Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
115/17.6PBSTB.E3
Relator: BERGUETE COELHO
Descritores: DEFENSOR
HONORÁRIOS
RECURSO PENAL
RECURSO CÍVEL
Data do Acordão: 10/06/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 - No caso de o defensor nomeado à assistente em processo comum singular ter interposto recurso da sentença que absolveu o arguido (dos factos que lhe eram criminalmente imputados e do pedido cível), tem o mesmo direito a receber, para além das quantias referidas nos pontos 3.1.1.2. (processo comum singular) e 3.2. (pedido de indemnização civil) da tabela anexa à portaria 1386/2004 de 10/11, também a quantia referida no ponto 3.4.1. (recursos ordinários) mas não de forma cumulativa - uma quantia para o recurso na parte criminal e outra quantia para o recurso na parte cível.

2 - Com efeito, enquanto que na referida tabela se distingue a intervenção na parte criminal (ponto 3.1.), na parte cível (ponto 3.2.) e nos recursos (ponto 3.4.), neste último ponto relativo aos recursos não há qualquer distinção entre recurso quanto à parte criminal e quanto à parte cível, de modo a dever entender-se ocorrer cumulação de pagamentos para uma parte e outra.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção Criminal
do Tribunal da Relação de Évora

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1. RELATÓRIO

Nos autos em referência, do Juízo Local Criminal de Setúbal do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, transitada em julgado a decisão final, o patrono nomeado à assistente (…), o Ex.mo Advogado Dr. (…) apresentou reclamação, ao abrigo do art. 157.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (“Dos atos dos funcionários da secretaria judicial é sempre admissível reclamação para o juiz de que aquela depende funcionalmente”), respeitante aos honorários que lhe foram rejeitados.
A reclamação mereceu a apreciação pelo despacho, ora recorrido, do seguinte teor:
Requerimento do Ilustre Patrono da Assistente de 10.2.2020:
Lido o requerimento identificado em epígrafe constato que o ora Requerente insurge-se contra a circunstância de não lhe terem sido confirmados honorários por referência aos dois recursos que interpôs da sentença na parte em que os mesmos se atêm também à lide cível enxertada, sendo que invoca, para tanto, os pontos 1.2.3. e 1.2.3.2. do Manual do Apoio Judiciário do Centro de Formação da DGAJ e, bem assim, o ponto 1.8. e 1.2.2.1. do Elucidário do Acesso ao Direito.
Apreciando, é de salientar que os instrumentos de apoio invocados no sobredito requerimento não constituem fonte de Direito, mas simplesmente um documento de apoio às secretarias de processos e aos Senhores Advogados que prestam apoio judiciário, razão pela qual é de atentar na Portaria n.º 1386/2004, de 10.11., a qual dispõe, no seu artigo 2.º, n.º 1, que “são devidos aos advogados, pelos serviços que prestem no âmbito da protecção jurídica, os honorários constantes da tabela em anexo”.
Analisada a referida Tabela constata-se que os Ilustres Advogados que participam no apoio judiciário, caso a sua intervenção se desenvolva em processo criminal com a forma comum singular, têm a haver o montante equivalente a onze unidades de referência, a que acresce a quantia correspondente a oito dessas unidades quando se discute lide cível enxertada de valor que se situe entre € 3.740,98 a €5.985,56, tal como sucede in casu – cfr. pontos 1.1.2.1., 3.1.1.2. e 3.2. da referida Tabela.
Ademais, o ponto 3.4. contempla o pagamento de nove unidades de referência na eventualidade de ser interposto recurso ordinário da decisão final, sendo que no caso dos autos constata-se que, por duas vezes, a assistente, patrocinada pelo ora Requerente, interpôs recurso da sentença absolutória.
Do referido ponto 3.4. da Tabela anexa à Portaria n.º 1386/2004, de 10.11., constata-se que não é feita qualquer diferenciação consoante exista recurso somente da parte penal, somente da parte cível ou de ambas. Tal significa, portanto, que quando seja deduzido pedido de indemnização cível em contexto de processo comum singular, são devidos os montantes decorrentes dos pontos 3.1.1.2. e 3.2. da Tabela, sempre em regime cumulativo. Porém, havendo recurso, somente é devido o pagamento constante do ponto 3.4., sendo que o é em singelo, ainda que a lide recursiva abranja a parte criminal e a parte cível, não estando previstos dois pagamentos nessa rubrica, mormente não se prevendo no referido diploma infralegal qualquer diferenciação para a satisfação de honorários consoante a extensão do recurso, daqui também decorrente que o ponto 3.4. tem autonomia em relação ao surge previsto naqueloutros pontos. Aliás, a respeito dos honorários devidos por conta da tramitação em primeira instância resulta a preocupação consagrada explicitamente no sentido de ser devido um acréscimo consoante exista ou não pedido de indemnização cível formulado, porém a respeito dos recursos não surge realizada qualquer autonomização neste tocante, surgindo uma rubrica única a propósito dos recursos ordinários, o que é sintomático de ser devido um pagamento único.
Ainda que assim não fosse, para se considerarem ser devidos em contexto recursivo dois pagamentos – um por referência à parte penal, outro a respeito da parte cível – aferir-se-ia necessário que na peça recursiva se discutissem questões que respeitassem de forma autónoma à parte cível.
Acontece que, analisado o teor do primeiro recurso subscrito pelo Ilustre Requerente, o qual consta de fls. 185 e seguintes, resulta que a alegação aí contida a respeito da lide cível enxertada não extrapola a própria discussão da questão penal, sendo, aliás, o recurso em larga medida atinente à parte de facto relevante para a parte penal, restringindo-se a parte cível ao ponto 32 das conclusões e, mais concretamente, “deverá a arguida e demandada ser igualmente condenada no pedido de indemnização cível no montante peticionado”.
O que se acaba de referir acerca do recurso de fls. 185 e seguintes, é aplicável ao recurso da ‘segunda’ sentença, o qual consta de fls. 270 e seguintes, desta feita aferindo-se, acerca do ponto 30 das conclusões, que é aí mencionado “(…) e, por via, disso, se condene a arguida e demandada pelo crime pelo qual vinha acusada e no pedido de indemnização cível contra si deduzido pela assistente”.
Em síntese, não apenas a Tabela anexa à Portaria n.º 1386/2004, de 10.11., não contempla o pagamento de qualquer montante adicional por referência a recurso que também abranja a lide cível enxertada, como se afere que in casu os recursos interpostos da sentença absolutória não discutem de forma autonomizada qualquer circunstancialismo respeitante ao pedido de indemnização cível.
Assim sendo, indefiro a reclamação apresentada através do requerimento identificado em epígrafe.
Notifique.

Inconformado com tal despacho, o referido patrono interpôs recurso, pedindo a revogação do despacho e substituição por outro que confirme os pedidos de pagamento/compensação efetuados pelo Recorrente, quer do pedido cível do processo principal, quer do pedido cível de recurso, formulando as conclusões:
1. A questão objecto do presente recurso, como emerge do que supra se expôs, está em aferir se no processo penal, que tenha por objecto uma acção penal e pedido de indemnização civil, nomeadamente, em sede de recurso, são devidos ao defensor oficioso, cumulativamente, honorários pela acção penal e pela acção civil;
2. Ora, como se sabe, há condutas que podem simultaneamente inserir-se no ilícito penal e no ilícito civil, dando origem a uma acção penal, que visa aplicar uma sanção criminal ao infractor, e a uma acção civil, que tem por finalidade primária a reparação civil pelas perdas e danos resultantes da infracção;
3. A intervenção no processo penal do lesado, ou seja, a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime e que nele deduz o pedido de indemnização civil (artigo 74°, n" 1, do CPP), explica-se pela unidade do facto, apreciado como ilícito penal e como ilícito civil.
4. Não obstante se consignar no artigo 129º do Código Penal que a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil, o legislador português optou pelo sistema de adesão, obrigando a deduzir o pedido no processo penal respectivo, o que significa que a acção de indemnização acompanha necessariamente a acção penal (artigo 71º do CPP);
5. A vítima, que normalmente só poderia fazer valer a sua pretensão no civil, se pretender ser ressarcida, tem de desencadear a acção perante as instâncias criminais;
6. Aliás, a Lei prevê a possibilidade de deduzir o pedido de indemnização perante o foro civil, “em separado”, mas só como excepção (artigo 72º, nº 1, do CPP);
7. Ora, todo este enquadramento legal ajuda a compreender os numerosos aspectos em que a acção civil mantém a sua natureza e as suas características próprias, não obstante a adesão obrigatória ao processo penal;
8. Ou seja, as duas acções, embora dentro do mesmo processo, conservam, porém, autonomia quer quanto a questões de legitimidade activa e passiva, quer quanto à tramitação e julgamento e regime de recursos, como corolário da sua diferente natureza;
9. Nesta conformidade, de acordo com a jurisprudência supra referida, de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 2º da Portaria nº 1386/2004, de 10 de novembro, e tabela anexa, ponto 3.2, assim como do Manual do Apoio Judiciário - Perguntas Frequentes DGAJ/CF 2019, ponto 1.2 e 1.2.2.1, págs. 18 e 19; pontos 1.2.3 e 1.2.3.2, págs. 19, 20 e 21 e ponto 1.8, pág. 9 do “Elucidário do Acesso ao Direito”, dezembro de 2015, entende aqui o ora Recorrente (nomeado patrono oficioso na modalidade de apoio judiciário, dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e nomeação e pagamento de compensação de patrono), que lhe são legitimamente devidos os pedidos de honorários do pedido de indemnização civil apresentado no processo principal (acção penal) e o pedido cível de um dos recursos.

O recurso foi admitido.

O Ministério Público apresentou resposta, manifestando adesão aos fundamentos vertidos na decisão recorrida e no sentido de dever negar-se provimento ao recurso.

Neste Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto apôs o seu visto.
Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.
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2. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da motivação, como decorre do disposto no art. 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP).
Assim, reside em apreciar se, no tocante à sua intervenção nos recursos - nos autos dois recursos anteriores existiram -, deveriam ter sido atribuídos honorários ao recorrente por via do pedido de indemnização civil que deduziu.
Note-se que foram esses “autónomos” honorários que vieram a ser rejeitados, tal como resulta da motivação recursiva, aliás por referência às notas de honorários juntas aos autos, de fls. 341 a 346, concretamente de fls. 345 e 346 e, bem assim, ao despacho recorrido, e não, como aparentemente o pedido levado ao recurso suscitaria de que, também, esteja em causa honorários do pedido de indemnização civil apresentado no processo principal (acção penal).

Apreciando:
A intervenção do recorrente nos autos desenvolveu-se no âmbito da sua nomeação como patrono da assistente, beneficiária da subjacente protecção jurídica na modalidade de apoio judiciário, nos termos, no essencial, dos arts. 2.º, n.º 2, 6.º, n.ºs 1 e 2, 16.º, n.º 1, alínea b), e 18.º, n.º 1 da Lei n.º 34/2004, de 29.07 (sua redacção actual), que rege o acesso ao direito e aos tribunais.
De acordo com o n.º 5 do art. 66.º do CPP, “O exercício da função de defensor nomeado é sempre remunerado, nos termos e no quantitativo a fixar pelo tribunal, dentro de limites constantes de tabelas aprovadas pelo Ministério da Justiça ou, na sua falta, tendo em atenção os honorários correntemente pagos por serviços do género e do relevo dos que foram prestados. Pela retribuição são responsáveis, conforme o caso, o arguido, o assistente, as partes civis ou os cofres do Ministério da Justiça”.
Por seu lado, conforme ao art. 2.º, n.º 1, da Portaria n.º 1386/2004, de 10.11, e como se sublinhou no despacho recorrido, “São devidos aos advogados, pelos serviços que prestem no âmbito da protecção jurídica, os honorários constantes da tabela em anexo”.
Ou seja, no caso, ao recorrente eram devidos honorários em razão da sua intervenção, que se estendeu até à prolação da decisão final, abrangendo, assim, a dedução do pedido de indemnização civil e a interposição de dois recursos.
A problemática que coloca resume-se, pois, a saber se o que presidiu à rejeição de honorários, correspondentes à intervenção nesses recursos e em matéria cível, se afigura incorrecto, como defende, invocando errada interpretação da aludida Portaria e Tabela Anexa, em síntese, por reporte, para além de orientações do Elucidário do Acesso ao Direito, dezembro de 2015, ponto 1.2.2.1, págs. 18 e 19, e pontos 1.2.3 e 1.2.3.2, págs. 19, 20 e 21, do Manual do Apoio Judiciário – Perguntas Frequentes DGAJ/CF 2019, a que, como refere:
- a prática de uma infracção criminal dá lugar a dois pedidos diferentes: um de natureza criminal, para que o autor do crime seja penalmente censurado, outro de natureza cível, para que os lesados com a prática do crime sejam devidamente ressarcidos pelas consequências materiais e morais a que o crime tenha dado causa e as duas acções, embora dentro do mesmo processo, conservam, porém, autonomia quer quanto a questões de legitimidade activa e passiva, quer quanto à tramitação e julgamento e regime de recursos, como corolário da sua diferente natureza (Vide Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22-05-2002);
- nos termos dos n.ºs 4 e 5 do artigo 18.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 47/2007, de 28 de Agosto, “o apoio judiciário mantém-se para efeitos de recurso, qualquer que seja a decisão sobre a causa, e é extensivo a todos os processos que sigam por apenso àquele em que essa concessão se verificar, sendo-o também ao processo principal, quando concedido em qualquer apenso” e “o apoio judiciário mantém-se ainda para as execuções fundadas em sentença proferida em processo em que essa concessão se tenha verificado.”.
Vejamos.
Desde logo se reitera o expendido no despacho recorrido relativamente a que aqueles instrumentos de apoio invocados (Elucidário do Acesso ao Direito e Manual do Apoio Judiciário – Perguntas Frequentes DGAJ/CF 2019) não constituem fonte de Direito, mas tão-só meros auxiliares interpretativos fornecendo orientações de procedimentos.
A alegada autonomia entre a acção penal e o pedido de indemnização civil, que se tem por justificada, foi atendida, no despacho, na fixação dos honorários, em razão do estabelecido nos pontos 3.1 (“Processo Penal”) e 3.2 (“Pedido de indemnização civil”) da Tabela Anexa à Portaria n.º 1386/2004, como nele se sublinhou, em “regime cumulativo”.
Se assim é, também a diferenciação do ponto 3.4 (“Recursos”), relativamente aos anteriores referidos, tem de impor-se, sob pena de ilógica interpretação, sendo que neste mesmo ponto não se retira qualquer menção específica para além da que concerne ao tipo de recursos (“Ordinários” ou “Extraordinários”).
E como é reconhecido, tendencialmente os recursos abrangem toda a decisão (art. 402.º, n.º 1, do CPP), o que aponta no sentido de congruência com o estabelecido, sem distinção, quanto aos honorários correspondentes.
Apesar de, em recurso, se poder limitar o âmbito do mesmo (art. 403.º do CPP), desta circunstância não decorre que, caso isso se não verifique, os honorários o devam reflectir de modo diverso do que se retira daquele ponto 3.4 da tabela referida.
Aliás, o recorrente, por referência ao acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29.10.2003 (no proc. n.º 8160/2003-3 e acessível em www.dgsi.pt) transcreve fundamentação aí consignada, com a qual se concorda, de que a intervenção do Tribunal na fixação dos honorários deve limitar-se à aplicação da tabela, não havendo já campo para ponderar o tempo gasto, o volume e a complexidade da intervenção, os actos e as diligências realizadas pelo defensor, ou outros factores, que foram tidos em conta no estabelecimento dos escalões tabelares, o mesmo é dizer que, não existindo escalões, como no caso acontece, mais se coaduna com tal desiderato.
A diferente raciocínio não conduz a previsão do invocado n.º 4 do art. 18.º da Lei n.º 34/2004 - o apoio judiciário mantém-se para efeitos de recurso, qualquer que seja a decisão sobre a causa, e é extensivo a todos os processos que sigam por apenso àquele em que essa concessão se verificar, sendo-o também ao processo principal, quando concedido em qualquer apenso” -, uma vez que apenas reflecte que o nomeado, ao abrigo do apoio judiciário, se mantém ao longo do processo, nada influenciando nos honorários que sejam devidos por intervenção em recursos.
Toda a argumentação desenvolvida pelo recorrente não suporta, pois, o pretendido acolhimento.
Outras considerações são desnecessárias.
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3. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se:
- negar provimento ao recurso interposto pelo Ilustre Patrono e, assim,
- manter o despacho recorrido.

Custas pelo recorrente, com a taxa de justiça de 3 UC.
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Processado e revisto pelo relator.

6.Outubro.2020
Carlos Jorge Berguete
João Gomes de Sousa