Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
155/14.7TREVR
Relator: MATA RIBEIRO
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
ORDEM PÚBLICA INTERNACIONAL
PARTILHA DE BENS DO CASAL
Data do Acordão: 11/03/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário:
1. Na ação de revisão e confirmação de sentença estrangeira, o juízo de compatibilidade com a ordem pública internacional do Estado Português é aferido pelo resultado da aplicação da lei estrangeira ao caso concreto.
2. A partilha feita em ação de divórcio, proferida por tribunal estrangeiro, na qual se atribui a um dos cônjuges, sem qualquer contrapartida, bens comum do casal (dois bens imóveis, um sito em New Jersey USA e outro em Porto Alto, Portugal, e um automóvel), viola a ordem pública internacional do Estado Português.
3 E isto, porque segundo o direito material português, o resultado da decisão, no que concerne à partilha dos bens do casal, seria inquestionavelmente mais favorável ao requerido, visto que por força do princípio da imutabilidade do regime de bens, a partilha sempre teria que respeitar a regra da metade, logo o bens, sendo comuns jamais poderiam ser atribuídos em propriedade exclusiva à requerente, sem qualquer contrapartida económica (tornas).
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES DA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

aA, demanda, pela presente ação com processo especial de revisão de sentença estrangeira, BB, requerendo a revisão e confirmação da sentença proferida em 07/10/2013, pelo Tribunal Superior do Distrito de Union, New Jersey, Estados Unidos da América, pela qual foi decretada a dissolução do casamento, por divórcio entre ambos, bem como a partilha de bens.
O requerido foi regularmente citado editalmente, tendo, a defensora que lhe foi nomeada, deduzido oposição na qual defende não se encontrarem preenchidos os requisitos constantes das als. b) e f) do artº 980º do CPC, pedindo que seja negada a confirmação da sentença estrangeira.
O Exmo. Magistrado do Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser revista e confirmada a decisão a fim de passar a ter plena eficácia em Portugal, por em seu entender não se vislumbrar a ausência de qualquer dos requisitos a que se alude no artº 980º do CPC.
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Dos documentos juntos resulta assente o seguinte circunstancialismo factual:
AA e BB, no dia 10/03/1984 na Igreja Paroquial de Samora Correia, Benavente, contraíram casamento recíproco, sem convenção antenupcial (cfr. doc. de fls. 8) ;
Por sentença proferida em 07/10/2013, pelo Tribunal Superior do Distrito de Union, New Jersey, Estados Unidos da América, foi decretado o divórcio entre ambos e partilha de bens comuns (dois bens imóveis, um sito em New Jersey USA e outro em Porto Alto, Portugal, e um automóvel, bens que ficarem a pertencer unicamente à requerente, não constando que o requerido tenha recebido qualquer contrapartida), não tendo sido da mesma interposto recurso (cfr. docs. de fls. 12 a 14 e 139).
Neste processo em que se decretou a dissolução do casamento, por divórcio e a partilha de bens, o requerido não esteve presente no julgamento, “tendo sido notificado através de edital pelo advogado da requerente”.
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Apreciando e decidindo
Os requisitos necessários à confirmação de sentença estrangeira encontram-se elencados nas diversas alíneas do artº 980º do Cód. Proc. Civil e são os seguintes:
- Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão;
- Que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;
- Que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;
- Que não possa invocar-se a exceção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afeta a tribunal português, exceto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;
- Que o réu tenha sido regularmente citado para a ação, nos termos da lei do tribunal de origem, e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade de partes;
- Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
Atentos os factos assentes, supra referenciados, alicerçados em prova documental pacífica e credível, certificando, quer a existência da celebração do casamento, quer a realização do divórcio e partilha de bens, atos realizados com relevância legal no pais onde foi proferida a sentença, vejamos se, se suscitam dúvidas ou se colocam questões sobre a revisibilidade da decisão.
Não obstante as objeções levantada pelo requerido, através da defensora oficiosa nomeada, quanto ao trânsito em julgado da decisão em causa, podemos constatar, através da documentação que a requerente fez juntar aos autos, que efetivamente dela não foi interposto recurso, pelo que temos de reconhecer que a mesma se tem por transitada em julgado segundo a lei do país em que foi proferida, não havendo, assim, nesta vertente, óbice à sua revisão e confirmação.
Vejamos agora, relativamente à observância do outro fundamento invocado pelo requerido, que obsta à revisão, ou seja, a possibilidade do reconhecimento conduzir a um resultado manifestamente incompatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado Português, atendendo a que os bens comuns do casal foram atribuídos à requerente, sem o pagamento de qualquer contrapartida ao requerido, o que está em desconformidade com a regra vigente no nosso ordenamento jurídico segundo a qual os cônjuges participam por metade no ativo e no passivo da comunhão, sendo nula qualquer estipulação em sentido diverso (cfr. artº 1730º do CC)
Como se salienta no Ac. do TRL de 24/01/2012 no processo 389/11.6YRLSB.L1-1, disponível em www.dgsi.pt, nos termos do art. 980º, alínea f), para que a sentença seja confirmada é necessário “que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado Português”, preceito que surge em consonância com o art. 22º do Cód. Civil, que obsta à aplicação da lei estrangeira “quando essa aplicação envolva ofensa dos princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado português”.
Como vem sendo sistematicamente afirmado, a restrição é imposta em função de princípios de ordem pública internacional, e não de ordem pública interna.[1]
“O conteúdo da noção de ordem pública internacional é forçosamente impreciso e vago. Ordem pública internacional é um conceito indeterminado, um conceito que não pode ser definido pelo seu conteúdo, mas só pela sua função: como expediente que permite evitar que situações jurídicas dependentes de um direito estrangeiro e incompatíveis com os postulados basilares de um direito nacional venham inserir-se na ordem sociojurídica do Estado do foro e fiquem a poluí-la”.[2]
Quanto ao que define as normas de ordem pública internacional, a doutrina tem distinguido vários caracteres. Para uns, o traço essencial destas leis é o de salvaguardarem interesses fundamentais do Estado ou da comunidade local, outros consideram que são de ordem pública as disposições imperativas da lei nacional, avançando no entanto que nenhum critério serve, em absoluto, para distinguir este tipo de normas.
Na mesma linha de orientação refere-se no Ac. do TRC de 03/03/2009, no processo 237/07.1YRCBB disponível em www.dgsi.pt que A lei (arts. 22º do CC e 980 f) do CPC) não define o conceito de “ordem pública internacional“, tratando-se de um conceito indeterminado, carecido de preenchimento valorativo na análise casuística.
O que releva, para o efeito, não são os princípios consagrados na lei estrangeira que servem de base à decisão, mas o resultado da aplicação da lei estrangeira ao caso concreto, ou seja, a reserva de ordem pública internacional visa impedir que a aplicação de uma norma estrangeira, pela via indireta da execução de sentença estrangeira, implique, na situação concreta, um resultado intolerável.
Por conseguinte, o juízo de compatibilidade com a ordem pública internacional do Estado Português terá que ser necessariamente aferido, não pelo conteúdo da decisão e o direito nela aplicado, mas pelo resultado do reconhecimento, o que implica um “exame global”.
Não basta, por isso, que a solução dada ao caso pelo direito estrangeiro seja divergente da do direito interno português, exigindo-se que o resultado seja “manifestamente incompatível” com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português (cf. LIMA PINHEIRO, Direito Internacional Privado, vol. I, 584 e segs., vol. III, pág.368 e segs), MARQUES DOS SANTOS, Aspectos do Novo Código de Processo Civil, “Revisão e confirmação de sentenças estrangeiras”, 140).
No caso presente não podemos deixar de ter em consideração que o requerido não esteve presente na diligência em que se proferiu a decisão de divórcio e partilha de bens, a rever, tendo sido editalmente notificado, o que certamente não lhe permitiu até que lhe fosse assegurada uma defesa adequada. A requerente não questiona, antes reconhece, que os dois imóveis e o automóvel fossem bens comuns do casal.
De modo que, na esteira do entendimento seguido no aludido acórdão do TRC, que iremos seguir de perto, com as necessárias adaptações, diremos:
A requerente e o requerido, ambos de nacionalidade portuguesa, casaram em 10/03/1984, sem convenção antenupcial, ou seja, no regime supletivo da comunhão de bens adquiridos, que se traduz na participação de ambos os cônjuges, meio por meio, em todos os bens adquiridos a título oneroso na constância do casamento, que não sejam excetuados por lei (arts.1717º, 1724º, 1725º, 1730º do CC).
O art.º 1714 nº1 do CC consagra o princípio da imutabilidade do regime de bens, o que implica a proibição da modificação concreta da situação dos bens dos cônjuges, e deve entender-se em sentido amplo, por ser aplicável não só ao regime convencionado, mas também ao regime supletivo (cf. PEREIRA COELHO/GUILHERME DE OLIVEIRA, Curso de Direito da Família, vol. I, 2ª ed., pág.488).
Tratando-se de uma norma imperativa, verifica-se, desde logo, que a sentença revidenda viola a ordem pública interna nacional, já que por força da imutabilidade, não podem bens comuns ser atribuídos em propriedade exclusiva a qualquer deles. Contudo, deve questionar-se se também afronta a ordem pública internacional.
Para o Cons. QUIRINO SOARES a norma do art.1714º do CC é “porta-voz de um princípio de ordem pública internacional do Estado português” (Lex Familiae, ano 3, nº 5, 101). Diversamente, P.LIMA/A.VARELA (Código Civil Anotado, vol. I, 3ª ed., 89), doutrinam que “ o princípio da imutabilidade das convenções antenupciais, fixado como regra no direito português, não é, pois, um princípio de ordem pública internacional “, face às regras dos arts. 52º e 54º do CC, doutrina acolhida no Ac RL de 23/10/2008, proc. nº 637/2008 ( em www dgsi.pt) no sentido de que a imutabilidade do regime de bens do casamento estabelecida no art.1714º do CC não é princípio de ordem pública internacional.
Embora na sentença revidenda não se afirme expressamente a contitularidade dos bens por parte de ambos os cônjuges, dela se pode retirar, designadamente no que se refere aos dois imóveis que os mesmos faziam parte do acervo patrimonial do casal dada a formulação que consta na sentença onde se fez constar que o requerido ”deixará de ter quaisquer direitos de propriedade ou outros direitos, sejam eles equitativos ou outros…”, sendo que o própria requerente aceita a comunhão dos bens.
Pertencendo os bens a ambos os cônjuges, a deslocação compulsiva da transferência do direito do requerido para a requerente, sem qualquer contrapartida, imposta coativamente na sentença revidenda, viola a ordem pública internacional do Estado Português. Isto porque, a nosso ver, se reconduz à violação do direito de propriedade, constitucionalmente garantido ( art. 62º da CRP) e a uma espécie de expropriação particular sem qualquer indemnização, o que, ressalvando o devido respeito, evidencia um enriquecimento injustificado da requerente à custa do requerido.
O direito de propriedade, constitucionalmente garantido, abrange, além do mais, o direito de não ser privado dela, impondo a lei a indemnização para a hipótese de expropriação.
Neste contexto, o reconhecimento da sentença revidenda, no segmento decisório, relativamente à partilha dos bens do casal, conduziria a um resultado não permitido pelos princípios fundamentais do Estado de Direito.
É que mesmo a conceber-se a atribuição exclusiva dos bens comuns à requerente como sanção pelo desinteresse do requerido em relação ao casamento, dando causa à situação de rutura matrimonial (factos que não foram invocados, nem estão demonstrados, atendendo a que o fundamento do divórcio e apenas a “separação há mais de dezoito meses) e comprometendo a possibilidade de vida em comum, há que convir que tal sanção, é notoriamente desproporcionada.
Neste contexto, afigura-se que o resultado da aplicação da lei estrangeira ao caso concreto, viola a ordem pública internacional do Estado Português.
Nestes termos, sendo os segmentos decisórios da sentença (dissolução do casamento e partilha de bens) dissociáveis, haverá apenas que confirmar a sentença proferida em 07/10/2013 pelo Supremo tribunal de New Jersey no que se refere à dissolução do casamento por divórcio, excetuando-se o segmento decisório relativo à partilha dos bens.

Para efeitos do disposto no artº 663º n.º 7 do CPC consigna-se:
1. Na ação de revisão e confirmação de sentença estrangeira, o juízo de compatibilidade com a ordem pública internacional do Estado Português é aferido pelo resultado da aplicação da lei estrangeira ao caso concreto.
2. A partilha feita em ação de divórcio, proferida por tribunal estrangeiro, na qual se atribui a um dos cônjuges, sem qualquer contrapartida, bens comum do casal (dois bens imóveis, um sito em New Jersey USA e outro em Porto Alto, Portugal, e um automóvel), viola a ordem pública internacional do Estado Português.
3 E isto, porque segundo o direito material português, o resultado da decisão, no que concerne à partilha dos bens do casal, seria inquestionavelmente mais favorável ao requerido, visto que por força do princípio da imutabilidade do regime de bens, a partilha sempre teria que respeitar a regra da metade, logo o bens, sendo comuns jamais poderiam ser atribuídos em propriedade exclusiva à requerente, sem qualquer contrapartida económica (tornas).
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DECISÂO
Pelo exposto, julgando parcialmente procedente a ação, decide-se confirmar a sentença proferida em 07/10/2013, pelo Supremo Tribunal de New Jersey Condado de Union, USA, na parte que dissolveu o casamento, por divórcio, entre requerente e requerido, excetuando-se, assim, da confirmação, o segmento decisório relativo à partilha dos bens do casal.
Custas pela Requerente e Requerido na proporção de metade - art.ºs 527° n°1 e 2 do CPC.
Após trânsito, dê cumprimento ao disposto no artº 79º n.º 4 do Cód. Registo Civil.

Évora, 3 de Novembro de 2016
Mata Ribeiro
Sílvio Teixeira de Sousa
Rui Machado e Moura

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[1] - “A ordem pública distingue-se em interna ou internacional conforme a função que desempenha. A primeira determina a nulidade do negócio jurídico que a contrarie (...). A segunda determina a inaplicabilidade do preceito ou preceitos da lei estrangeira que a ofendam, constituindo um limite à competência dessa lei para que remete a norma de conflitos” (Galvão Telles, Introdução ao Estudo do Direito, vol. I, 11ª edição (Reimpressão) Coimbra Editora, 2001, p.310).
[2] - Ferrer Correia, Lições de Direito Internacional Privado, vol. I, Almedina, Coimbra, 2000, 410.