Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
382/25.1T9OLH.E1
Relator: MOREIRA DAS NEVES
Descritores: EXECUÇÃO DE COIMA
INDEFERIMENTO LIMINAR DO REQUERIMENTO INICIAL
RECORRIBILIDADE
REGIME PROCEDIMENTAL
COMPETÊNCIA
Data do Acordão: 11/27/2025
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Texto Integral: S
Sumário: I. A execução de uma coima aplicada no processo de contraordenação decorre numa ação executiva autónoma; não constituindo uma fase ou incidente do processo de contraordenação.

II. Perante indeferimento liminar do requerimento executivo com fundamento na incompetência absoluta do tribunal, essa decisão é recorrível, mediante o regime do processo civil para a execução por indemnizações, que segue a forma do processo executivo comum, sob a forma sumária, aplicável por força das remissões previstas nos artigos 89.º, n.º 2 do Regime Geral das Contraordenações e do artigo 491.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.

III. As ações executivas das coimas aplicadas naqueles processos contraordenacionais são processadas autonomamente, não estando sujeitas ao regime recursivo previsto no artigo 73.º do Regime Geral das Contraordenações, na medida em que este se cinge ao exercício do direito ao recurso nos processos por contraordenação.

IV. A competência para a execução da coima não pertence à Autoridade Tributária, mas sim ao tribunal criminal que teria sido competente para a fase judicial do processo de contraordenação, nos termos do artigo 61.º do Regime Geral das Contraordenações.

Decisão Texto Integral: DECISÃO SUMÁRIA
(artigo 417.º, § 6.º, al. d) do CPP)

A. Exame preliminar

O despacho proferido é recorrível (nos termos que adiante melhor se explicitarão) e o recorrente tem legitimidade e interesse em agir, sendo o recurso tempestivo e admitido com o regime de subida e efeito próprios.

B. Nota justificativa

No exame preliminar verifica-se que em relação à questão a decidir, há um critério uniforme e reiterado na jurisprudência1, que integra o pressuposto previsto no artigo 417.º, § 6.º, al. d) do CPP, pelo que passa a proferir-se Decisão Sumária.

*

* *

I. Relatório

a. Nos presentes autos vindos do ….º Juízo … de Competência Genérica de …, o Ministério Público apresentou requerimento executivo contra AA, residente em …, com os demais sinais dos autos, visando a cobrança judicial da coima no valor de 45€, aplicada no devido processo contraordenacional.

b. A Mm.a Juíza de ..., por sequente despacho, de 17set2025, declarou a incompetência absoluta daquele Juízo para tramitar a intentada ação executiva, considerando para tal efeito competente a Autoridade Tributária, em conformidade com o disposto o 35.º do Regulamento das Custas Processuais (RCP), na redação introduzida pela Lei n.º 27/2019, de 28 de março, em conjugação com o previsto no artigo 148.º, § 1.º, al. b) CPPT». E, como assim, considerou verificada exceção dilatória de conhecimento oficioso, decretando a absolvição da executada da instância, «nos termos do disposto nos artigos 65.°, 97.°, 98.°, 99.° e 577.°, al. a) CPC.»

c. Inconformado com tal decisão dela recorre o Ministério Público, rematando a respetiva motivação, no essencial, com as seguintes conclusões:

- O legislador não alterou o disposto nos artigos 61.°, 88.° e 89.°, do Regulamento das Custas Processuais, mantendo-se a competência para a execução da coima administrativa não paga junto dos Tribunais.

- Perante a atual redação do artigo 35.° do Regulamento das Custas Processuais, apenas se considera admissível que a Autoridade Tributária tenha competência para a execução das custas da entidade administrativa. No que respeita à coima, o legislador não atribuiu essa competência à Autoridade Tributária.

- Ao julgar que é absolutamente incompetente em razão da matéria para apreciar a acção executiva que deu origem aos presentes autos, com o devido respeito por opinião contrária, o tribunal a quo violou o disposto nos artigos 61.°, 88.°, e 89.°, do RGCO, 35.°, do Regulamento das Custas Processuais, e 64.°, do Código de Processo Civil, por força do disposto no artigo 4.°, do Código de Processo Penal.

- Deve, assim, ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, determinando-se, consequentemente, que prossiga a presente execução relativamente à coima aplicada pela entidade administrativa.

d. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância secundou a posição já sustentada no recurso interposto.

e. Cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 412.º, § 1.º CPP)3.

O presente recurso suscita as seguintes questões:

i. Recorribilidade da decisão recorrida

ii. Qual é o regime vigente de execução das coimas?

1.1 Da recorribilidade da decisão recorrida

Uma significativa parte da jurisprudência deste Tribunal da Relação de Évora, vem sustentando o entendimento de que o despacho judicial que declara a incompetência absoluta do Juízo respetivo, para tramitar a ação executiva interposta pelo Ministério Público, para cobrança da coima aplicada no respetivo processo contraordenacional, é irrecorrível.

Sustenta esta corrente que em razão de o artigo 73.º do Regime Geral das Contraordenações (RGC) não prever recursos da fase executiva da coima, as decisões tomadas nessa sede não são recorríveis! Para tanto considerando que a alteração produzida no RGC pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de setembro - que (entre o mais) revogou as alíneas que no artigo 91.º previam a recorribilidade de algumas decisões da fase executiva das contraordenações – se quis restringir a garantia do recurso na fase executiva da contraordenação (na execução da coima).

Considerando-se, enfim, que «a eliminação da consagração de um regime particular outro significado não poderá ter que não o da sujeição ao regime geral no processo contraordenacional constante do artigo 73.º do presente diploma».4

O relator deste acórdão já perfilhou esse entendimento, do qual, entretanto (melhor ponderados os argumentos relativos à sua sustentação jurídica e à justiça) se afastou.

Brevemente diremos ter por certo que os artigos 73.º e 91.º RGC não gizam restringir direitos nem garantias fundamentais de defesa.

Pelo contrário, têm fito certo no contexto da lei em que se integram, que é (apenas) o de indicar os termos procedimentais a seguir nas fases respetivas a que respeita cada um desses artigos da lei.

Daí que devamos interpretá-las – a essas e outras com elas conexas - teleologicamente, com prudentia (termo que numa tradução singela para a língua portuguesa significará diretamente «prudência», mas para que abarque integralmente o seu sentido clássico significará também «sabedoria», «sensatez» e «racionalidade»). Atentando ao que é o plano da lei (a mens legis), pois a realização do direito não é automática, antes surge com a decisão humana que liga as fontes ao caso concreto, conforme a doutrina vêm sublinhando.5

Neste exato contexto ensinava já no séc. XIX o jus-filósofo alemão Rudolf Stammler, que «quando se aplica um parágrafo de um código, não só se aplica todo o código, como se faz intervir o pensamento do Direito em si mesmo». Sendo que no binómio problema-solução, a procura da resposta começará na norma com a linguagem préconhecida do intérprete aplicador, ponderando as consequências da decisão, para aferir se ela corresponde à realização do Direito. E se, naturalmente, a decisão do juiz não pode desligar-se das normas que a suportam; a inversa também é verdadeira. Ou seja, as normas usadas na decisão não podem ditar o sentido desta abstratamente, sem olhar ao texto e ao contexto em que a mesma é produzida.6

Sendo também por isso que sapientemente se afirma que o direito não está nem na norma nem no caso, mas na relação entre eles. Na dúvida «o preceito da lei deve ser interpretado de modo a ajustar-se o mais possível às exigências da vida em sociedade e ao desenvolvimento de toda a nossa cultura (…) tendo em conta uma interpretação teleológica, atual e razoável.»7

Avancemos.

Talqualmente resulta da lei, o regime das contraordenações distingue-se quer do direito penal primário quer do secundário. Mas apesar das conhecidas diferenças dogmáticas entre o direito penal e o direito contraordenacional, elas esbatem-se no campo sancionatório, daqui emergindo, entre o mais, a necessidade de acautelar na execução das sanções os direitos de defesa.

Isto é, não sendo o direito contraordenacional processo penal em sentido estrito, nem por isso prescinde de certas garantias fundamentais (artigo 32.º, § 10.º da Constituição). E esta é que deve ser a «pedra de toque» para aferir em cada caso se a realização do ato processual de uma dada maneira (por uma dada «forma») vulnera (ou não) o(s) valor(es) que ela própria tem por função acautelar.

Daí que os requisitos de forma sejam nas mais das vezes estabelecidos como condição legal para que um ato seja aceite como legítimo. Não devendo perder-se de vista que a forma está ao serviço de valores, os quais na circunstância presente são: a certeza e segurança jurídica, por um lado; e as garantias de defesa do arguido, por outro.

O processo de contraordenação tem uma fase administrativa obrigatória e uma fase judicial facultativa, abrindo-se esta apenas quando seja impugnada a decisão final condenatória da autoridade administrativa (artigo 59.º, 4 1.º RGC).

Prevendo o RGC diretamente (no seu artigo 73.º) a possibilidade de impugnação judicial das seguintes decisões judiciais:

- do despacho que rejeite a impugnação judicial por violação das regras de prazo ou exigências de forma (artigo 63.º, § 1.º RGC);

- do despacho proferido nos termos previstos no artigo 64.º ou da sentença quando:

a) For aplicada ao arguido uma coima superior a 249,40€;

b) A condenação do arguido abranger sanções acessórias;

c) O arguido for absolvido ou o processo for arquivado em casos em que a autoridade administrativa tenha aplicado uma coima superior a 249,40€ ou em que tal coima tenha sido reclamada pelo Ministério Público;

d) A impugnação judicial for rejeitada;

e) O tribunal decidir através de despacho não obstante o recorrente se ter oposto a tal.

f) Poderá (ainda) o Tribunal da Relação admitir recurso da sentença quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.

g) E da decisão judicial prevista no artigo 95.º, § 2.º RGC.

Deste preceito normativo não consta efetivamente o recurso de qualquer decisão judicial proferida na fase executiva da coima, apesar de tal fase ter existência legal e estar expressamente prevista a sua tramitação nos tribunais judiciais - conforme resulta dos artigos 89.º a 91.º do RGC.

Dispondo-se concretamente no § 2.º do citado artigo 89.º que a execução é promovida pelo Ministério Público junto do tribunal competente, aplicando-se com as necessárias adaptações, o disposto no CPP sobre a execução da multa. Sendo a norma do CPP para a qual remete aquele normativo do RGC, o artigo 491.º, no qual se dispõe:

«1. Findo o prazo de pagamento de multa ou de alguma das suas prestações sem que o pagamento esteja efetuado, procede-se à execução patrimonial.

2. Tendo o condenado bens penhoráveis suficientes de que o tribunal tenha conhecimento ou que ele indique no prazo de pagamento, o Ministério Público promove logo a execução, que segue as disposições previstas no Código de Processo Civil para a execução por indemnizações.»

E justamente sob a epígrafe «execução pelas indemnizações», preceitua o artigo 87.º do CPC, que:

«1. Para a execução pelas indemnizações referidas no artigo 542.º e preceitos análogos é competente o tribunal em que haja corrido o processo no qual tenha sido proferida a condenação.

«2. A execução pelas indemnizações corre por apenso ao respetivo processo.»

São, pois, as regras do processo civil que regulam os termos do apenso de execução da coima. Mas com limites específicos, atenta a natureza da responsabilidade impregnada na coima, uma vez que executar uma sanção contraordenacional (de natureza penal – em sentido amplo)8, tal implica, por exemplo, que a responsabilidade pelo seu pagamento seja intransmissível – dado o princípio da pessoalidade da responsabilidade, decorrente desde logo do princípio do Estado de Direito (artigo 2.º da Constituição da República).9

Mas no respeitante à admissibilidade de recurso das decisões que se tomem em tal apenso, as normas que tal regem são as emergentes da conjugação dos artigos 629.º, § 3.º e 644.º, § 2.º, al. b) e 853.º, todos do CPC, acrescendo - para o que aqui especificamente releva - que estando em causa decisão baseada na violação das regras de competência em razão da matéria, tal decisão é sempre recorrível (artigos 65.º, 97.º, 98.º, 99.º e 577.º, al. a) CPC).

Afastamo-nos, pois, da orientação jurisprudencial que com suposta base no preâmbulo do Decreto-Lei 244/95 (diploma este que revogou as alíneas que no artigo 91.º do RGC se referiam ao processo executivo das coimas) entende que tal diploma legal eliminou o direito ao recurso na fase executiva. Nessa linha sustentando que o artigo 73.º RGC contém um regime exaustivo, aplicável a todas as fases processuais do processo contraordenacional, incluindo (portanto) a executiva. E que, por assim ser, inexiste lacuna carecida de mobilização de qualquer regime jurídico subsidiário!

Cremos que tal argumentação não logra sustentação normativa bastante, desde logo porque nada no preâmbulo do Decreto-Lei 244/95 indica que se pretendeu extinguir a possibilidade de recursos na fase executiva, sendo sua singela intenção aperfeiçoar o regime dos recursos e as regras da execução: as duas coisas. Temos, antes, por seguro, que se não quis eliminar o direito ao recurso nas execuções, pois tal não emerge do texto da lei nem do que se conhece da mens legis.

Sendo verdadeiro que na redação inicial do artigo 91.º RGC se continha uma norma de admissibilidade (ainda que muito limitada) de recurso na fase executiva10, não o é menos que já então o RGC remetia as regras da execução para o CPC (artigo 89.º/2 RGC).

Na verdade, desde a introdução das contraordenações no ordenamento jurídico nacional que as execuções correm em processo autónomo, em apenso próprio e sujeito a regras que não são – e nunca foram - as do RGC (cf. artigos 89.º e 91.º RGC e 491.º CPP (ex vi artigo 89.º, § 2.º RGC), antes mediante regime procedimental previsto no CPC.

Parecendo-nos, a mais disso, contraditório afirmar, que com o Decreto-Lei 244/95 se concederam maiores garantias de defesa ao arguido no processo de contraordenação do que tinha até então; mas que do mesmo passo se teria eliminado o direito ao recurso no processo de execução da coima!

Conforme bem refere o acórdão deste Tribunal, proferido no proc. 438/23.5T9OLH.E1, de 11fev202511, «na versão original do RGC, aprovada em 1982, o seu artigo 89.º n.º 2 dispunha que a execução por coima obedecia aos termos da execução por custas.

Ora, a execução por custas (ou, melhor, como então se chamava, por imposto de justiça) estava regulada no CPC, na versão resultante da revisão do Decreto-Lei 44 129, de 28dez1961. Era promovida pelo Ministério Público (artigo 59.º), corria por apenso ao processo (artigo 92.º, n.º 1) e seguia a forma sumaríssima (artigo 927.º).

Na execução por custas apenas era admitido recurso nos embargos em que a sentença tivesse por fundamento a violação das regras de competência ou caso julgado (artigos 800.º e 678.º, n.º 2, ex vi artigo 801.º). Nos outros casos não havia recurso, uma vez que só era admissível nas causas de valor superior à alçada do tribunal de que se recorria (artigo 678.º n.º 1) e no processo sumaríssimo o valor da causa não ultrapassava a alçada do tribunal de comarca (artigo 462.º, n.º 1).

Quer isto dizer que, na sua versão originária, o RGC previa normas específicas relativas ao direito ao recurso na execução por coima porque, de outro modo, com a remissão para o regime da execução por custas, o recurso simplesmente não seria admissível.

O Decreto-Lei 244/95 foi publicado em 14set1995 e entrou em vigor em 1out1995 (cf. o seu artigo 5.º). Nesse momento estava em finalização a grande revisão do processo civil que viria a ser introduzida, em 12dez1995, pelo Decreto-Lei 329-A/95, vigente a partir de 1jan1997 para os processos iniciados após essa data (cf. o seu artigo 16º).

No novo regime do processo civil, a execução por custas passou a seguir a forma sumária (artigo 465.º, n.º 2) e nos recursos passaram a aplicar-se as regras dos recursos na execução ordinária, dos artigos 922.º e 923.º, por via da remissão do artigo 466.º, nº 3.»

Daí que «a tese da irrecorribilidade que estamos a rebater, a ser válida, quando posta à prova noutras situações, mostrar-se-ia inaceitável no plano da sistemática das leis e dos direitos constitucionais.

Para o demonstrar, assinalamos apenas algumas situações hipotéticas em que nos parece, de todo, insustentável defender que decisões contrárias aos interesses do executado, de terceiro ou do Estado (representado pelo Ministério Público), proferidas no processo de execução por coima, são insuscetíveis do recurso que a lei admite nos outros processos executivos, «apenas porque não está previsto no artigo 73.º do RGC»:

- Rejeição de embargos de executado por falta de intervenção no processo de contraordenação – o arguido foi condenado sem audição e apenas teve contacto com o processo na execução;

- Rejeição de embargos de executado por violação de caso julgado – o arguido foi condenado duas vezes pela autoridade administrativa no pagamento da mesma coima;

- Rejeição de embargos de executado por facto extintivo da obrigação – execução por coima paga ou prescrita;

- Rejeição de oposição à penhora – na execução foram penhorados bens absolutamente impenhoráveis ou isentos de penhora;

- Rejeição de embargos de terceiro – o bem penhorado pertencente a terceiro;

- Rejeição de reclamação de créditos – um terceiro tem um crédito garantido pelo bem penhorado;

- Indeferimento liminar do requerimento executivo – o tribunal considera a condenação em coima aplicada pela autoridade administrativa excessiva ou ilegal.»

Parece bom de ver que seria - no mínimo - contraditório que num sistema jurídico harmónico e necessariamente garantístico, como é aquele que deflui da Constituição e de todo o ordenamento jurídico nacional, se deixasse sem a tutela do recurso as prementes questões de legalidade que se deixaram alinhadas (e outras), as quais só na fase executiva da coima se suscitarão. A mais de incompreensível que tal ampla tutela dos direitos individuais e coletivos, se tornasse na fase executiva das coimas (e já não nos outros domínios da execução) exatamente no seu contrário!

Lembramos que na interpretação da lei o aplicador não pode deixar de ponderar as consequências da sua decisão. E estas (as consequências) devem alertá-lo relativamente ao «(des)acerto do tiro».

Em suma: a execução, conforme expressamente se refere nos artigos 89.º e 91.º RGC (na sua atual redação), corre perante os tribunais judiciais, tramitando e segundo as regras processo civil (artigo 89.º, § 2.º RGC e 491.º, § 2.º CPP).12 E logo por isso se impõe a mobilizando das regras respeitantes à admissibilidade de recurso no âmbito do processo civil, delas emergindo a admissibilidade do recurso sobre o qual nos debruçamos, através da conjugação dos artigos 89.º, § 2.º RGC e 87.º, 629.º, § 3.º, al. c) e 644.º, § 2.º, al. b) e 853.º do CPC.

Acrescendo, tendo em vista as circunstâncias concretas do presente caso, que as decisões baseadas na violação das regras de competência em razão da matéria admitem sempre recurso (artigos 65.º, 97.º, § 2.º 98.º, 99.º e 577.º, al. a) CPC).

Termos em que o recurso se mostra admissível.

1.2 Do regime de execução das coimas

Conforme já deixámos referido, as regras respeitantes à matéria de execução das coimas, constam dos artigos 89.º a 91.º RGC, estabelecendo o § 2.º daquele primeiro normativo que «a execução é promovida pelo representante do Ministério Público junto do tribunal competente, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no CPP sobre a execução da multa», isto é, no seu artigo 491.º. No qual se prevê «que a execução segue as disposições previstas no Código de Processo Civil para a execução por indemnizações», o que torna inquestionável que a execução das coimas corre perante os tribunais comuns (e não perante quaisquer outras autoridades); e que a respetiva cobrança será executada, com as devidas adaptações, nos termos da execução por multa (segundo as normas do CPC que respeitam à execução por indemnizações), nos termos supra referidos (tramitando e segundo as regras do processo civil - artigo 89.º, § 2.º RGC e 491.º, § 2.º CPP.13

Finalizaremos reafirmando que contrariamente ao afirmado na decisão recorrida, não encontramos na lei vigente (nomeadamente no artigo 148.º do Código de Processo e Procedimento Tributário - CPPT) fundamento normativo para afirmar que o legislador tenha optado pela execução fiscal quando se trate (como é aqui o caso) de coimas não respeitantes a contraordenações tributárias ou previstas no Regime Geral das Infrações Tributárias (pois só a estas respeita o texto do citado preceito do CPPT).14

E, como assim, o recurso merece integral provimento.

III – Dispositivo

Destarte e por todo o exposto concede-se integral provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, revogando-se consequentemente o despacho do Juízo Local de Olhão, declarando ser quele Juízo o competente para a tramitação da ação executiva interposta.

Sem custas.

Évora, 27 novembro de 2025

Francisco Moreira das Neves

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1 Refere Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2011, pp. 1157, notas 18 e 19 ao artigo 417.º, que «uniformidade não é unanimidade, sendo compatível com a existência esporádico de decisões dissonantes». Para tal efeito, no sentido que propugnamos podem ver-se os seguintes acórdãos: TRÉvora, de 11fev2025, proc. 438/23.5T9OLH.E1, rel. Manuel Soares; TRÉvora, de 25fev2025, proc. 609/23.4T9OLH.E1, rel. Manuel Soares; TRÉvora, de 11mar2025, 54/25.7T9OLH.E1, rel. Francisco Moreira das Neves; TRÉvora, proc. 438/23.5T9OLH.E1, rel. Francisco Moreira das Neves.

2 A utilização da expressão ordinal (1.º Juízo, 2.º Juízo, etc.) por referência ao nomen juris do Juízo tem o condão de não desrespeitar a lei nem gerar qualquer confusão, mantendo uma terminologia «amigável», conhecida (estabelecida) e sobretudo ajustada à saudável distinção entre o órgão e o seu titular, sendo por isso preferível (artigos 81.º LOSJ e 12.º RLOSJ).

3 Em conformidade com o entendimento fixado pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28dez1995.

4 Cf. José António Henriques dos Santos Cabral e António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes, Notas ao regime geral das contra-ordenações e coimas, 3.ª edição, Almedina, 2009, p. 291. 5 António Menezes Cordeiro, Tendências atuais da interpretação da lei: do juiz autómato aos modelos de decisão jurídica, 1985, Revista Jurídica, pp. 7 ss.

6 Neste sentido cf. acórdão do Tribunal Constitucional 246/2017, de 17mai2017, relator José António Teles Pereira.

7 Karl Engish, Introdução ao Pensamento Jurídico, 2008, 11.ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, p. 12.

8 «A coima é, antes de mais, evidentemente, uma pena, no sentido amplo de sanção de sentido não reparador», José Lobo Moutinho, Direito das Contra-Ordenações, p. 37.

9 Neste sentido cf. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 172/2021, de 24/3/2021, relator Lino Rodrigues Ribeiro. E Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal. Parte Geral. Tomo I, 3.ª ed., 2019, Gestlegal, p. 190 ss.; Nuno Brandão, Crimes e Contraordenações. Da Cisão à Convergência Material, Coimbra Editora, 2016, p. 913 ss.

10 «§ 2.º Admite-se, todavia, recurso para a relação nos seguintes casos:

a) Admissibilidade de execução de coima aplicada por via judicial;

b) Nos casos referidos na alínea b) do número anterior, quando as decisões forem da competência do tribunal da comarca.»

11 Do qual foi relator Manuel Soares (no qual o signatário interveio como adjunto).

12 Neste sentido cf. Paulo Pinto de Albuquerque (e outro), Comentário do Regime Geral das Contraordenações, 2.ª ed., 2022, Universidade Católica Editora, pp. 399/400.

13 Neste sentido cf. Paulo Pinto de Albuquerque (e outro), Comentário do Regime Geral das Contraordenações, 2.ª ed., 2022, Universidade Católica Editora, pp. 399/400; e Decisão Sumária deste Tribunal da Relação de Évora, de 5fev2024, proc. 154/23.8T9OLH.E1, rel. Maria Clara Figueiredo.

14 Ressalva esta também feita por Paulo Pinto de Albuquerque, ob. e loc. cit.