Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
16166/21.3YIPRT.E1
Relator: JOSÉ LÚCIO
Descritores: PERSI
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE
EXCEPÇÃO DILATÓRIA INOMINADA
Data do Acordão: 03/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 – A aplicação do regime legal introduzido pelo Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro, aos casos de mora iniciados antes do início da vigência deste diploma tem como pressuposto, além da manutenção da mora no incumprimento das obrigações contratuais, que o contrato invocado permaneça em vigor nessa data (cfr. art. 39º, n.º 1).
2 – Não tendo o banco autor demonstrado que havia procedido à resolução das relações contratuais com o réu em momento anterior à entrada em vigor do regime legal referido, é forçoso concluir pela aplicabilidade do normativo em causa a essas situações de incumprimento.
3 – Consequentemente, não tendo o réu sido integrado em PERSI antes da instauração da acção judicial destinada à cobrança do crédito, verifica-se a excepção dilatória de falta dessa condição objectiva de procedibilidade, prevista no artigo 18° n.° 1, al. b) do DL n.° 227/2012, de 25 de Outubro, o que determina a sua absolvição da instância.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

I – RELATÓRIO
O autor, Novo Banco SA, intentou procedimento de injunção contra o réu, AA, pretendendo fazer valer em juízo créditos seus sobre o réu, seu cliente bancário.
Alegou o autor, em resumo, que sucedeu ao Banco Espírito Santo, SA, por força de deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal de 3 de Agosto de 2014, e que nessa qualidade é titular de um saldo devedor em capital, relativo à conta à ordem n.º ...04, sobre o réu AA, que a 10/12/2012 apresentava o valor de €280,94, acrescidos de juros à taxa de 27,000%, acrescida da sobretaxa de mora de 2,000% e, ainda é titular de um saldo credor em capital sobre o mesmo no valor de €1.586,89, decorrente da utilização do cartão de crédito, por este solicitado aos 10/05/2005, referente à conta crédito n.º ...75, acrescido dos juros contratualmente estipulados à taxa de 24,500 %, acrescida da sobretaxa de mora de 4%, sobre os montantes a cada momento devidos, entre 10/10/2011 e 06/02/2021, que contabilizados nessa data perfazem o montante de €4.055,99.
Por não ter sido apurado o paradeiro do réu, foi este citado por éditos, após o que, não tendo o réu constituído mandatário nem contestado a acção, interveio o Ministério Público, que contestou em sua representação.
Na contestação, e além do mais, foi invocada a falta de uma condição objectiva de procedibilidade, por não inclusão dos créditos em causa no PERSI.
Discordou o autor, em resposta, defendendo que no caso presente não havia lugar à aplicação do PERSI, uma vez que o DL 227/2012 de 25 de outubro que instituiu o Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI) entrou em vigor a 01.01.2013, data posterior aos incumprimentos contratuais verificados.
Realizada audiência de discussão e julgamento, com vista a indagar da factualidade controvertida, veio a ser proferida sentença, na qual se concluiu pela verificação da excepção dilatória insuprível de falta de condição objectiva de procedibilidade, prevista no artigo 18.° n.° 1, al. b) do DL n.° 227/2012, de 25 de Outubro, pelo que foi o réu absolvido da instância.
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II – O RECURSO
Em face do decidido, o autor não se conformou e reagiu através do presente recurso de apelação, cujos fundamentos sintetizou nas seguintes conclusões:
“I- Vem o presente recurso interposto da douta sentença de fls. (…) que, absolveu “o Réu da instância” ao considerar que, “o Autor não fez prova de ter integrado o Réu no referido PERSI, tal configura uma condição objectiva de procedibilidade da presente acção, como defende o Ministério Público, impondo-se o julgamento da verificação da excepção dilatória insuprível de falta de condição objectiva de procedibilidade, prevista no artigo 18.° n.° 1, al. b) do DL n.° 227/2012, de 25 de Outubro, pelo que absolvo o Réu da presente instância declarativa, nos termos do disposto nos artigos 278.° n.° 1 al. e), 279.° e 577.º (proémio), todos do Código de Processo Civil.”
II- O Autor, ora Recorrente, não se conforma com a decisão a quo, por entender que, a prova documental produzida nos autos, impunha distinta decisão de facto e, consequentemente, distinta decisão de direito.
III- Na perspectiva do Autor, ora Recorrente, a reapreciação/reponderação da matéria de facto conduzirá a diferente conclusão quanto à procedência da presente acção.
IV- Assim, desde logo, para efeitos do disposto no artigo 640º do CPC, o Autor, ora Recorrente, não se conforma que, não tenha sido dado como provado o seguinte facto, o qual deve ser aditado aos factos provados:
Facto 16
- O saldo descoberto na conta D/O ...04 verifica-se desde 20/09/2012.
V- Porquanto, da leitura do extracto integrado n.º 11/2012, alusivo à conta de depósitos à ordem n.º ...04, junto sob o doc. 1 ao requerimento do Autor de 06/09/2022, extrai-se que aos 20/09/2012 a respectiva conta ficou a descoberto, pelo montante de €41,60, em virtude do lançamento, a débito, dos seguintes movimentos:
(iv) €11,39: Tpa – Pagamento Comissão Gestão Mensal;
(v) €40,00: Gest Conta BES Neg Tes. Comercio – 21/08/2012 a 20/09/2012;
VI- €1,60: Imposto Selo S/ Gestão de Conta
VII- E da leitura dos demais extractos ali juntos sob os docs. 2, 3 e 4 afere-se que a respectiva conta permaneceu sempre negativa e aos 20/12/2012 a gestão do saldo devedor passou, então, para a Direcção de Recuperação de Crédito; cfr. extracto ali junto como doc. 4, “passagem A Gestão Drc”, crédito €280,94.
VIII- Por seu lado, o tribunal a quo não declarou a falsidade dos expostos documentos.
IX- Ademais, o facto 11 dos factos provados deverá ter a seguinte completa redacção:
- Como contrapartida, foi acordado que o Réu pagaria ao Autor o saldo indicado no extracto de “Conta-cartão” n.º ...75, acrescidos de juros convencionados à taxa anual de 24,500%, e juros de mora à taxa de 4%, que incidiam sobre o montante remanescente em dívida, no caso de não pagamento do saldo indicado.
84- Atenta a Cláusula 7.ª sob a epígrafe “taxas de juro”, do título “Condições específicas de utilização dos cartões de crédito BES VISA para Clientes Particulares” do contrato junto ao requerimento do Autor de 04/04/2022 sob o doc. 1, pág. 8ª e as disposições conjugadas do art.º 7.º, n.ºs 1 e 2 do DL nº 344/78, de 17 de Novembro (na redacção introduzida pelo decreto-lei nº 83/86, de 06 de Maio), do aviso nº 5/88, de 15 de Setembro de 1988, publicado no Diário da República, Iª série, nº 214, de 15 de Setembro de 1988, do aviso de 17 de Março de 1989, publicado no Diário da República, Iª série, nº 65, de 18 de Março de 1989 e do art.º 1º, nº1, do DL nº 32/89.
X- Por seu lado, o Autor, ora Recorrente, não se conforma com o entendimento do tribunal a quo no sentido em que apesar da situação de incumprimento, não se provou que o banco Autor houvesse promovido a extinção da relação jurídico-contratual, nomeadamente, por via da resolução. Antes pelo contrário, já que continua a reclamar do Réu os juros vincendos contratualmente estipulados. Significa isto que, no seu entender, este é um dos casos sujeitos a PERSI, pois não houve resolução contratual ou qualquer outra forma de extinção do vínculo obrigacional.
XI- No que concerne ao saldo devedor da conta à ordem n.º ...04, a exigibilidade de juros consta de cláusula contratual, concretamente das Cláusulas 4.ª intitulada “Descoberto Autorizado“, 6.ª, intitulada “provisão insuficiente”, e 14.ª intitulada “comissões, encargos e despesas” das condições gerais de abertura de conta aplicáveis no caso.
XII- Logo, o saldo negativo gera a obrigatoriedade de pagamento de juros remuneratórios, acrescidos de juros moratórios, se o referido saldo não for regularizado no prazo que o banco credor fixar.
XIII- Ou seja, a exigibilidade dos juros, seja a título remuneratório, seja a título moratório, depende apenas da interpelação do devedor, com fixação do prazo para pagamento.
XIV- A qual ocorreu no caso em apreço; cfr. o facto 8 dos factos provados.
XV- Donde, em função da interpelação, a data relevante para efeitos de aferição da
necessidade de integração do Réu no PERSI é a data do saldo do descoberto em conta, e por via disso do incumprimento do contrato, que se verifica desde 20/09/2012; cfr. o extracto junto aos autos através do requerimento do Autor de 06/09/2022 sob o n.º 1 e o facto 16 supra a aditar aos factos provados.
XVI- Logo, portanto, há muito que a obrigação decorrente do saldo devedor se venceu.
XVII- Não havia assim lugar à integração do Réu no PERSI, na medida em que a mora resultante do incumprimento se iniciara há mais de um ano e na medida em que tal incumprimento já havia determinado que o contrato já não estava em vigor.
XVIII- Ora, o DL 227/2012 de 25 de outubro que instituiu o Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), que entrou em vigor aos 01.01.2013 é posterior ao incumprimento.
XIX- O período de 30 dias, desde a data do incumprimento, há muito se havia verificado.
XX- Por isso, o Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI) é inaplicável aos presentes autos.
XXI- Já a intento do saldo credor da conta crédito n.º ...75, à semelhança da situação antecedente, também no contrato de utilização do cartão de crédito se previu a exigibilidade de juros, concretamente na Cláusula 7.ª sob a epígrafe “taxas de juro”, do título “Condições específicas de utilização dos cartões de crédito BES VISA para Clientes Particulares”; cfr. doc. 1 junto ao requerimento do Autor de 04/04/2022, pág. 8a.
XXII- Sendo que, a intento da liquidação do extracto de conta-crédito, estipulou a Cláusula 6.ª sob tal epígrafe que:
“6.1 A data de vencimento dos montantes em dívida constará o extracto da conta-crédito, enviado mensalmente para a morada do Titular, no caso dos Extractos em Papel, ou mensalmente disponibilizado no serviço Besnet, caso o Titular opte pelo Extracto Electrónico, e corresponde ao vigésimo dia a contar da data da emissão do mesmo. O pagamento do montante total em dívida será efectuado por ordem de débito permanente à conta de Depósitos à ordem associada ao contrato cartão, indicada pelo Titular, numa das seguintes modalidades (…)”; idem, pág. 8a.
XXI- O não pagamento da totalidade do saldo indicado no extracto de contra-crédito, gera, assim, a obrigatoriedade de pagamento de juros remuneratórios, acrescidos de juros moratórios.
XXII- Ora, como é sabido, a prestação é exigível quando a obrigação se encontra vencida ou o seu vencimento depende, de acordo com estipulação expressa ou com a norma geral supletiva do artigo 777º/1 do Código Civil, de simples interpelação ao devedor. Não tendo o Réu cumprido a sua prestação – solvência do saldo do cartão de crédito no prazo convencionado -, como a obrigação tinha prazo certo (cfr. a referida Clausula 6.ª) venceu-se a mesma nessa data e é, desde então, exigível pelo credor.
XXIII- No caso, o valor mutuado no período convencionado não foi pago pelo Réu na data acordada, verificando-se o incumprimento do contrato, vencendo-se a dívida.
XXIV- Não revertendo a situação dos autos a uma dívida liquidável em prestações, não houve vencimento antecipado de prestações vincendas e isso é que justificaria a restrição dos juros remuneratórios à parcela de capital ainda por satisfazer.
XXV- Ainda assim, o Autor expediu missivas dirigidas ao Réu, datadas de 12/10/2011 e 10/12/2011, a reclamar o pagamento do referido saldo; cfr. facto 13 dos factos provados.
XXVI- Aqui chegados, a data relevante para efeitos de aferição da necessidade de integração do Réu no PERSI é a data do incumprimento, que se verifica desde 10/10/2011; cfr. o facto 12 dos factos provados.
XXVII- Não havia assim lugar à integração do Réu no PERSI, na medida em que a mora resultante do incumprimento se iniciara há mais de um ano e na medida em que tal incumprimento já havia determinado que o contrato já não estava em vigor.
XXVIII- Ora, o DL 227/2012 de 25 de outubro que instituiu o Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), que entrou em vigor aos 01.01.2013 é posterior ao incumprimento.
XXIX- O período de 30 dias, desde a data do incumprimento, há muito se havia verificado.
XXX- Por isso, o Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de
Incumprimento (PERSI) é inaplicável aos presentes autos.
XXXI- Ao assim decidir, o tribunal a quo violou as disposições normativas constantes dos art.ºs 362, 376, 777.º, n.º 1 do CC, art.º 7.º do DL 344/98, do aviso 5/88 , do aviso 17/Março 1989 e do art.º 1.º, n.º 1 do DL 32/89.
XXXII- Em face do que, deve proceder o presente recurso e, em consequência, ser
alterada a decisão da matéria de facto aditando-se o facto 16 supra exposto aos factos provados e modificando-se a redacção do facto 11, também nos termos que vêm descritos e ser, ainda, revogada a decisão de direito e substituída por outra que por outra que decrete a desnecessidade de integrar o Réu no PERSI e, nessa sequência, determine a procedência da acção.
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III – DA CONTRA-ALEGAÇÃO
Pelo Ministério Público, em representação do réu ausente, foram apresentadas contra-alegações, defendendo a confirmação da sentença impugnada por, diferentemente do que alega o recorrente, haver no caso obrigação de integração do réu em PERSI.
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IV - OS FACTOS
A factualidade declarada provada e com interesse para a decisão da causa na sentença recorrida é a seguinte:
“1. O autor tem por objecto a actividade bancária em geral.
2. Por força de deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal de 3 de Agosto de 2014 o Autor sucedeu na titularidade das obrigações ao Banco Espírito Santo, S.A.
3. No âmbito da actividade bancária, o Autor ajustou com o Réu, em 10.05.2005, um acordo de abertura de conta a que foi atribuído o n.º ...04.
4. Em 07.11.2007, BB passou a integrar a referida conta, em conjunto com o Réu.
5. O Réu e BB obrigaram-se a regularizar o eventual saldo devedor que se viesse a manifestar na identificada conta.
6. Ajustaram que em caso de saldo de conta a crédito a favor do Autor, venceriam juros remuneratórios à taxa de 27% e juros de mora à taxa de 2%.
7. Entre 31/08/2012 e 20/12/2012, os Réus geraram, nessa conta, um saldo a crédito a favor do Autor no montante de €280,94.
8. Em 22/12/2012, o Autor expediu uma missiva dirigida ao Réu, através da qual solicitou a regularização das quantias vencidas no período aludido em 7), as quais não foram liquidadas.
9. Em 10.05.2005, o Autor, no exercício da sua actividade, celebrou com o Réu, a solicitação, um “Contrato de utilização de cartão de crédito”, do denominado cartão Gold.
10. Nos termos do indicado contrato, o Autor emitiu em nome do Réu um cartão bancário para funcionar enquanto meio de pagamento que permitia a aquisição, pelo Réu, de bens e serviços em todos os estabelecimentos, nacionais ou estrangeiros, aderentes ao sistema visa.
11. Como contrapartida, foi acordado que o Réu pagaria ao Autor o saldo indicado no extracto de “Conta-cartão” n.º ...75, acrescidos de juros convencionados à taxa anual de 24,500%, que incidiam sobre o montante remanescente em dívida, no caso de não pagamento do saldo indicado.
12. Da utilização do indicado cartão e do consequente débito, resultou, para o Novo Banco, aos 10.10.2011, o crédito no valor de €2.258,32.
13. O Autor expediu missivas dirigidas ao Réu, datadas de 12.10.2011 e 10.12.2011, a reclamar o pagamento do referido saldo.
14. O referido saldo foi parcialmente liquidado, permanecendo o crédito no montante de €1.586,89.
15. BB, foi declarada insolvente aos 18.05.2013 no âmbito do processo que sob o n.º 2381/13.7TBSTB correu termos pelo 1.º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal.”
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V – O OBJECTO DO RECURSO
Como se sabe, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (cfr. arts. 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC).
Sublinha-se ainda a este propósito que na sua tarefa não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelo recorrente, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (cfr. art. 5.º, n.º 3, do mesmo CPC).
Assim, no caso presente, as questões colocadas ao tribunal de recurso pelo recorrente referem-se por um lado à matéria de facto, concretamente a pretensão de aditamento de um facto com o n.º 16 e da alteração da redacção do facto n.º 11, e por outro lado à matéria de direito, concretamente saber da aplicabilidade ao caso da obrigação legal de integração do réu em PERSI.
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VI – APRECIANDO E DECIDINDO
Impõe-se agora passar a apreciar o recurso do autor, considerando as questões por ele colocadas, já acima referidas.
Seguindo a ordem indicada na apelação, primeiro trataremos dos factos, e em seguida apreciaremos quanto ao Direito.
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A- Quanto aos factos
O recorrente começa por discordar do julgamento da matéria de facto, pedindo em concreto, nomeadamente, que seja aditado aos factos provados um facto n.º 16 com o seguinte teor:
16 - O saldo descoberto na conta D/O ...04 verifica-se desde 20/09/2012.”
E ainda que seja modificado o conteúdo do art. 11º dos mesmos factos, de modo a constar o seguinte:
“11 - Como contrapartida, foi acordado que o Réu pagaria ao Autor o saldo indicado no extracto de “Conta-cartão” n.º ...75, acrescidos de juros convencionados à taxa anual de 24,500%, e juros de mora à taxa de 4%, que incidiam sobre o montante remanescente em dívida, no caso de não pagamento do saldo indicado.”
Como fundamento para estas pretensões o recorrente aponta o conteúdo dos documentos que juntou aos autos, corroborados e esclarecidos em audiência pelas duas testemunhas inquiridas, e aliás aceites pelo tribunal recorrido como válidos para a prova dos factos neles documentados, como decorre de forma expressa da fundamentação da sentença proferida (v. g. os documentos juntos a 04/04/2022 e a 06-09-2022).
Como é sabido, o art. 640º do Código de Processo Civil regula a possibilidade de impugnação pelo recorrente da matéria de facto fixada na instância recorrida, mediante o cumprimento dos ónus a seu cargo, aí previstos.
Nomeadamente, deve o recorrente especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Julgamos que o recorrente cumpriu os ónus exigíveis a este respeito, pelo que há que indagar do bom fundamento apresentado para as suas pretensões.
Quanto à matéria indicada para integrar o novo facto 16, afigura-se desde já que o recorrente tem razão, visto que tal factualidade consta expressamente do extracto bancário emitido a 30-09-2012, junto pelo autor a 06-09-2022, documento este cuja autenticidade não está questionada e cujo conteúdo foi corroborado em audiência pelas testemunhas inquiridas.
Consequentemente, procede o recurso nessa parte, devendo aditar-se o facto mencionado, com o n.º 16.
Quanto ao facto elencado com o n.º 11, pretende o recorrente que fique a constar com nova redacção, que se traduz em rigor num aditamento, uma especificação, referente aos juros de mora.
O tribunal recorrido deu como provado que “Como contrapartida, foi acordado que o Réu pagaria ao Autor o saldo indicado no extracto de “Conta-cartão” n.º ...75, acrescidos de juros convencionados à taxa anual de 24,500%, que incidiam sobre o montante remanescente em dívida, no caso de não pagamento do saldo indicado”, e o apelante pretende que a nova versão seja “Como contrapartida, foi acordado que o Réu pagaria ao Autor o saldo indicado no extracto de “Conta-cartão” n.º ...75, acrescidos de juros convencionados à taxa anual de 24,500%, e juros de mora à taxa de 4%, que incidiam sobre o montante remanescente em dívida, no caso de não pagamento do saldo indicado.”
A inclusão da referência dos juros de mora justifica-se pelo estipulado no contrato celebrado, junto aos autos a 04/04/2022, relativamente à natureza creditícia das operações realizadas com o cartão (conta-crédito), conjugado com a legislação existente relativa aos juros moratórios, citada pelo recorrente.
Verifica-se que o próprio tribunal recorrido valorou a este respeito (facto n.º 11) o teor dos documentos bancários juntos com requerimento de 04/04/2022, o teor das missivas juntas também nessa data, elementos estes “enquadrados pelos esclarecimentos coerentes e corroborantes das testemunhas” ouvidas em audiência.
Em face desses elementos de prova, afigura-se procedente também esta pretensão do autor, que em rigor se traduz numa especificação da existência dos juros de mora nas operações em referência, matéria esta que, em boa verdade, o tribunal recorrido também não questionou.
Conclui-se assim a apreciação da impugnação da matéria de facto deduzida pelo autor/recorrente julgando procedentes as alterações propugnadas (independentemente de qualquer juízo sobre a sua relevância) pelo que a matéria fáctica a considerar passa a incluir os factos 11 e 16 com o seguinte teor:
“11 - Como contrapartida, foi acordado que o Réu pagaria ao Autor o saldo indicado no extracto de “Conta-cartão” n.º ...75, acrescidos de juros convencionados à taxa anual de 24,500%, e juros de mora à taxa de 4%, que incidiam sobre o montante remanescente em dívida, no caso de não pagamento do saldo indicado.”
“16 - O saldo descoberto na conta D/O ...04 verifica-se desde 20/09/2012.”
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B – Quanto ao Direito
Como decorre claramente de toda a discussão trazida pelo recorrente, a questão a decidir, da qual depende a sorte do recurso, traduz-se em saber se no caso existia a obrigação por parte do recorrente de integrar o réu em PERSI, conforme alegou o Ministério Público em defesa por via de excepção, julgada procedente na sentença recorrida.
Com efeito, não está posta em dúvida a natureza dessa condição de procedibilidade, nem as consequências da sua falta, nem a circunstância de no caso ela não se verificar – o autor alega é que não havia lugar à aplicação do PERSI, por a legislação que previu essa obrigação não ser aplicável ao caso.
Ou seja, não há dúvidas que estamos perante contratos de mútuo oneroso (art.ºs 1142º e 1145º do Código Civil) e bancário, por terem sido celebrados por uma instituição de crédito bancária (cfr. art.º 1.º do Decreto-Lei n.º 344/78), e que se trata de créditos ao consumo (art.º 2° do Decreto-Lei n.º 359/91, de 25 de Outubro), no qual o banco aqui autor, no exercício da sua actividade própria, adiantou ao réu quantias de capital que este deveria posteriormente pagar, acrescidas dos respectivos juros, remuneratórios e também moratórios, caso houvesse mora.
Também não se pode duvidar, perante a factualidade disponível, que o incumprimento do réu já se verificava anteriormente à entrada em vigor do DL n.º 227/2012, de 25-10, que instituiu a obrigatoriedade de integração em PERSI dos devedores abrangidos na sua previsão legal.
A discordância do autor recorrente com o decidido apoia-se na anterioridade dos seus créditos e do incumprimento já então verificado, a situação de mora, que implicaria segundo ele a não aplicabilidade legal da obrigação de inclusão em PERSI deste devedor em concreto.
Sobre estas questões pronunciou-se a douta sentença recorrida, da forma que passamos a transcrever.
“Pois bem, o DL nº 227/2012, de 25.10, estabelece os princípios e regras a observar pelas instituições de crédito na prevenção e na regularização das situações de incumprimento de contratos de crédito pelos clientes bancários, disciplina jurídica que entrou em vigor a 01/01/2013 (cf. art.º 40.º do DL n.º 227/2012, de 25 de Outubro).
Não se discutindo o âmbito e objecto de aplicação (nomeadamente, em função da natureza das partes e dos contratos celebrados), até por ser pública a natureza do Novo Banco, S.A., e tratar-se o Réu de pessoa singular, cingimo-nos aos efeitos da falta de adopção do mencionado mecanismo.
Em concreto, prevê-se naquele diploma que cada instituição de crédito crie um plano de acção para o risco de incumprimento (PARI), fixando procedimentos e medidas de acompanhamento da execução dos contratos de crédito que, por um lado, possibilitem a detecção precoce de indícios de risco de incumprimento e o acompanhamento dos consumidores que comuniquem dificuldades no cumprimento das obrigações decorrentes dos referidos contratos e que, por outro lado, promovam a adopção célere de medidas susceptíveis de prevenir o referido incumprimento (cf. art.º 9.º e ss. do DL n.º 227/2012, de 25 de Outubro).
Acresce, nesse diploma, a imposição de adopção de um procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento (PERSI), no âmbito do qual, perante clientes bancários que se encontrem em mora no cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito, as instituições de crédito devem promover mecanismos tendentes a avaliar a capacidade financeira do consumidor e, sempre que tal seja viável, apresentar propostas de regularização (cf. art.º 12.º e ss. do DL n.º 227/2012, de 25 de Outubro).
A adopção deste mecanismo, pelas entidades financeiras, é obrigatória, tanto mais que até à sua extinção, a instituição de crédito está impedida de resolver o contrato de crédito com fundamento em incumprimento, de intentar acções judiciais para a satisfação do crédito, de ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito ou de transmitir a terceiro a sua posição contratual (art.º 18, nº 1 do DL n.º 227/2012, de 25 de Outubro).
Assim sendo, a instituição de crédito só pode instaurar acção judicial destinada à cobrança do crédito após a extinção do PERSI quando haja lugar a este, mais estabelecendo o nº 4 do art.º 17 que a extinção do PERSI só produz efeitos após a comunicação referida no nº 3 (excepto quando o fundamento de extinção for a obtenção de acordo entre as partes para regularização integral da situação de incumprimento).
Deste modo, a comunicação de extinção do PERSI funciona como uma condição de admissibilidade da acção, declarativa ou executiva, constituindo a sua falta excepção dilatória insuprível que determina a extinção da instância (art.º 576, nº 2, do C.P.C.), excepção essa de conhecimento oficioso.
Portanto, da referida norma resulta a integração automática dos contratos em incumprimento temporário (mora) por incumprimentos ocorridos há mais de 30 dias (portanto, em data anterior a 01/12/2012), como é o caso dos autos.
Acresce que apesar da situação de incumprimento, não se provou que o banco Autor houvesse promovido a extinção da relação jurídico-contratual, nomeadamente, por via da resolução. Antes pelo contrário, já que continua a reclamar do Réu os juros vincendos contratualmente estipulados.
Significa isto que este é um dos casos sujeitos a PERSI, pois não houve resolução contratual ou qualquer outra forma de extinção do vínculo obrigacional.
Como o Autor não fez prova de ter integrado o Réu no referido PERSI, tal configura uma condição objectiva de procedibilidade da presente acção, como defende o Ministério Público, impondo-se o julgamento da verificação da excepção dilatória insuprível de falta de condição objectiva de procedibilidade, prevista no artigo 18.° n.° 1, al. b) do DL n.° 227/2012, de 25 de Outubro, pelo que absolvo o Réu da presente instância declarativa, nos termos do disposto nos artigos 278.° n.° 1 al. e), 279.° e 577.º (proémio), todos do Código de Processo Civil.”
Julgamos que a fundamentação e a conclusão expostas pela primeira instância estão de acordo com as normas legais a considerar e merecem a nossa adesão.
Como se pode ler na sua motivação, o autor sustenta que o saldo descoberto em conta, e por via disso o incumprimento do contrato, verifica-se desde 20.09.2012, ao passo que o incumprimento associado ao cartão de crédito sucede desde 10.10.2011, sendo que o DL 227/2012 de 25 de Outubro, que instituiu o Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), entrou em vigor aos 01.01.2013, portanto, em momento posterior aos incumprimentos, pelo que tal procedimento será inaplicável aos autos.
A este respeito diremos desde já que a posição do autor, expressa na sua conclusão, claudica irremediavelmente por força de um ponto concreto omitido na sua argumentação, apesar de constar da fundamentação da sentença, e que vem a ser a falta da resolução das relações contratuais estabelecidas entre o banco e este seu cliente.
Na verdade, todo o esforço argumentativo do autor baseia-se no incumprimento ocorrido, na sua anterioridade em relação ao regime legal que introduziu o PERSI, e na exigibilidade das obrigações do réu, incluindo as quantias de capital e os juros.
Porém, em momento algum demonstra a existência de resolução das relações contratuais estabelecidas, e essa resolução em momento anterior à entrada em vigor do DL n.º 227/2012, de 25-10 é que se impunha demonstrar, por ser o facto decisivo a considerar para efeitos de aplicabilidade ou não aplicabilidade do regime legal em causa.
Neste sentido leia-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/02/2019, proc. n.º 144/13.9TCFUN-A.L1.S1, relator Acácio das Neves, disponível em www.dgsi.pt, onde se concluiu que:
«I- A exigência de integração dos clientes bancários, em situação de mora há mais de um ano, à data da entrada em vigor do DL n.º 227/2012, de 25-10, no regime de regularização (PERSI) ali estabelecido, depende, nos termos do respectivo art. 39.º, da vigência dos contratos de crédito – o que não ocorre se estes entretanto já tiverem sido objecto de resolução com fundamento no incumprimento.»
Ou seja, o que determina a exclusão da aplicabilidade da exclusão do PERSI nesses casos não é a existência do incumprimento, nem da mora, mesmo há mais de um ano, é sim a existência de resolução do contrato.
Não tendo sido resolvido o contrato, é aplicável o regime do PERSI às situações de incumprimento já existentes à data da entrada em vigor do diploma citado, uma vez que os contratos continuam em vigor nessa data.
Tal como decorre do artigo 39º, relativo à aplicação temporal do diploma:
“1 - São automaticamente integrados no PERSI e sujeitos às disposições do presente diploma os clientes bancários que, à data de entrada em vigor do presente diploma, se encontrem em mora relativamente ao cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito que permaneçam em vigor, desde que o vencimento das obrigações em causa tenha ocorrido há mais de 30 dias.
2 - Nas situações referidas no número anterior, a instituição de crédito deve, nos 15 dias subsequentes à entrada em vigor do presente diploma, informar os clientes bancários da sua integração no PERSI, nos termos previstos no n.º 4 do artigo 14.º
3 - Os clientes bancários que, à data de entrada em vigor do presente diploma, se encontrem em mora quanto ao cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito há menos de 31 dias são integrados no PERSI nos termos previstos no n.º 1 do artigo 14.º.”
Julgamos assim que não sendo demonstrada a resolução, e a factualidade disponível não aponta nesse sentido, mesmo com as alterações introduzidas por via deste recurso, a consequência inevitável é a sujeição a PERSI da situação em causa.
Acrescentamos que mesmo o conjunto de documentos apresentado pelo autor, nomeadamente extractos bancários e missivas dirigidas ao réu, bem como os esclarecimentos pertinentes produzidos em audiência pelas testemunhas indicadas pelo autor (seus funcionários) apontam para a diligência do banco autor na regularização das situações de incumprimento, através dessas interpelações, e não para a resolução das relações contratuais em questão (não sabemos de nenhum cancelamento da conta ou do cartão).
Sobre a essencialidade da resolução anterior como fundamento para a não aplicação do regime legal introduzido no DL n.º 227/2012 (por este pressupor a vigência das relações contratuais alegadas) também se pronunciou o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 24-02-2022, no processo n.º 949/14.3TBSSB-E.E1, relatado por Francisco Xavier, no qual se concluiu:
“A aplicação do regime de regularização de situações de incumprimento (PERSI) implementado pelo Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro, aos casos de mora iniciados antes da entrada em vigor deste diploma, tem como pressuposto, além da manutenção da mora no incumprimento das obrigações contratuais, que o contrato permaneça em vigor, o que não ocorre se àquela data o contrato já tiver sido objecto de resolução com fundamento no incumprimento.”
A contrario sensu, não se verificando a aludida resolução, aplica-se de pleno o regime legal em referência.
Ora, como ficou afirmado na sentença revidenda, “apesar da situação de incumprimento, não se provou que o banco Autor houvesse promovido a extinção da relação jurídico-contratual, nomeadamente, por via da resolução. Antes pelo contrário, já que continua a reclamar do Réu os juros vincendos contratualmente estipulados.”
Na realidade, nada permite concluir que aquando da instauração da acção judicial estava extinta a relação contratual em causa, pois que nunca o banco autor alegou e demonstrou que a conta bancária foi encerrada e os contratos invocados foram resolvidos – antes pelo contrário, atenta a prova documental junta aos autos e a prova testemunhal produzida em audiência, pelas testemunhas do autor.
Não se pode confundir o incumprimento com a resolução, como parece resultar da argumentação do recorrente. O que o autor defende significaria que o incumprimento e a mora só por si já teriam determinado que o contrato já não estava em vigor, o que não pode aceitar-se por olvidar o conceito legal de resolução.
Segundo o disposto no art. 436º do Código Civil, a resolução do contrato pode fazer-se por declaração à outra parte; e no campo das relações jurídicas aqui em causa rege o DL n.º 133/2009, de 02 de Junho, o qual no seu artigo 20.º, n.º 1, al. b), parte final, também previu a resolução por comunicação à outra parte.
A regra geral relativa ao incumprimento é a de que tendo a obrigação por fonte um contrato bilateral, o credor, independentemente de outro direito que lhe assista, pode resolver o contrato, cfr. art. 801º, nº 2, do C.Civil, e essa resolução deve ser feita por declaração à parte inadimplente - art. 436º, nº 1, do mesmo Código Civil.
A resolução ou rescisão dos contratos efectua-se mediante comunicação dirigida à parte contrária, comunicação esta que não foi demonstrada nos autos.
Assim, não tendo o banco efectuado a resolução do contrato, seja nos termos do regime geral do Código Civil ou nos termos da previsão do artigo 20.º, n.º 1, al. b), do Decreto- Lei n.º 133/2009, de 02 de Junho, essa circunstância implica a submissão dos contratos em análise ao estatuído pelo artigo 39.º do Decreto-Lei 227/2012, de 25 de Outubro.
E daí resulta necessariamente que o réu deveria ter sido integrado em PERSI em momento anterior à instauração da acção judicial destinada à cobrança do crédito, e que não tendo ocorrido essa integração verifica-se efetivamente a excepção dilatória insuprível de falta de condição objectiva de procedibilidade, prevista no artigo 18.° n.° 1, al. b) do DL n.° 227/2012, de 25 de Outubro, o que determina a absolvição da instância, como foi decidido na sentença em apreço.
Perfilhamos, portanto, os fundamentos e a consequente decisão exarados na sentença impugnada, que não nos merecem qualquer censura e que por isso confirmamos.
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VII - DECISÃO
Nestes termos, julgamos improcedente a apelação, e, com os fundamentos que foram expostos, confirmamos a decisão recorrida.
Custas a cargo do recorrente, dado o seu decaimento (cfr. art. 527.º, n.º 1, do CPC).
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Évora, 30 de Março de 2023
José Lúcio
Manuel Bargado
Albertina Pedroso