Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
500/12.0TBABF-K.E1
Relator: MARIA ALEXANDRA M. SANTOS
Descritores: DECISÃO SURPRESA
EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
CONTRADITÓRIO
NULIDADE
Data do Acordão: 04/10/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Sumário:
- A prolação de decisão de extinção da instância por inutilidade superveniente da lide sem que tenha sido dado conhecimento às partes da intenção de a proferir, sem lhes dar oportunidade de sobre ela se pronunciarem, constitui decisão-surpresa que gera nulidade processual nos termos do artº 201º nº 1 do CPC.
- Estando a nulidade decorrente da violação do princípio do contraditório coberta por uma decisão judicial, é atempada a sua arguição no recurso interposto da mesma decisão.

Sumário da relatora
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
Por apenso aos autos de insolvência de M…, LDª, em que é requerente o B… S.A., veio F…, intentar com a MASSA INSOLVENTE, representada pelo Sr. Administrador de Insolvência Dr. Fl…, a presente acção declarativa sob a forma ordinária para impugnação da resolução do contrato de cessão de exploração do empreendimento turístico “Palmeiras…”, pedindo se declare a ineficácia do acto resolutivo da cessão de exploração levada a efeito pelo Sr. Administrador da Insolvência.
Alega para tanto, e no que ao caso interessa, que foi pessoalmente notificada pelo Sr. Administrador da Insolvência em 29/01/2013 da resolução do contrato de cessão de exploração que celebrou com a insolvente M…, Ldª em 23/12/2010, cujas circunstâncias e condições descreve, sendo que falecem para o efeito, não só os respectivos pressupostos, como também os requisitos.
Conclui que não se verificam preenchidos os requisitos previstos no artº 120º do CIRE, invocados para a resolução do contrato em causa.
Juntou vários documentos.
A presente acção foi instaurada em 29/04/2013.
Conclusos os autos em 03/10/2013, o Exmº Juiz proferiu o seguinte despacho:
Revogada que foi a decisão que declarou a insolvência da requerida, tendo sido já proferido despacho datado de 11/07/2013 no apenso F, comunicando esse facto ao Exmº Administrador de Insolvência e a ordenar a cessação dos efeitos emergentes dessa mesma declaração, mais não resta do que determinar a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide – artº 277º e) do CPC.
Custas a contabilizar nos autos principais e a cargo da requerente – artºs 303º e 304º do C.I.R.E.”
Foi desta decisão que inconformada recorreu a requerente, alegando e formulando as seguintes conclusões:
A – A decisão ora recorrida, baseando-se no facto de ter sido revogada por douto Acórdão desse Meretíssimo Tribunal Superior a insolvência da sociedade M…, Ldª, determinou a extinção da presente instância por inutilidade superveniente da lide.
B – Ao determinar a extinção da instância, sem ouvir, previamente, a ora recorrente, violou o princípio do contraditório, conforme estatui o artº 3º nº 3 do CPC, aplicável ao caso ex vi do artº 17º do CIRE.
C – Ainda que a extinção da instância por pretensa inutilidade superveniente da lide seja de conhecimento oficioso do Meretíssimo do Juiz do Tribunal a quo, tal não obsta, antes obriga, como expressamente estipula o preceito supracitado, que antes da tomada de uma tal decisão tenha de ouvir as partes, em especial a ora recorrente, enquanto promotora da acção de impugnação em causa, o que não ocorreu.
D – A decisão recorrida não merece ainda tutela uma vez que não pode verificar-se inutilidade superveniente da lide quando expressamente estipula o artº 43º do CIRE que “A revogação da sentença de declaração de insolvência não afecta os efeitos dos actos legalmente praticados pelos órgãos da insolvência
E – Ao decidir pela inutilidade superveniente, violou, pois, a decisão recorrida o disposto no artº 43º do CIRE, pelo que, em qualquer caso, não deve ser mantida.
Não foram apresentadas contra-alegações.
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Delimitando-se o âmbito do recurso pelas conclusões da alegação da recorrente, abrangendo apenas as questões aí contidas (artºs 635º nº 4 e 639º nº 1 do NCPC) verifica-se que são as seguintes as questões a decidir:
- A nulidade decorrente da violação do princípio do contraditório (artº 3º nº 3 do CPC);
- Se ocorre fundamento para a extinção da instância por inutilidade superveniente da presente lide.
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Os factos a considerar são os que resultam do relatório supra.
Pretende a recorrente que o Exmº Juiz violou o princípio do contraditório consagrado no artº 3º nº 3 do CPC porquanto proferiu nos presentes autos decisão de extinção da instância por inutilidade superveniente da lide sem que desse oportunidade às partes de sobre ela se pronunciarem.

Vejamos.
Estabelece o artº 3º nº 3 do CPC, aplicável ex vi do artº 17º do CIRE que “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
Consagra tal norma o princípio do contraditório, designadamente, através da proibição da decisão-surpresa, isto é, da decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes.
Jorge Miranda e Rui Medeiros resumem o alcance do princípio do contraditório nos seguintes termos: “Segundo o Tribunal Constitucional, do conteúdo do direito de defesa e do princípio do contraditório resulta, prima facie, que cada uma das partes deve poder exercer uma influência efectiva no desenvolvimento do processo, devendo ter a possibilidade, não só de apresentar as razões de facto e de direito que sustentam a sua posição antes do tribunal decidir questões que lhe digam respeito, mas também de deduzir as suas razões, oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e tomar posição sobre o resultado de uma e de outras (Acórdãos nºd 1185/96 e 1193/96)” (Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, Tomo I, p. 194).
Também Lebre de Freitas traça a evolução do princípio do contraditório, na vertente do direito de influenciar a decisão, do seguinte modo: “Por princípio do contraditório entendia-se tradicionalmente a imposição de que, formulado um pedido ou tomada uma posição por uma parte, devia à outra ser dada oportunidade de se pronunciar antes de qualquer decisão, tal como, oferecida uma prova por uma parte, a parte contrária devia ser chamada a controlá-la e ambas sobre ela tinham o direito de se pronunciar, assim se garantindo o desenvolvimento do processo em discussão dialéctica, com as vantagens decorrentes da fiscalização recíproca das afirmações das partes.
A esta concepção, válida mas restritiva, substitui-se hoje uma noção mais lata de contraditoriedade, com origem na garantia constitucional do rechliches Gehor germânico, entendida como garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão. O escopo fundamental do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à actuação alheia para passar a ser a influência no sentido positivo de direito de incidir activamente no desenvolvimento e no êxito do processo”. (Introdução ao Proc. Civil, Conceitos e Princípios Gerais à luz do Código Revisto, Coimbra Editora, ps. 96/97)
Ora, in casu, verifica-se que, instaurada em 29/04/2013 a presente acção para impugnação da resolução do contrato de cessão de exploração levada a efeito pelo Sr. Administrador da Insolvência, sem que a mesma fosse objecto de qualquer tramitação processual, o Tribunal a quo veio a proferir a decisão ora recorrida de extinção da instância por inutilidade superveniente da lide em 03/10/2013, sem ter dado conhecimento à A. da sua intenção de conhecer imediatamente do destino da causa, não lhe permitindo, assim, que sobre tal destino emitisse pronúncia.
Tendo a decisão recorrida sido proferida sem do facto ter sido dado conhecimento prévio às partes e ao invocar nela fundamento superveniente de que não lhes foi dado conhecimento, designadamente à A. ora recorrente, foi violado o disposto no artº 3º nº 3 do CPC, constituindo a sentença recorrida uma decisão-surpresa.
A violação do contraditório inclui-se na regra geral sobre as nulidades processuais constante do artº 201º nº 1 do CPC (a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influenciar a decisão da causa). E dada a importância do contraditório é indiscutível que a sua inobservância pelo Tribunal é susceptível de influir no exame ou decisão da causa.
Porque a omissão da audição das partes (salvo no caso de falta de citação), não constitui nulidade de que o Tribunal deva conhecer oficiosamente, a eventual nulidade daí decorrente, deve ser invocada pelo interessado no prazo de 10 dias após a respectiva intervenção em algum acto praticado no processo (artºs 203º nº 1 e 205º nº 1 o CPC), sendo que, porém, estando a mesma coberta por decisão judicial nada obsta a que este Tribunal conheça da referida nulidade quando invocada em sede recurso nas respectivas alegações (cfr., entre outros, Ac. da R.L. de 11/01/2011, proc. 286/09.5T2AMD-B.L1-1; Ac do STJ de 13/01/2005, proc. 04B4031, da RP de 18/06/2007, proc. 0732861)
Impõe-se, pois, a anulação da decisão recorrida para que o Tribunal a quo dê cumprimento ao contraditório e subsequente tramitação conforme for entendido de direito.
DECISÃO
Nesta conformidade, acordam os Juízes desta Relação em anular a decisão recorrida e, em consequência, determinar a baixa do processo à 1ª instância para que aí se dê cumprimento ao princípio do contraditório e após se determine conforme for entendido de direito.
Sem custas.
Évora, 10.04.2014
Maria Alexandra A. Moura Santos
Eduardo José Caetano Tenazinha
António Manuel Ribeiro Cardoso