Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
435/18.2T8ELV.E1
Relator: MARIA DOMINGAS
Descritores: MUNICÍPIO
CÂMARA MUNICIPAL
ILEGITIMIDADE
Data do Acordão: 02/13/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Uma Câmara Municipal não é dotada de personalidade judiciária e, como tal, não pode ser demandada, mas se o for, tratando-se de uma incorrecção formal, deverá entender-se que foi demandado o Município.
Decisão Texto Integral: PROCESSO N.º 435/18.2T8ELV.E1

COMARCA DE PORTALEGRE
ELVAS – JUIZO LOCAL CÍVEL – J1


I. Relatório
Por apenso à execução que (…), Lda. move contra a Câmara Municipal de Faro, sendo título executivo o requerimento injuntivo em que a mesma Câmara Municipal foi requerida e ao qual foi aposta a fórmula executória, veio o Município de Faro deduzir os presentes embargos de executado, com pedido de suspensão da instância executiva sem prestação de caução nos termos do art.º 733.º, n.º 1, al. c), do CPC, requerendo a final que seja declarada extinta a execução e determinado o arquivamento dos autos.
Em fundamento alegou, em síntese, ocorrer a excepção da falta manifesta de título executivo, uma vez que o procedimento de injunção foi instaurado contra a Câmara Municipal, entidade que não tem personalidade jurídica nem judiciária, arguindo também a falta de citação, uma vez que não foi citado naqueles autos, conforme a previsão da al. d) do art.º 729.º do CPC, disposição legal que expressamente invocou.
Deduziu ainda oposição à penhora, porquanto, não dispondo a exequente de título executivo contra o embargante, os bens a este pertencentes não respondem pela dívida, devendo ser determinado o imediato levantamento da penhora que incidiu sobre saldo bancário em conta titulada pelo Município.
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Liminarmente admitidos os embargos e notificada a exequente/embargada, apresentou contestação, peça na qual defendeu a improcedência das excepções aduzidas, sustentando que na verdade pretendia demandar o município, tal como foi entendido, tendo feito uso de uma designação incorrecta, mas que não prejudicou a defesa do réu.
Pronunciou-se ainda pela improcedência da oposição à penhora, uma vez que a impenhorabilidade consagrada no n.º 1 do art.º 737.º do CPC só abrange os bens especialmente afectados à realização de fins de utilidade pública, o que carece de ser alegado pelo executado, o que não se verificou.
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Teve lugar audiência prévia e nela, tendo a Mm. ª Juíza anunciado a sua intenção de conhecer do mérito dos embargos no despacho saneador, foi dada a oportunidade às partes de se pronunciarem sobre as questões suscitadas.
Foi de seguida proferido douto despacho saneador-sentença, que decretou a total improcedência dos embargos e determinou o prosseguimento da execução.

Inconformado com a decisão veio o embargante interpor o presente recurso e, tendo desenvolvido nas alegações os fundamentos da sua discordância com o decidido, formulou a final as seguintes conclusões:
“1.ª Atentando nos “elementos dos autos”, constatamos facilmente que em todos os documentos enviados e que estão relacionados com o pagamento da factura FT … (que deu origem ao requerimento de injunção), a recorrida dirigiu-se sempre sem excepção à Câmara Municipal de Faro e não ao Município.
2. De facto, não só a factura em causa foi emitida em nome da Câmara Municipal de Faro, como todas as comunicações que se seguiram para cobrança dessa factura foram sempre dirigidas à Câmara Municipal de Faro, nunca ao Município de Faro.
3. Mais: o requerimento de injunção, que já é sabido ter sido intentado contra a Câmara Municipal de Faro, deu origem de seguida a uma comunicação escrita dirigida novamente à Câmara Municipal de Faro, a 15 de Junho de 2018, e que veio a culminar com a presente acção executiva na qual foi demandada, uma vez mais, sem surpresa, a Câmara Municipal de Faro – não o Município de Faro.
4. Por isso, se a tarefa do julgador nestes casos é atender à vontade real do declarante, nos termos do art.º 236.º, n.º 2, do Código Civil, então dir-se-á que a mesma não poderia ser mais inequívoca e expressa por parte da recorrida.
5. Ademais, a recorrida apenas mudou de "vontade" quando foi finalmente confrontada com os Embargos do recorrente (e com a incapacidade judiciária da Câmara Municipal aí arguida) – momento em que tomou consciência de que a sua real intenção enquanto declarante (demandar a Câmara Municipal de Faro), neste caso, correspondia a um vício processual cominado com a extinção da instância executiva – e, portanto, se apressou a invocar uma muito conveniente “incorrecção técnica” na sua contestação.
6. “Incorrecção técnica” essa que o douto Tribunal a quo tinha obrigação de ter escrutinado, caso em que teria chegado à conclusão que se expôs supra.
7. Porém, lamentavelmente, o douto Tribunal a quo não o fez, limitando-se a reproduzir a alegação da recorrida na sua contestação: o que é exactamente o oposto de proceder à análise dos “elementos dos autos” para perceber qual foi a vontade real do declarante (situação em que o Tribunal a quo deveria ter solicitado às partes toda a prova documental e outra que considerasse necessária para esse efeito).
8. Ao invés, comprometendo o apuramento da verdade dos factos e, concretamente, a vontade real do declarante, o Tribunal a quo bastou-se com esta versão da recorrida sobre a alegada "incorrecção técnica", ignorando totalmente a prova documental existente e o que dela resultava à saciedade, quando, para mais, é sabido que por “elementos dos autos” se entendem os documentos subjacentes ao título executivo, e não as peças processuais das partes estrategicamente elaboradas.
9. Como se não bastasse, andou ainda mal o Tribunal a quo na medida em que, por absurdo, entendeu que a melhor estratégia para aferir da vontade da recorrida seria interpretar o comportamento processual do recorrente.
10. Sucede que, obviamente, o comportamento processual do recorrente nada diz sobre a vontade da recorrida.
11. Em primeiro lugar, quando o recorrente, a 21-01-2019, foi citado pelo Senhor Agente de Execução nos autos de que tinha sido realizada uma penhora sobre um depósito bancário de que é titular, e como não poderia deixar de ser, teve de reagir de forma processualmente adequada, ou seja, deduzindo embargos de executado.
12. De resto, foi precisamente o conhecimento dessa penhora ainda antes de ter sido citado nos termos supra expostos – e, repete-se, a necessidade de reagir rapidamente perante a penhora de recursos financeiros essenciais do Município de Faro – que levou a que, logo a 17-01-2019, tenha sido junta procuração aos autos por parte do mandatário do recorrente, na tentativa de tomar conhecimento da factualidade subjacente àquela penhora o mais rapidamente possível.
13. Porém, a junção de tal procuração não significa que em momento algum o recorrente tenha reconhecido a quantia exequenda como legítima e, menos ainda, como uma dívida da responsabilidade do Município de Faro, sendo essa uma conclusão que expressamente se rejeita e cuja improcedência se requer por manifestamente inaceitável e infundada.
14. Nesta conformidade, fica suficientemente demonstrado que, ao invés do exposto na sentença recorrida, o facto de o recorrente ter vindo aos autos apresentar a sua defesa não pode ser confundido com um alegado reconhecimento de que a recorrida se dirigia a si e não à Câmara Municipal de Faro, mas tão-somente a necessidade de arguir precisamente a realização de uma penhora ilegal sobre o património - não da Câmara - mas do Município, e com base num título executivo inexistente por ter na sua origem uma citação anterior (no âmbito do procedimento de injunção) que é nula.
15. Por outro lado, aquilo que a recorrida descreveu como uma "incorrecção técnica" tratou-se, na verdade, de um verdadeiro "erro de direito", que não pode ser desvalorizado, como o Tribunal a quo fez, com o argumento de que tanto nos podemos referir a um "município" como a uma "câmara municipal" com o argumento de que, num caso ou noutro, estaremos a falar exactamente do mesmo.
16. Finalmente, embora, por absurdo, o Tribunal a quo tenha defendido ser praticamente irrelevante demandar a Câmara Municipal ou o Município, verifica-se que, num exercício de clara contradição, acaba por admitir "não se poder negar que o correcto era constar do requerimento de injunção "Município", como requerido", o que prova que, afinal, se essa é a forma "correcta” (demandar o Município), então a outra (demandar a Câmara) é a errada, e que tratar-se de uma situação ou outra tem de ter consequências distintas.
17. Assim, em suma, dúvidas não subsistem de que a recorrida quis demandar única e exclusivamente a Câmara Municipal de Faro, como fez, e que esse erro jurídico resultante da falta de capacidade judiciária desse órgão municipal releva do ponto de vista da nulidade da citação operada ainda no âmbito do procedimento de injunção desencadeado.
18. Nesse sentido, não é verdade ou sequer rigoroso que o Tribunal a quo defenda que o Município de Faro tenha vindo "aos autos arguir a incapacidade judiciária do seu órgão representativo (...) e fá-lo como fundamento para o pedido de extinção da instância executiva"!
19. O que o recorrente alega, e com todo o sentido lógico e jurídico, é que a nulidade da citação realizada no âmbito da injunção (por incapacidade judiciária da Câmara) impossibilita a formação subsequente de um título executivo válido, e é essa inexistência de título executivo que, por conseguinte, só poderá conduzir à extinção da instância executiva nos presentes autos.
20. Termos em que se consideram reunidos pressupostos suficientes para que seja proferido acórdão que, revogando o despacho saneador-sentença recorrido, decrete o efeito suspensivo da presente instância, por verificação da al. c) do n.º 1 do art.º 733.º do CPC, conforme respeitosamente se requer.
Caso por absurdo assim não se entenda,
21. Sempre será de deferir o pedido de decretamento do efeito suspensivo da presente instância executiva, isentando o recorrente, por ser de um município que se trata, do pagamento de qualquer caução, nos termos do artigo 733.º, n.º 1, al. a), do CPC.
22. Com efeito, ou o município tem condições para satisfazer o pagamento de salários, promover o investimento público e proceder ao pagamento de fornecedores e demais despesa pública do município, ou vê os seus saldos bancários continuarem congelados e inutilizáveis – mas certamente os dois cenários não são possíveis.
23. Por isso mesmo, qualquer decisão quanto ao pedido de suspensão da instância executiva formulado pelo recorrente deverá ter obrigatoriamente em consideração que o recorrente é um Município, com todas as obrigações e deveres públicos inerentes a essa sua qualidade de pessoa colectiva pública, quer seja executado numa acção executiva que corre termos nos tribunais comuns, quer seja executado numa acção executiva fiscal!
24. As preocupações que justificam a adopção deste regime legal em contexto de execução fiscal mantêm-se exactamente com a mesma intensidade e pertinência no seio da acção executiva comum!
25. De facto, trata-se de proteger o erário público e preservar a prossecução do interesse público pelos municípios, salvaguardando entidades com esta natureza e importância social de acções executivas, na sua maioria, precipitadas e gratuitas,
26. E em que, a não ser assim, os municípios se veriam despojados de quantias avultadas e que lhes são essenciais para o cumprimento das suas obrigações diárias para com os munícipes, para mais tarde serem absolvidos dessas mesmas instâncias executivas por manifesta improcedência da pretensão do respectivo exequente.
27. De facto, circunstâncias existem em que impera a adopção de regimes excepcionais, veja-se o recente Decreto-Lei n.º 141/2017, publicado em Diário da República a 4 de Novembro de 2017 (doc. 24), que decretou a suspensão extraordinária de todos os processos de execução fiscal em curso, “bem como outros que venham a ser instaurados pela Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), pela Segurança Social ou por outras entidades que tramitem processos de execução fiscal”, tendo por base preocupações do foro da dignidade da pessoa humano e do interesse público.
28. A invocação do teor e da preocupação subjacente a este decreto-lei é especialmente pertinente, porquanto, não nos deixemos iludir: com a improcedência do pedido de suspensão formulado na presente instância executiva, e com isenção de prestação de garantia, os principais alvos serão inevitavelmente os munícipes do concelho de Faro, cujas necessidades não poderão ser supridas da mesma forma, por manifesta falta de verbas para o fazer, porquanto se encontrarão cativas à ordem dos presentes autos!
29. Ora, como é sobejamente sabido, o instituto da analogia assenta precisamente na similitude de situações.
30. No caso em apreço, procedem exactamente as razões justificativas da regulamentação prevista no regime da execução fiscal, legitimando e permitindo-se, por isso, a aplicação desse mesmo regime à acção executiva comum em discussão, com a consequente dispensa do Recorrente, pela sua natureza de município, do pagamento de qualquer garantia para a obtenção do efeito suspensivo pretendido.
31. Aquele regime de salvaguarda dos munícipes e pessoas colectivas públicas cuja natureza lhes está equiparada foi especificamente criado para acautelar situações como aquela que ora se aprecia, pelo que a sua similitude é inquestionável e, por conseguinte, incontestável a pertinência da aplicação analógica de tais normas ao regime da acção executiva comum.
32. Nesta conformidade, deverá, por isso, sobre a sentença recorrida recair Acórdão que expressamente proceda à sua revogação e que, simultaneamente, declare nos termos supra expostos a isenção do ora recorrente da prestação de qualquer garantia para obtenção do efeito suspensivo pretendido, com a consequente suspensão automática da presente instância executiva”.
Concluiu pedindo que na procedência do recurso seja proferido acórdão que revogue o saneador sentença recorrido, decretando “simultaneamente a suspensão da instância nos termos do artigo 733.º, n.º 1, al c), do CPC; sem prejuízo de que, subsidiariamente, caso assim não se entenda, seja declarada nos termos supra expostos a isenção do ora recorrente da prestação de qualquer garantia para obtenção do efeito suspensivo pretendido, igualmente com a consequente suspensão automática da presente instância executiva”.
Contra-alegou a recorrida embargada e, tendo suscitado a título de questão prévia a violação, pelo recorrente, do disposto nas als. a) e b) do n.º 2 do art.º 639.º do CPC, omissão que, a não ser corrigida, impõe o não conhecimento do recurso, pronunciou-se em todo o caso pela sua improcedência.
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Questão prévia
A exequente/embargada e aqui apelada pronunciou-se no sentido de dever ser ordenada a notificação do recorrente para dar cumprimento ao disposto nas als. a) e b) do n.º 2 do art.º 639.º do CPC, sob pena do recurso não ser reconhecido.
Nos termos da citada disposição legal, versando o recurso sobre a matéria de direito, deverão ser indicadas nas conclusões as normas jurídicas violadas e, bem assim, o sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deveriam ter sido interpretadas e aplicadas, especificações cuja omissão conduz à prolação de despacho de aperfeiçoamento, nos termos prevenidos no n.º 3 do preceito.
Da análise das conclusões acima transcritas resulta que o recorrente, irrelevando para este efeito se bem, se mal, considerou erradamente interpretadas as disposições dos art.ºs 236.º, n.º 2, do CC e 733.º, n.º 1, als. a) e c), do CPC, pugnando ainda pela aplicação analógica do regime instituído pelo DL n.º 141/2017, de 4 de Novembro de 2017, que aprovou “várias medidas de apoio temporário destinadas aos contribuintes com domicílio fiscal, sede ou estabelecimento nos concelhos afectados pelos incêndios de 15 de Outubro”, assim dando cumprimento ao referido ónus. Tal foi, aliás, entendido pela apelada, que nas suas contra-alegações deu resposta competente e cabal a todas as questões que no recurso haviam sido suscitadas.
Inexiste, pois, fundamento, para a prolação de despacho de aperfeiçoamento.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, são as seguintes as questões a decidir:
i. Determinar se o apelante é parte ilegítima, por não ser quem figura no título dado à execução; a não ser atendida tal excepção, se procede a nulidade de todo o processo decorrente da falta de citação verificada no âmbito do procedimento injuntivo;
ii. Se deve ser decretada a suspensão da execução nos termos do art.º 733.º do CPC, com dispensa de prestação de caução por estar em causa um Município.
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II. Fundamentação
Relevando para a decisão a proferir os factos descritos em I, importa antes de mais precisar que, ao invocar a falta de título executivo quanto a si, por não ter intervindo no requerimento injuntivo ao qual foi aposta a fórmula executória, o ora apelante Município de Faro está na verdade a arguir a sua ilegitimidade para a causa, uma vez que não figura como devedor no título dado à execução, independentemente de se não ter igualmente formado quando se considere a ali requerida Câmara Municipal, que não detém personalidade jurídica nem judiciária.
Conforme resulta do disposto no art.º 53.º do CPC, a legitimidade das partes, na acção executiva, afere-se com facilidade: “a execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor” (n.º 1). A lei consagra assim um critério puramente formal, sendo partes legítimas as que, como credor e devedor da prestação, resultam da mera inspecção do mesmo. Por outro lado, podendo a ilegitimidade por preterição de litisconsórcio necessário ser sanada mediante o incidente de intervenção principal, não prevê a nossa lei processual civil a possibilidade de sanação da ilegitimidade singular, opondo-se à substituição de uma parte por diferente pessoa o consagrado princípio da estabilidade da instância (cfr. art.º 260.º do CPC).
Afigura-se ainda incontroverso que município e câmara municipal não são uma e a mesma coisa. Conforme resulta do disposto no art.º 248.º da CRP, o município é uma autarquia local, sendo a assembleia municipal e a câmara municipal os seus órgãos representativos (vide art.º 250.º da Lei fundamental), aquela o órgão deliberativo e esta última o órgão executivo colegial (arts.ºs 251.º e 252.º).
Decorre por seu turno do disposto no art.º 35.º da Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro (regime jurídico das autarquias locais) que a capacidade para estar em juízo é do próprio município, cabendo a sua representação ao presidente da câmara municipal, seu órgão executivo, a quem é legalmente deferida a competência para “Intentar acções judiciais e defender-se nelas, podendo confessar, desistir ou transigir, se não houver ofensa de direitos de terceiros” (cf. art.º 35.º, n.º 1, als. a) e g)).
No caso dos autos não oferece dúvida a circunstância de ter sido demandada no requerimento injuntivo a que foi aposta a fórmula executória a Câmara Municipal de Faro, contra a qual foi igualmente instaurada a execução de que estes autos são apenso.
Considerou-se, contudo, na decisão recorrida que ao dizer Câmara Municipal a requerente, ora apelada, quis na verdade reportar-se ao Município, que é igualmente a parte passiva na execução, assim devendo interpretar-se, quer o requerimento de injunção, quer o requerimento executivo, entendimento de que o ora recorrente dissente e aqui questiona.
A questão suscitada nos autos não é nova, vindo a ser decidida no sentido adoptado pela decisão recorrida. Com efeito, tal como nela, a nosso ver com acerto, se faz notar, os articulados estão, também eles, sujeitos às regras de interpretação das declarações negociais por força do disposto no art.º 295.º do CC, valendo, por isso, com aquele sentido que, segundo o disposto no art.º 236.º, n.º 1, do CC, o declaratário normal possa deduzir das declarações neles contidas. Acresce que, conforme justamente se observa no acórdão do STA de 3/11/2005, processo 0710/05, em www.dgsi.pt, são de arredar, na interpretação dos articulados, rigores formalistas, face aos princípios do moderno direito adjectivo e, bem assim, do princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva (cfr. art.º 20.º da CRP) “motivo por que, na apreciação da petição, o tribunal deve procurar indagar da real pretensão do peticionante, interpretando-a no sentido mais favorável aos interesses do peticionante que a mesma comporte”.
Quanto vem de se dizer é particularmente válido no caso que nos ocupa, porquanto, em bom rigor, o que está em causa é o uso de uma expressão incorrecta para identificar a parte que, conforme o próprio embargante reconheceu, é o próprio município. Tal entendimento não surge contrariado pela alegação do recorrente no sentido de se ter visto forçado a embargar como executado na sequência de notificação recebida do Sr. Agente de execução e da penhora de uma quantia que lhe pertencia, uma vez que o meio adequado de reacção à disposição de quem não é parte na causa e vê bens seus agredidos por diligência judicial são antes os embargos de terceiros, conforme resulta claro do disposto no art.º 342.º, n.º 1, do CPC.
Por outro lado, e embora o apelante insista que da interpretação, quer do requerimento injuntivo, quer do requerimento executivo, resulta claro que a recorrida pretendia demandar e executar a Câmara Municipal, em nome de quem teriam sido emitidas as facturas, omite que o contrato que estará na origem dos serviços prestados e cuja cobrança coerciva é visada pela exequente terá sido antes celebrado com o próprio município, isto a fazer fé na alegação de ambas as partes, posto que documentos comprovativos do alegado não foram juntos. Subsiste, no entanto, um claro indício de que era o Município a parte requerida face à indicação do seu n.º de contribuinte no requerimento injuntivo, facto que o recorrente convenientemente omite.
Afigura-se ser assim de seguir o entendimento perfilhado pelo STJ no acórdão de 04/05/2000 (processo nº 99B1228, acessível em www.dgsi.pt), no qual se considerou que uma Câmara Municipal não é dotada de personalidade judiciária e, como tal, não pode ser demandada, mas se o for, tratando-se de uma incorrecção formal, deverá entender-se que foi demandado o Município, outro tanto tendo sido defendido pelo TRC, em acórdão de 15/02/2005 (processo n.º 3911/04, acessível no mesmo sítio)], aí se tendo considerado que numa acção intentada pela Junta de Freguesia, também ela destituída de personalidade judiciária, se deverá entender que o faz na qualidade de representante da Freguesia e que, portanto, se deverá considerar ser esta, e não a Junta, a verdadeira parte na acção.
Já no ano de 1992 o STJ havia decidido, em acórdão de 28 de Maio (BMJ n.º 417, na pág. 630), ser correcta a decisão de identificar a “Câmara Municipal como o Município em acção”[1].
Tendo a mesma questão sido suscitada perante o STA, veio este pronunciar-se em aresto de 19/4/2005 (processo n.º 240/05-12, acessível no citado sítio) nos seguintes termos:
“(…) A outra questão suscitada pelo recorrente é a da substituição da Câmara Municipal, como Ré, pelo Município do qual é o seu órgão executivo. O despacho recorrido considerou que “Quanto à legitimidade das partes, também ela se verifica face ao disposto no art. 31°-B do CPC, tendo em conta os factos relatados na p.i. E não obsta a essa legitimidade o facto de ter sido demandada a Câmara Municipal e não o respectivo Município, pois que se trata apenas de uma irregular identificação desta autarquia, entidade pública personalizada, identificação correspondente à forma habitual e corrente de identificação desta mesma entidade pela referência ao seu órgão executivo. Assim sendo, entende-se que é realmente demandado o Município de Vila Nova de Poiares, sendo, pois, co-réu nestes autos.”
O recorrente discorda, defendendo que a Câmara, como órgão do município que é, carece de personalidade e capacidade judiciárias, devendo ter sido demandado o próprio município, como pessoa colectiva, considerando ilegal a operada substituição da Câmara pelo Município, com vista ao suprimento dessa falta de capacidade e personalidade judiciária, que também caracteriza como ilegitimidade. Porém, não lhe assiste razão.
Na verdade, a sentença recorrida considerou que se tratava apenas de uma irregular identificação do Réu, que era o município, fruto da forma habitual e corrente de identificação desta mesma entidade pela referência ao seu órgão executivo. E assim é, de facto. Na verdade, perante a frequência com que eram interpostas acções para efectivação de responsabilidade civil dos municípios contra o respectivo órgão executivo – face à apontada forma habitual de os identificar através da referência ao seu órgão executivo – formou-se uma corrente jurisprudencial praticamente uniforme neste STA que permite o prosseguimento dessas acções conta as Câmaras, corrente essa que tem sido assim resumida (acórdão de 11/3/03, recurso n.º 2055/02, citado pelo Exmo. Magistrado do Ministério Público): «Não há interesses autónomos e diferenciados da Câmara municipal face ao município. Numa visão organicista os órgãos das pessoas colectivas são representantes da pessoa, mas são também a própria pessoa colectiva agindo». Daí que se possa concluir licitamente que no plano e para efeitos da defesa judicial de direitos do ou contra o município se possa falar de personalização judicial do órgão executivo. Neste sentido ver, inter alia, os Ac. de 6.2.96 Proc. 37876 e de 14.5.96, Proc. 39424 e de 25.9.2001, Proc. 46301.”
A razão de ser desta posição jurisprudencial assentou em razões de segurança e uniformidade do direito, com o que se visou a concretização do princípio da tutela judicial efectiva, evitando, através dos princípios anti formalista ou pro actione e da celeridade processual - corolários daquele -, que a questão substantiva deixasse de ser conhecida por razões meramente formais, que, no caso, não assumiam significado, na medida em que quem representa o município é o Presidente da Câmara (artigo 68.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 169/99, de 18/9), sendo ele também quem representa a própria Câmara, pelo que, sendo demandado o município ou a câmara era sempre a ele que competia representá-los, não havendo qualquer prejuízo para a pessoa colectiva que a acção prosseguisse contra ela ou contra o seu órgão executivo (…)[2].
Pese embora à face da actual Lei das Autarquias a competência para instaurar acções se encontre atribuída ao Presidente do órgão executivo, fá-lo claramente em representação do município, que representa “em juízo e fora dele”, continuando, portanto, válidos todos os considerandos expendidos nos acórdãos identificados em apoio do entendimento neles consagrado e também perfilhado na decisão recorrida.
Deflui do exposto que, ultrapassando um desadequado rigor formalista na interpretação da expressão usada, concede-se que incorrectamente, nos requerimentos injuntivo e de execução, considerou-se acertadamente na decisão recorrida que o demandado foi sempre o município, o que resultava desde logo da sua identificação através do n.º de contribuinte. Deste modo, e não tendo resultado prejudicada a sua defesa, posto que correctamente citado no seu órgão executivo para os termos da injunção e da execução, são de julgar improcedentes os fundamentos dos embargos de executado deduzidos, mantendo-se o despacho recorrido.
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Da suspensão da execução nos termos previstos no art.º 733.º do CPC
No que se refere à requerida suspensão da execução, dispõe o art.º 733.º do CPC que o recebimento dos embargos suspende a execução se o embargante prestar caução (vide al. a) do n.º 1) ou, tendo sido impugnada, no âmbito da oposição deduzida, a exigibilidade ou a liquidação da obrigação exequenda e o juiz considerar, ouvido o embargado, que se justifica a suspensão sem prestação de caução (al. c) do citado preceito, disposição legal a que o apelante se acolhe). O executado ora recorrente pretende que seja decretada a suspensão da execução na pendência dos embargos sem prestação de caução, invocando como fundamento para a dispensa a sua natureza jurídica de pessoa de direito público e a afectação pública dos seus bens.
Ora, atendendo a que não está em causa a impenhorabilidade da quantia penhorada nos autos, questão não suscitada no recurso e, por isso, excluída do seu objecto, a requerida suspensão da execução ao abrigo da citada disposição legal -do que resulta ser manifestamente inadequada a invocação do regime excepcional consagrado no Decreto-Lei n.º 141/2017, de 4 de Novembro de 2017, que aprovou “várias medidas de apoio temporário destinadas aos contribuintes com domicílio fiscal, sede ou estabelecimento nos concelhos afectados pelos incêndios de 15 de Outubro”, nos quais nem sequer se inclui o recorrente- encontra-se prejudicada, uma vez que os embargos foram julgados improcedentes, pelo que não há aqui que apreciá-la (cf. art.º 608.º, n.º 2, ex vi do n.º 2 do art.º 663.º, pertencendo ambos os preceitos ao CPC).
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III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.
Évora, 13 de Fevereiro de 2020
Maria Domingas Alves Simões
Vítor Sequinho dos Santos
Mário Rodrigues da Silva

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[1] Deste aresto veio a ser interposto recurso para o Tribunal Constitucional que, por decisão de 28/9/1992 (processo 507/92), dele não conheceu por falta dos necessários pressupostos.
[2] Do assim decidido foi igualmente interposto recurso para o TC, julgado improcedente (cfr. acórdão do Tribunal Constitucional de 7/2/2006, processo n.º 469/2005, acessível em http://www.pgdlisboa.pt/jurel/cst_busca_palavras.php?buscajur=interpostas&ficha=50&pagina=1&exacta=&nid=6502.