Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | MARIA CLARA FIGUEIREDO | ||
Descritores: | VIOLÊNCIA DOMÉSTICA RELEVÂNCIA DO ESTADO DE INFLUENCIADO PELO ÁLCOOL INCUMPRIMENTO DOS REQUISITOS DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO | ||
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Data do Acordão: | 09/12/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | I - Não tendo o recorrente cuidado de explicar as razões pelas quais, a seu ver, o conteúdo dos depoimentos que indicou levaria a decisão diversa da recorrida e não tendo demonstrado, como se lhe impunha, que não foi produzida prova sobre os factos impugnados ou que o tribunal desconsiderou, sem justificação, algumas das provas produzidas, nem tão pouco que o juízo probatório efetuado tenha desrespeitado o critério da livre apreciação da prova plasmado no artigo 127º do CPP, verifica-se, incontornavelmente, um incumprimento dos requisitos estabelecidos para o efeito pelo artigo 412ºdo CPP para a impugnação da matéria de facto. II - A circunstância de o estado de influenciado pelo álcool do arguido acontecer apenas pontualmente, mormente aos fins de semana, não obsta a que se valore tal realidade e se pondere – por razões de prevenção criminal, como forma de tutela dos bens jurídicos protegidos pela incriminação e mesmo com vista a favorecer a reintegração social do arguido – refleti-la na condição de suspensão da execução da pena de prisão aplicada pela prática do crime de violência doméstica, sobretudo considerando ter resultado provado ter sido nesse estado que ocorreu a prática dos factos típicos. III - A referência axiológica da violência doméstica reconduz-se ao exercício ilegítimo de poder ou de domínio do agressor sobre a vítima com o objetivo final de submissão daquela ao primeiro, não podendo proceder-se à apreciação atomística das várias condutas que o integram desenquadradas da relação pessoal existente entre o arguido e a ofendida, sem atender ao conceito de maus tratos, o que se não seria consentâneo com a natureza unitária e globalmente desvaliosa do comportamento típico previsto no artigo 152º do CP. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I - Relatório. Nos presentes autos de processo comum com intervenção do tribunal singular que correm termos no Juízo Local Criminal de … - Juiz …, do Tribunal Judicial da Comarca de …, com o n.º 116/22.2GCBNV, foi o arguido AA, motorista, divorciado, natural de …, …, nascido a …1976, filho de BB e de CC e residente na Rua …, …, condenado pela prática, na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado p. e p. pelo art.º 152º nº 1, alínea b) e nº 2, alínea a) do CP, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 (três) anos e 6 (seis) meses, acompanhada de regime de prova, nos termos dos artigos 50º e 53º do C.P., com sujeição às obrigações de pagar à ofendida, no prazo de 1 (um) ano, a quantia de 1.300,000 (mil e trezentos euros), a título de reparação pelos danos de natureza não patrimonial sofridos pela vítima, ao abrigo do disposto nos artigos 21º da Lei nº 112/2009, de 16.09 e 820º-A do CPP e de se sujeitar a tratamento médico da sua dependência alcoólica, caso o mesmo se venha a revelar necessário, após avaliação médica. *** Inconformado com tal decisão, veio o arguido interpor recurso da mesma, tendo apresentado, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever: “I. O presente recurso visa a impugnação judicial do Tribunal a quo que condenou o Arguido ora Recorrente: - Da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2 , alínea a) do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão; - Suspender a execução da pena de prisão, nos termos dos artigos 50.º, n.º 5, 52.º, n.º 2 e 53.º, n.º 1 e 2 ambos do Código Penal e artigo 34.º B da Lei n.º 112/2009, de 16/9, pelo período de 3 (três) anos e 6 (seis) meses, acompanhada de um regime de prova e com o dever de: - proceder ao pagamento, no prazo de 1 (um) ano, a contar do trânsito da sentença, da quantia fixada, de 1.300,00€, a título de reparação pelos danos sofridos pela assistente, depositando-a à ordem dos presentes autos, e - se sujeitar a tratamento médico da sua dependência alcoólica, caso o mesmo se venha a revelar necessário, após avaliação médica; - Não aplicar ao arguido qualquer das penas acessórias previstas nos artigos 152.º n.º 4 a 6 do Código Penal; - Condenar o Arguido AA a pagar à Assistente DD a quantia de 1.300,00€ (mil e trezentos euros), a título de reparação de danos de natureza não patrimonial sofridos, ao abrigo do disposto nos artigos 21.º da Lei 112/2009, de 16/09 e 82.º-A do Código de Processo Penal; - Condenar o Arguido no pagamento de custas criminais, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC e demais encargos com o processo, nos termos dos artigos 513.º, n.º 1 e 514.º n.º 1 do Código de Processo Penal e artigo 8.º n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa ao mesmo; II. Face à prova produzida nos autos, essencialmente a prova testemunhal, resulta evidente a injustiça da decisão de que ora se recorre, com a qual não pode o Recorrente concordar. III. No entender do Recorrente, salvo o devido respeito, andou mal o Tribunal a quo ao dar como provados factos que, no seu entender, deviam ter sido dados como não provados em resultado da prova produzida, bem como por ter feito uma errónea interpretação /contextualização dos factos dados como provados, que levaram consequentemente a uma decisão injusta e contrária à lei. IV. Tivesse o Tribunal a quo feito uma correcta e imparcial análise crítica da prova produzida e dos factos dados como provados, teria concluído que a realidade fáctica, não sucedeu exactamente como descrita na Acusação o que levaria a que a decisão por si proferida tivesse sido em sentido diverso. DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO - DOS ERROS DE JULGAMENTO – e -DA MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO – V. O Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento na resposta dada a diversas questões de facto. Em concreto: Ponto 6. Dos factos dados como provados: “Nos períodos de folga do Arguido, que coincidem sobretudo com os fins de semana, o arguido passou a ingerir bebidas alcoólicas e excesso, altura em que, e ao regressar a casa, encetava discussões com a assistente e lhe dirigia as seguintes expressões, “”és burra”, “não tens vontade própria” e “não tens pensamentos próprios”. VI. Entende o Recorrente que o Tribunal a quo, desconsiderou por completo o depoimento prestado pela Testemunha BB, pai do Arguido ora Recorrente, valorando apenas as declarações prestadas pela Assistente, conforme se poderá ler na Motivação da matéria de facto quanto ao concreto Ponto 6. VII. Efectivamente, a referida testemunha quando questionada sobre a circunstância de saber se o ora Recorrente bebia aos fins de semana, a mesma foi peremptória ao afirmar que sim, que estava muitas vezes com ele a beber uma cerveja ou outra, mas que, apesar de não ficar com ele até tarde no café, que o mesmo não era homem de estar tarde inteiras no café, uma vez que tem de trabalhar à segunda-feira. VIII. Entendeu o Tribunal a quo que “não é pelo arguido ser motorista de substâncias perigosas, que significa que não apresentasse consumo de álcool em excesso, tanto que a assistente também confirma que esse consumo apenas ocorria em períodos de folga”. IX. Também com esta conclusão do Tribunal a quo não pode o Recorrente concordar uma vez que, de facto, a circunstância de o Recorrente ser motorista de substâncias perigosas obriga a que o mesmo seja subtido diversas e periodicamente a análises de consumo de álcool uma vez que tais consumos são incompatíveis com o exercício daquela concreta actividade profissional. X. Face às declarações prestadas pela Testemunha BB e pela Testemunha CC, e a explicação dada pelas mesmas, em concreto quanto ao conhecimento directo que têm quanto à ingestão de bebidas alcoólicas e seu controlo no âmbito da actividade profissional que exerce, dúvidas não deveriam subsistir que o Recorrente não tem qualquer problema com o álcool. XI. Note-se que uma coisa é uma pessoa beber umas cervejas nas suas folgas, em convívio com os amigos e até com os seus familiares, outra coisa é daí se concluir que uma pessoa tem uma adição/dependência do álcool ao ponto de ser condenada nos termos em que o Arguido foi, em concreto ser sujeito a avaliação médica e tratamento de alcoolismo. XII. É que, na verdade, uma pessoa que tem uma dependência com o álcool não é uma pessoa que apenas bebe ao fim de semana, socialmente, com amigos e família. Uma adição pressupõe uma prática reiterada e recorrente, a qual, conforme exposto, não é compatível com a vida do ora Recorrente, em concreto com a vida profissional em virtude da actividade que desenvolve – motorista de matérias perigosas com controlo permanente de consumo de álcool. XIII. Pelo exposto, deverá o Ponto 6. dos factos dados como provados, no que à ingestão de bebidas alcoólicas em excesso diz respeito ser dado como não provado e consequentemente não ser o arguido condenado na sua sujeição a tratamento médico da sua dependência alcoólica, o que se expressamente se requer para os devidos e legais efeitos. XIV. Ponto 12. dos factos dados como provados: “No dia 10 de Março de 2022 o arguido dirigiu-se ao Posto da GNR de … para apresentar queixa contra a irmã da assistente, quanto ao desentendimento ocorrido na manhã desse dia, momento em que a assistente aproveitou para pedir ajuda aos militares ali presentes os quais a acompanharam até à casa de morada de família para dali retirar os seus pertences, sendo quem e desde então, a assistente deu como terminada a relação com o aqui arguido ”. XV. Entende o Recorrente que o Tribunal a quo desconsiderou por completo factos que foram relatados e prestados em sede de audiência e discussão de julgamento. XVI. Se o Tribunal considerou como verdade que o Arguido, ora Recorrente, praticou factos consubstanciadores de um ilícito penal, praticados contra a Assistente, a verdade é que o mesmo Tribunal desconsiderou e interpretou erroneamente outros factos que são também eles susceptíveis de integrar um ilícito penal praticado pela Assistente contra o aqui Recorrente, relacionados com o objecto do processo. XVII. O facto dado como provado no Ponto 12. aconteceu na sequência da irmã da Assistente derramar um copo de cerveja em cima do Arguido, ora Recorrente, em pleno dia, num local bastante frequentado – um café – causando-lhe vergonha e humilhação. Tais factos foram corroborados pelas declarações da própria Assistente. XVIII. Acrescente-se que, o facto relatado pela ora Assistente não foi o único facto revelador de ameaças e agressões que o Arguido, ora Recorrente sofreu, no decorrer da sua relação com a Assistente e por esta praticados. XIX. Efectivamente, tal como relatado pelas testemunhas BB e pela testemunha CC, várias foram as ocasiões em que a Assistente e os seus familiares agrediram, quer verbalmente quer fisicamente o Arguido, ora Requerente. XX. Na motivação da matéria de facto, o Tribunal a quo entendeu como aceitável e assim o justificou, considerando que as mesmas foram proferidas num período de saturação da assistente perante todas as provocações que o arguido lhe fazia nas sucessivas mensagens enviadas, quer por telefone, quer através das diversas redes sociais designadamente as mensagens enviadas pela Assistente ao ora Recorrente e juntas com a Contestação, nas quais a Assistente afirmava: “vais ficar maravilhoso com 1 pulseira no tornozelo” ou “tu levas a pulseira quando eu bem entender” ou a “alusão a visitas conjugais se o arguido ficasse privado de liberdade”. XXI. Com o devido respeito pelo Tribunal a quo: não serão também estas mensagens provocatórias? Não terá a Assistente tido comportamentos, também eles atentadores da dignidade do Arguido e lealdade ao Arguido como por exemplo não lhe ter prestado assistência no momento em que o Arguido foi operado, sendo certo que quem lhe prestou auxílio foram os seus pais. XXII. Mais uma vez com o devido respeito pelo Tribunal a quo, que é muito, o crime de violência doméstica, tal como previsto no artigo 152.º do Código Penal pune não apenas as agressões físicas como as psicológicas… XXIII. Não será de considerar que, face à prova produzida em audiência de discussão e julgamento, ainda que o Arguido, ora Recorrente, tenha praticado vários actos penalmente censuráveis, não terá também a Assistente praticado simultaneamente actos igualmente censuráveis? XXIV. Em suma, estaremos efectivamente perante um crime de violência praticado apenas pelo Arguido, ora Recorrente, ou estaremos antes perante uma situação de ofensas mútuas, desrespeito mútuo, quebra de confiança mútua, falta de lealdade e companheirismo mútuo? XXV. É exactamente por este motivo que o Recorrente considera que não estamos perante a prática de um crime de violência doméstica, tal como foi condenado pelo Tribunal a quo, mas antes, pela eventual prática pelo Arguido, ora Recorrente de (apenas) um crime de perseguição previsto pelo artigo 154-A do Código Penal. XXVI. E este raciocínio é extensível a toda a motivação da matéria de facto elaborada pelo Tribunal a quo que apenas considerou as declarações da Assistente como prova bastante para a condenação do Arguido de um crime de violência doméstica, justificando que tal crime, ocorrendo maioritariamente em contexto habitacional íntimo do casal, é censurado de forma mais grave. XXVII. Questiona-se: se apenas a Assistente alegadamente presenciou alguns factos (designadamente a ameaça com uma faca, o facto de a ameaçar mandá-la da janela do terceiro andar da habitação comum do casal, etc…), em momento algum corroborado por qualquer outra testemunha, onde o Tribunal a quo enquadrou o mais basilar princípio do Direito (Processual) Penal: o in dubio pro reo? Por este motivo entende o Requerente que quanto a estes factos deverá ser absolvido, só assim se respeitando tal princípio basilar, o que se requer para os devidos e legais efeitos. XXVIII. Acresce ainda que o Tribunal a quo desvalorizou por completo os depoimentos prestados pelos pais do Arguido, ora Recorrente, o das testemunhas BB e CC, mas valorou de forma incompreensível o depoimento prestado pela mãe da Assistente proferindo a seguinte frase: “Também o depoimento da testemunha EE, mãe da Assistente, corroborou o declarado pela sua filha, uma vez que, apesar de não possuir um conhecimento profundo da vivência entre arguido e assistente, acabou por confirmar as alterações notadas no comportamento da assistente, na sequência do controlo exercido pelo arguido, nomeadamente no afastamento da família e amigos”. XXIX. Com o devido respeito, se a mãe da Assistente não tem conhecimento profundo da vivência entre o Arguido, ora Recorrente, e o seu depoimento foi valorado, como não ser valorado pelo Tribunal a quo os depoimentos prestados pelo pai e pela mãe, com as legais consequências?... - DO DIREITO – XXX. Entendeu o Tribunal a quo condenar o Arguido, ora Requerente, pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) 3 n.º 2, alínea a) do Código Penal. XXXI. Entende o Arguido, ora Recorrente, que a imputação feita pelo Tribunal a quo não tem integração com a factualidade provada em sede de audiência de discussão e julgamento, e, ainda menos considera adequada a pena concretamente aplicada ao Arguido, ora Recorrente, em concreto, 3 (três) anos de prisão, pelo que se requer que a mesma seja revista, proporcionalmente adequada à factualidade concretamente provada, bem como se requer seja feita uma correcta e imparcial apreciação da prova nos termos requeridos, pois só assim se concluirá a injustiça da pena aplicada ao ora Recorrente.” * O recurso foi admitido. Na 1.ª instância, o Ministério Público pugnou pela improcedência do recurso e pela consequente manutenção da decisão recorrida, tendo apresentado as seguintes conclusões: “1. Do teor das conclusões apresentadas resulta não terem sido observadas as especificações a que se reporta o artigo 412.º, n.º 3, alíneas a) e b) e n.º 4 do Código de Processo Penal, não se indicando, pois, as concretas provas que, em relação aos pontos que se consideram incorrectamente julgados, impunham decisão diversa, designadamente no que se refere às declarações e depoimentos prestados em audiência, por referência à gravação, a localização do depoimento em que se suporta e as partes relevantes do mesmo. Sem prescindir, quanto às demais questões suscitadas pelo recorrente: 2. Quanto à impugnação da matéria de facto, cremos que a convicção do Tribunal recorrido foi a mais correcta e a única aceitável, especialmente se tivermos em conta a fundamentação aduzida na sentença recorrida para a formação de tal convicção e para recusar credibilidade à versão do arguido, sendo que todos os elementos de prova foram ponderados e conjugados com as regras da lógica e da experiência, razão pela qual não poderá proceder o recurso em apreço,não restando dúvidas sobre a prova segura e inequívoca dos factos imputados ao Recorrente. 3. Quanto à qualificação jurídica dos factos, tendo em conta a matéria de facto dada como provada e em face da imagem global da conduta do arguido, estão preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do crime de violência doméstica, p. e p. no artigo 152º, nº 1, al. b) e nº 2, al. a) do Código Penal. 4. O quantum da pena de prisão alcançado pelo Tribunal é adequado às exigências da punibilidade que o presente caso impõe, reflectindo, com particular relevo, quer a existência de um antecedente criminal do arguido pela prática do mesmo ilícito, praticado em 2017, no âmbito de anterior relacionamento, quer a sua postura processual censurável” * O Exmº. Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer, tendo-se pronunciado no sentido da rejeição do recurso no que tange à impugnação da matéria de facto, por absoluto incumprimento dos requisitos para tanto fixados no artigo 412º do CPP e pugnando pela sua improcedência quanto às demais questões que integram o seu objeto. * Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP, não tendo sido apresentada qualquer resposta. Procedeu-se a exame preliminar. Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir. II – Fundamentação. II.I Delimitação do objeto do recurso. Nos termos consignados no artigo 412º nº 1 do CPP e atendendo à Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28/12/95, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sua motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, sem prejuízo de poderem ser apreciadas as questões de conhecimento oficioso. Em obediência a tal preceito legal, a motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida. No presente recurso e considerando as conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, são as seguintes as questões a apreciar e a decidir, a saber: A) Encontrando-se reunidos os respetivos pressupostos formais, determinar se ocorreu erro de julgamento da matéria de facto, por errada valoração da prova produzida em audiência, com desrespeito do princípio da livre apreciação da prova consagrado no art.º 127º do CPP e com violação do princípio “in dubio pro reo”. B) Determinar se existiu erro de julgamento da matéria de direito relativamente: a) À subsunção dos factos provados ao crime de violência doméstica; b) Aos princípios e regras legalmente previstos para a determinação da medida da pena. * II.II - A decisão recorrida. Realizada a audiência final, foi proferida sentença que deu como provados e não provados, com relevo para a apreciação da situação do arguido recorrente, os seguintes factos: “3.1. Factos Provados: Discutida a causa e com relevância para a decisão, resultaram provados os seguintes factos: 1. O arguido AA e a assistente DD, começaram, no mês de Fevereiro de 2018, a viver cm condições análogas às dos cônjuges, partilhando cama, mesa e habitação, tendo o casal fixado residência na Rua … e, a partir de Janeiro de 2022 passaram a viver na Rua do …, em …. 2. Desta relação não resultou o nascimento de qualquer filho em comum. 3. A relação entre o arguido e a assistente, no início, foi decorrendo com relativa normalidade, existindo discussões pontuais entre o casal, o que se alterou quando o arguido tomou conhecimento do processo de inquérito de violência doméstica n.0 335/21.9… que teve origem em denúncia dos pais da assistente e foi arquivado em Novembro de 2021. 4. Desde então, o arguido alterou o seu comportamento para com a assistente e passou a controlar o dia a dia daquela, para onde ia, quando e com quem, como chegou a mexer-lhe na carteira pessoal. 5. O arguido chegou a controlar o telemóvel da assistente, em algumas ocasiões. 6. Nos períodos de folga do arguido, que coincidiam sobretudo com os fins de semana, o arguido passou a ingerir bebidas alcoólicas em excesso, altura em que, e ao regressar a casa, encetava discussões com a assistente e lhe dirigia as seguintes expressões, burra", "não tens vontade própria" e tens pensamentos próprios". 7. O arguido acusava a assistente de ter amantes, dizendo-lhe, "de certeza que tens outro", chegando a imputar-lhe relações com militares da GNR e com colegas de trabalho. 8. O arguido pressionava a assistente para que não convivesse com a sua família, entre a qual os seus pais. 9. Em data não concretamente apurada, no interior da casa de morada de família, o arguido, durante discussões com a assistente, disse-lhe "()u estás com a tua família ou estás comigo"; "Atiro-te do terceiro andar"; "Dou-te murros na cara que te fodo toda" e disse-lhe ainda "enquanto segurava numa das mãos uma faca de cozinha, 'Se alguém tocar à campainha a primeira coisa que faço é espetar-lhes a faca, abrir-lhes a barriga e vê-los esguichar sangue que nem porcos!". I0. No dia 09 de Março de 2022, quando arguido e assistente se encontravam no interior da casa de morada de família, o arguido pegou numa faca de cozinha e, com aquele objeto na mão, disse para a assistente, em tom de voz sério, alto e alterado, "Se alguém aparecer aqui abro-lhes a barriga e ficam a esguichar que nem porcos", tendo sido chamada a GNR ao local. I1. Após, enquanto o arguido se mantinha na varanda da sua casa, e os pais da assistente no exterior da residência, na via pública, ocorreu uma discussão entre aqueles. 12. No dia 10 de Março de 2022 0 arguido dirigiu-se ao Posto da GNR de … para apresentar queixa contra a irmã da assistente, quanto a desentendimento ocorrido na manhã desse dia, momento que a assistente aproveitou para pedir ajuda aos militares ali presentes os quais a acompanharam até à casa de morada de família para dali retirar os seus pertences, sendo que, e desde então, a assistente deu como terminada a relação com o aqui arguido. 13. Nos dias que se seguiram à saída da assistente de casa de morada de família, o arguido procurou chegar ao contacto com ela através de chamadas telefónicas e enviou-lhe várias mensagens escritas, como as seguintes: "DD tens que falar comigo, não é justo o que fizeste, ires embora sem dizer nada" dia 12/03/2022, via "WhatsApp", "Este foi o caminho que tu escolheste percorrer Todos os podres da tua família e de ti irão vir à tona. É bom que procures um bom Advogado porque eu não vou ser nada meigo nas acusações que vou fazer contra ti." — dia 12/03/2022, via "Messenger"; "'Posso publicar só um bocadinho do vídeo de tu e o preto no Duche lá no Motel do …? Só um bocadinho, não é todo. O Vídeo todo é a partir de 2 feira. 12/03/2022, via "Messenger"; .) Hoje só espalhei um bocadinho de Veneno. A partir de 2 feira irá ser o Veneno principal. — dia 12/03/2022, via "Messenger"; "És uma BOSTA de Gente. Não te irei perdoar o que me estás a fazer. Não vales nada. — dia 15/03/2022, via 'Messenger"; "Enquanto eu for Vivo nunca mais irás ter descanso na Vida. E no dia que me faltar a força, acabo com a vossa Raça de uma vez por todas, mas todas mesmo, não escapa ninguém. - dia 16/03/20222, via "Messenger"; "Eu Amo-teDD. Eu peço desculpa de tudo 0 que fiz de mal e peço desculpa até por o que não fiz. (. . .) imagina que o Homem com quem estavas não era o AA e era um Gajo mesmo Doido, daqueles que nada tem a temer, já imaginaste que isto já estaria tudo resolvido e da pior maneira? Eu não sou bom, mas à bem pior que eu, isso te garanto." dia 22/03/2022; Todas as pessoas do … viram bem o que estás a fazer, bem podes estar escondida porque de nada te vale. — dia 23/03/2022; Ao princípio admito que não sabia onde estavas, mas agora sei. Sabes que os Telefones hoje em dia sabem tudo. Como é que é? Queres que eu vá aí fazer Espetáculo?? - dia 24/03/2022; A mim ninguém me faz mal sem ter o Troco "DEZ VEZES MAIOR". Ainda te digo mais, Ou tomas uma atitude, seja ela qual for, ou eu "MATO-VOS" a todos. Ou eu não me chamo AA. Até às pessoas onde tu estás vão. (. . .) EU VOU- VOS MATAR A TODOS. ATÉ A QUEM TE DEU GUARIDA." - dia 24/03/2022; "Tens Ih. I hora. Ou mandas mensagem com conversa de jeito, ou então prepara- te. Eu não estou a brincar. pelo mal, vais-te arrepender de me ter conhecido. Tenho tido preparado e de hoje não passa. TOMA ATENÇÃO AO QUE TE ESTOU A DIZER, A BRINCADEIRA COMIGO ACABOU. MAS ACABOU MESMO" - dia 24/03/2022; Queres um Concelho?? Agora é que tens que fugir, mas para bem longe. Ou Mata-te para não sofreres mais. m) Eu vou-vos destruir a todos, e até pode ser hoje quem sabe." -dia 24/03/2022; e Até porque és COVARDE, Não prestas. És um ser Humano HORRÍVEL FALSA." - dia 06/04/2022. 14. Ao atuar do modo Supra descrito, pretendeu 0 arguido molestar psicologicamente, a assistente, bem sabendo que dessa forma ofendia a saúde daquela, o que conseguiu, assim como a sua liberdade de autodeterminação e que praticava aqueles atos na residência comum do casal. 15. Ao dirigir à assistente, sua companheira, as expressões referidas, o arguido representou e quis atingi-la na sua honra, dignidade e consideração, rebaixando-a e humilhando-a, conforme fez. 16. De igual modo e ao adotar as condutas descritas, representou e quis causar-lhe receio de vir a atentar contra a Sua integridade fisica e vida, assim como dos seus familiares diretos. 17. Em toda a atuação, o arguido quis e conseguiu maltratar psiquicamente a assistente, criando-lhe várias crises de ansiedade e sentimentos de instabilidade, tristeza, humilhação e vergonha, rebaixando-a como ser humano e fazendo-a sentir diminuída na sua liberdade, o que fez em violação dos mais elementares deveres de respeito e consideração. 18. O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal, tendo capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento. Das condições sociais. familiares e económicas e antecedentes criminais 19. O arguido concluiu o 6º ano de escolaridade. 20. Trabalha desde os 18 anos como motorista, primeiramente de viaturas ligeiras e depois aos 21 anos como motorista de pesados. 21. Há cerca de cinco anos, desenvolve atividade profissional para a empresa …., assegurando o transporte de substâncias químicas e inflamáveis, em território nacional e em Espanha. 22. Aufere a quantia mensal de 777,05€, a que acrescem complementos relacionados com o exercício da profissão, atingindo a remuneração de 1.928,50€. 23. Reside num apartamento T3, adquirido pelo próprio, através de empréstimo bancário, o qual dispõe de adequadas condições de habitabilidade. 24. Suporta a quantia mensal de 500,00€ referente ao empréstimo bancário. 25. Tem um crédito pessoal no valor de 189,32€ por mês. 26. Iniciou um novo relacionamento de namoro que mantém na atualidade. 27. Tem o apoio afetivo de seus progenitores. 28. Tem um filho, maior de idade, da primeira união de facto, terminada em 2015. 29. Nega a existência de consumo excessivo de álcool. 30. Desde a separação da companheira em 2015 e após uma tentativa de suicídio, começou a ser acompanhado e medicado em psiquiatria, onde se desloca ocasionalmente. 31. Tem uma interação social adequada. 32. Os Contactos com a assistente apenas têm ocorrido para a resolução dos assuntos pessoais pendentes. 33. Já foi anteriormente condenado, no âmbito do processo no 613/15.6…, por sentença de 14.07.2017, transitada em julgado em 29.09.2017, por factos cometidos até 2015, pela prática de crime de violência doméstica, na pena de 2 anos e 4 meses de prisão, suspensa por igual período, sujeita a regime de prova, a qual foi cumprida com sucesso até 02.02.2020. Não se provaram os seguintes factos: a) Desde o início da relação que o arguido demonstrou ser uma pessoa muito ciumenta e controladora e evitava que a assistente DD, convivesse com outras pessoas, inclusivamente com a família daquela. b) O arguido passou a retirar-lhe o cartão bancário para verificar todos os movimentos que tinha feito, após o que a confrontava com os mesmos, ocasiões em que discutia com aquela. c) O arguido proibiu a assistente de se relacionar com a família, dizendo frequentemente para a mesma, «se continuares a falar com a tua família meto-te na rua» e «atiro-te do terceiro andar». d) O circunstancialismo referido em 10, ocorreu concretamente no mês de Fevereiro de 2022, tendo também o arguido voltado a acusar a assistente de ter uma relação com um militar da GNR. e) Na ocasião ocorrida no dia 09 de Março 2022, a GNR foi chamada ao local na sequência da discussão entre arguido e os pais da assistente. f) O descrito em IO ocorreu após a discussão entre os progenitores da assistente e 0 arguido. g) A queixa referida em 13, foi apresentada contra os pais da assistente relativamente aos factos ocorridos no dia anterior. h) Apesar do acima descrito, e pelo menos nos dias que se seguiram à saída da assistente da casa de morada de família, o arguido procurou-a junto da casa dos pais da mesma, assim como do seu local de trabalho. i) O arguido, com a sua conduta, ofendia o corpo da assistente. Os restantes factos constantes da acusação não foram considerados pelo Tribunal por serem irrelevantes para a decisão, conclusivos, por estarem em oposição com os provados, por serem redundantes, ambíguos ou por conterem matéria argumentativa ou de direito.” *** II.III - Apreciação do mérito do recurso. *** A) Do invocado erro de julgamento quanto à matéria de facto. Os poderes de cognição dos Tribunais da Relação encontram-se expressamente consignados no artigo 428.º do CPP, dispondo o mesmo que “As Relações conhecem de facto e de direito”. Sabendo-se que os recursos são soluções de natureza jurídico processual, que se encontram vocacionados para verificar a existência e, sendo caso disso, para corrigir erros de julgamento – quer os que resultam da violação de normas direito processual, quer os emergentes da não aplicação ou da aplicação incorreta de normas de direito substantivo – importa ter presente que no caso dos recursos sobre a matéria de facto, ao tribunal de recurso não cabe julgar novamente, devendo respeitar a liberdade de apreciação da prova que o legislador concedeu ao “juiz a quo”. No presente recurso encontra-se impugnada a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida, invocando-se, assim, a existência de um erro de julgamento. O erro de julgamento – que deverá ser invocado através da impugnação da matéria de facto em sentido amplo, com observância dos ónus impostos pelo artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 (1) – ocorre quando o tribunal considera provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova bastante, pelo que deveria ter sido considerado não provado; ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado. Relativamente à satisfação dos requisitos estabelecidos pelo artigo 412.º do CPP, escreve Paulo Pinto de Albuquerque no seu Comentário do Código de Processo Penal, em anotação à referida norma que “[a] especificação dos “concretos pontos de facto” só se satisfaz com indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que se considera incorretamente julgado (…)” ; “[a] especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida (…) [m]ais exatamente, no tocante aos depoimentos prestados na audiência, a referência aos suportes magnéticos só se cumpre com a indicação do número de “voltas” do contador em que se encontram as passagens dos depoimentos gravados que impõem diferente decisão, não bastando a indicação das rotações correspondentes ao início e ao fim de cada depoimento”. “(…) acresce que o recorrente deve explicitar a razão porque essa prova “impõe” decisão diversa da recorrida. É este o cerne do dever de especificação.” (2) (3) Verificamos, pois, que para a arguição de um erro de julgamento não é suficiente a invocação de mera divergência de entendimento do recorrente relativamente à convicção formada pelo julgador, uma vez que é a este que a lei atribui o poder de apreciar livremente as provas, o que deverá fazer de acordo com o disposto no artigo 127.º CPP, ou seja, com respeito pelo princípio da livre apreciação da prova, mas segundo parâmetros racionais controláveis. É amplamente aceite que o tribunal de recurso deverá limitar a sua apreciação à aferição da conformidade do processo de motivação da decisão recorrida com as regras legalmente estabelecidas para o efeito, cumprindo-lhe verificar se as provas apresentadas pelo recorrente impõem decisão diversa da que foi adotada, quer porque a mesma foi obtida através de provas ilegais ou proibidas ou contra a força probatória plena de certos meios de prova, quer porque afronta manifestamente as regras da experiência comum ou da lógica. Assim, sempre que seja impugnada a matéria de facto, por se entender que determinado aspeto da mesma foi incorretamente julgado, o recorrente deverá indicar expressamente: tal aspeto; a prova em que apoia o seu entendimento; e, tratando-se de depoimento gravado, o segmento do suporte técnico em que se encontram os elementos que impõem decisão diversa da recorrida. Tais indicações constarão, pois, da motivação do recurso, que deverá ser elaborada de forma a permitir apontar ao Tribunal ad quem o que, na perspetiva do recorrente, foi mal julgado e porquê, oferecendo uma proposta de correção que possa ser avaliada pelo tribunal de recurso. (4) Não foi, porém, isso que o recorrente fez nos presentes autos. Com efeito, pese embora tenha assinalado os factos que considera erradamente julgados (factos constantes dos pontos 6. e 12. do elenco dos factos provados) e tendo indicado as provas em que sustenta o seu entendimento, transcrevendo parte dos depoimentos que entendeu relevantes – o que fez apenas no corpo da motivação, não contendo as conclusões qualquer referência concreta ao registo de tais provas – não cuidou o recorrente de explicar as razões pelas quais, a seu ver, o conteúdo dos referidos depoimentos levaria a decisão diversa da recorrida, ou seja, não explicitou o que, na sua perspetiva, foi mal julgado e porquê, nem ofereceu uma proposta de correção que pudesse ser avaliada pelo tribunal de recurso. Com efeito, o recorrente não demonstra, como se lhe impunha, que não foi produzida prova sobre os factos impugnados ou que o tribunal desconsiderou, sem justificação, algumas das provas produzidas, nem tão pouco que o juízo probatório efetuado tenha desrespeitado o critério da livre apreciação da prova plasmado no artigo 127º do CPP. É o que se extrai claramente das conclusões do recurso, nas quais, relativamente à impugnação da matéria de facto, mais não se consignou do que a mera discordância relativamente à convicção do julgador, nos seguintes termos: “(…) VI. Entende o Recorrente que o Tribunal a quo, desconsiderou por completo o depoimento prestado pela Testemunha BB, pai do Arguido ora Recorrente, valorando apenas as declarações prestadas pela Assistente, conforme se poderá ler na Motivação da matéria de facto quanto ao concreto Ponto 6. VII. Efectivamente, a referida testemunha quando questionada sobre a circunstância de saber se o ora Recorrente bebia aos fins de semana, a mesma foi peremptória ao afirmar que sim, que estava muitas vezes com ele a beber uma cerveja ou outra, mas que, apesar de não ficar com ele até tarde no café, que o mesmo não era homem de estar tarde inteiras no café, uma vez que tem de trabalhar à segunda-feira. VIII. Entendeu o Tribunal a quo que “não é pelo arguido ser motorista de substâncias perigosas, que significa que não apresentasse consumo de álcool em excesso, tanto que a assistente também confirma que esse consumo apenas ocorria em períodos de folga”. IX. Também com esta conclusão do Tribunal a quo não pode o Recorrente concordar uma vez que, de facto, a circunstância de o Recorrente ser motorista de substâncias perigosas obriga a que o mesmo seja subtido diversas e periodicamente a análises de consumo de álcool uma vez que tais consumos são incompatíveis com o exercício daquela concreta actividade profissional. X. Face às declarações prestadas pela Testemunha BB e pela Testemunha CC, e a explicação dada pelas mesmas, em concreto quanto ao conhecimento directo que têm quanto à ingestão de bebidas alcoólicas e seu controlo no âmbito da actividade profissional que exerce, dúvidas não deveriam subsistir que o Recorrente não tem qualquer problema com o álcool. (…) XIV. Ponto 12. dos factos dados como provados: “No dia 10 de Março de 2022 o arguido dirigiu-se ao Posto da GNR de… para apresentar queixa contra a irmã da assistente, quanto ao desentendimento ocorrido na manhã desse dia, momento em que a assistente aproveitou para pedir ajuda aos militares ali presentes os quais a acompanharam até à casa de morada de família para dali retirar os seus pertences, sendo quem e desde então, a assistente deu como terminada a relação com o aqui arguido ”. XV. Entende o Recorrente que o Tribunal a quo desconsiderou por completo factos que foram relatados e prestados em sede de audiência e discussão de julgamento. XVI. Se o Tribunal considerou como verdade que o Arguido, ora Recorrente, praticou factos consubstanciadores de um ilícito penal, praticados contra a Assistente, a verdade é que o mesmo Tribunal desconsiderou e interpretou erroneamente outros factos que são também eles susceptíveis de integrar um ilícito penal praticado pela Assistente contra o aqui Recorrente, relacionados com o objecto do processo. XVII. O facto dado como provado no Ponto 12. aconteceu na sequência da irmã da Assistente derramar um copo de cerveja em cima do Arguido, ora Recorrente, em pleno dia, num local bastante frequentado – um café – causando-lhe vergonha e humilhação. Tais factos foram corroborados pelas declarações da própria Assistente. XVIII. Acrescente-se que, o facto relatado pela ora Assistente não foi o único facto revelador de ameaças e agressões que o Arguido, ora Recorrente sofreu, no decorrer da sua relação com a Assistente e por esta praticados. XIX. Efectivamente, tal como relatado pelas testemunhas BB e pela testemunha CC, várias foram as ocasiões em que a Assistente e os seus familiares agrediram, quer verbalmente quer fisicamente o Arguido, ora Requerente. (…)”. * Relativamente à insuficiência da motivação do recurso no que tange à explicitação das razões subjacentes à impugnação da matéria de facto – o que, incontornavelmente, se traduz num manifesto incumprimento dos requisitos estabelecidos para o efeito pelo artigo 412ºdo CPP acima transcrito – deixamos consignadas duas notas: - Em primeiro lugar, não indica o recorrente em que medida o conteúdo dos depoimentos das testemunhas que identifica nas conclusões e que parcialmente transcreveu no corpo da motivação (e não nas conclusões) imporia decisão diversa relativamente aos factos impugnados. Limita-se a afirmar que o tribunal os desconsiderou, sem justificar minimamente tal afirmação. - Em segundo lugar, especificamente no que tange à impugnação dos factos constantes do ponto 12., a mais de não ter apresentado razões válidas para pôr em causa tal factualidade, parece o recorrente pretender invocar a falta de consignação no elenco dos factos provados de outros factos atinentes a condutas da ofendida ou da sua irmã – factos que, ademais não apresenta com clareza – que, consabidamente, não integram o objeto dos presentes autos (5). Revela-se, pois, manifesta a irrelevância de tal factualidade, que extravasa o objeto processual e que, ademais, não constituiria qualquer atenuante da conduta do arguido. Aliás, com tal alegação o recorrente claramente revela não ter assimilado o desvalor dos seus atos, nem ter assumido a sua própria responsabilidade que parece pretender repartir com a vítima, numa tentativa de neutralizar a valoração global do facto como violência doméstica, nos termos que lhe vêm imputados. Sempre diremos ainda – em linha com a argumentação expendida pelo Exmº. Sr. Procurador Geral Adjunto junto desta Relação no seu arguto e bem fundamentado parecer – que as questões colocadas pelo recorrente no âmbito da impugnação da matéria de facto – questões que, atendendo às razões formais acima explicitadas, não poderemos conhecer – se reportam a factos desprovidos de relevância suficiente para pôr em causa a imputação ao arguido do crime de violência doméstica, conquanto todos os restantes factos tidos por provados, e que se não encontram impugnados, se mostram idóneos e suficientes para preencher o tipo penal pelo qual o recorrente veio a ser condenado. Na verdade, quanto ao facto 6., não se encontra posto em causa no recurso que o arguido tenha dirigido à ofendida as expressões aí referidas, pretendendo apenas o recorrente que se tenha por não provado que o fez em estado de embriaguez, o que, como está bom de ver, a julgar-se procedente, não diminuiria a ilicitude da conduta censurada. Serve tal impugnação para sustentar o pedido de revogação da condição do regime de prova da suspensão da execução da pena consistente na sujeição do arguido a tratamento médico da sua dependência alcoólica, o que mal se compreende se atentarmos na circunstância de, tal como se encontra referido na sentença (6), o arguido ter oportunamente dado o seu assentimento ao tratamento. Acresce que a circunstância de o estado de influenciado pelo álcool do arguido acontecer apenas pontualmente, mormente aos fins de semana, tal como é assumido na decisão recorrida, não obsta a que se valore tal realidade e se pondere – por razões de prevenção criminal, como forma de tutela dos bens jurídicos protegidos pela incriminação e mesmo com vista a favorecer a reintegração social do arguido – refleti-la na condição de suspensão da execução da pena de prisão, sobretudo considerando ter resultado provado ter sido nesse estado que ocorreu a prática dos factos típicos. * Registamos, por último, que a sentença recorrida constitui uma peça processual elaborada de forma completa, na qual o tribunal “a quo” elencou os factos que considerou provados e não provados e expôs e, através da formulação de juízos racionais controláveis, a motivação da convicção probatória que formulou, não se vislumbrando qualquer vulneração do princípio do in dubio pro reo. Quanto a tal princípio, invocando o arguido que a sentença recorrida o desrespeitou, deixamos uma breve nota. Como corolários do princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no seu artigo 1.º, estabelece a Constituição da República Portuguesa, como direitos fundamentais o direito à liberdade (artigo 27.º, nº 1) e o princípio da presunção de inocência dos arguidos, plasmado nos artigos 32.º, nº 2 e 27.º, nº 1. O princípio da livre apreciação da prova, a que se refere o artigo 127.º CPP, constitui uma concretização do princípio da presunção de inocência – maxime na sua dimensão in dubio por reo – que encontra referência normativa expressa no artigo 6.º, nº 2.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e no artigo 14.º, nº 2.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos. Retenhamos, porém, que «o princípio da presunção de inocência excede em significado e consequências o princípio in dubio pro reo, constituindo este apenas um critério de decisão em caso de dúvida quanto à verificação dos factos. (7)» ou seja, uma «regra de decisão na falta de uma convicção para além da dúvida razoável sobre os factos» (8). De acordo com tal regra, que inevitavelmente se conexiona com o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, determina-se que a dúvida seja resolvida a favor do réu. O seu âmbito reconduz-se, pois, à valoração pelo julgador de toda a prova produzida. Se o resultado desse processo de valoração for uma dúvida – uma dúvida razoável e insuperável sobre a realidade dos factos – o juiz terá que decidir a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável. Voltando ao caso em apreciação nos presentes autos, verificamos que os princípios explanados se mostram devidamente observados. Efetivamente, analisada a sentença recorrida, constata-se que, após o processo de valoração da prova não subsistiu ao julgador qualquer dúvida razoável que impusesse a aplicação do princípio do in dubio pro reo. Levando em conta as razões descritas na motivação da decisão recorrida e as considerações que deixámos expostas, somos, pois, a concluir que da valoração da prova produzida não surgiu o non liquet, que, por aplicação do aludido princípio, determinaria que alguns dos factos considerados provados devessem ser julgados não provados. Deverão, pois, manter-se nos factos provados os factos impugnados no recurso, nada havendo a alterar a tal respeito. *** B) Do erro de julgamento da matéria de direito relativamente. a) Quanto à subsunção dos factos provados ao crime de violência doméstica. Entende o recorrente que os factos provados se não subsumem ao crime de violência doméstica pelo qual foi condenado, pretendendo que se convole a sua qualificação jurídica para o crime de perseguição. Mas não fundamente minimamente tão pretensão, a qual desde já se adianta que não merece acolhimento. Vejamos. O crime de violência doméstica encontra a sua previsão legal no artigo 152º do CP que, no que releva para apreciação da questão em análise, dispõe da seguinte forma: “Artigo 152.º Violência doméstica 1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns: (…) b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; (…) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 2 - No caso previsto no número anterior, se o agente: a) Praticar o facto (…) no domicílio comum ou no domicílio da vítima; (…) é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.(…)” Conforme é sabido, o crime em análise assume uma natureza ampla, à qual subjaz a tutela de um bem jurídico complexo e demanda a sua importância para o objeto do recurso – conquanto é na natureza do crime que entronca a questão da subsunção do elenco factual constante da decisão recorrida suscitada no recurso – que nos detenhamos um pouco na análise dos elementos integradores pressupostos do seu preenchimento. O tipo objetivo do crime previsto no artigo 152.º do Código Penal tem por referência a noção de maus tratos físicos ou psíquicos ao cônjuge ou pessoa equiparada, nos quais se incluem as condutas que se consubstanciem em violência ou agressividade física, psicológica, verbal e sexual e, bem assim, as privações da liberdade que não sejam puníveis com pena mais grave por força de outra disposição legal. O elemento subjetivo preenche-se com o dolo genérico em qualquer das suas formas (direto, necessário ou eventual), ou seja, o conhecimento e vontade de praticar o facto, não exigindo o tipo nenhum elemento subjetivo específico. Tem vindo a doutrina e a jurisprudência portuguesa a estabelecer, em termos amplamente consensuais, que o bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica assume uma natureza complexa, abrangendo não só a saúde (9) – nas suas várias dimensões: física, psíquica e mental – mas também a liberdade, a honra ou a reserva da intimidade da vida privada.(10) Com efeito, pese embora o tipo da violência doméstica se mantenha sistematicamente inserido no capítulo do Código Penal dedicado aos crimes contra a integridade física, a atual descrição típica (11) contempla expressamente uma amplitude na tutela de direitos que em muito extravasa a dimensão indiciada por tal inserção sistemática, abrangendo, para além da integridade física, as limitações à liberdade, a liberdade sexual, a honra e a reserva da intimidade da vida privada. Na verdade, todos os mencionados direitos são reconduzíveis à integridade pessoal e física do ser humano, que se assume como um bem jurídico autónomo, pluriofensivo, com assento constitucional nos artigos 25.º e 26.º da CRP e intrinsecamente ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana no qual se funda o Estado português, nos termos plasmados no artigo 1.º da CRP. E é precisamente por referência à tutela da integridade pessoal que no crime de violência doméstica se punem as condutas violentas ou agressivas, nas suas várias dimensões, que vitimizam pessoas especialmente vulneráveis em razão de uma determinada relação pessoal. A referência axiológica da violência doméstica reconduz-se, pois, ao exercício ilegítimo de poder ou de domínio do agressor sobre a vítima com o objetivo final de submissão daquela ao primeiro. E o que dizer então da subsunção efetuada na decisão recorrida dos factos provados imputados ao arguido à norma incriminadora acima transcrita? Pois bem, analisado o recorte fáctico da conduta do arguido, nenhuma dúvida temos de que tal factualidade se subsume ao crime de violência doméstica, pois que as condutas aí descritas, enquadradas nas vivências familiares também vertidas na sentença, não poderão deixar de integrar-se no conceito de “maus tratos” que constitui o cerne do elemento objetivo do tipo previsto e punido no artigo 152º do CP, nos termos acima explanados. Tal integração encontra-se claramente espelhada na descrição factual plasmada no elenco dos factos provados que, por maior facilidade de apreensão, voltamos a transcrever nas partes mais relevantes: “(…) 4. Desde então, o arguido alterou o seu comportamento para com a assistente e passou a controlar o dia a dia daquela, para onde ia, quando e com quem, como chegou a mexer-lhe na carteira pessoal. 5. O arguido chegou a controlar o telemóvel da assistente, em algumas ocasiões. 6. Nos períodos de folga do arguido, que coincidiam sobretudo com os fins de semana, o arguido passou a ingerir bebidas alcoólicas em excesso, altura em que, e ao regressar a casa, encetava discussões com a assistente e lhe dirigia as seguintes expressões, burra", "não tens vontade própria" e tens pensamentos próprios". 7. O arguido acusava a assistente de ter amantes, dizendo-lhe, "de certeza que tens outro", chegando a imputar-lhe relações com militares da GNR e com colegas de trabalho. 8. O arguido pressionava a assistente para que não convivesse com a sua família, entre a qual os seus pais. 9. Em data não concretamente apurada, no interior da casa de morada de família, o arguido, durante discussões com a assistente, disse-lhe "()u estás com a tua família ou estás comigo"; "Atiro-te do terceiro andar"; "Dou-te murros na cara que te fodo toda" e disse-lhe ainda "enquanto segurava numa das mãos uma faca de cozinha, 'Se alguém tocar à campainha a primeira coisa que faço é espetar-lhes a faca, abrir-lhes a barriga e vê-los esguichar sangue que nem porcos!". I0. No dia 09 de Março de 2022, quando arguido e assistente se encontravam no interior da casa de morada de família, o arguido pegou numa faca de cozinha e, com aquele objeto na mão, disse para a assistente, em tom de voz sério, alto e alterado, "Se alguém aparecer aqui abro-lhes a barriga e ficam a esguichar que nem porcos", tendo sido chamada a GNR ao local. I1. Após, enquanto o arguido se mantinha na varanda da sua casa, e os pais da assistente no exterior da residência, na via pública, ocorreu uma discussão entre aqueles. 12. No dia 10 de Março de 2022 0 arguido dirigiu-se ao Posto da GNR de … para apresentar queixa contra a irmã da assistente, quanto a desentendimento ocorrido na manhã desse dia, momento que a assistente aproveitou para pedir ajuda aos militares ali presentes os quais a acompanharam até à casa de morada de família para dali retirar os seus pertences, sendo que, e desde então, a assistente deu como terminada a relação com o aqui arguido. 13. Nos dias que se seguiram à saída da assistente de casa de morada de família, o arguido procurou chegar ao contacto com ela através de chamadas telefónicas e enviou-lhe várias mensagens escritas, como as seguintes: "DD tens que falar comigo, não é justo o que fizeste, ires embora sem dizer nada" dia 12/03/2022, via "WhatsApp", "Este foi o caminho que tu escolheste percorrer Todos os podres da tua família e de ti irão vir à tona. É bom que procures um bom Advogado porque eu não vou ser nada meigo nas acusações que vou fazer contra ti." — dia 12/03/2022, via "Messenger"; "'Posso publicar só um bocadinho do vídeo de tu e o preto no Duche lá no Motel do …? Só um bocadinho, não é todo. O Vídeo todo é a partir de 2 feira. 12/03/2022, via "Messenger"; .) Hoje só espalhei um bocadinho de Veneno. A partir de 2 feira irá ser o Veneno principal. — dia 12/03/2022, via "Messenger"; "És uma BOSTA de Gente. Não te irei perdoar o que me estás a fazer. Não vales nada. — dia 15/03/2022, via 'Messenger"; "Enquanto eu for Vivo nunca mais irás ter descanso na Vida. E no dia que me faltar a força, acabo com a vossa Raça de uma vez por todas, mas todas mesmo, não escapa ninguém. - dia 16/03/20222, via "Messenger"; "Eu Amo-te DD. Eu peço desculpa de tudo 0 que fiz de mal e peço desculpa até por o que não fiz. (. . .) imagina que o Homem com quem estavas não era o AA e era um Gajo mesmo Doido, daqueles que nada tem a temer, já imaginaste que isto já estaria tudo resolvido e da pior maneira? Eu não sou bom, mas à bem pior que eu, isso te garanto." dia 22/03/2022; Todas as pessoas do … viram bem o que estás a fazer, bem podes estar escondida porque de nada te vale. — dia 23/03/2022; Ao princípio admito que não sabia onde estavas, mas agora sei. Sabes que os Telefones hoje em dia sabem tudo. Como é que é? Queres que eu vá aí fazer Espetáculo?? - dia 24/03/2022; A mim ninguém me faz mal sem ter o Troco "DEZ VEZES MAIOR". Ainda te digo mais, Ou tomas uma atitude, seja ela qual for, ou eu "MATO-VOS" a todos. Ou eu não me chamo AA. Até às pessoas onde tu estás vão. (. . .) EU VOU- VOS MATAR A TODOS. ATÉ A QUEM TE DEU GUARIDA." - dia 24/03/2022; "Tens Ih. I hora. Ou mandas mensagem com conversa de jeito, ou então prepara- te. Eu não estou a brincar. pelo mal, vais-te arrepender de me ter conhecido. Tenho tido preparado e de hoje não passa. TOMA ATENÇÃO AO QUE TE ESTOU A DIZER, A BRINCADEIRA COMIGO ACABOU. MAS ACABOU MESMO" - dia 24/03/2022; Queres um Concelho?? Agora é que tens que fugir, mas para bem longe. Ou Mata-te para não sofreres mais. m) Eu vou-vos destruir a todos, e até pode ser hoje quem sabe." -dia 24/03/2022; e Até porque és COVARDE, Não prestas. És um ser Humano HORRÍVEL FALSA." - dia 06/04/2022.” 14. Ao atuar do modo Supra descrito, pretendeu o arguido molestar psicologicamente, a assistente, bem sabendo que dessa forma ofendia a saúde daquela, o que conseguiu, assim como a sua liberdade de autodeterminação e que praticava aqueles atos na residência comum do casal. Na verdade, parece o recorrente olvidar que o crime que se lhe imputa se consubstanciou na inflição de maus tratos à sua companheira, de forma reiterada e continuada, independentemente da natureza das condutas ilícitas – todas elas concretizadas através de agressões psicológicas de manifesta intensidade – o que se verificou ao longo de parte do período de mais de quatro anos durante o qual mantiveram uma relação análoga à dos cônjuges. Bem sabemos que o crime em análise pode concretizar-se, e concretiza-se muitas vezes – como sucedeu no caso dos autos – através de uma conduta reiterada e prolongada no tempo, sendo que a prática desses sucessivos atos radica numa única resolução criminosa, consubstanciando-se num crime único e revestindo, pois, a natureza de crime habitual. Ora, a natureza de crime habitual ou de execução continuada e prolongada no tempo determina que consideremos uma única resolução criminosa, mantida e reafirmada com a prática das várias e diferentes condutas praticadas pelo arguido durante parte do tempo em que mantiveram vida em comum, traduzidas num exercício ilegítimo de poder ou de domínio sobre a vítima com o objetivo final de submissão daquela ao primeiro. Não pode, ao contrário do que parece sustentar o recorrente, proceder-se à apreciação atomística das condutas descritas desenquadradas da relação pessoal que existia entre o arguido e a ofendida, sem atender ao conceito de maus tratos, o que se não seria consentâneo com a natureza unitária e globalmente desvaliosa do comportamento típico previsto no artigo 152º do CP. Em face destas explanações jurídicas, é mandatório que se conclua que falece razão ao recorrente, no que tange à alegação de a sua conduta deveria subsumir-se ao crime de perseguição p. e p. pelo artigo 154-Aº do CP, devendo, outrossim, manter-se a subsunção dos factos provados ao crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152.º n.º 1 alínea b) e n.º 2 alínea a) do CP, nos termos constantes da decisão recorrida. * b) Quanto aos princípios e regras legalmente previstos para a determinação da medida da pena. O recorrente questiona a dosimetria da pena que lhe foi aplicada. Analisemos então se lhe assiste razão. Retenhamos que, no caso dos recursos sobre a pena ou sobre a medida da pena, ao tribunal ad quem caberá verificar o respeito pelas normas e pelos princípios gerais que regulam tal matéria. E tão somente isso. Conforme é amplamente aceite pela jurisprudência dos tribunais superiores, o sistema de recursos no processo penal português tem como escopo a correção dos erros ocorridos na primeira apreciação judicial dos factos e na sua subsunção ao direito. Daqui resulta que o tribunal de recurso só deve intervir na escolha da pena e da sua medida concreta quando detetar incorreções no processo da sua determinação, quer ao nível da valoração factual, quer no que diz respeito à aplicação das normas legais que regem a matéria em causa. Tal sindicância não abrange, pois, a fiscalização do quantum exato de pena, na perspetiva da realização de uma nova determinação da mesma, devendo manter-se a pena concretamente aplicada sempre que se verifique que a sua fixação assentou numa correta aplicação das regras legais e dos princípios legais e constitucionais e que, consequentemente, não se revela desajustada, nem desproporcionada. Estabelecida a margem de atuação deste tribunal da Relação no presente recurso, será importante recordar os princípios basilares e orientadores da matéria que temos em análise. Assim, estabelece o artigo 40º do CP que a finalidade das penas é a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo a pena exceder a medida da culpa do infrator. Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 70.º e 40.º do CP, se os crimes forem puníveis alternativamente com pena de prisão ou com pena de multa, o tribunal deve dar preferência à pena de multa, desde que a mesma realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. A medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, determina-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, com respeito pelos critérios definidos pelo artigo 71.º do CP. Realizado o enquadramento normativo, analisemos então as circunstâncias do caso em apreço e, bem assim, o processo de escolha e de determinação das penas concretas realizado pelo tribunal a quo, na perspetiva da realização da sindicância com a abrangência acima delineada. Sendo o crime de violência doméstica agravado, pelo qual o arguido foi condenado, punido apenas com pena de prisão e contendo-se a sua moldura abstrata entre os 2 (dois) a 5 (cinco) anos, a sentença recorrida fixou a pena concreta em 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por 3 (três) anos e 6 (seis) meses, acompanhada de regime de prova, nos termos dos artigos 50º e 53º do C.P. e sujeita ao cumprimento das regras de conduta consubstanciadas no pagamento à ofendida, no período de suspensão, da indemnização que lhe foi arbitrada nos termos do disposto nos artigos 21º da Lei no 112/2009, de 16.09 e 820º-A do CPP e de se sujeitar a tratamento médico da sua dependência alcoólica, caso o mesmo viesse a revelar-se necessário após avaliação médica. E pensamos, que, ao contrário do que sustenta o recorrente, o fez com justificação bastante. Vejamos. Devemos em primeiro lugar atentar na factualidade provada – que acima transcrevemos e para a qual remetemos – na qual se descreve a atuação do arguido, as consequências da mesma, o contexto em que ocorreu e as suas motivações e, bem assim, os elementos relativos às condições pessoais do primeiro. A este propósito, alega apenas o recorrente que: “(…) Ainda menos considera adequada a pena concretamente aplicada ao Arguido, ora Recorrente, em concreto, 3 (três) anos de prisão, pelo que se requer que a mesma seja revista, proporcionalmente adequada à factualidade concretamente provada. (…)” Mas não tem razão. Efetivamente, ao contrário do que o recorrente pretende fazer crer, todas as circunstâncias indicadas no artigo 71º do CP, foram tidas em conta na sentença, conforme se atesta pela leitura das considerações aí tecidas relativamente à determinação das medidas das penas, que passamos a transcrever: “(…) Vejamos no caso. O grau de ilicitude dos factos é de gravidade mediana, uma vez que, não obstante não se tratar de condutas que, por si, tenham uma intensidade elevada, são situações, no seu conjunto, desvaliosas e censuráveis, sendo que as consequências para a assistente não foram também gravosas, ainda que não sejam insignificantes; A intensidade do dolo é elevada, por se estar perante um dolo direto, agindo o arguido com o propósito de afetar a dignidade da assistente; As necessidades de prevenção geral no crime de violência doméstica são elevadas. Com efeito, um comportamento que consubstancia este crime constitui uma das formas mais graves de violência, a violência familiar e para familiar. Por isso, por estes crimes serem frequentes e abalarem claramente a confiança que a comunidade tem no ordenamento jurídico, é necessário sublinhar e reforçar, perante a sociedade, a validade destas normas que tutelam bens jurídicos essenciais, como a dignidade humana, o bem-estar fisico e psíquico. Já quanto às necessidades de prevenção especial há que considerar que: O arguido já foi anteriormente condenado pela prática de crime de violência doméstica, em 2017, em pena de prisão suspensa, no anterior relacionamento que teve, a qual foi cumprida favoravelmente; Encontra-se integrado familiarmente, beneficiando do apoio de seus progenitores e mantendo uma nova relação afetiva; Está inserido profissionalmente, assegurando o transporte de substâncias químicas e inflamáveis, auferindo o montante médio mensal, incluindo complementos, de 1.928,50€; Tem uma interação social adequada; Não reconheceu a maioria dos factos, culpabilizando a assistente e sua familia por conflitos no relacionamento; Deste modo, ponderados todos estes elementos e atendendo à moldura legal, entende-se adequada à satisfação das necessidades de prevenção e proporcional à culpa do arguido, a pena de 3 anos de prisão.” No que diz respeito à aplicação da pena de substituição e às condições da suspensão da execução da pena de prisão, consignou a sentença recorrida que: “(…)4.2.1. Da pena de substituição Estabelecida a pena de 3 anos de prisão, importa aferir da possibilidade de aplicar ao arguido uma pena de substituição, sendo que, no caso, a única possível é a suspensão da execução da pena de prisão. (…) Vejamos, então, se se verificam os pressupostos para aplicação da suspensão da execução da pena de prisão. No caso, há que considerar que o anterior antecedente criminal do arguido, pela prática de crime de violência doméstica, cometido na pessoa da sua anterior companheira, não é muito favorável à suspensão da execução da pena de prisão. Contudo, há também que atender à data da prática desses factos (até 2015) e ao modo como a suspensão da execução da pena ocorreu (de forma favorável), sendo que os presentes factos já foram cometidos após o termo da suspensão dessa pena. Por outro lado, não obstante a conduta do arguido ser censurável e revelar um desrespeito pela pessoa da sua companheira, o certo é que não se trata de condutas com uma gravidade isoladamente elevada, sendo certo que arguido já não mantém este tipo de comportamento para com a assistente. Acresce que há também que atender à situação pessoal do arguido, uma vez que se encontra profissionalmente integrado, familiarmente inserido, contando com o apoio de seus progenitores e mantendo uma nova relação afetiva e uma interação social adequada. Ponderando todos estes elementos, entende-se que a imposição de uma pena de prisão efetiva poderia levar a um resultado oposto, colocando em causa a sua ressocialização, sendo antes de confiar que a simples ameaça da pena de prisão será suficiente advertência para o não cometimento de futuros crimes. Daí que, não obstante a anterior condenação do arguido e a censurabilidade da sua conduta de desrespeito pela pessoa da sua companheira, o Tribunal crê que a ameaça do cumprimento de uma pena de prisão, em medida necessariamente superior àquela que sofreu, seja uma real e efetiva advertência para adotar, de vez e como última oportunidade, uma conduta conforme ao Direito, de respeito pelas pessoas com quem se relaciona afetivamente, satisfazendo, assim, as finalidades da punição, no sentido de, não só, evitar que o arguido volte a delinquir, mas também por satisfazer as exigências de prevenção geral. Impõe-se, por isso, suspender a execução da pena de prisão, pelo período de 3 anos e 6 meses, nos termos do art. 50º, no 5 do CP, a contar do trânsito em julgado da presente sentença. Como referimos, nos termos do artigo 50º, nº 2 e 3 do CP, o tribunal pode determinar que a de seja acompanhada de regime de prova, se considerar conveniente e adequado a promover a reintegração do condenado na sociedade (art. 53º, no I do CP). Por sua vez, o artigo 54º, no 3 prevê que o tribunal pode também impor regras e deveres de conduta. Por outro lado, o artigo 34º-B da Lei 112/2009 determina que "a suspensão da execução da pena de prisão de condenado pela prática de crime de violência doméstica previsto no artigo 152.º do Código Penal é sempre subordinada ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, impostas separada ou cumulativamente, ou ao acompanhamento de regime de prova, em qualquer caso se incluindo regras de conduta que protejam a vitima, designadamente, o afastamento do condenado da vítima, da sua residência ou local de trabalho e a proibição de contactos, por qualquer meio". O regime de prova assenta num plano de reinserção social, executado com vigilância e apoio, durante o tempo de duração da suspensão, dos serviços de reinserção social (art. 530, no 2 do CP), podendo o tribunal impor deveres, regras de conduta e obrigações como a obrigação de responder a todas as convocatórias que para o efeito lhe vierem a ser feitas pelo tribunal e pelos técnicos de reinserção social de modo a poder aferir-se o modo como o plano vem a ser cumprido. Ora, no caso, atendendo à factualidade provada, mormente ao passado criminal do arguido, às condutas praticadas e à falta de assunção plena da sua responsabilidade, com uma culpabilização da pessoa da assistente, nos termos do artigo 34º-B da Lei no 112/2009, de 16.09 e artigos 52º, nº l, al. c) e 53º, no 1 e 2 do CP, considera-se essencial sujeitar a suspensão da pena de prisão a regime de prova dirigido à problemática da violência doméstica e ainda sujeitar ao dever de proceder ao pagamento, no prazo de um ano a contar do trânsito da presente decisão, da indemnização que venha a ser arbitrada à assistente, nesta sede, procedendo ao depósito autónomo dessa quantia à ordem do Tribunal. Além disso, uma vez que parte dos factos praticados pelo arguido foram-no na sequência da ingestão de bebidas alcoólicas em excesso, considera-se importante sujeitar o arguido a tratamento médico de cura de dependência alcoólica, caso assim venha a ser considerado medicamente, tendo o arguido dado já o seu consentimento prévio, nos termos do artigo 52º, 3 do cp.(…) * Nenhum reparo nos merece a sentença recorrida também neste temário. Subscrevemos integralmente todas as considerações transcritas, que se nos afiguram acertadas e respeitadoras dos critérios legais. Assim, e ao contrário do que propugna o recorrente, a censurabilidade que nos merece a sua conduta, nos termos acima consignados, associada à ilicitude dos factos e às necessidades de prevenção geral e especial, também corretamente avaliadas pelo tribunal a quo, sustentam totalmente a pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 (três) anos e 6 (seis) meses, acompanhada de regime de prova, nos termos dos artigos 50º e 53º do C.P. e sujeita ao cumprimento das regra de conduta consubstanciadas no pagamento à ofendida, no período de suspensão, da indemnização que lhe foi arbitrada nos termos do disposto nos artigos 21º da Lei no 112/2009, de 16.09 e 820º-A do CPP e de se sujeitar a tratamento médico da sua dependência alcoólica, caso o mesmo venha a revelar-se necessário após avaliação médica. Sopesadas todas as circunstâncias enunciadas, entendemos mostrar-se proporcional a pena concreta de prisão, bem como as condições da suspensão da sua execução aplicadas ao arguido, consignando-se o acerto do processo aplicativo desenvolvido na sentença, no qual avulta uma ponderação correta dos factos e uma adequada valoração dos mesmos à luz das regras e dos princípios que regem a determinação da medida concreta da pena acima enunciados. Nesta conformidade, somos a concluir que a sentença recorrida realizou uma correta e equilibrada ponderação de todas as circunstâncias relevantes, tendo cumprido os critérios legalmente estabelecidos para a determinação das medidas das penas, encontrando-se adequadamente fundamentada, pelo que o recurso deverá improceder também quanto a este aspeto. Nesta conformidade, improcedendo todos os fundamentos do recurso, nenhum reparo nos merece a decisão recorrida, pelo que a mesma se manterá integralmente. *** III- Dispositivo. Por tudo o exposto e considerando a fundamentação acima consignada, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento, e, consequentemente, em confirmar a sentença recorrida. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC. (art.º 513.º, n.º 1 do CPP e art.º 8.º, n.º 9 / Tabela III do Regulamento das Custas Processuais) (Processado em computador pela relatora e revisto integralmente pelos signatários) Évora, 12 de setembro de 2023. Maria Clara Figueiredo Nuno Garcia. J. F. Moreira das Neves
------------------------------------------------------------------------------------ 1 Preceitua o art.º 412.º do CPP, com referência à motivação e às conclusões do recurso: “(…) 3 – Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a ) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b ) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c ) As provas que devem ser renovadas. 4 – Quando as provas tenham sido gravadas , as especificações previstas nas alíneas b ) e c ) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do art.º 364.º devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.” 2 3.ª edição, página 1121. 3 Negrito acrescentado atendendo à relevância do excerto assinalado para a situação em análise. 4 Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques in Recursos em Processo Penal, Rei dos Livros, 9.ª edição, 2020, página 109. 5 É, aliás, o próprio recorrente quem o admite, quando na conclusão XVI refere que tais factos estão “relacionados com o objeto do processo” (“XVI. Se o Tribunal considerou como verdade que o Arguido, ora recorrente, praticou factos consubstanciadores de um ilícito penal, praticados contra a Assistente, a verdade é que o mesmo Tribunal desconsiderou e interpretou erroneamente outros factos que são também eles suscetíveis de integrar um ilícito penal praticado pela Assistente contra o aqui Recorrente, relacionados com o objecto do processo.”) (negrito acrescentado). 6 Podemos ler na sentença condenatória: “(…) Além disso, uma vez que parte dos factos praticados pelo arguido foram-no na sequência da ingestão de bebidas alcoólicas em excesso, considera-se importante sujeitar o arguido a tratamento médico de cura de dependência alcoólica, caso assim venha a ser considerado medicamente, tendo o arguido dado já o seu consentimento prévio, nos termos do artigo 52º, nº 3 (…)”. 7 Helena Bolina, Razão de Ser, Significado e Consequências do Princípio da Presunção de inocência, Boletim da Faculdade de Direito, 70, 1994, pp. 433. 8 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, pp. 215. 9 Américo Taipa de Carvalho em anotação ao artigo 152.º do CP, no Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, tomo I, 2.º ed., 2012, pp. 512, sustenta ser a saúde, como bem jurídico complexo, o bem jurídico tutelado pelo crime em análise. 10 Relativamente à tutela alargada do crime de violência doméstica, ao nível dos bens jurídicos, ver Nuno Brandão, “A Tutela Especial Reforçada da Violência Doméstica”, revista JULGAR, n.º 12, 2010, p. 9 ss. e, em sentido semelhante, André Lamas Leite, “A Violência Relacional Íntima: Reflexões Cruzadas entre o Direito penal e a Criminologia”, revista JULGAR, n.º 12, 2010, pp. 25 ss. 11 Com a redação introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro. |