Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
234/19.4JELSB-I.E1
Relator: ANA BRITO
Descritores: ESPECIAL COMPLEXIDADE DO PROCESSO
CONTRADITÓRIO
SEGREDO DE JUSTIÇA
Data do Acordão: 01/26/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 - É inequívoco que ao arguido, através do seu defensor, tem de ser dada a possibilidade de se pronunciar sobre o requerimento do Ministério Público a solicitar a declaração de especial complexidade do processo (artº 215º, nº 4, do C.P.P.).

2 - E ter essa possibilidade pressupõe, não só uma pronúncia mais “espontânea”, mas o poder contraditar realmente os argumentos do requerente da declaração de especial complexidade. O que, na versão mais ampla ou mais completa, se asseguraria facultando o total acesso ao requerimento apresentado pelo titular do inquérito ao juiz de instrução.

3 - Porém, estando o inquérito em segredo de justiça, o que pressupõe a possibilidade (decorrente da necessidade) de ocultação de informação, designadamente sobre diligências probatórias, cumpre garantir o contraditório, dando a conhecer aos arguidos um máximo de informação, sem, no entanto fazer perigar as também tuteladas finalidades processuais prosseguidas pelo segredo de justiça.

4 - Assim, em inquérito em segredo de justiça, não é necessário dar a conhecer o teor integral da promoção do ministério público, bastando dar conta aos arguidos do essencial dos argumentos invocados pelo titular do inquérito.
Decisão Texto Integral:

Processo n.º 234/19.4JELSB.E1

Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
1. No processo de inquérito n.º 234/19.4JELSB, Tribunal de Comarca de Setúbal, foi proferido despacho em que o Senhor Juiz de instrução criminal decidiu indeferir a arguição de irregularidade/nulidade processual invocada pelos arguidos (…), alegadamente decorrente de uma violação do princípio do contraditório anteriormente cometida.
Inconformados com o decidido, recorreram os dois arguidos, concluindo:
“1. O despacho judicial recorrido indefere a arguição de nulidade/irregularidade do despacho judicial datado de 26/08/2020.
2. A Defesa não se conforma com tal indeferimento porquanto entende que deverá ser notificada das razões de facto e de direito que subjazem à promoção do MP, o que não sucedeu.
3. A ausência das razões fácticas que motivaram a promoção do digno magistrado do MP acarreta, por conseguinte, uma nulidade por falta de fundamentação do despacho judicial que notifica os recorrentes, por sumula, da posição do MP.
4. Sucede porém que o exercício do contraditório deverá ser efectuado sobre a promoção do MP e com conhecimento total do seu conteúdo.
5. Só assim poderá a defesa pronunciar-se sobre, em concreto, o pedido de excepcional complexidade com o pleno conhecimento dos argumentos de facto e de direito que permitam, por sua vez à Defesa, exercer o seu direito de dele se poder opor.
6. Se assim não sucede, a Defesa não poderá em rigor contestar, opor-se, ou eventualmente concordar, com a promoção do Ministério público, por falta de conhecimento para o seu exercício jurídico.
7. A pretensa justificação do segredo de justiça em que se fundamenta o MP, conduz à sua negação mais elementar do direito de defesa, durante um ano de prisão preventiva em manifesto reacendimento de conceitos medievais para o processo penal hodierno.
Violaram-se as disposições legais:
• Artigo 215º nº 4 do CPP, porquanto o arguido não foi ouvido da promoção da excepcional complexidade por violação do principio do contraditório.
• Artigos 20º nº 4 e 32º nº 5 da CRP, porquanto o processo penal deverá ser equitativo e deverá assegurar o contraditório.
Nestes termos deve o presente recurso obter provimento, por provado, determinando-se a nulidade/irregularidade do despacho judicial que dá por sumula as razões da promoção do MP da declaração da excepcional complexidade e notificação dos recorrentes da promoção da declaração da excepcional complexidade, na integra.”
O Ministério Público respondeu, concluindo:
“A) A admissão do presente recurso deve considerar-se notificada ao Ministério Público no dia 28 de Outubro de 2020, porque só nessa data dela se tomou conhecimento efectivo;
B) Ainda que assistisse razão aos recorrentes, a notificação em causa não seria nula, mas apenas irregular, atento o princípio da legalidade no que respeita às nulidades em processo penal;
C) Os presentes autos encontram-se sujeitos a segredo de justiça pelo que não pode o despacho em que o Ministério Público requer a declaração de especial complexidade do inquérito ser dado a conhecer aos requerentes, sem que isso ponha em causa o seu direito ao contraditório;
D) A tomada de posição pelos recorrentes quanto à declaração de especial complexidade do inquérito não equivale a rebater os argumentos invocados pelo Ministério Público.”
Neste Tribunal, o Sr. Procuradora-geral Adjunto pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso.
Colhidos os Vistos, teve lugar a conferência.

2. O despacho recorrido é do seguinte teor:
“Da nulidade arguida, atinente à não notificação da promoção do M.P. aos arguidos, quanto ao exercício do contraditório relativo à promoção de declaração de especial complexidade do processado:
Notificados os arguidos a fim de exercerem o contraditório quanto ao requerimento do M.P. de fls. 1123 e segs., os mesmos vieram invocar a nulidade/irregularidade de tais notificações por não terem sido, concomitantemente, notificados da promoção do M.P..
O M.P. pronunciou-se no sentido de não ter ocorrido a verificação de qualquer irregularidade e/ou nulidade, dado que os autos estão em segredo de justiça e a promoção em causa elenca um conjunto de diligências a realizar, incluindo prova testemunhal e alude a fundamentos que, a serem conhecidos, poderia pôr-se em causa a efectividade e veracidade de tais meios de prova a produzir e a finalidade inerente a tal segredo de justiça.
Cumpre apreciar:
As nulidades processuais obedecem ao princípio da tipicidade, isto é, só ocorre nulidade processual quando tal resultar, de forma expressa, de norma legal, seja de norma especial, seja de norma genérica, contida nos artigos 119º e segs. do C.P.P..
Ora, compulsado o código de processo penal não existe norma legal que impunha a obrigatoriedade da notificação das promoções do M.P.. Aliás, a norma é, tão somente, a notificação de despachos judiciais.
E se é certo que poderá – não sendo tal obrigatório - dar-se conhecimento de promoções do M.P. quando aos arguidos se concede prazo para o exercício do contraditório, por reporte a requerimento do M.P., a verdade é que o Mm. Juiz de Turno realizou súmula da promoção, tal como é reconhecido pelos arguidos, na parte em que tal não contendia com o segredo de justiça, decretado nos presentes autos. Na verdade, a notificação do teor da promoção pressuporia dar-se a conhecer aos arguidos não só as diligências que o M.P. pretende ainda realizar, nomeadamente de cariz testemunhal, como outros aspectos da investigação que poderiam, a serem conhecidos, pôr em causa a eficácia e resultado dessa mesma investigação. Aliás, esse é o entendimento do M.P. que se pronunciou sobre as arguidas nulidades e/ou irregularidades, ainda que “a posteriori”, de algum modo “subscrevendo” o que foi o entendimento do Mm. Juiz de Turno.
Mais se frise que, decretado o segredo de justiça, incumbe a todos os intervenientes a adequação do processado a tal decretamento, mormente ao nível de notificações e conteúdo das mesmas, sem que seja necessário, casuisticamente, o M.P. requerer o que quer que seja.
Deste modo, não consideramos que nenhuma nulidade ou sequer irregularidade foi cometida, em face da necessidade de preservar o conteúdo essencial do segredo de justiça e sentido e eficácia desse decretameno, sendo que os arguidos puderam ter conhecimento do teor da promoção por súmula e puderam pronunciar-se, querendo, de forma cabal, sobre a questão da declaração da especial complexidade, não se mostrando beliscado o exercício do seu contraditório, por tal razão, cuja prazo legal, concedido, já decorreu (sendo que não sendo de dupla notificação obrigatória, conforme o Artigo 113º, nº 10 do CPP, não há que considerar a data da última notificação).
DECISÃO:
Termos em que, face ao exposto, se julgam improcedentes as arguições de nulidades/irregularidades, por ausência de fundamento legal para tanto.
Notifique e DN.”

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, a única questão a apreciar respeita ao (in)cumprimento do contraditório prévio ao despacho judicial que declarou a especial complexidade do processo. Consideram os recorrentes que não foram notificados do teor do requerimento do Ministério Público com vista à declaração de especial complexidade, e que não satisfaz as exigências do contraditório a mera notificação do despacho judicial que resumiu por súmula o requerimento do titular do inquérito.
O despacho recorrido, que indeferiu a arguição da ilegalidade processual invocada pelos arguidos recorrentes a tal propósito, fora efectivamente precedido de um outro, em que se ordenara a expressa notificação dos arguidos para se pronunciarem, querendo, sobre a declaração de especial complexidade do processo requerida pelo Ministério Público.
Nesse despacho, que também integra o presente apenso de recurso, é dado conta aos arguidos do essencial dos argumentos invocados pelo titular do inquérito. Assim resulta da leitura do “despacho de comunicação” no confronto com o requerimento do Ministério Público, requerimento que cumpria dar a conhecer aos arguidos de modo a garantir o cumprimento contraditório.
Esta obrigação de audição prévia do arguido (por escrito, no processo, através do seu defensor) sobre a declaração de especial complexidade do processo, mormente estando em causa a sua própria liberdade, resulta desde logo das regras e princípios gerais que norteiam o processo penal e integram o estatuto do arguido. E está até expressamente previsto no art. 215.º, n.º 4, do CPP.
O cabal cumprimento do contraditório passa aqui pela comunicação do requerimento do Ministério Público ao (defensor do) arguido, concedendo-se-lhe prazo para sobre ela se pronunciar, querendo. Ou seja, o exercício do contraditório satisfaz-se com a audição do arguido por escrito no processo, através do seu advogado, já que a lei processual penal (e, adite-se, a CRP) em momento algum exige, na situação sub judice, uma audição presencial do arguido.
Assim, é inequívoco que ao arguido, através do seu defensor, tem de ser dada a possibilidade de se pronunciar sobre o requerimento do Ministério Público. E ter essa possibilidade pressupõe, não só uma pronúncia mais “espontânea”, mas o poder contraditar realmente os argumentos do requerente da declaração de especial complexidade. O que, na versão mais ampla ou mais completa, se asseguraria facultando o total acesso ao requerimento apresentado pelo titular do inquérito ao juiz de instrução.
Só que o presente inquérito está em segredo de justiça. E o segredo de justiça pressupõe a possibilidade (decorrente da necessidade) de ocultação de informação, designadamente sobre diligências probatórias, que possa fazer perigar as finalidades que o segredo prossegue também, e visa tutelar - os interesses da investigação e/ou os direitos de sujeitos processuais (art. 86.º do CPP).
Assim, e em concreto, cumpria garantir o contraditório, dando a conhecer aos arguidos um máximo de informação, sem no entanto fazer perigar as também tuteladas finalidades processuais prosseguidas pelo segredo de justiça.
Foi precisamente esta a actuação que o senhor juiz de instrução concretizou, agindo como juiz das liberdades e das garantias, ao comunicar tudo o que devia ser comunicado a ponto de permitir o exercício dos direitos de defesa e garantir o contraditório possível e ainda adequado, e sem fazer perigar o êxito da investigação criminal.
Na resposta ao recurso, o Ministério Público referiu que “não basta alegar que a notificação se encontra ferida de uma nulidade/irregularidade, sendo essencial a determinação do vício que afecta a decisão, uma vez que as consequências são muito diferentes” e que “no que concerne à qualificação de tal vício, quando muito, seria uma irregularidade: as nulidades em processo penal obedecem ao princípio da legalidade (art. 118.º do CPP) e a questão colocada nos autos não é qualificada pelo Código de Processo Penal como nulidade”.
A ocorrer ilegalidade, tratar-se-ia efectivamente de uma irregularidade. Mas esta, em concreto, não ocorreu. Pois, como o recorrido acertadamente contrapôs, “os recorrentes não foram afastados do processo decisório, tendo sido notificados para se pronunciarem quanto à pretensão do Ministério Público, embora não lhes tenha sido prestada toda a informação que pretendem (…) Os arguidos foram notificados para se pronunciarem, assim se cumprido o direito ao contraditório (…) o art. 215.º, nº 4 impõe que sejam ouvidos antes de apreciada a declaração da especial complexidade, mas não já que lhes sejam dados a conhecer os fundamentos invocados pelo Ministério Público, particularmente quando o inquérito está sujeito a segredo de justiça (…) A norma em causa impõe que os arguidos sejam ouvidos antes de ser apreciada a declaração de especial complexidade do inquérito, o que significa que, antes de ser tomada uma decisão, tem que lhes ser dada oportunidade para exporem os seus argumentos relativamente a essa questão.”
Cita o Ministério Público na resposta ao recurso, muito apropriadamente, o acórdão do TRL de 29.09.2015, em cujo sumário se pode ler: “A não notificação ao arguido do teor integral da promoção do Ministério Público em que se impetra a declaração de especial complexidade do processo não integra nulidade” e “Na fase de inquérito o princípio do contraditório não funciona na sua plenitude, desde logo quando os autos estão sujeitos ao segredo de justiça na sua vertente de segredo interno.”
De tudo resulta que não foi cometida qualquer ilegalidade, mormente as apodadas “nulidade/irregularidade”, e que o despacho recorrido, na parte impugnada não oferece reparo.

4. Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente os recursos, confirmando-se o despacho recorrido.
Custas a pagar por cada um dos recorrentes fixando-se a taxa de justiça em 3UC.
Évora, 26.01.20201
Ana Brito
Maria Leonor Esteves