Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
336/12.8T2MFR-B.E1
Relator: ISABEL PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: INVENTÁRIO PARA SEPARAÇÃO DE MEAÇÕES
REMESSA PARA OS MEIOS COMUNS
Data do Acordão: 11/19/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - É indevida a remessa dos interessados para os meios comuns com fundamento na falta de acordo sobre a matéria em discussão e por não existirem documentos nos autos que permitam resolver tal questão com segurança, havendo que produzir prova sobre a mesma;
2 - Apurando-se que o preço do imóvel adquirido pela Requerida já após ter sido decretado o divórcio, e que constitui bem próprio desta, foi pago, em parte, com dinheiro que constituía património comum do casal, deve a verba em causa ser elencada na relação de bens enquanto crédito do património comum.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Requerente: (…)
Recorrida/ Requerida: (…)

Os autos consistem em processo de inventário para partilha dos bens que fazem parte do acervo da comunhão conjugal do dissolvido casal. O processo foi instaurado nos termos do disposto no artigo 1404.º do CPC, na versão dada pelo DL n.º 329-A/95, de 12 de dezembro.

II – O Objeto do Recurso
Estando em curso diligências atinentes à Conferência de Interessados, o Requerente apresentou-se a requerer a compensação por parte da Requerida ao património comum no valor de € 27.916,41, nos temos e para os efeitos do disposto no n.º 2 do art. 1726.º do CC.
Invocou, para tanto, que foi excluída da relação de bens a verba n.º 25, com fundamento de que “… a reclamante adquiriu o imóvel a que se refere a verba n.º 25 por escritura pública celebrada já depois de ter sido decretado o divórcio entre ambos, pelo que se trata de bem próprio da reclamante (artigos 874.º, 879.º, alínea a), 1316.º e 1317.º, alínea a), do Código Civil).”
Com vista a apurar se o preço de aquisição do imóvel foi pago em parte com dinheiro ou bens comuns, designadamente com o valor da indemnização que o cabeça de casal recebeu da (…), pela rescisão do seu contrato de trabalho, como o mesmo afirmou (15.189.989$00), assim como com a indemnização recebida pela reclamante pela rescisão do seu contrato de trabalho com a (…) , foi notificada a Caixa (…), Sociedade Financeira de Crédito, S.A. a qual informou que o contrato de locação financeira com vista à para aquisição do imóvel foi realizado em 13/11/1998, e que o valor total das prestações pagas, considerando capital e juros, no âmbito desse contrato de leasing até 31/05/2011, foi de € 27.916,41 ( vinte e sete mil e novecentos e dezasseis euros e quarenta e um cêntimos).
Sustenta o Requerente que, encontrando-se apurado e demonstrado documentalmente o montante pago à custa do património comum na aquisição da verba n.º 25, que a Requerente escriturou em seu nome após a dissolução do casamento, deverá a Requerente compensar o património comum no montante de € 27.916,41.
Tal pretensão mereceu a seguinte decisão:
«Veio o cabeça de casal requerer a compensação por parte da Requerida, do património comum, do montante de € 27.916,41, nos termos e para os efeitos do disposto no nº 2 do artº 1726º do Código Civil, por ter sido utilizado dinheiro comum para os pagamentos das prestações do “leasing” na aquisição do imóvel que constituía a verba nº 25 e que foi excluída da relação de bens, por ter sido considerada bem próprio da requerida.
De facto, na decisão sobre a reclamação da relação de bens, proferida nos autos em janeiro de 2017, determinou-se que a verba n.º 25 fosse excluída da relação de bens, pelo facto de a reclamante ter adquirido o imóvel aí identificado, por escritura pública celebrada já depois de ter sido decretado o divórcio entre o cabeça de casal e a reclamante/requerida, concluindo-se que se trata de bem próprio desta ultima (artigos 874.º, 879.º, alínea a), 1316.º e 1317.º, alínea a), do Código Civil).
Também se referiu nessa decisão que: “Questão diferente é o eventual direito de compensação que o cabeça de casal possa exigir por ter sido utilizado dinheiro próprio ou comum na aquisição deste imóvel (nomeadamente pelos pagamentos das rendas do “leasing”).
Com efeito, pese embora se tenha concluído que a verba nº 25 deve ser excluída da relação de bens por não ser bem comum, a verdade é que provando-se que o preço de aquisição do imóvel em causa foi pago em parte com dinheiro ou bens comuns do ex-casal, designadamente com o valor da indemnização que o cabeça de casal recebeu da (…), pela rescisão do seu contrato de trabalho, como o mesmo afirmou (encontrando-se comprovado pelo documento de fls. 84 vº que o cabeça de casal recebeu uma indemnização de Esc. 15.189.989$00), assim como a indemnização recebida pela reclamante, igualmente pela rescisão do seu contrato de trabalho com a (…), é devida compensação pela reclamante, (…), ao património comum (cfr. artigo 1726.º, n.º 2, do Código Civil).”
A Caixa (…), Sociedade Financeira de Crédito, S.A., depois de notificada para o efeito, veio informar em 21/10/2019 (refª 4687960), que o contrato de locação financeira com vista à aquisição do imóvel em causa foi celebrado em 13/11/1998, e que o valor total das prestações pagas, considerando capital e juros, no âmbito do cumprimento desse contrato de leasing, até 31/05/2011, foi no montante total de € 27.916,41 (vinte e sete mil novecentos e dezasseis euros e quarenta e um cêntimos).
Porém, ao contrário do que o cabeça de casal sustenta, não está demonstrado nos autos que o montante pago (€ 27.916,41) em cumprimento do leasing para aquisição do imóvel que constituía a verba nº 25 da relação de bens inicialmente apresentada nos autos, constitui todo ele património comum do ex-casal, sendo certo que a requerida/interessada (…) nega tal facto e a prova já anteriormente produzida e referida na decisão sobre a reclamação da relação de bens, acima mencionada, não permite chegar a uma conclusão segura sobre essa matéria, embora se indicie que aquele valor foi pago, pelo menos em parte, com as quantias que o cabeça de casal e a requerida receberam de indemnização pela rescisão dos respetivos contratos de trabalho com a Companhia de Seguros (…).
Na falta de acordo dos interessados sobre essa matéria e não existindo documentos nos autos que permitam resolver tal questão com segurança, havendo que produzir prova sobre a mesma, remete-se os interessados para os meios comuns.»

Inconformado, o Requerente apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que decida no sentido da procedência da sua pretensão, considerando que se encontra demonstrado nos autos que o imóvel excluído da relação de Bens foi todo pago com dinheiro comum dos interessados e, consequentemente ser a compensação a efetuar à comunhão, através da imputação do seu valor atualizado na meação da Requerida, ou que revogue a decisão recorrida por errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 1336.º, 1349.º e 1350.º todos do CPC, ao remeter os interessados para os meios comuns. Conclui a alegação de recurso nos seguintes termos:
«I - Vem o presente recurso interposto do douto Despacho de 26.02.2020, através do qual a Mmª Juiz a quo indeferiu a compensação ao património comum, por parte da Requerida, na sequência da exclusão da verba 25 da Relação de Bens.
II - Bem como da decisão que remeteu os interessados para os meios comuns quanto à questão da compensação do património comum requerida pelo recorrente.
III- Entendendo, o recorrente que a douta decisão ao assim decidir, faz errada interpretação quanto à matéria de facto provada e a prova produzida e bem assim, quanto à interpretação e aplicação do direito, padecendo de erro de julgamento.
IV- O presente inventário foi instaurado pelo recorrente, na qualidade de Cabeça de Casal, em 2012 para partilha do património conjugal, na sequência da dissolução do casamento entre o recorrente e a Requerida, por divórcio decretado em 11.05.2011.
V- Desde então o recorrente encetou uma luta desesperada, como resulta dos anos já decorridos, contra as manobras dilatórias da Requerida para conseguir a partilha do património comum, que esta administra e usufrui em exclusivo desde a data do divórcio, mesmo depois da decisão judicial que indeferiu a requerida remoção do recorrente do cargo de Cabeça de Casal, e que a Requerida continua
a ignorar, como reiteradamente o ora recorrente tem vindo a informar o Tribunal.
VI- Apresentada Relação de Bens pelo Cabeça de Casal, veio a Requerida, desta reclamar, requerendo a exclusão, para o que ao presente recurso importa, das Verbas 2, 4, 24 e 25 da Relação de Bens e requerer a remoção do Recorrente, do cargo de Cabeça de Casal.
VII- A Requerida fundamentou a sua pretensão em ver excluídas as verbas 2, 4 e 24, no entendimento de que os bens relacionados sob essas verbas eram todos eles bens próprios dela, Requerida, invocando para tanto que se tratavam de instrumentos do seu trabalho, próprios da sua atividade profissional.
VIII- Sob as verbas 2 e 4 encontram-se relacionadas as contas bancárias n.ºs (…) e (…), respetivamente, ambas da (…) e na verba 24 - Universalidades composta por dois estabelecimentos comerciais de crédito imobiliário e de mediação de seguros, composto por uma carteira de clientes e loja de atendimento ao público, sitas na (…) e (…).
IX- Quanto à verba 25 invocou a Requerida que também se tratava de um bem próprio dela, porque foi objeto de um contrato financeiro em regime de Leasing, tendo os pagamentos das rendas sido liquidados e contabilizados ao longo de 15 anos através da conta bancária da (...) com o nº (…).
X- A mesma conta relacionada sob a verba 4 e, cuja exclusão da Relação de Bens a Requerida também requereu, com o mesmo fundamento ser um bem próprio dela, por se tratar de um instrumento do seu trabalho, respeitante à atividade empresarial que desenvolve.
XI- Mais alegou que, tendo terminado o contrato de Leasing, procedeu à escrituração do imóvel em seu nome, já após o divórcio.
XII- Respondeu o recorrente, mantendo o entendimento de que o imóvel deveria assumir a natureza de bem comum, por ter sido todo ele pago com dinheiro comum do casal, integrando o âmbito do disposto no art. 1726.º do Código Civil.
XIII- Produzida a prova pelos interessados, a Mmª Juiz a quo proferiu decisão sobre a reclamação à Relação de Bens, no sentido de se manterem relacionadas as verbas 2, 4 e 24 da Relação de Bens, com o fundamento de que os bens relacionados nestas verbas têm a natureza de bens comuns.
XIV- Mais decidindo a Mmª Juiz a quo no que respeita às verbas 2 e 4, que seriam relacionados os saldos existentes à data do divórcio, a verba n.º 2, conta n.º (…) da (…), no valor de € 10.077,34 e a verba n.º 4 (…) da (…), no valor de € 2.436,01.
XV- Quanto à verba 25, a Mmª Juiz a quo, com o fundamento de que o imóvel foi escriturado em nome da requerida já depois do divórcio, pronunciou-se no sentido deste ter a natureza de bem próprio da Requerida, apelando ao disposto nos artigos 874.º, 879.º, alínea a), 1316.º e 1317.º, alínea a), todos do Código Civil, ordenando a sua exclusão da Relação de Bens.
XVI- Afastando, deste modo, a Mmª Juiz a quo, o entendimento do recorrente de que o imóvel deveria assumir a posição de bem comum porque adquirido com dinheiro comum.
XVII- Todavia quanto a este facto, a Mmª Juiz a quo, apelando ao disposto no n.º 2 do art. 1726.º fez constar na sua decisão o direito do património comum vir a ser compensado pela Requerida, caso se viesse a demonstrar que o imóvel foi adquirido com dinheiro comum.
XVIII- Ordenada para o efeito a notificação da Caixa Leasing, para informar os autos do valor total pago no âmbito desse contrato de Leasing até à data do divórcio entre os interessados.
XIX- Todavia a Mmª Juiz a quo veio a indeferir a requerida compensação ao património comum, sustentando que não se encontrava demonstrado nos autos que o montante pago de € 27.916,41, pagos em cumprimento do Leasing para aquisição do imóvel que constituía a verba nº 25 excluída da Relação de Bens constitui todo ele património comum do ex-casal.
XX- É sobre este entendimento que o recorrente se insurge não podendo conformar-se, antes entendendo que resulta dos autos o contrário do decidido, que o montante pago de € 27.916,41, em cumprimento do Leasing para aquisição do imóvel que constituía a verba nº 25 da Relação de Bens constitui todo ele património comum do ex-casal.
XXI- O que resulta demonstrado desde logo, da análise critica e conjugada da matéria de facto dada como provada quanto às verbas 4, sob a qual se encontra relacionada a conta bancária (…) da (…) e a verba 25, sob a qual se encontra relacionado o imóvel excluído da Relação de Bens.
XXII- De facto, alegou a própria Requerida, e o douto Tribunal consignou na douta decisão à Relação de Bens, ao pronunciar-se sobre a verba 25, que todas as rendas do contrato de Leasing com vista à aquisição do imóvel foram pagas através da conta bancária com o n.º (…) da (…), relacionada sob Verba 4.
XXIII- Alegação, que tem de ser compaginada com a alegação da Requerida de que a conta identificada tem a natureza de bem próprio dela, no que fundamentou a também requerida exclusão desta verba da relação de Bens como já referido.
XXIV- Entendimento que, no entanto, não mereceu acolhimento na douta decisão, tendo o douto Tribunal decidido e, bem, no entender do recorrente, que a conta bancária com o n.º (…) da (…), relacionada sob Verba 4, tem a natureza de bem comum.
XXV- Do que se deixou dito e resulta demonstrado na decisão da reclamação da Requerida, uma conclusão se impunha, que tendo a conta n.º (…) da (…) a natureza de bem comum, através da qual foram pagas todas as prestações do contrato de Leasing com vista à aquisição do imóvel, o dinheiro utilizado para a sua aquisição é forçosamente todo ele dinheiro comum do ex-casal.
XXVI- De onde resulta demonstrado nos autos, salvo a devida vénia, o contrário do sustentado pela Mmª Juiz a quo, que o imóvel foi adquirido todo ele com dinheiro comum do ex-casal.
XXVII- Conclusão que também se impunha e impõe, em face da prova já produzida nos autos e, que a Mm.ª Juiz a quo invoca, quer testemunhal quer documental, ainda que, com eventual recurso às regras da experiência e presunções judiciárias autorizadas.
XXVIII- Certo é, que a Mmª Juiz a quo admite mesmo que da prova já produzida, documental e testemunhal existem indícios de que pelo menos parte do preço na aquisição do imóvel foi pago com dinheiro comum do casal.
XXIX- Entende, no entanto, o recorrente, salvo a devida vénia, que da prova produzida a que a Mmª Juiz a alude, documental e testemunhal não resultam só indícios, resultando desta prova e com segurança que o imóvel foi todo ele pago à custa do património comum do casal.
XXX- Com efeito, assim resulta demonstrado dos documentos a que a Mmª Juiz alude, quer os relativos à indemnização recebida pelo ora apelante pela rescisão do seu contrato de trabalho com a (…), no valor de Esc. 15.189.989$00 (doc. de fls. 84 vº), quer do documento junto pela Caixa Leasing, ao informar a data de celebração do contrato de Leasing, 13/11/1998, data próxima da data em que o Requerente, ora apelante, recebeu a mencionada indemnização, 28 de Setembro de 1998.
XXXI- Também o depoimento da Testemunha (…) ao qual a Mmª Juiz a quo se refere, veio corroborar o que resulta da prova documental, que a indemnização recebida pelo ora apelante destinou-se à compra do negócio, relacionado sob verba n.º 24, onde se incluía além da carteira de clientes a aquisição do imóvel onde os anteriores titulares e “donos” do negócio exploravam essa atividade de mediação.
XXXII-Por sua vez o documento junto pela Caixa Leasing o qual a Mmª Juiz também invoca, contendo a informação do valor total das prestações pagas, e que foram pagas, como a Requerida alega através da conta bancária n.º com o n.º (…) da (…), relacionada na Verba 4, no âmbito do contrato de Leasing até 31/05/2011, que foi de € 27.916,41, permitiu o apuramento do valor da compensação.
XXXIII- Assim apurado com rigor absoluto, o montante pago à custa do património comum, com a aquisição do imóvel excluído da Relação de Bens, salvo a devida vénia, encontrava-se o douto Tribunal na posse de todos os elementos necessários a proferir decisão no sentido do requerido pelo ora recorrente.
XXXIV- Pois, outro entendimento, não vislumbra o apelante, para atribuir efeito útil à ordenada notificação da Caixa Leasing, bem como às informações solicitadas que não seja permitir ao Tribunal apurar o valor da compensação devida ao património comum.
XXXV- Em remate, resultando dos autos, conforme se deixou demonstrado, que as prestações do contrato de Leasing com vista à aquisição do imóvel excluído da relação de Bens sob a verba 25, foram pagas através a conta Bancária n.º (…) da (…), relacionada sob a verba 4 da relação de Bens, a qual tem a natureza de bem comum, tanto basta para se poder concluir com segurança que o identificado imóvel foi adquirido à custa do património comum.
XXXVI- Face ao que, tendo a Mmª Juiz a quo entendido que o imóvel assumiu a natureza de bem próprio da Requerida, deve esta, por força do disposto no artigo 1726.º do CC, compensar o património comum no montante de € 27.916,41 (vinte e sete mil e novecentos e dezasseis euros e quarenta e um cêntimos), ao que acrescerá a respetiva atualização.
XXXVII- E, consequentemente ser a compensação a efetuar à comunhão, através da imputação do seu valor atualizado na meação da Requerida, como vem sendo defendido pela nossa doutrina e jurisprudência, de modo a evitar o enriquecimento de um património à custa de outro, assim, permitindo o equilíbrio entre os patrimónios dos interessados.
XXXVIII- Em conclusão, salvo a devida vénia, resulta do que vem de se expor, que a douta decisão recorrida ao pronunciar-se no sentido descrito, faz errada interpretação da matéria de facto dada como provada, bem como da prova produzida e que impunha decisão contrária, errando quanto à decisão de facto, enfermando, assim, de erro de julgamento.
XXXIX- Sem prescindir e, por cautela de patrocínio, mais alega o recorrente que a douta decisão ao remeter os interessados para os meios comuns quanto a esta questão faz também errada interpretação e aplicação do direito.
XL- A Mmª Juiz a quo alicerça a sua decisão, como se constata, na falta de acordo dos interessados sobre essa matéria, na falta de documentos nos autos que permitam resolver tal questão com segurança, bem como na necessidade de produzir prova sobre a questão.
XLI- Ora, salvo o devido respeito, que é muito, entende o ora apelante que as razões apontadas pela Mmª Juiz a quo não constituem fundamentos para habilitar o douto Tribunal a quo a remeter os interessados para os meios comuns.
XLII- E, tanto, resulta dos artigos 1336º, 1349º e 1350º, todos do CPC, que definem o critério legal, no sentido de que no processo de inventário devem ser decididas definitivamente todas as questões de facto de que a partilha dependa salvo se essa decisão não se conformar com a discussão sumária comportada pelo processo de inventário e exigir mais ampla discussão no quadro do processo comum.
XLIII- É no n.º 1 do artigo 1336.º do CC, que vem consagrado que todas as questões submetidas ao Tribunal e que à partilha importam, devem ser resolvidas definitivamente no processo de inventário.
XLIV- Dispondo o n.º 2 do mesmo dispositivo, que só é admissível a resolução provisória, ou a remessa dos interessados para os meios comuns, quando a complexidade da matéria de facto subjacente à questão a dirimir torne inconveniente a decisão incidental no inventário, por implicar a redução das garantias das partes.
XLV- No mesmo sentido, dispõe o n.º 4 do art. 1349.º e o n.º 1 do art. 1350º, ambos do CPC.
XLVI- Constatando-se que a douta decisão não invoca nenhum dos fundamentos dos quais o regime jurídico que lhe é aplicável faz depender a remessa dos interessados para os meios comuns,
XLVII- Não invoca complexidade da matéria de facto subjacente à questão a dirimir que torne inconveniente a decisão incidental no inventário nem que a decisão no processo de inventário implica a redução das garantias das partes, nomeadamente a exigência de prova mais aprofundada e incompatível com a decisão sumária comportada pelo processo de inventário.
XLVIII- De facto, o regime jurídico aplicável, não faz depender a remessa dos interessados para os meios comuns do facto de algum dos interessados não ter carreado para os autos, meios de prova conducentes à demonstração dos factos que alega, mas apenas se for de admitir que tais factos necessitam de ser mais largamente investigados, o que só é possível nos meios comuns.
XLIX- Termos em que a douta decisão recorrida faz também errada interpretação aplicação do direito aplicável, violando os artigos 1336º, 1349º, 1350º e o artigo 1726.º todos do CPC, enfermando em erro de julgamento, o que o apelante invoca.»
Em sede de contra-alegações, a Recorrida pugna pela manutenção da decisão recorrida, invocando que, não havendo prova no processo de inventário da proveniência do valor de € 27.916,41 e tendo sido a verba 25 excluída da partilha, não poderá essa matéria controvertida ser apreciada em sede de Inventário.

Importa apreciar se deve ser revogada a decisão de remeter os interessados para os meios comuns quanto à pretensão do Recorrente e se existe fundamento para a compensação ao património comum, através da imputação do valor atualizado do imóvel excluído da relação de bens na meação da Requerida.

III – Fundamentos
A – Dados a considerar
1 - O Requerente contraiu casamento com a Requerida em 24 de março de 1976, sem convenção antenupcial – cfr. requerimento inicial do processo principal.
2 - Em 11 de Maio de 2011 foi decretado o divórcio entre o Requerente e a Requerida – cfr. requerimento inicial do processo principal.
3 - Consta da Relação de Bens apresentada pelo Requerente (cfr. req. de 27/03/2013 no processo principal) designadamente o seguinte:
- Verba n.º 4: Um depósito à ordem, conta n.º (…) Caixa Geral de Depósitos……………………………………………………..................... € 12.568,19;
- Verba n.º 25: Fração autónoma, correspondente à loja 1, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua (…), n.º 26-C, na Pontinha, descrito na Conservatória do Registo Predial de Odivelas, sob o n.º …, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 854º, com o valor patrimonial de….........………… € 7.880,00.
4 - A Requerida em 1998 contratou com a (…) um contrato de aluguer em regime de leasing para o imóvel sito na Rua (…), 26-C, na Pontinha, que constitui a verba n.º 25 - declarações da Requerida no requerimento de 16/05/2013 no processo principal;
5 - Os pagamentos das rendas mensais foram liquidados e contabilizados ao longo de 15 anos através da conta bancária da (…) com o n.º (…), alimentada pelo pagamento das remunerações que aufere pela mediação de seguros – declarações da Requerida no requerimento de 16/05/2013 no processo principal;
6 - O imóvel foi adquirido pela Requerida após ter sido decretado o divórcio, decorrido que estava o prazo da locação – cfr. requerimento de 16/05/2013 no processo principal;
7 – No âmbito da reclamação contra a relação de bens foi proferida decisão (cfr. despacho de 15/11/2016 no processo principal) que contempla o seguinte:
- “as contas em causa foram abertas e provisionadas com dinheiro dos cônjuges (na altura ainda estavam casados), adquirido na constância do casamento, proveniente de rendimentos do trabalho de cada um deles e posteriormente também das comissões pagas pela
Seguradora, pelo que não pode deixar de se considerar o saldo existente nas referidas contas bancárias, à data do divórcio, como bem comum (artigo 1724.º, alíneas a) e b), do Código Civil).
De resto, ainda que houvesse dúvidas sobre a comunicabilidade de tais bens, estes deviam ser considerados comuns (artigo 1725.º do Código Civil).
Devem, por isso, as verbas nºs 2 e 4 da relação de bens manter-se, embora com uma redação diferente, passando a constar como sendo o saldo de cada uma das contas aí identificadas, a verba nº 2 no valor de € 10.077,34 e a verba nº 4 no valor de € 2.436,01 (à data do divórcio), conforme extratos bancários juntos a fls. 100 e 102 dos autos.
(…)
A reclamante adquiriu o imóvel a que se refere a verba nº 25, por escritura pública celebrada já depois de ter sido decretado o divórcio entre ambos, pelo que se trata de bem próprio da reclamante (artigos 874.º, 879.º, alínea a), 1316.º e 1317.º, alínea a), do Código Civil).
Não pode, por isso, o imóvel em questão ser considerado bem comum e, por isso, deve ser excluído da relação de bens.
Questão diferente é o eventual direito de compensação que o cabeça de casal possa exigir por ter sido utilizado dinheiro próprio ou comum na aquisição deste imóvel (nomeadamente pelos pagamentos das rendas do “leasing”).
Com efeito, pese embora se tenha concluído que a verba nº 25 deve ser excluída da relação de bens por não ser bem comum, a verdade é que provando-se que o preço de aquisição do imóvel em causa foi pago em parte com dinheiro ou bens comuns do ex-casal, designadamente com o valor da indemnização que o cabeça de casal recebeu da (…) pela rescisão do seu contrato de trabalho, como o mesmo afirmou (encontrando-se comprovado pelo documento de fls. 84 verso que o cabeça de casal recebeu uma indemnização de Esc. 15.189.989$00), assim como a indemnização recebida pela reclamante, igualmente pela rescisão do seu contrato de trabalho com a (…), é devida compensação pela reclamante, (…), ao património comum (cfr. artigo 1726.º, n.º 2, do Código Civil).”
8 - O contrato de locação financeira com vista à aquisição do imóvel em causa foi celebrado em 13/11/1998, sendo que o valor total das prestações pagas, considerando capital e juros, no âmbito do cumprimento desse contrato de leasing, até 31/05/2011, foi no montante total de € 27.916,41 (vinte e sete mil, novecentos e dezasseis euros e quarenta e um cêntimos) – cfr. email de 22/10/2019 nos autos principais (ref.ª 4687960) da Caixa Leasing e Factoring, Sociedade Financeira de Crédito, S.A.

B – O Direito
Nos termos do disposto no art. 1350.º/2 do CPC na redação dada pelo DL n.º 329-A/95, de 12 de dezembro, normativo inserido na secção relativa ao relacionamento de bens, quando a complexidade da matéria de facto subjacente às questões suscitadas tornar inconveniente, nos termos do n.º 2 do artigo 1336.º, a decisão incidental das reclamações previstas no artigo anterior, o juiz abstém-se de decidir e remete os interessados para os meios comuns.
O n.º 2 do art. 1336.º do CPC, por sua vez, estatui que só é admissível a resolução provisória, ou a remessa dos interessados para os meios comuns, quando a complexidade da matéria de facto subjacente à questão a dirimir torne inconveniente a decisão incidental no inventário, por implicar redução das garantias das partes.
No processo de inventário, o princípio que vigora é o de que devem ser decididas definitivamente no seu âmbito todas as questões de facto de que a partilha dependa salvo se essa decisão se não conformar com a discussão sumária comportada pelo processo de inventário e exigir uma ampla discussão no quadro do processo comum.[1]
A regra é a de que o tribunal da causa tem competência para dirimir todas as questões que importem à exata definição do acervo hereditário a partilhar, podendo excecionalmente, em caso de particular complexidade, e para evitar redução das normais garantias das partes, lançar mão das possibilidades que emergem do estatuído no artigo 1350.º, n.ºs 1 e 3, do CPC.[2]
É que “tudo deve ser examinado e decidido à luz de um são critério, já para não consentir que no inventário se resolvam questões de alta indagação, já para não excluir as que, aí podem e devem obter solução adequada”, sendo que “a lei limitou-se a formular uma regra, um critério de orientação, cabendo ao poder judicial fixar-lhe os limites, definir-lhe os contornos e dar consistência ao seu conteúdo maleável”.[3]
No caso que temos em mãos, os interessados foram remetidos para os meios comuns com fundamento na falta de acordo sobre a matéria em discussão e por não existirem documentos nos autos que permitam resolver tal questão com segurança, havendo que produzir prova sobre a mesma. Donde, o Tribunal de 1.ª Instância não alicerçou a sua decisão na inconveniência para o processo de inventário da apreciação daquela questão incidental, atenta a complexidade da matéria de facto a ela subjacente.
Atento o disposto no art. 1350.º/1 do CPC, não se adequando o fundamento invocado ao fundamento legal, é manifesto ser indevida a remessa dos interessados para os meios comuns, nos termos determinados.
No entanto, considerando a questão submetida a apreciação, no sentido de saber se, tal como sustenta o Recorrente, os montantes pecuniários utilizados para pagamento das rendas da locação financeira constituíam património comum, afigura-se não estar em causa complexidade tal que torne inconveniente a decisão dessa questão no âmbito do processo de inventário.
Mais avançou a 1.ª Instância que «não está demonstrado nos autos que o montante pago (€ 27.916,41) em cumprimento do leasing para aquisição do imóvel que constituía a verba n.º 25 da relação de bens inicialmente apresentada nos autos, constitui todo ele património comum do ex-casal, sendo certo que a requerida/interessada (…) nega tal facto e a prova já anteriormente produzida e referida na decisão sobre a reclamação da relação de bens, acima mencionada, não permite chegar a uma conclusão segura sobre essa matéria, embora se indicie que aquele valor foi pago, pelo menos em parte, com as quantias que o cabeça de casal e a requerida receberam de indemnização pela rescisão dos respetivos contratos de trabalho com a Companhia de Seguros (…).» Considerou-se, assim, que os elementos disponíveis nos autos eram insuficientes para conhecer da questão colocada.
Será assim?
Está assente a seguinte factualidade:
- a conta n.º (…) Caixa Geral de Depósitos integra a relação de bens comuns;
- o contrato de locação financeira relativo ao imóvel excluído da relação de bens (verba n.º 25) foi celebrado em 13/11/1998, na pendência do casamento;
- as rendas relativas ao contrato de locação financeira foram pagas, durante 15 anos e na pendência do casamento, através da conta n.º (…) Caixa Geral de Depósitos;
- o valor total das prestações pagas, considerando capital e juros até 31/05/2011 foi no montante total de € 27.916,41 (vinte e sete mil e novecentos e dezasseis euros e quarenta e um cêntimos);
- o imóvel foi adquirido pela Requerida após ter sido decretado o divórcio, a 11/05/2011.
Decorre do exposto que o preço do imóvel adquirido pela Requerida já após ter sido decretado o divórcio, e que constitui bem próprio desta, foi pago, em parte, com dinheiro que constituía património comum do casal. A verba de € 27.916,41 foi aplicada no pagamento das rendas devidas, provindo de conta bancária que integrava o património comum.
Por conseguinte, o património comum é titular de crédito contra a Requerida no montante de € 27.916,41. Foi este o valor do património comum que foi utilizado para pagamento do preço do imóvel adquirido pela Requerida, pelo que inexiste fundamento para lançar o crédito por montante diverso.
Tal verba deverá, portanto, ser elencada na relação de bens enquanto crédito do património comum – cfr. art. 1345.º/1 do CPC.
Acrescente-se que tal operação decorre do disposto no art. 1345.º/1 do CPC, conjugado com o teor do artigo 1724.º do CC, prescindindo do disposto no artigo 1726.º/2 do CC.[4] Este preceito tem em vista os bens adquiridos na constância do matrimónio, determinando a natureza deles em função da mais valiosa das duas prestações que compuseram o preço pago (bens adquiridos em parte com dinheiro ou bens próprios e noutra parte com dinheiro ou bens comuns) e impondo a compensação devida ao património comum ou próprio, consoante o que tenha sido desfalcado em favor do outro. Na medida que o imóvel foi adquirido pela Requerida após ter sido decretado o divórcio, não tem aplicação o regime inserto no art. 1726.º do CC.

Procedendo as conclusões da alegação do presente recurso, impõe-se a revogação da decisão recorrida.

As custas recaem sobre a Recorrida – artigo 527.º, n.º 1, do CPC.

Concluindo:
(…)

IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela total procedência do recurso, em consequência do que se revoga a decisão recorrida, determinando-se que a verba de € 27.916,41 (vinte e sete mil e novecentos e dezasseis euros e quarenta e um cêntimos) seja inscrita na relação de bens como crédito do património comum contra a Recorrida.
Custas pela Recorrida.
Évora, 19 de novembro de 2020
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões
Vítor Sequinho dos Santos

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[1] Ac. TRE de 28/05/2015 (Conceição Ferreira).
[2] Cfr. Lopes do Rego, Comentário ao CPC, 2.ª ed., pág. 268.
[3] Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, vol. I, pág. 539.
[4] Nos termos do disposto no art. 5.º/3 do CPC, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.