Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
284/14.7T8OLH-B.E1
Relator: JOSÉ MANUEL GALO TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
PROVA
Data do Acordão: 10/06/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: REVOGADA
Sumário: I-A exoneração do passivo contempla duas fases: a inicial (admissão liminar) e o período de cessão.
II- No período liminar, o ónus da prova dos factos impeditivos do direito do devedor à pretendida exoneração recai sobre os credores ou o administrador de insolvência.

III- Na segunda fase do instituto da exoneração do passivo, é ao devedor/insolvente que fazer a prova do mínimo julgado indispensável a uma existência condigna.

IV- Os factos que não exigem prova documental podem ser provados por testemunhas pelo que ao tribunal não é lícito dar por não provados factos sem que que sobre eles se tenham inquirido as testemunhas.

Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório:
AA foi declarada insolvente e requereu a exoneração do passivo restante.
Declarada a insolvência, foi proferido despacho que admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante e depois proferida decisão nos termos do artigo 239º do CIRE.
*
A insolvente não se conformou com a referida decisão e apresentou as seguintes alegações:
A) No entender da Recorrente, a douta sentença não faz uma correta apreciação da matéria de facto e tal apreciação condicionou o quantum a atribuir à insolvente como estando excluído da cessão aos credores nos termos do art.º 239.º, n.º 3, al. b) i) do CIRE.

B) Desde logo, tendo a insolvente alegado no requerimento de apresentação à insolvência factos que no seu conjunto lhe eram desfavoráveis e não tendo esses factos sido impugnados por nenhum dos credores, em rigor toda a factologia alegada pela insolvente se deve ter por assente para todos os efeitos processuais porque validamente confessada nos termos conjugados dos art.ºs 567.º, n.º 1, 607.º, n.º 4 do C.P.C. ex vi art.º 17.º do CIRE e art.ºs 352.º e segs. e 362.º e segs. do C.C.

C) A confissão é um tipo de prova a se, e por isso a sua relevância e efeitos produzem-se independentemente da produção de qualquer outra prova. Tal significa que onde a prova por confissão não seja contraditada por outro tipo de prova, e sendo aquela admissível (art.º 354.º, C.C. à contrario), a confissão vale em toda a sua extensão.

D) É certo que na sentença que declarou a insolvência não foi declarado que se consideravam provados todos os factos alegados pela requerente mas apenas alguns dos factos específicos alegados pela requerente que foram considerados com especial interesse para a decisão da causa. Mas a douta sentença que declarou a insolvência também não declarou a existência de quaisquer factos (alegados pela insolvente no seu requerimento inicial) não provados.

E) Este entendimento tem necessariamente duas consequências lógicas:

a. a primeira é a de os factos que foram considerados provados na sentença transitada em julgado que declarou a insolvência têm de ser havidos como provados para todos os termos subsequentes da causa ou dos seus incidentes (art.º 619.º n.º 1 do C.P.C.); e

b. a segunda é a de que os factos que tenham sido alegados pela requerente no requerimento inicial mas que não tenham expressamente sido dados como provados na sentença que declarou a insolvência, podem ser dados como provados para efeitos processuais subsequentes, v.g. para efeitos de fundamentação de facto do despacho inicial de exoneração do passivo restante.

F) Os princípios de direito probatório que nortearam o julgamento da matéria de facto em sede de sentença que declara a insolvência não são diferentes dos princípios de direito probatório que devem nortear o julgamento da matéria de facto em sede de despacho inicial relativo à exoneração do passivo restante.

G) Em sede de declaração de insolvência é dada prevalência probatória à alegação do sujeito que se apresenta à insolvência não contraditada pelos credores ou pelo Administrador da Insolvência e consequente confissão dos factos susceptíveis de caracterizar esta situação. Em sede de exoneração do passivo restante, não se vê porque o critério de apreciação da prova tenha de ser diferente.

H) Acresce que, para prova de todos os fundamentos dos pedidos que formulou no requerimento inicial, a insolvente indicou duas testemunhas, as quais não foram inquiridas por inércia absoluta do Tribunal razão pela qual tem de se inferir que o despacho recorrido violou também o disposto no art.º 342.º, n.º 1 do C.C. e art.º 410.º do C.P.C.

I) Por fim, nenhum dos credores impugnou os factos alegados pela então requerente e o Sr. Administrador da Insolvência, na apreciação que efectuou no seu Relatório das causas da insolvência da Recorrente pronunciou-se nos mesmos termos da alegação inicial da insolvente.

J) A douta sentença recorrida errou assim na apreciação da prova produzida, importando assim que o Tribunal ad quem formule um outro juízo sobre a matéria de facto (art.º 662.º, n.º 1 do C.P.C.).

K) Em face de tudo o exposto, tem de se concluir que em concreto o despacho recorrido fez uma incorrecta da seguinte da matéria de facto.

a. quanto aos factos não provados, têm de se considerar mal julgados os factos constantes nas als. A) e B), isto porque, os mesmos factos já haviam sido dados como (inequivocamente) provados na sentença que declarou a insolvência da Recorrente (vide facto 28 als. d) e e) da sentença de declarou a insolvência). Consequentemente, estes dois factos devem ser havidos como provados para todos os efeitos no processo e seus incidentes.

Ao ter dado estes dois factos como não provados, o douto despacho recorrido violou o disposto no art.º 619, n.º 1 do C.P.C.
b. Quanto aos factos provados:

i. Em vez do facto provado em 8. deveria ter sido dado como provado o que consta no n.º 19 da sentença que decretou a insolvência, ou seja, que a requerente tem a licenciatura em Fisioterapia e que é fisioterapeuta de profissão, actividade pela qual se encontra colectada e que exerce em regime de prestação de serviços, a título individual, em estabelecimentos de terceiros.

ii. Em vez dos factos provados em 10., 11. e 12. deveria ter sido dado como provado o que consta das als. a) a e) do n.º 28 da sentença que decretou a insolvência, como despesas mensais regulares da insolvente e não como despesas eventuais ocorridas nos meses documentados, ou seja:

Mensalmente, a requerente tem de despender para seu sustento:
a. Entre € 35,00 (trinta e cinco euros) e € 50,00 (cinquenta euros) pelo fornecimento do serviço básico de energia eléctrica à habitação;
b. Entre € 30,00 (trinta euros) e € 50,00 (cinquenta euros) pela prestação dos serviços básicos de telefone e comunicações;
c. Entre € 7,00 (sete euros) e € 20,00 (vinte euros) pelo fornecimento dos serviços básicos de água e saneamento;
d. € 300,00 (trezentos euros) no mínimo para alimentação;
e. Entre € 100,00 (cem euros) e € 150,00 (cento e cinquenta euros) em média para transportes;
iii. Em vez do facto provado em 14. deveria ter sido dado como provado o que consta do art.º 49.º do requerimento inicial, ou seja: que a requerente tem também necessidades básicas e regulares de vestuário, calçado, assistência médica e medicamentosa, mostrando-se ajustada a consideração do dispêndio mensal de € 50,00 (cinquenta euros) para fazer face a tais eventualidades normais da vida de qualquer pessoa.

iv. Em vez do facto provado em 15. deveria ter sido dado como provado o que consta do art.º 50.º do requerimento inicial, ou seja: que a requerente com carácter eventual, mas certo, tem necessidades de formação profissional para manter actualizados os seus conhecimentos e técnicas e poder ser competitiva no mercado. E que a última formação profissional que frequentou teve o custo de € 246,00 (duzentos e quarenta e seis euros). A este montante acresceram as despesas de deslocação uma vez que as formações da especialidade da requerente têm lugar em Lisboa ou no Porto.

L) Os factos alegados pela insolvente são complexos e dinâmicos em termos de (re)constituírem o padrão de vida da insolvente, absolutamente reduzido ao mínimo a nível pessoal e profissional e de permitirem aferir o quantum estável que esta necessita para ter um sustento minimamente digno (art.º 239.º, n.º 3, al. b) i) do CIRE), sem sobressaltos. Ao invés, os factos dados como provados no douto despacho recorrido são redutores, estáticos, não retractam as necessidades básicas nem as necessidades profissionais da insolvente, e consequentemente são insuficientes para servir de base ao estabelecimento do montante adequado, estável, ao sustento minimamente digno da insolvente atendendo às suas necessidades atuais.

M) A Recorrente interpreta jurisprudência dos tribunais superiores que parece ser pelo menos maioritário com o seguinte sentido: ao ser fixado o montante excluído da cessão, o Tribunal parte invariavelmente da situação concreta do insolvente, apresentando-se o interesse dos credores (se assim se pode dizer) como um limite contra os abusos ou contra a imoralidade de certas despesas que algum insolvente possa ter a tentação de peticionar.

N) Por sustento minimamente digno do insolvente deve entender-se não um quantum miserabilista, mas aquele que com mínima “folga” permite o desenvolvimento com normalidade, com estabilidade, sem sobressaltos, da vida pessoal e profissional do insolvente e sem recurso constante ao Tribunal para aumento do montante arbitrado. No entender da Recorrente, não faz sentido estabelecer um quantum que origine incumprimentos ao longo do caminho. Nenhuma dignidade existe num sustento em ter de se contar os cêntimos até ao final do mês ou em que tenha aqui e ali de haver privações ao nível das necessidades básicas ou profissionais elementares.

O) Todas as despesas alegadas pela insolvente têm de ser consideradas de montante absolutamente adequado a uma subsistência minimamente digna, atento o custo de vida e as características da vida actual. As despesas da insolvente são as seguintes: contribuições para a Segurança Social, consumos de electricidade, comunicações, água e saneamento básico, alimentação, transportes, seguro de responsabilidade civil, vestuário, calçado, médicos, medicamentos e imprevistos da vida quotidiana, tudo no total de €787,00 (setecentos e oitenta e sete euros), a que acrescem as necessidades de formação da insolvente.

P) A quantia arbitrada pelo Tribunal a quo não permite no caso concreto o efectivo sustento minimamente condigno da Recorrente, bastando para o demonstrar a realização do seguinte raciocínio meramente aritmético: se à quantia de €530,00 a insolvente retirar a quantia destinada obrigatoriamente à Segurança Social (€ 124,09) e as necessidades de transporte para o desempenho da sua profissão (€ 150,00) restar-lhe-á a quantia de €255,91, quantia que será assim insuficiente para custear a sua alimentação (€ 300,00), fora as demais despesas.

Q) A ponderação entre o sacrifício que sempre será de observar e a não privação do necessário a uma subsistência digna do próprio insolvente não se encontra assim devidamente efectuada nos presentes autos, pelo que o douto despacho recorrido viola o disposto no art.º 239.º, n.º 3, al. b) i) do CIRE

Nestes termos e nos demais de Direito, deve ser revogado o douto despacho recorrido e consequentemente ser proferido acórdão que exclua da cessão aos credores a quantia mensal de € 850,00 (oitocentos e cinquenta euros) mensais acrescido do quantitativo necessário caso a caso para a frequência de formações profissionais (incluindo deslocações e estadias, se necessárias).
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Não houve lugar a resposta.
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Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre decidir.
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II – Objecto do recurso:
É entendimento universal que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigo 635º, nº4 e 639º, nº1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº2, ex vi do artigo 663º, nº2, do NCPC). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
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Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação de:
a) alteração da decisão de facto;
b) apurar se o sustento minimamente digno da recorrente está garantido com a verba atribuída.
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III – Factos com interesse para a decisão da causa:
1. A douta sentença recorrida deu como provados os seguintes factos:
1. A requerente nasceu em 21.08.1982 e é solteira.
2. A requerente foi titular de uma participação social na sociedade BB, Lda., até 10.10.2012.
3. A requerente é titular de uma participação social na sociedade CC, Lda..
4. A sociedade CC, Lda., foi declarada insolvente por sentença proferida em 06.01.2014, no âmbito do processo n.º 2/14.0TBOLH.
5. A requerente assumiu-se como garante de obrigações assumidas pelas sociedades referidas em 2) e 3).
6. O pai da requerente, DD, faleceu em 20.06.2013, no estado de divorciado, e deixou dívidas no montante de € 395.897,00.
7. Em consequência das dívidas de DD, em 12.07.2013, a requerente e o irmão EE repudiaram à herança do pai e, em 15.10.2014, FF, única neta de DD, também repudiou à herança daquele.
8. A requerente presta serviços de fisioterapia e aufere o montante mensal de cerca de € 440,00.
9. A requerente despende o montante de € 124,09 mensais em contribuições para o Instituto de Segurança Social, IP.
10. Nos meses de agosto e setembro de 2014, a requerente despendeu, respectivamente, os montantes de €33,85 e de €34,87 em despesas de fornecimento de electricidade.
11. Nos meses de julho, agosto e setembro de 2014, a requerente despendeu os montantes de € 37,36 e de € 50,82 em despesas de telecomunicações.
12. No mês de julho de 2014, a requerente despendeu o montante de € 6,83 em despesas de abastecimento de água.
13. A requerente despende o montante de € 42,38 anual para pagamento de seguro de responsabilidade civil profissional.
14. No mês de fevereiro de 2014, a requerente despendeu o montante de € 115,00 em despesas médicas e no mês de abril de 214, a requerente despendeu o montante de 14,59 em despesas medicamentosas.
15. No mês de fevereiro de 2015, a requerente despendeu o montante de € 246,00 em despesas de formação.
16. A requerente tem dívidas ao Banco GG, S.A., reconhecidas pelo administrador de insolvência no montante de € 140.911,38, em dívida desde 15.02.2011.
17. A requerente tem dívidas ao Banco HH, S.A., reconhecidas pelo administrador de insolvência, no montante de € 17.373,07, em dívida desde 06.01.2011.
18. A requerente tem dívidas ao II SARL, reconhecidas pelo administrador de insolvência, no montante de € 85.328,88.
19. A requerente tem dívidas ao Banco JJ, S.A., reconhecidas pelo administrador de insolvência, no montante de €157.238,51, em dívida desde 26.09.2013.
20. A requerente tem dívidas a LL Financeira de Crédito, S.A., reconhecidas pelo administrador de insolvência, no montante de €37.739,06, em dívida desde 26.10.2011.
21. A requerente requereu a declaração de insolvência em 27.10.2014.
22. Por sentença proferida em 07.11.2014, foi declarada a insolvência da requerente.
23. Do certificado de registo criminal da requerente não constam registadas anteriores condenações em juízo.
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E deu como não provados os seguintes factos:
A) A requerente despende o montante de € 300,00 mensais em despesas de alimentação;
B) A requerente despende o montante que varia entre os € 100,00 e os € 150,00 mensais em despesas de transporte.
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IV – Fundamentação:
4.1 – A alteração da decisão de facto:

Em princípio, como decorre do quadro normativo aplicável, à Relação só compete modificar a decisão sobre a matéria de facto, podendo alterar as respostas a partir da prova testemunhal extractada dos autos e dos demais elementos probatórios que sirvam de base à respectiva decisão desde que dos mesmos constem todos os elementos, necessários e suficientes, para efeito.

À luz dos critérios inscritos no artigo 662º do Código de Processo Civil, «a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa».

A Recorrente sustenta que os factos por si invocados, em particular os respeitantes aos seus rendimentos e despesas, devem ser considerados como assentes para efeitos de apreciação do pedido de exoneração do passivo restante. Estriba essa conclusão em duas ordens de factores: por um lado, alguns dos factos não foram objecto de impugnação específica por parte dos credores e deveriam assim ser considerados provados e, noutra dimensão, existe uma errada avaliação da prova produzida.

Relativamente ao primeiro ponto, a recorrente salienta que «atendendo a que as diversas alíneas do nº1 do artigo 238º do CIRE, estabelecem fundamentos que determinam o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, estas circunstâncias não assumem a natureza de factos constitutivos do direito do devedor pedir a exoneração, mas sim factos impeditivos desses direito. Pelo que é aos credores e administrador de insolvência que compete a alegação e sua prova»[1].

Assim sendo, na ausência de qualquer impugnação (quer dos factos alegados pelo Recorrente, quer dos documentos juntos aos autos), ponderando o teor do relatório apresentado pelo administrador judicial e ao abrigo do disposto no artigo 607º, nº5, do Código de Processo Civil, a seu ver, a decisão de facto deveria ser distinta e, como corolário lógico, o montante excluído da cedência seria necessariamente superior.

Porém, consabidamente, a exoneração do passivo contempla duas fases: a inicial (admissão liminar) e o período de cessão.

A jurisprudência convocada nas doutas alegações reporta-se inequivocamente à decisão de admissão liminar, tal como é atestado pela simples leitura das citadas decisões dos tribunais superiores. Na verdade, no período liminar, o ónus da prova dos factos impeditivos do direito do devedor à pretendida exoneração, que recai sobre os credores ou o administrador de insolvência[2].

Todavia, como refere Menezes Leitão «a previsão da cessão do rendimento disponível constitui um ónus imposto ao devedor, como contrapartida do facto de ser exonerado do passivo que possuía, havendo no entanto que respeitar o princípio da dignidade humana, contido no princípio do Estado de Direito (…) salvaguardando aos devedores o mínimo julgado indispensável a uma existência condigna»[3]. Esta tese é sufragada no Supremo Tribunal de Justiça que também advoga que «a previsão da cessão do rendimento disponível constitui um ónus imposto ao devedor»[4]. Na realidade, até pelo critério lógico se impõe que seja o devedor/insolvente a fazer a prova do mínimo julgado indispensável a uma existência condigna, uma vez que, como está estabilizado, «o montante mensal que há-de ser dispensado ao insolvente no período de cessão não visa assegurar o padrão de vida que porventura teria antes da situação de insolvência»[5].

Como se pode ler no Preâmbulo do CIRE, no que respeita aos insolventes singulares, procura-se conjugar de «forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica». Deste modo, por decorrência natural do disposto no nº1 do artigo 342º do Código Civil, a prova dos factos constitutivos que afloram no princípio do fresh start é imposta ao requerente/insolvente, que é o único sujeito da relação processual controvertida que está em condições de fazer a comprovação dos gastos relacionados com o seu sustento no domínio da alimentação, consumos domésticos, vestuário, despesas profissionais e demais gastos da vida quotidiana. E se alguma dúvida houvesse, ela teria de ser solucionada de acordo com o crivo do nº3 do artigo 342º do Código Civil.

Recorde-se que a requerente pretende a alteração das respostas aos pontos 8), 10) a 12), 14) e 15) fundada exclusivamente na questão da sua alegação não ter sido contrariada por qualquer prova. Todavia, como já se deixou exarado, nesta segunda fase do instituto da exoneração do passivo, o ónus da prova incumbia à requerente insolvente. Mais, a título meramente exemplificativo, aquilo que se pretendia fixar nos pontos 14) e 15) dos factos provados, não poderia ser globalmente computado como era proposto. Na verdade, à luz das regras da experiência e buscando conforto na cláusula do socialmente aceitável, não se pode a partir de documentação referente a determinado mês [as quais não têm – ou podem não ter – carácter permanente] e, nessa base, extrapolar que os montantes ali referidos se repetem sucessiva e futuramente com regularidade e grau absoluto de certeza. No entanto, em contraponto, perante esse conspecto factual apurado, o Tribunal sempre ficaria habilitado a estabelecer médias de gastos, segundo critérios de equidade e de normalidade social.

Aliás, nesse segmento, de acordo com a prova dos autos, a decisão tomada é justa e esclarecida, o que não significa que, caso fosse produzida outro tipo de prova, a decisão factual e a respectiva fundamentação não pudessem ser distintas.

Quanto aos factos não provados, a requerente alega que indicou «duas testemunhas, as quais não foram inquiridas por inércia absoluta do Tribunal, razão pela qual tem de se inferir que o despacho recorrido violou também o disposto no artº 342º, nº1, do CC e artº 410º do CPC».

Prescreve o artigo 342º, nº1, do Código Civil que «àquele que indicar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do alegado direito». E, numa perspectiva processual, está inscrito no nº1 do artigo 410º do Código de Processo Civil que a «instrução tem por objecto os temas da prova enunciados ou, quando não tenha de haver lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova».

Neste capítulo, está exarado na douta sentença que «os factos referidos em A) e B) resultaram não provados por não ter sido produzida qualquer prova sobre os mesmos, porquanto a insolvente não juntou quaisquer documentos comprovativos dos montantes mensalmente despendidos a títulos de alimentação tal como também não juntou quaisquer documentos comprovativos de despesas de transporte».

Todavia, esta conclusão enferma de um erro analítico. A prova de despesas de alimentação e de transporte não é vinculada à apresentação de documentos. A rejeição de diligências de prova não é um poder discricionário e, ao ser requerida a inquirição de testemunhas, por muito relevantes que sejam as exigências de celeridade, as mesmas não se podem sobrepor ao interesse de apuramento da verdade e à justa composição da causa.

Ou, então, caso entendesse que a questão factual apenas poderia ser comprovada documental, o que não se concede, ao decidir não realizar as diligências probatórias requeridas, ao abrigo dos poderes de gestão de gestão processual e do princípio da cooperação, a fim de evitar a “decisão surpresa”, o Tribunal poderia convidar a requerente a apresentar prova documental, suprindo assim a eventual falha de instrução da parte.

Com efeito, o princípio do inquisitório plasmado no artigo 411º do Código de Processo Civil adianta que «incumbe ao juiz realizar (…) todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer».

Ao não ter realizado as diligências requeridas o Tribunal recorrido poderá ter contribuído decisivamente para a não consagração da tese apresentada pela insolvente. Deste modo, num juízo preliminar, do ponto de vista processual, é aparentemente inequívoco que as despesas de alimentação e, eventualmente, as de transporte podem condicionar a moldura do valor do sustento minimamente digno.

Com isto não se diz que respostas distintas podem alterar o juízo decisório quanto ao montante a excluir da exoneração, mas também é inequívoco que a não produção de prova é susceptível de, em abstracto, condicionar o juízo hipotético prévio.

Efectivamente, o apuramento do montante a excluir pressupõe sempre uma ponderação casuística por parte do juiz[6] e a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna[7] contemplam normalmente uma quota virtual para as despesas de alimentação, pelo menos.

Não carecem de prova nem alegação os factos notórios, devendo considerar-se como tais os factos que são do conhecimento geral (artigo 412º, nº1, do Código de Processo Civil). É facto notório que a alimentação constitui um dos encargos indispensáveis para assegurar uma existência condigna. O mesmo não se poderá dizer do montante despendido com a satisfação dessa necessidade básica.

As regras da experiência também apontam para que, num contexto de normalidade, a alimentação constitua um encargo do insolvente. As regras da experiência não são meios de prova, mas antes raciocínios, juízos hipotéticos de conteúdo genérico, assentes na experiência comum, independentes dos casos individuais em que se alicerçam, com validade, muitas vezes, para além do caso a que respeitam, adquiridas, em parte, mediante observação do mundo exterior e da conduta humana, e, noutra parte, mediante investigação ou exercício científico de uma profissão ou indústria, permitindo fundar as presunções naturais, mas sem abdicar da explicitação de um processo cognitivo, lógico, sem espaços ocos e vazios, conduzindo à extracção de facto desconhecido do facto conhecido, porque conformes à realidade reiterada, de verificação muito frequente e, por isso, verosímil[8].

Na esteira do disposto na Convenção Europeia dos Direitos do Homem [artigo 6º, nº3, al. d)], o nº4 do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa consagra o direito a um processo equitativo e isso contempla a opção por um processo justo em cada uma das suas fases, constituindo o direito fundamental à prova uma das dimensões mais relevantes. O direito à prova emana da necessidade de se garantir ao cidadão a adequada participação no processo e de assegurar a capacidade de influenciar o conteúdo da decisão[9].

O exposto não significa que todas as diligências requeridas devam ser deferidas. Apenas o deverão ser desde que legalmente admissíveis, pertinentes e não tenham cariz dilatório[10].

O direito fundamental à prova implica que as partes tenham liberdade para demonstrar quaisquer factos. Ao ser-lhe negada a possibilidade de apresentar prova testemunhal sobre as suas despesas alimentares e de transporte a recorrente ficou inibida de influenciar o órgão julgador no julgamento da causa.

Estamos perante factos estruturantes na definição da arquitectura do conceito do mínimo necessário ao sustento do devedor e seu agregado familiar e não perante factualidade meramente instrumental ou acessória, caso em que a solução jurisdicional poderia recorrer ao princípio do máximo aproveitamento da resolução encontrada.

Aquilo que surge como incoerente à luz das regras da experiência é que, sem mais e não apresentando outra justificação que não seja «a recorrente não apresentou prova documental», se firme a tese que a insolvente não tem despesas de alimentação (a questão das despesas de transporte surge por arrastamento por estar inserida num mesmo enquadramento lógico-normativo). Até se poderia dizer que as despesas alimentares eram de montante não apurado e completar o ciclo interpretativo com recurso à equidade ou a critérios como o do bom pai de família ou a valores médios calculados a partir dos valores indiciários apresentados pelo Instituto Nacional de Estatística.

Como se retira das asserções anteriores, esta inibição de prova assume uma esfera concreta de gravidade relevante porque no domínio da aferição do critério do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e é facto notório que a alimentação é um dos factores atendíveis e as regras da experiência assinalam que, por norma, num contexto de normalidade social, existem sempre despesas com o custeamento dos alimentos (aqui em sentido lato).

Assim, a solução válida e justa passa por ordenar a realização da diligência omitida em ordem a apurar se a requerente tem despesas daquele tipo e qual o montante patrimonial que afecta às mesmas, dado que, face aos dados concretos disponibilizados, o Tribunal de recurso não tem elementos suficientes e bastantes para modificar a matéria de facto controvertida e ao tribunal recorrido não era lícito afastar a produção daquela prova sem fundamento relevante.

Assim, e por se reputar de deficiente a decisão sobre os referidos concretos pontos de facto (sem prejuízo dos reflexos que a prova testemunhal possa ter noutros factos), a sentença recorrida é anulada [artigo 662º, nº2, al. a) do Código de Processo Civil], a fim de se produzir a prova omitida e com base nela elaborar nova decisão final.
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V – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar procedente o recurso interposto, anulando a decisão recorrida a fim de se produzir os meios de prova apresentados pela recorrente.
Sem custas.
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Processei e revi.
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Évora, 6 de Outubro de 2016

José Manuel Galo Tomé de Carvalho

Mário Branco Coelho

Isabel de Matos Peixoto Imaginário

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[1] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27/09/2011, in www.dgsi.pt.

[2] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 05/03/2015, in www.dgsi.pt.

[3] “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”, Almedina, 2009, 5ª edição, pág. 242.

[4] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/12/2012, in www.jusnet.pt.

[5] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 09/04/2013, in www.dgsi.pt.

[6] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17/12/2014, in www.dgsi.pt.

[7] Acórdão do Tribunal Constitucional nº318/99,in www.tribunal constitucional.pt.

[8] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06/07/2011, in www.dgsi.pt.

[9] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 21/04/2015, in www.dgsi.pt.

[10] Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19/06/2012, in www.dgsi.pt.