Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1819/21.4T8EVR-D.E1
Relator: ANABELA LUNA DE CARVALHO
Descritores: INSOLVÊNCIA
LIQUIDAÇÃO DO ACTIVO
ADJUDICAÇÃO
DIFERIMENTO DE DESOCUPAÇÃO DE IMÓVEL
Data do Acordão: 03/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1- Segundo o artigo 171.º do CIRE, a liquidação do ativo pode ser dispensada, total ou parcialmente se: a) o devedor for uma pessoa singular; b) a massa insolvente não compreender uma empresa; e c) o devedor entregar ao administrador da massa uma importância em dinheiro não inferior àquela que resultaria da liquidação.
2- A insuficiência da massa para fazer face às suas próprias dívidas e custas do processo constitui fundamento de interrupção da liquidação do ativo.
3- Pode ocorrer suspensão da liquidação do ativo, a qual tem natureza excecional (artigo 8.º, n.º 1, do CIRE), sendo apenas permitida nos casos previstos nos artigos 40.º, n.º 3, 156.º, n.º 3, 206.º, n.º 1 e 225.º, todos do CIRE.
4- O facto de o bem a liquidar (usufruto) envolver a casa de habitação da insolvente poderá, por força do artigo 150.º do CIRE, convocar as normas do Código de Processo Civil que contemplam razões sociais imperiosas para justificar o diferimento da desocupação.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 1819/21.4T8EVR-D.E1
2ª Secção

Acordam no Tribunal da Relação de Évora:


I

O presente recurso em separado (apenso D) foi extraído dos autos de liquidação que correm por apenso (C) ao Processo de Insolvência de Pessoa Singular n.º 1819/21.4T8EVR, em que é Insolvente AA e são Credores: Banco (…), SA e a Autoridade Tributária (AT).

Na insolvência:

- O Banco (…), S.A. reclamou um crédito no valor de € 27.465,15, que está reconhecido.

- O Ministério Público em representação da Autoridade Tributária (AT), reclamou um crédito no valor de € 630,31, que está reconhecido.

- Foi apreendido para a massa insolvente (apenso A): - O usufruto do prédio urbano destinado a habitação, sito em Bairro ..., Rua ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...67 da freguesia ..., inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...22 da União das freguesias de ..., proveniente do anterior artigo 9167 da referida freguesia ... (extinta), AP ...5 de 2020/02/01;

- Corre integrado nos autos de insolvência, incidente de exoneração de passivo restante, o qual foi objeto de deferimento liminar.

- No apenso de liquidação do ativo (A) veio a Insolvente requerer em 24/11/2022:

“1. Tomou agora a requerente conhecimento do resultado das diligências efetuadas no âmbito do processo de liquidação do ativo, sendo que o único bem apreendido e que está em causa é o usufruto do prédio urbano destinado a habitação, sito no Bairro ..., Rua ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...67, da freguesia ... (...), e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...22, da União das Freguesias da ....

2. Verificou-se a existência de várias licitações, sendo a maior no valor de 19.900,00 euros, assumindo a qualidade de licitante duas sociedades comerciais, i.e., 2..., Lda. e V... Unipessoal, Lda., na proporção de ½ para cada sociedade;

3. As proponentes, na sua proposta de licitação, destinam a referida aquisição a revenda.

4. A ora requerente reside com caráter de permanência neste imóvel, propriedade de sua filha, há mais de 25 anos;

5. Não possuído quaisquer bens imóveis.

6. Encontra-se no presente momento desempregada, e, pese embora os maiores esforços por esta desenvolvidos na procura ativa de emprego, a sua idade, de 59 anos, tem determinado que se gorassem sucessivamente as oportunidades a que se candidata – Junta Doc. 1;

7. O seu agregado familiar é composto por si e pelo seu marido, o qual, para além de se encontrar também insolvente, é mecânico auto, auferindo mensalmente o ordenado mínimo;

8. É com este parco montante que fazem face a todas as despesas correntes, nomeadamente alimentação, água, luz, gás e telecomunicações, entre outras;

9. Após sondagem do mercado de arrendamento em ..., e atentos os valores praticados presentemente, não se mostra possível tomar de arrendamento qualquer espaço habitacional;

10. Ademais, a requerente padece de várias doenças crónicas incapacitantes, sendo mesmo acompanhada por um psiquiatra e tomando medicação diariamente.

11. A ser concretizada a venda do usufruto, fica a requerente, face à situação de extrema vulnerabilidade física e económica em que se encontra, sem um local onde viver, o que consubstancia uma situação limite em que estamos perante uma questão de dignidade da pessoa humana.

Face ao exposto e tendo em atenção a sua situação de especial vulnerabilidade supra identificada, requer-se a V. Exa., mui respeitosamente, a suspensão da adjudicação do usufruto do imóvel em causa por ser suscetível de causar prejuízo irreversível à requerente.”

Juntou documentos médicos e administrativos comprovativos da alegada situação pessoal, profissional e clínica.

- Apenas o Ministério Público se opôs alegando não concordar com a possibilidade de ser suspensa a adjudicação do usufruto do imóvel por ser contrária aos interesses dos credores.

- O Mmº Juiz a quo proferiu despacho de indeferimento, com a seguinte fundamentação:

«Com o seu requerimento de 24-11-2022, a insolvente AA requereu a suspensão da venda do direito apreendido nos presentes autos, direito de usufruto respeitante ao prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...67, o que suscitou a oposição da credora Autoridade Tributária.

A ora requerente, tendo alegado uma situação de carência económica, não indicou, contudo, qualquer base legal que sustente o ora requerido.

Como se refere no acórdão de 28-05-2020 do TRG, Proc. n.º 6686/17.0T8VNF-G.G1, A suspensão da liquidação do ativo tem natureza excecional sendo que a lei a prevê nas seguintes situações: a) por determinação da assembleia de credores nos termos do artigo 156.º, n.º 3 e 4; b) por decisão do juiz nos termos do artigo 206.º; c) na situação prevista no artigo 225.º; e ainda d) com a oposição de embargos à sentença de declaração de insolvência e com o recurso da decisão dos embargos que mantiver tal declaração nos termos do artigo 40.º, n.º 3; fora destes casos poder-se-á admitir a suspensão da liquidação em situações objetivamente avaliáveis que visem corrigir injustiças manifestas, mas não deixando de ter presente os interesses dos credores (…).

Ora, a alegada situação de carência económica não se reconduz a qualquer um dos apontados fundamentos de suspensão da liquidação do ativo.

Face ao exposto, indefere-se o requerido.»

Inconformada com tal decisão veio a Insolvente recorrer, concluindo do seguinte modo as suas alegações de recurso:

A. O despacho ora em crise e do qual se recorre não fez, salvo melhor e douta opinião, uma correta valoração do quanto foi alegado pela agora recorrente, no seu requerimento de suspensão da liquidação do ativo, estribando-se numa hermenêutica da qual se discorda totalmente;

B. Pese embora a suspensão da liquidação do ativo assuma natureza excecional, ainda assim esta é de admissível aplicabilidade a casos em que radiquem e se façam notar injustiças manifestas;

C. Crê a recorrente que a sua flagrante vulnerabilidade, quer socioeconómica, quer física e psicológica, quando apreciada no contexto dos autos em apreço, preenche a previsão de excecionalidade, pelo que, deverá ser de admitir e decretar a respetiva suspensão;

D. São apenas dois os credores neste processo, sendo um deles a Autoridade Tributária, representada pelo Ministério Público, e o outro o Banco (…), S.A.;

E. Os dois credores supra identificados traduzem um crédito global de € 28.086,46 euros, no entanto o valor reclamado pela AT é de apenas € 630,31 (seiscentos e trinta euros e trinta e um cêntimos), ou seja, representa uma ínfima parte do crédito global;

F. Notificados os credores para se pronunciarem sobre o requerimento de suspensão da liquidação do ativo, apenas a o MP, em representação da AT, se veio pronunciar, em sentido negativo;

G. Entende a recorrente que carece o MP para representar a massa insolvente, muito menos para bloquear per si e fazer gorar o quanto foi requerido;

H. A recorrente continua, não obstante todas as dificuldades descritas acima, ativamente à procura de emprego que lhe permita satisfazer todos os créditos, mas, se é verdade que a idade e doenças associadas a si, dificultam tal intento, é igualmente verdade que, nas condições socioeconómicas em que se encontra, face ao mercado de arrendamento que já sondou, tornam praticamente impossível encontrar alternativas habitacionais.

I. De considerar também que, nos termos do disposto no artigo 864.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 150.º do CIRE, a insolvente pode requerer o diferimento da desocupação do imóvel onde habita por razões sociais imperiosas, o que se requer desde já.

A final requer que, tendo em conta a especial vulnerabilidade da ora recorrente, deverá o presente recurso ser julgado procedente por provado, e o presente despacho revogado, substituindo-o por outro que defira a suspensão da liquidação do passivo, deferindo-a, extraindo daí as correspondentes consequências legais.

Não foram apresentadas contra-alegações.

É o seguinte o objeto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações:

1 - Se existe para fundamento legal para suspender a liquidação do ativo, composto exclusivamente pelo direito de usufruto de imóvel.

2- Em caso negativo, se deve ser decidido o diferimento da desocupação do imóvel onde habita a insolvente por razões sociais imperiosas.

A factualidade a considerar consta do relatório supra.


II

Conhecendo do recurso:

Dispõe o artigo 46.º do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) que:

«1 - A massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo.

2 - Os bens isentos de penhora só são integrados na massa insolvente se o devedor voluntariamente os apresentar e a impenhorabilidade não for absoluta.»

Segundo o n.°1 a massa insolvente abrange tendencialmente todo o património do devedor à data (e hora) da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo.

Esta massa é um património de afetação uma vez que, refere o n.º 1, destina-se à satisfação dos interesses dos credores da insolvência.

Da conjugação do n.º 1 com o n.º 2 resulta que, em rigor, a massa não abrange a totalidade dos bens do devedor suscetíveis de avaliação pecuniária mas tão só os que forem penhoráveis, e não excluídos por disposição especial em contrário, acrescidos dos que, não sendo embora penhoráveis, sejam voluntariamente oferecidos pelo devedor, conquanto a impenhorabilidade não seja absoluta.

Uma vez composta a massa insolvente com o direito de usufruto do imóvel apreendido nos autos, impõe-se apreciar se há razões para dispensar, interromper ou suspender a liquidação desse bem.

Segundo o artigo 171.º do CIRE, a liquidação pode ser dispensada, total ou parcialmente se:

a) o devedor for uma pessoa singular;

b) a massa insolvente não compreender uma empresa; e

c) o devedor entregar ao administrador da massa uma importância em dinheiro não inferior àquela que resultaria da liquidação.

Não estando verificado o pressuposto: entrega (ou proposta de entrega) pelo devedor ao administrador da insolvência duma importância em dinheiro não inferior à que resultaria da liquidação, não pode ser dispensada a liquidação do usufruto apreendido, com base em tal normativo.

A insuficiência da massa para fazer face às suas próprias dívidas e custas do processo constitui fundamento de interrupção da liquidação do ativo.

Se esta insuficiência ser detetada pelo juiz, aquando do proferimento da sentença declaratória da insolvência, aplicar-se-á o regime previsto no artigo 39.º do CIRE. Haverá liquidação mas esta tem um objetivo muito limitado: permitir, na medida do possível, o pagamento dos encargos do processo.

Se esta insuficiência for identificada, em momento posterior, pelo administrador da insolvência, aplicar-se-á o disposto no artigo 232.º, n.º 4. Verificada a insuficiência da massa para satisfação das custas do processo e das restantes dívidas da massa insolvente, é lícito ao administrador interromper de imediato a liquidação.

Não configuram os factos tal situação de interrupção.

Pode, ainda ocorrer suspensão da liquidação do ativo, a qual tem natureza excecional (artigo 8.º, n.º 1, do CIRE), sendo apenas permitida nos casos previstos nos artigos 40.º, n.º 3, 156.º, n.º 3, 206.º, n.º 1 e 225.º, todos do CIRE.

O artigo 40.º, n.º 3, prevê a suspensão da liquidação (sem prejuízo da realização de vendas urgentes) ocorrendo oposição de embargos à sentença declaratória de insolvência, bem como recurso da decisão que mantenha a declaração.

O artigo 156.º, n.º 3, prevê a possibilidade de a assembleia de credores determinar a suspensão da liquidação, uma vez que cometa ao administrador da insolvência o encargo de elaborar um plano de insolvência.

O artigo 206.º, n.º 1, prevê a possibilidade de o juiz, sob requerimento do próprio proponente, decretar a suspensão da liquidação da massa insolvente e da partilha do produto pelos credores da insolvência se tal for necessário para não pôr em risco a execução de um plano de insolvência proposto.

O artigo 225.º, n.º 1, prevê uma suspensão do início da liquidação: a liquidação não se inicia enquanto o devedor estiver na administração da massa insolvente.

Nenhuma destas situações excecionais suporta a realidade em apreciação.

Uma vez que a instância do processo de insolvência não é passível de suspensão, exceto nos casos expressamente previstos no CIRE (artigo 8.º, n.º 1), não vemos como possa a liquidação do ativo ser objeto de suspensão com fundamento em o bem “usufruto” integrar a habitação da insolvente.

Não há, assim, fundamento legal para suspender a liquidação do ativo, composto exclusivamente pelo direito de usufruto de imóvel.

O facto de o bem a liquidar envolver a casa de habitação da insolvente poderá ter um outro tratamento protetor específico, noutra sede que não esta.

Dispõe o artigo 150.º, n.º 5, do CIRE que:

«À desocupação de casa de habitação onde resida habitualmente o insolvente é aplicável o disposto no artigo 862.º do Código de Processo Civil.»

Dispondo este artigo 862.ºdo CPC que :

«À execução para entrega de coisa imóvel arrendada são aplicáveis as disposições anteriores do presente título, com as alterações constantes dos artigos 863.º a 866.º.»

Ou seja, o insolvente pode vir a beneficiar das normas para as quais o artigo 862.º do CPC remete, estando nelas contempladas razões sociais imperiosas para justificar o diferimento da desocupação.

Embora em sede de alegações de recurso, a insolvente tenha já manifestado essa intenção, não compete a este tribunal de recurso apreciar o requerido, uma vez que o mesmo deve ser sujeito a uma tramitação própria, no tempo certo e sob apreciação da 1ª instância.

Em suma, o diferimento da desocupação do imóvel onde habita a insolvente, por razões sociais imperiosas, não pode ser apreciada neste recurso.

Síntese conclusiva:

(…)


III


Termos em que, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pela apelante, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie.

Évora, 30/03/2023

Anabela Luna de Carvalho (Relatora)

Mário João Canelas Brás (1º Adjunto)

Jaime Pestana (2º Adjunto)