesse prestar.

VIII - O art. 28.º, n.º 2, da Lei de Protecção das Testemunhas em Processo
Penal, ao estabelecer que, «sempre que possível, deverá ser evitada a repetição da audição da testemunha especialmente vulnerável durante o inquérito, podendo ainda ser requerido o registo nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal», veio alargar ainda mais o âmbito de aplicação deste preceito.

IX - Deixou de ter uma mera função cautelar e de proteger as vítimas de certo tipo de crimes, passando a abranger todas as pessoas que se incluam no amplo conceito de testemunha, tal como ele se encontra definido pelo art. 2.º, alínea a), da Lei n.º 93/99, de 14/07, e a abarcar qualquer tipo legal de crime.

X - A Lei n.º 112/2009, de 16/09, veio, por sua vez, no seu art. 33.º, prever um regime formalmente autónomo para a prestação de declarações para memória futura das vítimas de violência doméstica, se bem que esse regime diste pouco do hoje constante do art. 271.º do CPP.

XI - Admitindo o art. 33.º da Lei n.º 112/2009, de 16/09, que a vítima de violência doméstica possa prestar declarações para memória futura e não se estabelecendo a obrigatoriedade da prática desse acto, importa procurar na lei um critério que permita determinar os casos em que ele deve ter lugar.

XII - Esse critério há-de resultar de uma ponderação entre o interesse da vítima de não ser inquirida senão na medida do estritamente indispensável à consecução das finalidades do processo e o interesse da comunidade na descoberta da verdade e na realização da justiça”.

Pelo exposto, sendo manifesto que a repetição do depoimento da menor, em audiência de julgamento a afectará psiquicamente, sem que desse acto, não resulte clara, nenhuma vantagem para o apuramento da verdade, indefere-se o requerido.».

Ainda, no decurso da audiência, foram comunicadas ao arguido alterações da qualificação jurídica dos factos (art. 358.º do CPP).

Proferido acórdão, decidiu-se:

1 - condenar o arguido:
- pela prática de um crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, alínea b), do CP, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão;

- pela prática de um crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelos arts. 171.º. n º 3, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea b), do CP, na pena de 6 (seis) meses de prisão;

- pela prática de cada um de três crimes de abuso sexual de criança, p. e p. pelos arts. 171.º, n.ºs 1 e 2, e 177.º, n.º 1, alínea b), do CP, nas penas parcelares de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão;

- pela prática de um crime de abuso sexual de menor dependente, p. e p. pelos arts. 172.º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, alínea b), do CP, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão;

- pela prática de dois crimes de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.ºs 1, alínea d), e 2, do CP, nas penas parcelares de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;

2 - fixar, em cúmulo jurídico, a pena única de 12 (doze) anos de prisão.

3 - julgar extinto o procedimento criminal instaurado contra o arguido atinente aos ilícitos descritos na factualidade assente subsumíveis aos crimes de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143, n.º 1, do CP, e injúria, p. e p. pelo art. 181, n.º 1, do CP, face, respectivamente, à intempestividade da queixa apresentada pela respectiva titular e à ausência de acusação particular.
(…)

6 - condenar o demandado a pagar a Hospital Espírito Santo de Évora, EPE, a quantia de € 860,23, acrescida de juros de mora desde a citação e até integral pagamento, fixados como dispõe o art. 3.º, n.º 1, do Dec. Lei n.º 73/99, de 16.03;

(…)
8 - condenar M. a pagar, a título de reparação pelos prejuízos sofridos pelos assistentes D. e L., a cada um deles, a quantia de € 1.000,00, ao abrigo do disposto no art. 82.º-A, n.º 1, do CPP, “ex vi” art. 21.º, n.º 2, da Lei n.º 112/09, de 16.09;

9 - condenar M. a pagar, a título de reparação pelos prejuízos sofridos pela assistente S., a quantia de € 1.000,00, ao abrigo do disposto no art. 82.º-A, n.º 1, do CPP, “ex vi” art. 21.º, n.º 2, da Lei n.º 112/09, de 16.09.

Inconformado, o arguido interpôs recursos, formulando as conclusões:

A) - recurso do despacho:
1 - A assistente que prestou declarações para memória futura veio requerer ao Tribunal a sua tomada de declarações em sede de audiência de discussão e julgamento, requerimento esse que, perante as manifestas contradições no depoimento da menor, e destas com a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, a defesa também subscreveu, por entender serem essenciais à descoberta da verdade material, à realização da justiça e exercício pleno do princípio do contraditório.

2 - Os requerimentos foram indeferidos em nome da protecção da menor, reconhecendo-se ainda que a vontade da vítima não poderia ser valorada por estar a ser «manifestamente condicionada por terceiros». Tal é também o entendimento da defesa desde o início do processo; sendo manifesto que a vontade da menor está a ser manipulada por terceiros, então será de presumir, com algum grau de segurança, que a vontade de terceiros também poderá ter condicionado as declarações para memória futura e as mesmas poderão ter determinado um relatório de avaliação psicológica que também ele não se coaduna com a prova até agora produzida; a sua audição em sede de audiência de discussão e julgamento - mas sem ser na presença do arguido - poderá contribuir definitivamente para a descoberta da verdade material e realização da justiça, e ainda para a realização plena do exercício pleno do contraditório.

Nestes termos, e nos mais de Direito aplicáveis e com o mui douto e sempre necessário suprimento de VV. Venerandas Ex.as, deve o presente recurso proceder, e consequentemente revogar o despacho ora recorrido, e substituindo-o por outro que ordene a notificação da assistente em sede de discussão e julgamento, fazendo-se, assim, a costumada Justiça.

B) - recurso do acórdão:
a) O arguido foi condenado numa pena única de 12 anos de prisão pela prática, como autor material de 5 crimes de abuso sexual de criança, um crime de abuso sexual de menor dependente de dois crimes de violência doméstica.

b) O arguido considera ter-se verificado a nulidade prevista no art. 120.º, n.º 2, al. d) e n.º 3 al. c) do Cód. Proc. Penal, uma vez que o relatório de perícia médico-legal cuja realização foi requerida e ordenada judicialmente, e considerada pelo Ministério Pública “essencial ao encerramento do inquérito” só foi junta aos autos já depois de ter passado o prazo para requerer a abertura de instrução, o que coloca em causa a defesa do arguido;

c) Nesta senda, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (Ac. 9261/2003-5, DGSI) «Porém, o princípio de legalidade a que está sujeito o MºPº (art.º 3º n.º1 c) Estatuto do MºPº) não permite que, determinada pela entidade competente a necessidade da realização de determinada diligência, esta possa deixar de ser efectuada.»; Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 19 – Out. – 1994, processo 46.305/3.ª) afirma que «A falta de um acto de inquérito, ordenado pela entidade que o dirige integra a nulidade de insuficiência de inquérito, prevista no art.º 120, n.º 1 e 2, al. d), do CPP, e não a nulidade do acto porque este não existiu. II – É o que sucede com a substituição de auto de exame ginecológico deprecado por documento passado por médico especialista em papel timbrado do hospital, em que refere ter procedido a esse exame, com a colaboração de uma enfermeira e descreve o que observou, emitindo o seu parecer».

d) Sendo considerada uma prova «essencial ao encerramento do inquérito» o mesmo não poderia ter culminado com o despacho de acusação sem a apreciação daquela mesma prova; uma vez requerida pela entidade que tem completa autonomia (Ministério Público) para ordenar a produção de determinada prova, a produção desta torna-se obrigatória.

e) Pelo exposto, e salvo respeito por melhor opinião, entendemos estar perante a nulidade prevista no art. 120.º, n.º 2, al. d) e n.º 3 al. c) do Cód. Proc. Penal, o que determina, foi tempestivamente invocada, com as demais consequências legais, nomeadamente os efeitos constantes no artigo 122.º do Código de Processo Penal, considerando e invocando para todos os legais efeitos a defesa considera verificar-se também uma inconstitucionalidade por violação directa do artigo 32.º n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.

f) Ressalvado o devido e merecido respeito, o arguido considera incorrectamente julgados os pontos 3 a 18 da matéria de facto dada como provada, porquanto se considerou no douto acórdão ora recorrido que os mesmos resultaram do depoimento da menor S., descreveu de forma clara e precisa os actos de que foi alvo pelo arguido;

g) No entanto, o arguido considera que existe prova que merece ser reapreciada, por entender que a mesma não só coloca em causa todo o depoimento da menor, como, no mínimo, gera uma dúvida mais do que razoável sobre os factos que a menor imputou ao arguido.

h) O relatório de perícia médico-legal afirma que a menor S. apresenta o hímen intacto, permeável à entrada de dois dedos, e não apresenta quaisquer outras lesões na zona genital; ressalva a possibilidade de ser hímen complacente, tal não pode significar que o arguido tenha praticado os factos – pelo contrário, sob pena de violação do princípio do in dúbio pro reo.

i) No depoimento para memória futura, a menor afirma que andaria no sexto ano, e teria doze ou treze anos quando o arguido lhe terá tocado num seio. (Audição do Depoimento para memória futura, gravação 2:16 até 4:12 min. e 5:00 a 6:31 min.), afirmando ainda que a mãe pensou que este poderia estar só a ver como pai e a mãe desculpou-o (Depoimento da testemunha MR, dia 13-04-2016, 3:20 min. até 3:45min). Ora não se compreende como é que a mãe poderia ver um comportamento de abuso sexual, bater no autor desse alegado abuso, para depois o desculpar e nada ter comentado nem com a filha ou com mais ninguém.

j) Também se fica na dúvida quanto à “temeridade” do comportamento imputado ao arguido: havendo perfeita visibilidade – tal como é afirmado pela alegada vítima e pela sua mãe – o arguido teria mesmo tocado no peito da menor em correndo o risco de ser visto pela sua companheira? Esta afirmação não parece verosímil.

k) No que diz respeito aos pontos 5 e 6 da matéria dada como provada, afirma-se que o arguido entrou na casa de banho da residência, sem roupa enquanto a menor tomava duche e se aproximou do poliban onde tentou entrar. A menor terá contado à mãe que o arguido a teria espreitado enquanto tomava banho através da janela da casa de banho, mas do lado de fora da casa (depoimento da testemunha MR, 1:00:07 a 1:01:57); por seu turno, a menor apresenta uma versão diferente, afirmando não aquilo que a mãe afirma que ela lhe contou, mas antes que o arguido estava despido e tentou entrar no poliban (depoimento para memória futura da menor, 7:44 a 8:36). Mais uma vez encontramos uma clara contradição entre o que a menor contou à mãe e o que declarou para memória futura.

l) Os pontos dados como provados em 7 a 18 também o arguido considera não se poderem considerados como provados; o arguido não pode concordar com isso: o depoimento prestado é, além de impreciso e pouco claro, um pouco confuso em termos das situações relatadas, e contraditório com a restante prova produzida.

m) A menor, ao longo do seu depoimento, vai acrescentando sempre novos factos. Basta comparar as afirmações contidas a minutos 9:05 a11:15; 12:04 a 13:13:10; 15:30 a 16:50 minutos com as posteriormente prestadas a minutos 44:50 a 54:28. A menor demonstra ao longo do seu depoimento mais interesse em justificar as ausências da mãe (afirmando que esta saia apenas com amigas e não com um “rapaz como o M desconfiava”) do que propriamente preocupação com os factos de que se diz ter sido vítima.

n) Ora, confrontando o depoimento para memória futura com as declarações da sua mãe, que se encontrava em processo de separação do arguido, existem contradições enormes entre ambos depoimentos, tanto no que a menor diz ter contado à sua mãe, nas circunstâncias de momento e lugar em que contou e as situações que relatou (depoimento de MR, 13 de Abril, minutos 7:30 a 8:00; 9:00 a 10:50; 12:55 a 14:20; 14:25 a 16:10; 16:30 a 26:30; 49:44 a 1:19:10; 1:19:30 a 1:51:00; 28 de Abril, 1:40 a 5:01; 9:22 a 14:16; 15:32 a 34:17; 40:00 a 46:21 e 57: 37 a 1:05:06, para os quais se remete a apreciação na íntegra.

o) Estas declarações (da menor e da mãe), também deverão ser confrontadas com os depoimentos de JP (28 de Abril, minutos 3:35 a 8:49, 9:34 a 9:39, 10:04 a 10:22 e 10:38 a 10:51); esta testemunha afirma que a menor lhe terá relatado que o padrasto abusava dela mas que nessa altura apenas lhe terá dito que o padrasto lhe “apalpava as maminhas”; esta depoente disse ainda que nesse momento, não se recorda de a menor lhe ter dito que o teria feito mais do que uma vez, ao contrário do que é afirmado pela menor.

p) JM, no seu depoimento de 28 de Abril de 2016, afirma claramente que a S. apresentava constantemente versões contraditórias dos factos, uma vez contando uma coisa, e no outro dia já dizendo outra totalmente diferente (minutos 2:07 a 4:17).

q) JR também coloca completamente em causa o depoimento da menor S: (depoimento de 28 de Abril, minutos 1:50 a 10:12); neste depoimento é patente que a menor S. entra em completa contradição tanto com o que conta à mãe, às professoras, às amigas à psicóloga (a título de exemplo, a S. no seu depoimento afirma que o arguido nunca a tentou forçar a ter sexo oral com ele, ao passo que a esta testemunha afirmou que o mesmo tentou que ela lhe fizesse sexo oral, entre muitas outras contradições).

r) No que diz respeito ao depoimento prestado pela testemunha AP, professora adjunta da direcção do agrupamento de escolas n.º 4 de Évora, este confirma que anteriormente tinha havido uma falsa acusação por “assédio sexual” por parte de um professor (11 de Maio, minutos 32:00 a 33:46).

s) No seu depoimento, a menor afirma que o filho do arguido (DM, sabia de tudo); no entanto, o menor, no seu depoimento afirma claramente que a menor S. o terá abordado na escola e lhe terá dito para ele confirmar que ele sabia, ou de contrário lhe bateria; mais acrescenta que a menor terá dito que “já tinha feito a sua vontade” e que a justificação para estas acusações falsas teriam como motivo o facto de a mãe querer sair com a S. e o L. de casa e o pai não deixar. (depoimento da testemunha DM, 28 de Abril, minutos 21:24 a 28:57).

t) A corroborar esta versão, não devemos esquecer os documentos juntos aos autos nos quais publicamente a mãe da menor afirmou à irmã do arguido – AM – que já tinha conseguido prender o pai e que se esta não estivesse calada ainda faria o mesmo com o pai do arguido; deste testemunho resultou a junção aos autos de documentos com os quais posteriormente a mãe da menor S. foi confrontada e que não soube – mais uma vez explicar o conteúdo das ameaças, afirmando que as mesmas foram escritas não por si, mas pela menor S. (depoimento de AM, 11 de Maio, minutos 3:44 a 13:08, e novo depoimento de MR, mesma data, minutos 0:06 a 4:25).

u) Por todos os depoimentos aqui reproduzidos, entende-se ser de relevância a reapreciação da identificada prova e igualmente da reapreciação e consideração do depoimento prestado pela mãe da menor, uma vez que eventualmente poderá ter condicionado a menor ao relato das queixas acerca do abuso sexual ou, pelo menos, ter sido por sua causa que a menor proferiu tais acusação (13 de Abril, minutos 7:30 a 8; 9:00 a 10:50; 12:55 a 14:20; 14:25 a 16:10; 16:30 a 26:30; 49:44 a 1:19:10; 1:19:30 a 1:51:00, e dia 28 de Abril, minutos 1:40 a 5:01; 9:22 a 14:06; 15:32 a 34:17; 40:00 a 56:21 e 57:37 a 1:05:06).

v) DP, avó materna da menor, vem afirmar em sede de audiência de discussão e julgamento ter tido uma conversa com a S. e com a sua filha menor, na qual as advertiu para fazerem queixa caso alguém abusasse sexualmente delas, nomeadamente descrevendo quais os tipos de comportamentos de que se deveriam queixar-se (na prática, os mesmos comportamentos que posteriormente a menor S. afirma no seu depoimento ter sido vítima), numa altura em que a S. estaria quase a fazer 15 anos. (Depoimento de DP, dia 11 de Maio, minutos 19:13 a 24:39, e 30:38 a 38:08).

w) Perante tudo isto, parece ao arguido que as afirmações da menor não merecem qualquer credibilidade:

x) Portanto, e em termos de prova, encontramos o depoimento da menor, que é colocado em causa tanto pelo relatório de perícia médico-legal (que diz que não existem quaisquer lesões, além de o hímen se encontrar intacto – embora complacente, não nos podemos esquecer da inexistência de outras lesões, nem sequer o facto de, no caso de hímen complacente, tal não é prova de que o arguido tenha praticado os actos de que vem acusado!), como por todos os restantes depoimentos, uma vez que em momento algum e dos relatos que faz às demais testemunhas, nenhum é coincidente com o depoimento para memória futura, ou – no mínimo – vai variando a versão de dia para dia até prestar aquele depoimento.

y) Temos um caso anterior de uma falsa denúncia por assédio sexual que aconteceu anteriormente;

z) Com todo o respeito por melhor opinião e ao princípio da livre apreciação da prova, entendemos que esta, no seu cômputo geral, não confirma as declarações da menor; muito pelo contrário: descredibiliza por completo as mesmas, criando sérias dúvidas sobre todos os crimes de abuso sexual de menores de que o arguido vem acusado.

aa) A menor tem sido tratada desde muito cedo com Risperidona e Ritalina, sendo o primeiro um antipsicótico que é receitado para casos de psicoses, bipolaridade ou esquizofrenia em menores de 18 anos.

bb) Bem sabemos que os crimes de natureza sexual contra menores são de difícil prova, e que muitas vezes a verdade material apenas se poderá alcançar do depoimento da vítima, contanto que este seja sustentado por algum outro meio de prova, o que não acontece nos presentes autos.

cc) Toda a prova parece criar sérias dúvidas acerca da credibilidade do depoimento da menor, bastando, para tal confrontar as suas declarações com as das restantes testemunhas, para encontrarmos uma série de omissões, anacronismos, e sobretudo contradições entre todos os restantes elementos de prova aos quais acresce o exame de perícia médico-legal!

dd) Pelo exposto, considera o arguido que os pontos 3 a 18 da matéria de facto dada como provada foram – com o devido e muito merecido respeito – incorrectamente julgados, porquanto a prova (que merece reapreciação e acima se encontra referenciada nos termos do artigo 364.º, n.º 2 do CPP) parece indicar que o depoimento da menor, ao contrário do que é afirmado no douto acórdão, não merece credibilidade.

ee) A conjugação de toda a prova leva-nos a crer firmemente que a esta não é suficiente para condenar o arguido, uma vez que o depoimento da menor é contrariado por toda a restante prova, o que importará a absolvição do arguido da prática dos cinco crimes de abuso sexual de menores e do crime de abuso sexual de menor dependente.

Nestes termos, e nos mais de Direito aplicáveis, e com o mui douto e sempre necessário suprimento de VV. Venerandas Ex.as, deve o presente recurso proceder e consequentemente:

a) Declarar-se verificada a nulidade prevista no art. 120.º, n.º 2, al. d) e n.º 3 al. c) do Cód. Proc. Penal, com as demais consequências legais que tal nulidade comporta;

b) Absolver-se o arguido da prática dos cinco crimes de abuso sexual de criança e do crime de abuso sexual de menor dependente.

Foram admitidos os recursos.

O Ministério Público apresentou respostas, concluindo:

A) - quanto ao recurso do despacho:
1- A assistente que prestou declarações para memória futura veio requere ao Tribunal a sua tomada de declarações em sede de audiência de discussão e julgamento que requerimento este, que a defesa também subscreveu, por entender ser essencial à descoberta da verdade, material e à realização do pleno direito do contraditório.

2- Nos termos do artigo 271º do Código de Processo Penal, as declarações para memória futura de menor vítima de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual em inquérito constituem acto obrigatório e a documentar através de registo áudio ou audiovisual, valendo como prova de julgamento independentemente do menor vir a ser novamente ouvido durante a audiência.

3- As declarações para memória futura constituem uma exceção ao princípio da imediação e, são diligências de prova realizadas pelo juiz de instrução na fase do inquérito, sujeitas ao princípio do contraditório, que visam a sua valoração em fases mais adiantadas do processo como a instrução e o julgamento, mesmo na ausência das pessoas que as produziram

4- No caso concreto estão em causa crimes de natureza sexual, e a vítima é menor de idade, é assim necessário ter presente a especial vulnerabilidade da vítima, em razão da sua idade e da natureza dos actos de que foi alvo, fortemente perturbadores da sua intimidade e integridade sexual.

5- Assim, sempre que possível e salvo a existência de especiais e ponderosas razões que o desaconselhem, devem ser tomadas declarações para memória futura ao ofendido, nos termos prevenidos no art.271º. do C.P.P., assegurando também que, tendo presente o estatuído na parte final do seu nº.3, no decurso dessa diligência, esteja obrigatoriamente presente defensor do arguido constituído ou a constituir, assim se assegurando o princípio do contraditório que vigora em processo penal.

6 - Atento o supra exposto entendemos que não asiste razão ao recorrente.

Termos em que julgando o presente recurso improcedente farão V.ªs Ex.ªs como é de lei.

B) - relativamente ao recurso do acórdão:

1- O arguido M., foi condenado pela prática de cinco crime de abuso sexual de criança, um crime de abuso sexual de dependente e um crime de violência doméstica, incidindo o recurso interposto sobre questões de facto e de direito;

2- Na sentença em recurso, é feito um enorme e sério esforço de conjugação e apreciação de toda a prova produzida, que gerou um enunciado claro e preciso que expõe de forma directamente compreensível as razões do juízo feito sobre a matéria de facto, e cuja pertinência com a matéria de facto produzida em audiência é facilmente constatável, resultando do recurso interposto uma mera desconformidade entre a visão dos factos apresentada pelo recorrente e os factos dados como provados, o que nos reconduz ao erro na apreciação da prova, na medida em que nele se diz que os factos dados como provados deverão “ser objecto de reapreciação” e “merecem uma segunda apreciação”;

3- Quanto à nulidade invocada também neste ponto não assiste razão ao recorrente, uma vez que, o relatório pericial não era acto que a lei prescreve como obrigatório e não se trata de uma verdadeira omissão de acto.

Termos em que julgando o presente recurso improcedente farão V.ªs Ex.ªs como é de lei.

Neste Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, entendendo que não deve conhecer-se do recurso do despacho, que a questão da invocada nulidade se encontra já definitivamente decidida e, no restante, no sentido da improcedência do recurso do acórdão.

Observado o disposto no n.º 2 do art. 417.º do CPP, o arguido nada veio acrescentar.

Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto dos recursos define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, de harmonia com o art. 412.º, n.º 1, do CPP, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam, as cominadas com nulidade do acórdão (art. 379.º, n.º 1, do CPP) e os vícios da decisão e as nulidades que não se considerem sanadas (art. 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP), designadamente conforme jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário Secção Criminal STJ n.º 7/95, de 19.10, publicado in D.R. I-A Série de 28.12.1995 e, ainda, entre outros, os acórdãos do STJ: de 25.06.1998, in BMJ n.º 478, pág. 242; de 03.02.1999, in BMJ n.º 484, pág. 271; e de 12.09.2007, no proc. n.º 07P2583, in www.dgsi.pt; Simas Santos/Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 3.ª edição, pág. 48; e Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Editorial Verbo, 1994, vol. III, págs. 320/321.

Delimitando-o, reside, pois, em analisar:

A) - recurso do despacho:
- da audição da menor em audiência;

B) - recurso do acórdão:
1 - da nulidade do inquérito;
2 - da impugnação de matéria de facto.

Apreciando:

A) - recurso do despacho:
O recorrente insurge-se contra o indeferimento que o requerimento da assistente (que subscreveu integralmente) mereceu, versando no solicitado pedido para que, em audiência, fossem tomadas declarações à menor.

A propósito deste recurso, que foi admitido, o Digno Procurador-Geral Adjunto suscitou que, atendendo a que o Recorrente omite, em absoluto, qualquer referência ao interesse que, porventura, mantenha, relativamente ao Recurso retido e tendo em conta o disposto no art. 412.º, n.º 5, do CPP, não seja o mesmo conhecido, por ter havido desistência.

Todavia, ainda que constatando-se tal omissão, determinou-se a notificação do recorrente para, nos termos e ao abrigo do art. 417.º, n.º 3, do CPP, vir esclarecer se mantinha interesse no recurso, ao que veio a responder afirmativamente.

Implicitamente ao que foi determinado, conferiu-se a possibilidade de suprimento da omissão, se bem que não se desconheça que o incumprimento da previsão legal desse art. 412.º, n.º 5, do CPP, seja susceptível de configurar-se como desistência tácita do recurso (Pereira Madeira, in “Código de Processo Penal Comentado”, Almedina, 2016, pág. 1300).

Mas, também, não se descura que o referido art. 417.º, n.º 5, do CPP, abrange expressamente o convite ao esclarecimento nessa situação a que alude esse n.º 5 do art. 412.º, em moldes idênticos aos que acontece nos outros casos previstos nos seus n.ºs 2 a 4, sobre os quais a rejeição liminar do recurso tem sido vista como desproporcionada e excessiva perante as garantias do direito ao recurso e a um processo equitativo (arts. 32.º, n.º 1, e 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa).

Tanto mais quando, como no caso sucede, a admissão do recurso retido, só em momento posterior à interposição do recurso do acórdão, foi notificada ao recorrente, como decorre de fls. 1026, na esteira do que se decidiu, com a devida adaptação, no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 381/06, de 27.06, in www.dgsi.pt (“julgar inconstitucional, por violação das disposições conjugadas dos artigos 32º, n.º 1, e 20º, n.º 4, parte final, da Constituição, o n.º 5 do artigo 412º do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que a exigência da especificação dos recursos retidos em que o recorrente mantém interesse, constante do preceito, também é obrigatória, sob pena de preclusão do seu conhecimento, nos casos em que o despacho de admissão do recurso interlocutório é proferido depois da própria apresentação da motivação do recurso interposto da decisão final do processo”).

Neste sentido, facultado o convite e tendo o recorrente manifestado interesse na apreciação do recurso, deste se conhece.

Vejamos.
O requerimento então formulado baseou-se na alegada pretensão de que a menor fosse ouvida em audiência, na sequência do que lhe teria sido relatado quanto aos depoimentos das testemunhas, não obstante tivesse prestado, no inquérito, declarações para memória futura, relativamente às quais se procedeu, na audiência, à respectiva audição (acta de fls. 796).

Invoca-se, em recurso, que as declarações para memória futura são contraditórias e, também, contrariam depoimentos de outras testemunhas, pelo que a audição da menor se afiguraria essencial à descoberta da verdade e no respeito do princípio do contraditório.

Ao invés, o tribunal a quo não encontrou vantagem para o apuramento da verdade, tendo em conta, além do mais, em concreto, a prevalência do interesse da protecção da menor.

Ora, a tomada de declarações para memória futura, constituindo excepção ao princípio da imediação, obedece a exigências de tutela da personalidade da testemunha (evitar os danos psicológicos implicados na evocação sucessiva pelo declarante da sua dolorosa experiência e a sua exposição em julgamento público) e visa proteger a integridade da prova testemunhal.

Conforme Sandra Oliveira e Silva, in “A Protecção de Testemunhas no Processo Penal”, Coimbra Editora, 2007, pág. 29, De entre as multímodas situações de risco para a testemunha que a fenomenologia da realidade deixa entrever, são claramente autonomizáveis dois núcleos típicos, a que correspondem outras tantas categorias normativas: a das chamadas «testemunhas vulneráveis», pessoas para as quais a mera intervenção nos actos processuais comporta de per si um considerável dano, atenta a imaturidade das suas estruturas psíquicas (crianças, doentes mentais) ou a especial natureza dos actos criminosos observados (crimes sexuais, violência familiar, etc.) e a das «testemunhas intimidadas ou ameaçadas», em que o risco de lesão, embora agravado em virtude da colaboração com a administração da justiça, deverá ser imputado a uma actuação do arguido ou outra pessoa.

Nas medidas de protecção, destinadas a testemunhas especialmente vulneráveis, como é o caso da menor S., dada a sua idade (art. 26.º da Lei n.º 93/99, de 14.07, na redacção actual conferida pela Lei n.º 29/2008, de 04.07) e como vítima de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual, se inclui mesmo a obrigatoriedade dessa diligência de prova em inquérito, nos termos do art. 271.º, n.º 2, do CPP e, como decorre do n.º 1 deste, “a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento”.

No entanto, tal tomada de declarações não significa que, em audiência de julgamento, a menor não viesse a prestar depoimento, conforme ao n.º 8 desse art. 271.º, sempre que isso fosse possível e não pusesse em causa a sua saúde física ou psíquica, tudo dependendo de aquilatar da sua conveniência em concreto, em vista da sua devida protecção perante as finalidades da realização da justiça e das garantias de defesa do arguido, aqui recorrente, segundo juízo de ponderação que se compagine com a perspectiva de “concordância prática” dos interesses em jogo.

Por seu lado, não se desconhecem os problemas relacionados com a credibilidade do testemunho em casos como o da menor, dadas as limitações no seu processo de desenvolvimento e de crescimento, propícias à fantasia, à linguagem e à comunicação muito próprias, à sugestionabilidade, à perda de memória.

Mais uma vez citando Sandra Oliveira e Silva, ob. cit., pág. 165, Numerosos estudos científicos demonstraram, na verdade, que as crianças, em especial, tendem a esquecer e confundir as suas memórias com informações adquiridas no decurso do processo ou a modificar a recordação dos factos realmente ocorridos com eventos imaginários, daí resultando a incapacidade para distinguir entre pormenores que resultam de uma percepção real e aqueles que são criados pela fantasia e pela imaginação (as chamadas “falsas recordações”). Por conseguinte, os repetidos interrogatórios comportam um considerável perigo de contaminação da prova, muito agravado no caso de aos menores serem feitas perguntas sugestivas.

Em síntese (…) pretende-se evitar os danos psicológicos implicados na evocação sucessiva pelo declarante (p. ex., a “testemunha-vítima”) da sua dolorosa experiência e a sua exposição em julgamento público.

Pode afirmar-se, pois, que a intervenção da autoridade judiciária, motivando que a testemunha, nesse caso, deva depor, constitui em si mesma uma intromissão nos seus direitos, que impõem acrescida e adequada protecção, mormente em situação a que esse n.º 8 do art. 271.º se refere, no sentido, aqui citando Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, Universidade Católica, Lisboa, 2008, pág. 705, É implícito que o tribunal de julgamento deva considerar essa repetição necessária para a descoberta da verdade (artigo 340.º, n.º 1), o que, nos casos de doença grave ou vítimas de crimes do catálogo legal, só deve verificar-se em casos excepcionais em face da ratio protectora da diligência de declarações para memória futura, sendo que, em concreto, isso foi tido em conta pelo tribunal, não só em face da argumentação do requerido, como também pela ponderação dos interesses em jogo.

Na verdade, a mera argumentação de vontade da menor, tanto mais surgida do relato que lhe teria sido feito e com a inevitável influência que isso comportou, condicionando-a, não tem a virtualidade de suportar real interesse em que fosse ouvida em audiência, obrigando-a a sujeitar-se à repetição de factos delicados, com sacrifício desproporcional da sua saúde psíquica.

A fundamentação do despacho é esclarecedora e observou a ponderação entre o interesse da vítima e o interesse na descoberta da verdade e realização da justiça.

Contrariamente ao que transparece da posição do recorrente, essa ponderação foi efectuada à luz do caso concreto e, assim, enveredou pela solução de que a audição não era indispensável para atingir estas últimas finalidades, designadamente apelando, e bem, ao sumário do acórdão da Relação de Lisboa de 11.01.2012 (no proc. n.º 689/11.5PBPDL-3, rel. Carlos Almeida), in www.dgsi.pt.

Não obstante todos os meios de prova relevantes para a descoberta da verdade e boa decisão da causa devam ser produzidos em audiência, em sintonia com o princípio definido no art. 340.º do CPP, a subjacente necessidade tem de estar implícita e, esta, haverá de ser apreciada, no que aqui interessa, pela requerida protecção conferida à menor, vítima de crime sexual, tendencialmente no sentido de que a mesma não se veja desvirtuada, sob pena das razões que estiveram subjacentes à tomada de declarações para memória futura serem, em si mesmas, esquecidas.

Para além de que é inegável que o legislador, ao ter imposto a obrigatoriedade de inquirição para memória futura, no inquérito, de ofendido menor, vítima de crimes sexuais, reflectiu o propósito de cuidar dessa protecção.

Acresce que o respeito pelo contraditório não foi atingido, uma vez que as declarações para memória futura foram produzidas com a presença de defensora do recorrente (fls. 345) e, até, foram ouvidas em audiência (fls. 796), na qual a defesa pôde, perante as mesmas, e o mais que lhe pareceu conveniente, suscitar o que entendesse por pertinente.

Afigura-se, pois, que inexiste fundamento para alterar o decidido, improcedendo tal recurso.

B) - recurso do acórdão:

1 - da nulidade do inquérito:

O recorrente considera estar-se perante a nulidade do inquérito, prevista pelo art. 120.º, n.º 2, alínea d) do CPP, que teria sido tempestivamente invocada (n.º 3, alínea c), do mesmo preceito legal).
Reporta-se a que, embora o CPP não imponha a obrigatoriedade da prática de quaisquer actos nessa fase, dispondo o Ministério Público de autonomia, se, em concreto, foi solicitada ao Instituto Nacional de Medicina Legal a realização de perícia, a mesma foi tida por essencial ao encerramento do inquérito, mas apenas veio a ser junta aos autos e conhecida do recorrente já depois de decorrido o prazo para a abertura da instrução, com o que viu prejudicada a sua defesa.

A questão fora suscitada pelo recorrente, em moldes idênticos, durante a instrução, motivo porque mereceu análise na decisão instrutória, que a entendeu falha de razão.

Ali se consignou:
Invoca o arguido a insuficiência do inquérito e da acusação, nulidade prevista no art. 120.º, n.º 2, al. d) e n.º 3 al. c) do Cód. Proe. Penal, porquanto não consta dos autos o relatório de perícia médico-legal.

Afigura-se-nos, contudo, manifestamente evidente que não lhe assiste qualquer razão.

Não só a diligência foi requerida e realizada em inquérito, pese embora por razões imputáveis ao INML apenas tenha sido junto o respetivo relatório cerca de sete meses depois, como a omissão que gera insuficiência de inquérito se reconduz apenas à omissão da prática de atos legalmente obrigatórios, como se retira da leitura do art. 120.º, n.º 2, al. d) do Cód. Proe. Penal, que não é o caso.

Vigorando em sede de processo penal o princípio da legalidade e tipicidade dos vícios que afetam os atos (art. 118.º do Cód. Proe. Penal), e não se reconduzindo a nenhum dos previstos na lei o atraso na junção aos autos do relatório da perícia médica já realizada, improcede, por isso, a nulidade invocada.

Ainda acresce que não se entende como possam os direitos de defesa do arguido ter ficado afetados, como alegado pelo Ilustre Defensor, pois que foi junto aos autos, em fase de instrução, o relatório da perícia médica e o arguido foi notificado do mesmo, podendo sempre a esse respeito se pronunciar, como fez, ou solicitar outros meios de prova.

Não obstante tal decisão instrutória se mostrasse transitada em julgado e não se tratasse de matéria atinente a proibição de prova (art. 310.º, n.ºs 1 e 2, do CPP), o recorrente veio reiterar a questão em sede de contestação (fls. 775).

Certamente, por isso, o acórdão se pronunciou nesse âmbito e em termos similares aos que constavam daquela decisão instrutória, sendo que, em rigor, nem caberia ao tribunal a quo fazê-lo, uma vez que versou questão que já se encontrava coberta pela força do caso julgado (art. 628.º do Código de Processo Civil ex vi art. 4.º do CPP).

Em conformidade, também, agora, não é legítimo ressuscitar apreciação da mesma, porque já definitivamente assente, do que resulta que não deve ser conhecida.

Ao nível da matéria de facto, consta do acórdão recorrido:

Factos provados:
1 - Durante, aproximadamente, 11 anos o arguido M. viveu em comunhão de leito, mesa e habitação com MR, ultimamente, na Rua …, em Nossa Senhora de Machede.

2 - Juntamente com arguido M. e com MR, a seu cargo e sob a sua assistência e protecção viviam os filhos menores desta, S., nascida a 27 de Abril de 2000, e L., nascido a 8 de Junho de 2004, e um filho menor daquele, D., nascido a 22 de Dezembro de 2002.

3 - Em data não concretamente apurada, mas quando S. tinha entre 11 e 12 anos de idade, encontrando-se a frequentar o 6.º ano de escolaridade, o arguido M. começou a procurá-la para com ela manter relações sexuais e satisfazer os seus instintos libidinosos, aproveitando-se do ascendente que tinha sobre a menor, que se encontrava à sua guarda e cuidados e que o tratava como pai, bem como da confiança que, enquanto padrasto, lhe era votada pela mãe da mesma.

4 - No quadro do descrito comportamento, em data não apurada, mas quando a menor S. frequentava o sexto ano de escolaridade, no interior da cozinha, o arguido M, que se encontrava sentado junto da mesma, começou a acariciar-lhe os seios, apertando-os, tendo sido surpreendido por MR.

5 - Igualmente no quadro do descrito comportamento, noutra ocasião, a menor S. encontrava-se a tomar duche quando o arguido M. entrou na casa de banho da residência, sem roupa, e se aproximou do poliban.

6 - De imediato, a menor S. colocou as mãos sobre a porta de resguardo do poliban e, fazendo força, impediu o arguido M. de aí entrar.

7 - Em data também não apurada, o arguido M. espalhou creme no corpo de S., acariciando-o. De seguida, o arguido M. lambeu, com a língua, as costas, barriga e vagina da menor S.

8 - Após, o arguido M. acariciou, com as mãos, a vagina da menor S. e introduziu os dedos na mesma, fazendo com os mesmos movimentos oscilantes.

9 - No quadro do descrito comportamento, em duas outras ocasiões, o arguido M. acariciou a vagina da menor S. com as mãos, durante algum tempo.

10 - Após, o arguido M. introduziu os dedos no interior da vagina da menor S. e fez com os mesmos movimentos oscilantes.

11 - De seguida, o arguido M. introduziu, parcialmente, o seu pénis erecto na vagina da menor S. e fez com o seu corpo movimentos ascendentes e descendentes próprios da relação sexual, tendo, numa das ocasiões, ejaculado, sobre a barriga da mesma.

12 - Nessas ocasiões, o arguido M. acariciou os seios da menor S., apertou-os, fazendo força com as mãos, chupou-os e mordeu-os.

13 - Em dia não apurado, mas no dia 11 ou 12 de Abril de 2015, entre as 21H30 e as 23H00, a menor S. encontrava-se deitada no sofá da sala a ver televisão. Então, o arguido M., aproveitando-se da ausência da mãe de S. e do facto de os menores L. e D. já se encontrarem a dormir, sentou-se no sofá junto da menor.

14 - Acto contínuo, o arguido M. tirou as calças do pijama e as cuecas à menor S. e começou a despir-lhe a camisola do pijama.

15 - De seguida, o arguido M. começou a acariciar a vagina da menor S, que começou a falar alto, procurando que os menores L e D a fossem socorrer.

16 - De imediato, o arguido M agarrou a menor S e levou-a para a cozinha, que fechou à chave.

17 - Já na cozinha, o arguido M colocou uma almofada sobre a boca de S - impedindo-a de gritar - introduziu os dedos na vagina da mesma e fez movimentos oscilantes.

18 - Após, o arguido M. introduziu parcialmente o seu pénis erecto na vagina da menor S. e fez com o seu corpo movimentos ascendentes e descendentes próprios da relação sexual.

19 - Em consequência da conduta reiterada do arguido M, a menor S. sofreu de dores físicas e de hematomas nos seios, sentiu-se envergonhada, humilhada, desprotegida, fragilizada emocionalmente, perdeu auto-estima, desenvolveu sentimentos de revolta e de repugnância pelo seu corpo e decidiu pôr termo à sua vida.

20 - Assim, no dia 13 de Abril de 2015, a hora não apurada, mas à noite, a menor S. ingeriu uma quantidade não apurada de comprimidos de “Ritalina”, tendo sido conduzida ao Hospital do Espírito Santo de Évora, com tonturas, sonolência e lipotimia, tendo, posteriormente, obtido alta clínica.

21 - Já no dia 19 de Abril de 2015, à noite, ainda com intenção de pôr termo à sua vida, a menor S. ingeriu dez comprimidos de dez miligramas de “Diazepam”, tendo sido conduzida ao Hospital do Espírito Santo de Évora.

22 - No dia 27 de Abril de 2015, a menor S. fez 15 anos de idade.

23 - Entre Agosto e Setembro de 2005, quando se deslocavam de Évora para Nossa Senhora de Machede, na sequência de uma discussão verbal, o arguido M. imobilizou o veículo, que conduzia, e ordenou que MR saísse do mesmo.

24 - Depois de MR sair do veículo, o arguido M. abandonou o local ao volante do mesmo, aí deixando aquela a cerca de seis quilómetros de casa.

25 - Já em Julho de 2010, na cozinha, depois de MR dizer que se ia embora com os filhos, o arguido M. colocou as mãos à volta do pescoço da mesma e, fazendo força, apertou-o.

26 - Então, MR empurrou o arguido M. e desferiu uma bofetada na face do mesmo, conseguindo, desse modo libertar-se.

27 - Acto contínuo, o arguido M. desferiu uma bofetada na face de MR, que, em consequência, caiu ao chão.

28 - Em consequência directa e necessária da conduta do arguido M, MR sofreu de dores físicas e mal-estar psicológico.

29 - O arguido M. dirigiu-se a MR, insinuou que ela tinha amantes, dizia-lhe “(…) puta (…)”, “(…) vaca (…)”, “(…) vadia (…)”, “(…) andas a foder com aquele”.

30 - Numa ocasião, em 2008, MR encontrava-se a trabalhar no Hospital do Patrocínio quando recebeu uma chamada telefónica do arguido M, que lhe perguntou se ela ainda demorava muito.

31 - Então, MR disse que já não se demorava, tendo M. respondido que quando ela chegasse a casa ia ter uma surpresa.

32 - Ao chegar a casa, pelas 22H00, MR encontrou os filhos, na rua, sentados no degrau de acesso à porta da residência, embrulhados num cobertor.

33 - Para além do exposto, em data não concretamente apurada, o arguido M começou a exercer violência física e a ofender verbalmente os menores L e D, o que fez reiteradamente no interior da residência onde coabitavam.

34 - Nessas ocasiões, o arguido M, fazendo uso da sua superioridade física e de uma ascendência autoritária, dirigiu-se aos menores L e D, dizendo “(…) infelizes (…)”, “(…) deficientes (…)”, “(…) aleijados (…)”, “(...) malucos”, “parvos”.

35 - No quadro do descrito comportamento, por diversas vezes, o arguido M colocou as suas mãos à volta do tronco do menor L e, fazendo força, apertou-o, dizendo “(…) vou-te pôr a purgar”, “(…) tens de purgar”.

36 - Então, o arguido M só deixou de apertar o tronco do menor L quando o mesmo começou a chorar.

37 - Em consequência directa e necessária da conduta do arguido M, o menor L sofreu de dores e, numa ocasião, de hematomas na zona do tronco.

38 - Noutras ocasiões, o arguido M colou o dedo indicador por trás das orelhas do menor L e, fazendo força, pressionou e disse “aqui é onde se coça os porcos.”

39 - Nessas ocasiões, o menor L sentiu dores físicas e pediu ao arguido M que parasse, o que o mesmo só fez em momento posterior.

40 - No início de 2015, o arguido M aproximou-se do beliche onde se encontrava L, deitado na cama de cima, agarrou os braços do mesmo e puxou-os, fazendo o menor cair.

41 - Ainda no quadro do descrito comportamento, por diversas vezes, o arguido M desferiu palmadas na parte de trás do pescoço dos menores L e D.

42 - Igualmente por diversas vezes, o arguido M aproximou-se dos menores L e D, que se encontravam sentados a fazer os trabalhos de casa, e, fazendo força, empurrou a cabeça dos mesmos na direcção da mesa.

43 - Em consequência, os menores L e D bateram com a cabeça na mesa e sentiram dores.

44 - Em data não apurada, mas no ano de 2014, os menores L e D disseram a MR que iam brincar para a rua.

45 - Decorrido pouco tempo, o arguido M foi buscar os menores, agarrando-os pelos braços. Já no interior da residência, o arguido M, que tinha umas botas com biqueira de aço calçadas, desferiu um pontapé na cabeça do menor L, que, em consequência, caiu ao chão e sentiu dores físicas.

46 - Acto contínuo, o arguido M desferiu um soco no nariz do menor D, que, em consequência, ficou a sangrar e sentiu dores.

47 - Em várias ocasiões, o arguido M desferiu pontapés no rabo e nas pernas dos menores L e D.

48 - Igualmente, em várias ocasiões, o arguido M pegou num cinto e com o mesmo desferiu diversas pancadas no corpo e membros dos menores L, D e S.

49 - Em 2013, na Primavera, o arguido M disse ao menor D que fosse fazer os trabalhos de casa.

50 - Então, o menor D respondeu “já vou”.

51 - De imediato, o arguido M desferiu um pontapé no rabo do menor D e um soco no nariz do mesmo.

52 - Em consequência, o menor D ficou com um hematoma no nariz e sentiu dores físicas.

53 - Ao actuar da forma descrita, em, pelo menos, seis ocasiões, com consciência de que a menor S se encontrava à sua guarda e cuidados e que o tratava como pai, o arguido M agiu com o propósito concretizado de obter prazer sexual e de satisfazer os seus instintos libidinosos.

54 - O que fez com consciência de que a menor S. tinha, inicialmente, menos de catorze anos de idade e, posteriormente, catorze anos de idade, de que as zonas do corpo em que tocou constituem património íntimo e uma reserva pessoal da sexualidade dela, de que punha em causa o seu são desenvolvimento da consciência sexual e de que ofendia os respectivos sentimentos de pudor, intimidade e liberdade sexual, causando-lhe grande sofrimento físico e psíquico, o que também pretendeu e fez, interrompendo o percurso normativo do desenvolvimento psicossexual, erotizando a menor antes de esta dispor de competências cognitivas, sociais e emocionais para regularizar a sua sexualidade, bem como para evitar o contacto sexual com um adulto.

55 - Ao agir do modo descrito, o arguido M sabia que molestava a saúde física de seu filho D e de seu enteado L, que os ofendia nas respectivas honra e consideração, que fazia com que eles receassem pelas suas vidas, que abalava as respectivas segurança pessoal e seu amor-próprio, ou seja, sabia que lhes provocava grande sofrimento físico e psíquico, o que pretendeu e fez de forma reiterada e sucessiva.

56 - Ao agir do modo descrito, o arguido M sabia que molestava a saúde física de sua companheira MR, que a ofendia na respectiva honra e consideração.

57 - Agiu, o arguido M, sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e criminalmente punidas.

58 - O arguido não tem antecedentes criminais.

59 - À data dos factos dados como assentes, o arguido mantinha união de facto, com MR, havia cerca de 12 anos. Do agregado faziam parte o menor D, filho de M, fruto de anterior casamento, e os menores S e L, nascidos de anterior matrimónio da companheira.

60 - M é o mais novo de dois irmãos, tendo integrado um agregado familiar de mediana condição sócio económica. Frequentou o ensino escolar em idade própria, tendo concluído o 6.º ano de escolaridade, com cerca de 14 anos, através da telescola, na aldeia em que residia. Iniciou a vida laboral no final da adolescência, como ajudante de talhante, vindo a exercer a profissão de talhante por cerca de 12 anos, por conta de outrem. Posteriormente integrou-se na C.M. de Évora, no sector cultural, durante cerca de 5 anos, onde exercia a profissão de motorista e ajudante, tal como os restantes elementos da equipa de que fazia parte. Transitou para a Junta de Freguesia de …, onde, na altura da sua reclusão, trabalhava havia dois anos.

Casou após cumprimento do serviço militar, tendo esta união acusado ruptura cerca de 4 anos depois. Tem um filho, D, com 13 anos de idade, que permaneceu à sua guarda após divórcio. Actualmente o menor encontra-se junto da progenitora.

61 - Encetou então, o relacionamento afectivo com MR, habitando casa propriedade dos progenitores que se localiza junto à destes, e que reúne condições para o alojamento de família numerosa. Será esta a habitação onde M pretende, uma vez em liberdade, voltar a residir com o filho.

62 - Dispõe de apoio da família, sendo visitado com regularidade. O pai já se encontra aposentado e a mãe exerce a profissão de cozinheira na ….de Évora.

63 – M. não dispõe actualmente de rendimentos, pelo que os pais lhe asseguram todas as suas despesas, designadamente a prestação de um empréstimo bancário - 187€, que assumiu, para remodelação do imóvel em que residia. Tem o vínculo laboral suspenso, sem direito a vencimento, mas que é aguardado, na Junta de Freguesia, para dar continuidade às funções que desempenhava.

64 - Da informação apurada junto dos familiares, ficou clara a intenção destes em continuar a apoiar o arguido, tanto em contexto prisional, como em situação de liberdade.

65 - M mantém um adequado comportamento prisional.

Factos não provados:
a) Em data não concretamente apurada, mas logo após o início da relação, o arguido M, fazendo uso da sua superioridade física e de uma ascendência autoritária, começou a ameaçar, a controlar, a encerrar e manter encerrada e a ofender física e verbalmente MR, o que fez repetidamente no interior da residência onde coabitavam.

b) No quadro do descrito comportamento, em várias ocasiões, para impedir que MR abandonasse a residência, o arguido M pegou na mesma, colocou-a sobre o ombro, levou-a para um quarto sem janela, saiu do quarto e fechou a porta à chave.

c) Nessas ocasiões, o arguido M só permitiu que MR saísse do quarto para confeccionar e tomar as refeições e à noite, para que os menores não se apercebessem.

d) Nesse contexto, o arguido M manteve MR fechada no interior do quarto durante várias horas e, por vezes, durante diversos dias.

e) Para além do exposto, por diversas vezes, o arguido M dirigiu-se a MR e disse à mesma que nunca iria permitir que ela abandonasse a casa, que se ela o fizesse jamais voltaria a entrar, que ficaria sem sítio para morar e sem comida para dar aos filhos, que ficava sem nada e que podia ir trabalhar para a estrada.

f) No quadro do descrito comportamento, o arguido M controlava os movimentos e horários de trabalho de MR, nomeadamente, perseguindo-a nos locais de trabalho e visualizando o telemóvel da mesma, e procurava impedir que ela se relacionasse com terceiras pessoas.

g) No seguimento da situação descrita em 27), o arguido M colocou um pé sobre o peito de MR e, enquanto fazia força, disse “estás a ver como não sais daqui.”

h) Ao agir do modo descrito, o arguido M sabia que fazia com que a sua companheira receasse pela sua vida, lhe abalava a respectiva segurança pessoal e seu amor-próprio e lhe provocava grande sofrimento físico e psíquico, o que pretendeu e fez de forma reiterada e sucessiva.

Motivação:

Factos provados:
Os factos descritos nos nº 1 e 2 foram confirmados, com credibilidade, quer pelo arguido, quer pelos assistentes MR, S, L e D. De igual modo, as testemunhas DP (mãe da assistente MR), L e AM (mãe e irmã do arguido, respectivamente) referiram que arguido e assistentes viveram juntos como descrito na referida factualidade. As datas de nascimento dos menores encontram-se certificadas nos documentos de fls. 334 a 336, 338 a 340 e 342 a 344.

Na prova da factualidade vertida nos nºs. 3 a 22, 53, 54 e 57, atendeu-se, em primeira linha ao depoimento da menor S que, de uma forma clara e precisa, descreveu os actos de que foi alvo por parte do arguido enquanto viveu com o mesmo.

Começou por referir que viveu com o arguido durante cerca de doze anos, em duas casas diferentes. Na última tinha um quarto só para ela. Na anterior, estava no quarto com os irmãos. Tratava o arguido por pai. Quando estava no 6º ano, o arguido mexeu-lhe numa mama. A mãe dela viu e confrontou-o, tendo ele dito que foi um acto e não voltava a acontecer. Ficou com marcas na mama.

Depois começou a agarrá-la todas as vezes que a mãe saía. Ela tomava um medicamento que lhe dava sonolência (Ritalina). Quando o D adormecia, o arguido metia-lhe as mãos por baixo da roupa. Na primeira casa foi só a situação da mama. Na casa nova, ela estava a tomar banho e ele abriu o poliban. Ela disse para ele se ir embora dali. Ele foi. Mas depois ele andava atrás dela pela casa toda.

Acrescentou a menor que isto ocorria sempre quando a mãe saía, depois do jantar. Acontecia no quarto dela, no quarto do arguido, na sala, na cozinha, na casa toda. Ele beijava-a, agarrava-a nas pernas, mexia-a nas pernas e despia-a. A última vez foi na cozinha. Ele despiu-se, despiu-a e meteu-lhe o pénis na vagina (a cabecinha sem preservativo). Não lhe doeu nem fez sangue. Ficou 5 ou 10 min lá dentro e depois saiu. O L estava no quarto a jogar play station o D estava no quarto dele.

Numa outra situação, o arguido disse-lhe que lhe ia pôr creme para tirar estrias. No sofá ele despiu-a e esfregou-lhe as pernas e vagina. Lambeu-a, também, na vagina.

Na véspera de ir para o hospital, estava deitada no sofá sonolenta, o arguido despiu-a, primeiro, o pijama e depois, a blusa. Saltou para cima dela e meteu-lhe os dedos e o pénis na vagina. Ela fugiu para cozinha e ele foi atrás dela. Ela gritou e ele meteu-lhe uma almofada na boca.

Ele dizia-lhe que batia na mãe se ela lhe contasse. Ela contou só da primeira vez.

Ele introduziu-lhe o pénis na vagina duas vezes e fez movimentos, numa das vezes deitou um líquido para cima da barriga dela.

Tomou 10 comprimidos porque teve medo que ele lhe fizesse mais mal do que já tinha feito. Sentia nojo do corpo dela, por causa das coisas que ele fazia. Tomava banho e o cheiro dele não saía. Desmaiou quando chegou à escola e levaram-na para o hospital.

Depois quando saiu contou à mãe. Já não voltou para casa do M. Contou também à contínua (J) que o arguido abusava dela desde o sexto ano.

Nessa noite dormiu na casa da amiga J.

Da 2ª vez, ficou 9 dias do hospital. Ele continuou a ameaça-la. Dizendo que sofreria as consequências se contasse.

Por confronto com as declarações desta menor, o depoimento do arguido que negou ter praticado os relatados factos revelou-se impreciso e inseguro, pois embora admitindo que a sua ex-companheira MR saía sempre à noite para trabalhar e divertir-se com as amigas, deixando-o em casa a tomar conta dos filhos dela e do seu filho D e que soube que a S se tentou suicidar, tomando medicamentos uma vez, no dia 13 ou 14 de Abril de 2015, não explicou qual foi a motivação da menor para a prática daquele acto.

Ora, sendo ele o adulto a quem a mãe da menor encarregou de cuidar da mesma todos os serões em que se ausentava, não é plausível que desconheça o motivo pelo qual a menor se tentou suicidar. Por outro lado, admitindo o arguido, como admitiu, que o facto de a sua ex-companheira se ausentar de casa quase todas as noites, o deixava aborrecido e com ciúmes, manifestando o arguido uma personalidade insegura e com dificuldade em gerir a frustração, é perfeitamente plausível que descarregasse a mesma e a necessidade de satisfação sexual, na referida menor, face à ausência da mãe.

A isto acresce que resulta efectivamente da documentação clínica de fls. 890 a 892 que a menor S ingeriu medicação em excesso antes de dar entrada no hospital, por duas vezes.

Por outro lado, conforme resulta do relatório da perícia de natureza e sexual de fls. 661 a 667, a ausência de lesões ou sequelas traumáticas na zona vaginal da menor, não exclui, por si só, o relatado pela mesma, uma vez que a S tem um hímen complacente, ou seja, o seu hímen permite a introdução de dois dedos justapostos sem que daí resultem necessariamente quaisquer lesões traumáticas, ou seja, é possível que o arguido tenha introduzido os dedos na vagina da menor, bem como o pénis, parcialmente, sem que o hímen desta tenha rompido.

A isto acresce que, a mãe da menor, MR presenciou a primeira situação descrita por aquela, referindo que, em 2014, estava noutra casa e foi sacudir tapetes à varanda, viu a S sentada no colo do arguido ele a mexer num dos seios dela. Chamou o arguido à atenção e deu-lhe uma chapada. Ele pediu desculpa e disse que não acontecia mais.

Depois disto nunca mais viu nada, mas S contou-lhe que o arguido tentou abusar dela no sofá da casa e que depois lhe colocou a almofada na cara, isto antes do segundo internamento. Confrontou, novamente o arguido com isto e ele disse que tinha sido um acto. Isto aconteceu num dia em que o arguido e a S discutiram por causa do quarto estar desarrumado e depois de já lhe ter dito que ia sair de casa. Foi para casa dos amigos e no dia em que regressou à casa do arguido para ir buscar as suas coisas, a S voltou a tomar comprimidos. Depois do segundo internamento, a S voltou a falar consigo e contou-lhe tudo o que se tinha passado. Contou a medo, o que ele tinha feito com os dedos, com a almofada, que a vigiava quando ela ia à casa de banho, que ia vê-la ao quarto e espreitava pela porta. Disse que não contou antes porque tinha medo da reacção da depoente.

Também as testemunhas AC (psicóloga), JP, JF e JR, puderam presenciar os relatos da menor S, que lhes confidenciou o sucedido, em moldes, no essencial, semelhantes aos relatados pela mesma, em Tribunal.

Destaca-se a este propósito o depoimento de JP, que trabalha como auxiliar na Escola Conde de Vilalva, frequentada, à data, pela menor S. Referiu esta testemunha que, no ano passado a S, se sentiu mal e ela acompanhou-a ao hospital.

Após esse episódio, a menor disse-lhe que era abusada pelo padrasto e que tal já se passava há muito tempo. Em concreto a menor relatou-lhe que lhe apalpava as maminhas.

Comunicou o sucedido à Direcção da escola e a S. foi lá chamada. Falou consigo e com a Professora PR. Voltou a dizer que o padrasto lhe mexia nas maminhas.

Esclareceu, por fim que, o desabafo da menor ocorreu após a depoente ter dito que o seu padrasto, que a foi ver ao hospital, era simpático, ao que a menor terá referido que tal era o que parecia, mas a realidade era outra.

PR (professora adjunta da direcção do agrupamento de escolas n.º 4, Évora), confirmou a versão dos factos mencionada pela testemunha anterior, referindo que a S. falou com a D. J que ficou preocupada com o relato que ela lhe fez e pediu para falar com a testemunha. Relatou a situação e pediu-lhe para ir buscar a S. à sala. Conversou com a S na presença da D. J. Ela não relatou logo tudo o que tinha dito à J. Falou algumas coisas que a preocuparam. Disse que foi violada pelo padrasto. Disse que ia chamar a psicóloga do agrupamento que ficou a falar com ela e sinalizaram a situação à Escola Segura e ao Chão dos Meninos (cfr. Auto de denúncia de fls. 302 a 305 e Relatório de fls. 3 a 13, 54 a 58, 72 a 75, 231 a 236).

Naquela semana tinha ocorrido um dos episódios em que a S tomou medicamentos e foi levada ao hospital. Ela disse que nessas ocasiões tomava a medicação porque não suportava o que estava a acontecer. Disse também que já tinha falado com a mãe, mas esta não tinha feito nada. Disse que tudo acontecia quando a mãe saía à noite e a deixava em casa com os irmãos e o arguido. Ela disse que ele lhe apalpava tanto as mamas que lhe fazia doer.

Acrescentou que a S foi sempre instável na escola, mas apenas ao nível do seu comportamento e da relação com os outros. Nada mais. Com o relato dela ficou muito preocupada. Seria muito elaborado para estar a mentir, mas não conhece as pessoas envolvidas. Ela dizia que o padrasto queria fazer com ela o que se fazia com as mulheres casadas. Utilizou muito a expressão de que tinha nojo dela própria. A S continuou a frequentar aquela escola. Não reparou em nenhuma mudança do vestuário dela. Reparou que ela se isolava um pouco dos outros nos períodos de intervalo e dizia à depoente que não se sentia bem ao pé de ninguém. Ficava na zona da secretária das auxiliares na zona de acesso à sala dos professores. A S em determinadas ocasiões é muito insolente e impulsiva, mesmo com os adultos. A situação foi divulgada na escola e pela própria S. Ela contou às miúdas do seu grupo. A S. tem dificuldades de aprendizagem. Neste momento está a fazer estágio na secretaria da escola secundária, porque como não sabe ler ou escrever não podia fazer estágio noutro local.

Complementando as declarações anteriores, revelaram-se muito precisas e objectivas, as prestadas pela testemunha AC (psicóloga).

Referiu a mesma que acompanhou a S na escola e fez o relatório de fls. 86 a 91, constante dos autos. Revelou que a S era muito impulsiva e instável, havia meses em que andava calma e outros em que ficava alterada. Tomava medicação para se controlar. Era agressiva na forma como falava com professores e colegas e não acatar as ordens, desobedecendo.

Mas, a menor nunca inventou nada sobre questões da sexualidade. “Nesse aspecto era uma menina normal”.

Porém, relatou um episodio ocorrido no decurso do 7.º ano de escolaridade, em que ela numa sessão, do nada, perguntou-lhe o que a testemunha faria se um pai quisesse ter relações sexuais com uma filha. Questionou-a sobre o motivo da pergunta e ela desviou a conversa e não quis desenvolver o assunto. Isto ocorreu cerca de dois anos antes dos factos em discussão neste processo. Mais tarde relacionou esta pergunta com o que aconteceu com o padrasto.

Ela esteve em educação especial. Ainda hoje tem dificuldades em ler e escrever. A S não consegue controlar os impulsos. Se for “atacada” ela reage, não consegue procurar a autoridade de um adulto. Fica nervosa e descontrola-se. Depois de se acalmar, ela admite que erra e aceita a autoridade dos adultos.

Normalmente os comportamentos agressivos dela eram de reacção a comportamentos de outros ou quando lhe impunham trabalhos ou ter que ficar sentada e quieta. Não surgia do nada.

A S era uma miúda gozada na escola, com a forma de vestir e com a forma de estar. Em tudo, a S reage de forma atípica às situações. Ela pode estar nervosa e stressada, cheia de dores e a chorar. Depois, contado o problema, tendo alguma atenção, ela liberta-se da situação e reage como se nada fosse.

Já lidou com várias situações de crianças vítimas de abuso sexual. Não há uma reacção típica das crianças a estas situações. Elas reagem sempre de maneira diferente. Normalmente as crianças vítimas são sempre frágeis, ou porque têm problemas, ou porque são vítimas de violência na escola…

No caso da S, a sua fragilidade é ser muito carente de atenção. Tem muita necessidade que gostem dela, tem uma auto-estima muito baixa, dificuldades em termos cognitivos em avaliar a adequação de determinados comportamentos. Ao nível do enquadramento familiar, ela não é muito acompanhada pela mãe. Esta muitas vezes não comparecia na escola quando chamada.

O relatório dos autos é da altura em que a S passou para o 5.º ano. Mas acompanhou a S até aos 14 anos, ao nível psicopedagógico.

A S melhorou o seu comportamento em sala de aula com a entrada no curso vocacional, quando passou para o 7.º ano. Os professores ajudavam e ela sentiu-se mais motivada, melhorando também o seu comportamento. Passou também a fazer amigos e a andar em grupo. O que não quer dizer que em situações de stresse não reagisse como antes.

Depois de revelar a situação dos autos, o comportamento dela piorou. Ficou instável, com situações de internamento, desmaios. Regrediu. Passou a queixar-se constantemente de dores (barriga, cabeça, etc.). Não sabe se foi pelo que sucedeu ou por se ter sabido na escola. Depois ela foi confrontada pelos colegas, sob a possibilidade de ser mentira.

O filho do arguido também era aluno da escola e as próprias crianças tomavam partido de um ou de outro. Neste contexto, abordavam a S a chamá-la mentirosa.

As colegas da turma, que inicialmente a apoiavam, depois de se falar sobre isto, deixaram de acreditar nela. Também porque ela reage de forma diferente às coisas. Tanto conta e chora, como depois já se ri e diz que não é verdade.

À testemunha a S nunca lhe disse que não tinha acontecido.

Ela contou-lhe o que se tinha passado e imediatamente transmitiu à associação “Chão dos Meninos”. Na altura contou-lhe que já algum tempo que era abusada. Que primeiro só a sentava ao colo e punha creme na cicatriz, que depois começou a mexer nos seios e que tentou ter relações sexuais com ela. Não quis saber pormenores, quis apenas perceber que ela se sentia incomodada, que a mãe já sabia e que ele prometeu não fazer mais, mas que na noite anterior a contar à funcionária voltou a suceder.

Estas últimas declarações ajudaram a compreender as prestadas pelas testemunhas JF e JR, colegas da S, à data dos factos.

Efectivamente estas, confirmaram ter ouvido os relatos da menor que lhes referiu que o arguido lhe tocava nas mamas e que as mordia e que tinha com ela relações sexuais. Referiu ainda a primeira que a S disse que se tentou suicidar por causa do padrasto e porque a mãe sabia de tudo e não fazia nada. Ela disse que tudo o que lhes tinha contado já tinha relatado à mãe e que ela falou com o senhor e ele disse que não ia voltar a acontecer.

Às vezes ela chegava à escola e relatava o que o padrasto lhe tinha feito. Ela dizia que a mãe saía com as amigas e só chegava às 03.00 ou 04.00 da manhã e que era nessas alturas que tudo acontecia.

A primeira referiu ter ouvido um telefonema da menor a relatar à mãe que o padrasto tinha abusado dela. A segunda confirmou ter visto uma nódoa negra no seio da colega S.

Contudo, puseram em causa a credibilidade da menor, porque, segundo as mesmas, a S, depois do ocorrido começou a fingir que desmaiava, chorava e falava do assunto com toda a gente e de maneira diferente, gozando com a situação. Ninguém gostava dela na escola e ela fazia tudo para ter atenção. S sempre aparentou ter problemas. Era conflituosa e tinha poucos amigos. Era gozada na escola porque fazia por isso e exibiu o seu corpo na net.

De tudo o exposto, conclui o Tribunal que, face aos referidos depoimentos, conjugado com o relatório da perícia de natureza e sexual de fls. 661 a 667, que refere, recorde-se que, a ausência de lesões ou sequelas traumáticas na zona vaginal da menor, não exclui, por si só, o relatado pela mesma, uma vez que a S tem um hímen complacente.

Por outro lado, do teor do relatório de avaliação psicológica de fls. 86 a 91, resulta que desde os 4 anos de idade, que a S revela muitas dificuldades de aprendizagem e comportamento instável, logo, a reacção da menor relatada pelos seus pares, não só, não a descredibiliza, como se revela compatível o facto de ter sido vítima de abusos sexuais.

Efectivamente, é patente que a menor não teve o devido acompanhamento educativo em casa. A progenitora, muitas vezes ausente, como a própria admitiu, não constituiu a necessária fortaleza de protecção e enlevo, nem lhe conseguiu transmitir os necessários ensinamentos morais e éticos relativos à sexualidade.

Tudo isto, conjugado com o facto de a menor, ter sido exposta a estímulos sexuais muito cedo, não ter um desenvolvimento intelectual compatível com a sua idade e, revelar necessidade de protecção e atenção, contribui para que a mesma, em vez de ter um comportamento recatado em relação ao ocorrido, expusesse os abusos de que foi alvo na escola, para conseguir, a atenção e ajuda de que carecia.

É usual que os menores sujeitos a este tipo de abusos, assumam comportamentos sexuais precoces e desajustados como os relatados pela colega J (exibição do seu corpo na NET), pois em regra, os adultos que os educam não lhes dizem que tais comportamentos não são correctos e porque, aqueles que deles abusam, também são, em regra, os que delas cuidam, é usual que tais práticas ocupem o lugar do afecto e carinho que tais menores carecem, confundindo os mesmos.

Por outo lado, também é compreensível que as colegas da menor, por não compreenderem o seu comportamento (afastados da moral dominante, pelos motivos referidos), não acreditem na mesma, pois não têm conhecimentos técnicos, nem a necessária experiência de vida, que lhes permita interpretar tais comportamentos.

Mostrando-se a percepção destas menores (JF e JR), claramente desajustada com a realidade dos factos pelos motivos supra referidos, não pode, por nós ser atendida.

Por fim, tudo o que supra referimos, mostra-se em conformidade com o teor do Relatório do Chão dos Meninos, de fls. 3 a 13, 54 a 58, 72 a 75, 231 a 236, entidade, com reconhecida experiência no acompanhamento e acolhimento de crianças vítimas de abuso sexual, de cujo parecer técnico resulta ter sido a menor S, exposta de forma continuada a situações sexualmente abusivas.

Na prova da factualidade vertida nos nºs. 23 a 29, 56 e 57, considerou-se, o depoimento do arguido, na parte em que o mesmo admitiu que discutia com Maria Rosa Silva, porque esta saía de casa à noite, quase todos os dias da semana se ofendiam mutuamente verbalmente e havia “mau ambiente em casa”. MR, por sua vez, esclareceu que viveu com o arguido até Abril de 2015. Começou a perceber que ele era muito ciumento. Trabalhou no Hospital do Patrocínio e ele aparecia lá. Comprou um carro e ele zangava-se porque ela se atrasava. Tornou-se muito possessivo. Discutiam muito pelos ciúmes dele e ele chamou-lhe “puta”, “vadia”, que andava a foder com outros, tendo descrito uma situação em que o arguido lhe apertou o pescoço quando discutiam e, lhe deu uma bofetada, despois de ela lhe ter dado outra. Tal depoimento foi consentâneo com as declarações da menor S, que confirmou ter visto o arguido a bater na mãe e ouvido o arguido a chamar à mãe, prostituta.

MR, confirmou, com credibilidade a situação descrita nos pontos 23 e 24, sendo tal depoimento corroborado pela testemunha DP, que disse que as coisas entre o casal corriam mal… uma vez que ele chegou a deixá-la no Bairro da Comenda, à entrada da cidade e a filha ligou-lhe para ela lhe dar boleia.

A situação descrita nos nºs 30 a 32, foi referida, com credibilidade pela assistente MR, tendo a mesma esclarecido que, uma vez chegou a casa e o L e S estavam na rua, sentados num muro junto à casa. Bateu à porta e o arguido não respondeu. Eram cerca de 21.30 horas a 22.00 horas. As crianças estavam embrulhadas num cobertor. Nessa altura não conseguia abrir a porta com a sua chave, porque ele tinha a chave por dentro. Só soube que eles estavam na rua quando lá chegou e viu.

A factualidade vertida nos nºs 33 a 52, 55 e 57, resultou dos depoimentos conjugados dos assistentes MR, S, D e L, tendo todos relatado episódios de agressão e humilhação de que os menores D e L foram vítimas por parte do arguido, contrastando, deste modo, com o depoimento pouco preciso do arguido, neste ponto, que apesar de ter admitido ter batido no D, uma vez com um cinto, negou genericamente, a restante factualidade em que são intervenientes tais menores.

Ao invés, MR admitiu ter visto o arguido a apertar o L e dizer que ele estava a purgar. Deixava nódoas negras na zona das costelas da criança. Dizia que ele gostava. Ao D, na casa dos avós, o arguido pegou num bocado de mangueira e bateu no filho. Também nessa ocasião, bateu, da mesma forma, no L.

Uma vez deu um murro entre o nariz e os olhos do D e estes, ficou com nódoa negra.

Noutra altura, ele estava a fazer deveres e deu-lhe pontapé e deu-lhe com a cabeça na mesa, o que também chegou a fazer ao L. Acrescentou que o arguido, chamava aleijados e deficientes a todos os miúdos.

Relativamente ao L também lhe carregava atrás das orelhas e magoava-o. Ele queixava-se. Dizia-lhe “aqui é que se coçam os porcos”.

Estas declarações foram corroboradas pelo depoimento da menor S, tendo a mesma referido que o arguido chamava os irmãos (L e D) e, se eles não vinham, batia-lhes com o cinto. A mãe dizia para ele não fazer isso. Mas ele era pai do D. Ela dizia, no meu filho não batas. Mas ele batia nos dois, com cinto, botas e chinelo, mas batia mais no D do que no L. O arguido deu murros e pontapés ao D mais do que uma vez. Também chamava deficientes a todas as crianças quando eles se riam.

D, por sua vez, referiu que viveu com o pai, com o L a S e a MR desde o ano e meio até aos 12 anos de idade. Recordou um episódio em que o pai lhe deu um murro porque estava sentado no sofá e ele quis tapá-lo e não quis. Ficou a sangrar. Não recorda que idade tinha, mas andava na escola primária. Outra vez, estava a fazer os trabalhos de casa e como não sabia fazer uma conta, o pai deu-lhe um murro e um pontapé, esclarecendo que o pai dava-lhe várias vezes pontapés no rabo e ao L também. E quando se portavam mal, o pai às vezes, também lhes batia com o cinto.

Na primavera de 2013 não quis fazer trabalhos de casa e o pai deu-lhe um pontapé. Ficou com uma marca na perna direita. O pai também lhe bateu com um pano quando estava a brincar na rua com o L e não quiseram entrar em casa e responderam mal à MR. O pai atingiu-o no olho, não sabe qual. O L. viu-o a chorar e foi para ao pé dele no quarto.

O pai chamava-lhes nomes feios aos três - deficientes, parvos, estúpidos e outros nomes. Isto acontecia quando eles se riam e quando não conseguiam fazer os trabalhos da escola ou outras tarefas.

O pai batia-lhe sem qualquer razão. Uma vez os filhos da MR partiram a Play station e o pai bateu-lhe a si.

Os dedos atrás das orelhas e dizer que aqui é onde se coçam os porcos era uma brincadeira, mas o L não gostava porque o magoava.

L, por seu turno, disse que, quando faziam os trabalhos de casa, às vezes o M irritava-se com o D quando ele se enganava e, de vez em quando, batia-lhe. Outra vez, fugiu de casa porque o M e a mãe estavam zangados e ele foi atrás e deu-lhe com uma bota de biqueira de aço na cara e marcou-o. Ao D batia mais. Chamava a ambos parvos, deficientes, malucos e infelizes, quando não sabiam fazer os trabalhos. Apertava-lhe o tronco e dizia que o ia meter a purgar. Acontecia muitas vezes e magoava-o. Chegou a aleijá-lo nas costas. Também lhe punha os dedos atrás da orelha e dizer que era ali que se coçavam os porcos. Nessas alturas aleijava-o sempre. Isto acontecia mais quando a mãe não estava, mas também quando ela estava. Uma vez ele bateu com a cabeça do D na mesa onde estavam a fazer os trabalhos. Outra vez, o M bateu no D, deu-lhe um murro e ele ficou a sangrar do nariz. Eles tinham fugido juntos para uma casa ali perto. O M dava cachações ao D e a si e às vezes doía. Uma vez o M deu um murro ao D por ele não querer fazer os trabalhos para casa. Ouviu barulho e o D a chorar, com a marca do murro na cara.

Às vezes o M dava pontapés nas nádegas do D e do L. Ficavam os dois a chorar. Dormia num beliche com o D. Uma vez o M arrancou-o à força da cama para ir jantar e bateu com o joelho no chão e na parede.

As testemunhas L (mãe do arguido) e AM (irmã do arguido), não revelaram ter conhecimentos dos factos dados como assentes e, pese embora, tenham afirmado não acreditar que o arguido tivesse praticado os mesmos, nada disseram de concreto, que pudesse abalar os depoimentos dos assistentes que vivenciaram os mesmos.

O passado criminal do arguido resulta da análise do CRC actualizado junto aos autos a fls. 785 (facto descrito no nº. 58).

Os factos descritos nos nºs 59 a 65, resultaram do teor das declarações do arguido, credíveis, nesta parte, conjugadas com o teor do relatório social de fls. 789 a 792.

Factos não provados:
Não se provaram os factos descritos nas als. a) a h), porquanto o arguido negou a ocorrência dos mesmos, a assistente MR, não descreveu no seu depoimento tais acontecimentos, esclareceu que, mesmo quando o arguido fechava a porta do quarto, ela saía pela janela, a menor S referiu que o arguido, “na mãe, só bateu na primeira casa”, e não resultou dos respectivos depoimentos, que os menores D, L tivessem presenciados tais factos, nem foi produzida qualquer outra prova que permita concluir, sem margem para dúvida, que tais factos ocorreram.

2 - da impugnação de matéria de facto:
A modificação da matéria de facto pode verificar-se, segundo o disposto no art. 431.º do CPP, além do mais, “se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do artigo 412.º”.

Tem-se, aqui, em vista, a impugnação traduzida na análise da prova, não restrita aos vícios da decisão, embora sujeita aos limites decorrentes dos ónus de especificação impostos pelos n.ºs 3 e 4 desse art. 412.º, na medida em que, como vem sendo pacificamente entendido, o recurso é mero remédio jurídico, e não novo julgamento com repetição dos meios de prova produzidos em 1.ª instância (exceptuado o caso em que seja admissível a renovação da prova), para despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo.

Já Cunha Rodrigues o salientava, in “Lugares do Direito”, Coimbra Editora, 1999, págs. 498/499, ao referir que o Código de Processo Penal assume claramente os recursos como remédios jurídicos e não como meios de refinamento jurisprudencial, não visando o único objectivo de uma «melhor justiça».

Também, segundo Damião da Cunha, in “A Estrutura dos Recursos”, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 8, Abril-Julho, 1998, págs. 259 e seg., os recursos configuram-se no Código de Processo Penal como um remédio e não como um novo julgamento sobre o objecto do processo (…) Assim, ao recorrente é exigido que apresente os pontos de facto que mereçam a censura de incorrectamente decididos (…) Não basta, porém, que no recurso manifeste a discordância e, bem assim, as provas (…) que não só demonstrem a possível incorrecção decisória, mas também permitam configurar uma alternativa decisória.

A este propósito, lê-se no acórdão do STJ de 10.03.2010, in CJ Acs. STJ ano XVIII, tomo I, pág. 219, Como o Supremo Tribunal de Justiça tem reafirmado o recurso da matéria de facto perante a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento não existisse, tratando-se de um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento (…) O objeto do 2º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto não é a pura e simples repetição das audiências perante a Relação, mas, mais singelamente, a deteção e correção de concretos, pontuais e claramente apontados e fundamentados erros de julgamento (…) A intromissão da Relação no domínio factual cingir-se-á a uma intervenção "cirúrgica", no sentido de delimitada, restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correção, se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação (…) A juzante impor-se-á um último limite que tem a ver com o facto de a reapreciação só poder determinar alteração à matéria de facto assente se o Tribunal da Relação concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitam uma outra decisão.

Apresentando-se com uma finalidade processualmente específica e justificada, os contornos necessários à impugnação de facto na vertente em apreço ficaram devidamente explicitados no Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ n.º 3/2012, de 08.03, publicado in D.R. I Série, n.º 77, de 18.04.2012.

No entanto, mesmo quando se considere a impugnação efectuada de forma processualmente válida, isso não equivale necessariamente à modificação da decisão de facto recorrida.

Não se bastará, para que venha a proceder, com a pretensão de dar-se como provada determinada versão, com base nas provas produzidas e diferentemente valoradas por quem recorre, já que a censura do tribunal ad quem não incidirá sobre a decisão do tribunal a quo que assente a sua convicção sobre a credibilidade da prova produzida, ou a falta dela, em elementos que relevam dos princípios da imediação e da oralidade, aos quais o tribunal de recurso não tem acesso, sem prejuízo dos limites do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127.º do CPP.

Em concreto, afigura-se que o recorrente cumpriu, quanto exigível, os ónus de especificação, uma vez que indica os pontos de facto que considera incorrectamente julgados (pontos provados em 3 a 18) e a prova que, na sua perspectiva, impõe decisão diversa (declarações da menor e depoimentos das várias testemunhas que menciona, além do relatório de perícia médico-legal), aludindo a excertos relativamente à mesma e por referência à respectiva localização no suporte de gravação e, ainda, explicitando, em parte, as razões de discordância especificada quanto a esses pontos.

Sem prejuízo da faculdade a que se refere o n.º 6 do art. 412.º do CPP, da qual se fez uso nesta instância de recurso - procedeu-se à audição integral dos elementos de prova oral mencionados pelo recorrente -, atenta-se, no essencial, à argumentação aduzida e por confronto com a motivação operada pelo tribunal.

Assim:

Desde logo, decorre do acórdão a importância conferida às declarações da menor S como suporte desses pontos de facto, o que corresponde à normal relevância que, dada a natureza dos actos em apreciação em julgamento, deve atribuir-se a quem é ofendida, ainda que sem descurar a sua idade e os elementos pessoais colhidos através, sobretudo, dos relatórios de avaliação psicológica e da associação “Chão dos Meninos”, que são mencionados na motivação da convicção decisória.

Concretizando:

Relativamente aos pontos de factos provados em 3 (“Em data não concretamente apurada, mas quando S tinha entre 11 e 12 anos de idade, encontrando-se a frequentar o 6.º ano de escolaridade, o arguido M começou a procurá-la para com ela manter relações sexuais e satisfazer os seus instintos libidinosos, aproveitando-se do ascendente que tinha sobre a menor, que se encontrava à sua guarda e cuidados e que o tratava como pai, bem como da confiança que, enquanto padrasto, lhe era votada pela mãe da mesma”) e 4 (“No quadro do descrito comportamento, em data não apurada, mas quando a menor S frequentava o sexto ano de escolaridade, no interior da cozinha, o arguido M, que se encontrava sentado junto da mesma, começou a acariciar-lhe os seios, apertando-os, tendo sido surpreendido por MR”), o recorrente invoca que, tendo a menor afirmado que a mãe (MR) foi lá a casa e deu-lhe uma chapada, disse, também, que a mãe viu ele a mexer-me na mama, pelo que questiona como poderia esta ter visto se estava no exterior.

Bem como refere, no tocante ao depoimento de MR, conjugando-o com as declarações da menor, que, mesmo tendo desculpado o recorrente por esse acto, estranha que nada tivesse comentado com a filha ou com alguém.

Entende, ainda, que não parece verosímil que incorresse em conduta tão temerária, correndo o risco de ser visto pela companheira.

Ora, decorre, também, das declarações da menor que, então, estava na cozinha e, a mãe, encontrava-se a lavar roupa, sendo que, não obstante essa situação, resulta ter dito, como consta do acórdão, que “A mãe dela viu e confrontou-o, tendo ele dito que foi um acto e não voltava a acontecer”, o que só se justifica se efectivamente isso tivesse constatado, uma vez que, ao reportar-se a esse acontecimento, a menor não mencionou, de modo algum, que se tratasse de narrativa que àquela tivesse transmitido.

Por seu lado, acresce que, perante o depoimento de MR, esta esclareceu que presenciou a situação, quando estava na varanda, a sacudir tapetes, de onde dispunha da possibilidade de ver o que se passava na cozinha, através de janela aí existente.

Acerca da circunstância de alegada ausência de comentário, não surpreende que assim tivesse sido, por um lado, porque se tratava de situação que constituiu para si motivo de desagrado e, por outro, porque minimamente acreditou que não se repetisse e, dada a delicadeza da mesma, sem ver interesse em dá-la a conhecer a terceiros.

Aliás, MR, ao longo do seu depoimento, sempre transmitiu a ideia de que essa foi a única situação de que teve real conhecimento, uma vez que, no restante, só mediante o que lhe foi depois transmitido por via da escola e da Polícia Judiciária ficou alertada para o que veio a suceder posteriormente a essa mesma situação. Ainda, em sintonia, a menor declarou que a mãe só soube, em concreto, dessa situação, o que se compatibiliza com o mencionado no acórdão quanto ao depoimento da mãe, no sentido de que aquela lhe contou isso no curto período que decorreu considerando as duas ocasiões em que deu entrada no hospital e, como consta do acórdão, “Disse que não contou antes porque tinha medo da reacção” da mãe.

A propósito da invocada dúvida quanto à temeridade que o recorrente necessitaria para esse acto, melhor saberá como a ultrapassou e, atendendo à forma como MR teria visto, nem mesmo se pode afirmar que fosse expectável para si que isso se viesse a verificar.

Assim, se relativamente ao ponto de facto provado em 4, não se detecta fundamento para infirmá-lo, também, sobre o ponto de facto provado em 3, o recorrente nada concretiza, sendo certo que, em si mesmo, não se colocando em crise que a menor vivia consigo, a quem tratava como pai e com o ascendente próprio dessa circunstância, traduz o que a menor declarou quanto à idade em que esses actos se começaram a revelar, indissociáveis, por natureza, das intenções que aos mesmos presidiram.

Quanto aos pontos de facto provados em 5 (“Igualmente no quadro do descrito comportamento, noutra ocasião, a menor S encontrava-se a tomar duche quando o arguido M entrou na casa de banho da residência, sem roupa, e se aproximou do poliban”) e 6 (“De imediato, a menor S colocou as mãos sobre a porta de resguardo do poliban e, fazendo força, impediu o arguido M de aí entrar”), o recorrente aponta contradição entre as declarações da menor e o depoimento de MR, referindo que, segundo este depoimento, aquela terá contado que espreitou através da janela da casa de banho, ao passo que terá declarado que tentou entrar no poliban.

Porém, não se descortina relevante divergência, uma vez que o depoimento de MR se cingiu ao que a menor lhe terá dito, sem descurar que esta última se mostrou sempre reservada relativamente à amplitude do que contava e atentando em que referiu, de forma clara, que o recorrente estava nu e se aproximou do poliban, o que, se não se tivesse verificado, dificilmente constituiria motivo para que afirmar que o impediu da entrada nesse local, encontrando-se a tomar duche.

Acerca dos pontos de facto provados em 7 a 18 (que se dispensam aqui reproduzir), a impugnação apresenta-se tendencialmente genérica, pelo que, em si mesma, comporta análise que, apenas, se compadece com essa perspectiva.

Para o efeito dessa impugnação, vários depoimentos são convocados pelo recorrente.

Versando as declarações da menor, pretende apontar imprecisões e ausência de clareza, contrariamente ao sufragado pelo tribunal.

Analisando, note-se que não se mostra aceitável que pretenda conferir à menor um propósito de justificação das ausências da mãe em detrimento da preocupação com os factos de que se diz ter sido vítima.

Ouvidas as suas declarações, ressalta que essas ausências da mãe não se podem dissociar da circunstância de, como referiu, coincidirem com os momentos em que o recorrente a procurava, sendo natural que tivesse aludido a que aquela saía com amigas, no sentido de, segundo pensaria, melhor a proteger e não contribuir para aumentar sentimento de culpabilização que a mesma poderia sentir em razão dessas mesmas ausências.

Também, analisado o depoimento na globalidade, não decorre, de modo algum, que os actos que atribuiu ao recorrente não tivessem representado, para si, importante dimensão na sua vivência e, mormente, ao ponto de, como referiu, ter ingerido, por duas vezes, comprimidos e de que, como consta do acórdão, “Sentia nojo do corpo dela, por causa das coisas que ele fazia. Tomava banho e o cheiro dele não saía”.

As alegadas contradições enormes entre as declarações da menor e o depoimento de MR não são visíveis.

Certamente que o recorrente não desconhecerá que, segundo o que resultou da prova, foi a menor quem sofreu as suas investidas sexuais e, foi a mãe, quem denotou, pelo menos alguma, falta de percepção do que acontecia e reforçou, em audiência, que a filha não lhe contava tudo e, somente já depois do assunto ter chegado à escola e à Polícia Judiciária, lhe veio a reportar melhor o que passara.

Esquecer estes aspectos significa distanciamento do que a ponderação permitiu aquilatar, quiçá procurando pormenores que se tornam irrelevantes e colocando de parte a essencialidade que esses elementos de prova logrou transmitir.

Aliás, seria, até, estranho e, por isso, de menor credibilidade, que tivesse existido plena concordância reflectida por pessoas que diferente acesso aos factos tiveram.

Quanto ao depoimento de JP, auxiliar na escola, que acompanhou a menor ao hospital e a quem, esta, terá dito que o padrasto lhe apalpava as maminhas, o recorrente invoca que apenas isso foi reportado à testemunha e feito, por si, uma vez, no que detecta contradição com as declarações da menor.

Não é verdade, porém, que JP tivesse afirmado com certeza bastante que a menor apenas lhe comunicou esse acontecimento, uma vez que, instada em audiência para esclarecer (embora tal não conste do acórdão), acabou por admitir que, também, lhe tivesse referido que mexia na vagina.

Acresce que a testemunha, segundo disse, se limitou a referir o que recordava ter-lhe sido contado pela menor, pelo que a valoração do seu depoimento obedeceu ao estrito contexto em que foi ouvinte, inevitavelmente sem divergir propriamente da eventualidade de diversa amplitude, como seja aquela que a menor, em declarações, veio a relatar.

Relativamente aos depoimentos de JM e JR, colegas de escola da menor, o recorrente alega que descredibilizaram as afirmações da menor.

Na verdade, tais testemunhas manifestaram ter começado a duvidar do que a menor lhes contara acerca do padrasto, em razão, no essencial, de que nem sempre dizia o mesmo, era conflituosa, inventava coisas e falava em exibir o corpo na internet.

Não obstante, resulta terem deposto no sentido que a menor, embora por vezes transparecesse que o relato dos actos, de que dizia ser vitima, não fosse esclarecedor, em momento algum negou, propriamente, aquilo que antes transmitira, bem como que esse relato acabou por ocorrer no curto período de cerca de dois dias.

O tribunal, com razão, não atribuiu credibilidade à preconizada dúvida, tendo fundamentado, e bem, que a percepção dessas testemunhas teria de ser, como foi, avaliada por confronto com outros elementos, como sejam, depoimentos e relatórios que versaram nas características comportamentais e psicológicas da menor, que, aliados às regras da experiência, deram a compreender que o sentido que essas testemunhas quiseram transmitir se alheou dos aspectos que, intrinsecamente, justificavam a postura da menor.

No tocante ao depoimento de PR, professora adjunta da direcção da escola, ainda que, como o recorrente refere, tenha reportado que anteriormente tinha havido uma falsa acusação por assédio sexual por parte de um professor, não o conotou concretamente com a menor, mas, apenas, com a turma em que esta estava integrada, sendo que não se descortina qualquer interesse nessa vertente.

A testemunha referiu-se a esse aspecto como meramente lateral e quando questionada relativamente a outras situações de âmbito sexual de que tivesse conhecimento em alunos da escola, pelo que nem mesmo se entende a pertinência que o recorrente queira conferir.

No que respeita a contradição entre as declarações da menor e o depoimento de D, filho do recorrente, verifica-se que o tribunal não atentou neste depoimento para a convicção quanto aos factos em questão, certamente descurando que alguma discrepância tivesse tido interesse.

Apesar disso, constata-se que, enquanto a menor afirmou que D sabia de alguma coisa, por lhe ter contado e, uma vez, até, por ter visto, este último negou-o e, ainda, atribuiu à menor insistência para que, em tribunal, devesse dizer o que sabia.

Contudo, a avaliação desse depoimento não prescinde da circunstância do parentesco (filho) com o recorrente e de que o depoente tinha então treze anos, declarou que estava zangado com MR e prestou declarações (ainda que por vídeo-conferência) encontrando-se, o recorrente, na sala de audiências, além de que, mais importante, nota-se que colocou acento tónico em que a menor nunca se queixou e aportou motivação desta para o que veio a suceder, isto é, a saída de casa e a separação do pai.

Ainda que admitindo que a menor pudesse ter querido sugestionar D, não é o depoimento deste que permitiria infirmar toda a restante prova disponível.

Acerca das reservas quanto à conjugação dos depoimentos de AM, irmã do recorrente, e de MR, desde logo, salienta-se, como consta do acórdão, que aquela não revelou ter conhecimento dos factos,pelo que nenhum relevo teve para estabelecer a convicção atingida.

Pretende, então, o recorrente, apelar aos documentos que foram apresentados por AM, juntos aos autos, de fls. 895/896, que referiu ter sido ameaçada por MR, através da mensagem aí vertida, sendo que, esta última, a atribuiu à menor, se bem que escrita na sua presença e com a sua autorização, constando menção ao seu nome como remetente (“Bia Silva”), mas sem que tivesse esclarecido justificação para o seu teor.

Ora, aparentemente prendendo-se com o que AM poderia, ou não, vir a contar, a mensagem, ainda que admitindo-se como existente, não surge contextualizada de modo a que se perceba a que se destina, donde não se afigurar ser susceptível de legitimar algum acontecimento que diga respeito à matéria em julgamento.

As explicações dadas, quer por uma, quer por outra, testemunha, foram, nesse âmbito, absolutamente evasivas e sem denotar algo mais do que meros comentários propiciados pelas redes sociais.

Quanto ao depoimento de DP, avó materna da menor, que não foi mencionado pelo tribunal para suportar a convicção que se questiona, as reticências do recorrente não são consistentes.

Reportando-se ao que a testemunha depôs, parece querer assinalar que, inicialmente, disse que tinha tido a conversa com a menor e a sua filha Sónia, também menor, alertando-as para a necessidade de se queixarem caso fossem sexualmente abusadas por alguém, o que teria ocorrido meses antes de ser preso e, posteriormente, ter afirmado que essa conversa foi na sequência do episódio do toque no seio da menor.

Alguma discrepância de datas existiria; aliás, essa circunstância patenteou-se nesse depoimento, dada a incerteza manifestada relativamente às mesmas, não obstante, quando questionada relativamente a esse segmento, tivesse acabado por admitir que essa conversa surgiu em finais de 2013, tinha a menor, então, treze anos de idade.

De qualquer modo, o interesse do depoimento, para infirmar o que foi declarado pela menor e por MR, não existe.

Contrariamente ao aduzido pelo recorrente, não se descortina fundamento para considerar que as declarações da menor não tenham reflectido o que vivenciou ou tivessem sido condicionadas pela mãe.

Tanto mais que, conforme ao depoimento da já referida PR, tal como consta do acórdão, o relato da menor “Seria muito elaborado para estar a mentir” e que não pode, também, dissociar-se o válido contributo da subscritora (AC) do relatório de avaliação psicológica da menor, de fls. 86/91, dando pormenorizada conta de todos os sinais comportamentais de que se foi apercebendo, bem assim, dos diversos relatórios da associação “Chão dos Meninos”.

Identicamente, não se mostra razoável pretender infirmar as declarações da menor através do relatório pericial de natureza sexual de fls. 661/667, no qual o tribunal atentou em sintonia com o valor consagrado pelo art. 163.º, n.º 1 do CPP, sem o colocar em causa, mas, também, sem que pudesse excluir-se a prática dos actos pelo recorrente, como acertadamente explicitou.

Na verdade, embora não detectadas lesões ou sequelas, a circunstância da menor ter um hímen que permite a introdução de dois dedos justapostos consente que se conclua que os actos imputados foram praticados pelo recorrente e da forma como ficou descrita.

Em razão do que se explicitou, configura-se, pois, que os argumentos do recorrente não têm virtualidade para impor decisão diferente quanto aos factos que impugnou.

Com efeito, traduzem afirmações sem consistência, retiradas da inevitável e necessária conjugação e ponderação de toda a prova produzida e examinada, resvalando para mera crítica, sem suporte bastante para a finalidade visada.

Ao invés, o tribunal a quo assentou a sua convicção nessa prova, que criticamente analisou, de modo cuidado e pormenorizado, pautado por critérios da lógica e da experiência, em obediência aos limites impostos pelo art. 127.º do CPP, logrando plena demonstração da culpabilidade do recorrente.

A sua análise revela-se objectiva e não é merecedora de censura, estando em sintonia com o que a livre apreciação comporta.

Na verdade, segundo Germano Marques da Silva, ob. cit., Editorial Verbo, 1993, vol. II, pág. 111, A livre valoração da prova não deve (…) ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão.

Se assim é, consubstanciando-se a liberdade de apreciação numa liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada «verdade material» - de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral, susceptível de motivação e de controlo (…) capaz de impor-se aos outros (Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, Coimbra Editora, 1974, págs. 202/205), cuja fundamentação decorre, em concreto, perfeitamente sustentada, não se impõe, de forma alguma, outra decisão em matéria de facto.

A preconizada absolvição parcial do recorrente está, pois, manifestamente, afastada.

3. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se:

- negar provimento aos recursos interpostos pelo arguido e, assim,

- manter o despacho e o acórdão recorridos.

Custas pelo recorrente, com taxa de justiça de 5 UC.

Processado e revisto pelo relator.

29.Novembro.2016

Carlos Jorge Berguete

João Gomes de Sousa