Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1431/20.5T8FAR.E1
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
RESPONSABILIDADE CIVIL
CIRCULAÇÃO AUTOMÓVEL
TEORIA DA CAUSALIDADE ADEQUADA
CULPA EXCLUSIVA
Data do Acordão: 10/27/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I – Ao apreciarmos, à luz das regras da experiência comum, a narração factual respeitante à causa de um acidente, e extrairmos as ilações que esse circunstancialismo fático convoca, estamos também já a influenciar ou determinar a questão de direito. Tanto assim é, que na motivação da matéria de facto da decisão recorrida se considera que “a projeção se relaciona com a manobra de flexão e excesso de lotação de passageiros, aliada à ausência de cintos de segurança”, enquanto a Apelante, na impugnação da matéria de facto, defende que a projeção foi causada pelo excesso de velocidade do veículo e pela manobra de flexão.
II – Provado que os dois passageiros que seguiam acomodados sentados, num carro de golfe com lotação para duas pessoas, foram projetados no início da manobra de flexão efetuada pelo condutor para contornar a rotunda à esquerda, e não provado qualquer outro circunstancialismo de facto de onde resulte que aquele excesso de lotação de alguma forma influiu na condução do veículo, tendo os passageiros declarado que o condutor arrancou de forma repentina, acelerando, e desse modo imprimindo velocidade ao mesmo, e fletindo à esquerda alguns metros após, deve concluir-se, em face das regras da experiência comum, que só a velocidade imprimida e a manobra apertada à esquerda, desadequadas para o veículo e local, poderiam ter a força centrífuga necessária a projetar ambos os passageiros do veículo, como se mostra provado, impondo-se a modificação da matéria de facto.
III – Tendo presente a teoria da adequação, não havendo qualquer base factual comprovativa de que a circunstância de a Autora fazer a viagem juntamente com o condutor e outro passageiro, num veículo com lotação de dois lugares, tivesse concorrido para a produção do acidente e dos danos que sofreu, deve concluir-se que ainda que a entrada voluntária da Autora no carro, já com a lotação preenchida, tivesse atuado como condição da produção do evento danoso, a sua atuação sempre deixaria de ser considerada como causa adequada do acidente quando para a produção deste concorreram decisivamente as circunstâncias que podem qualificar-se como anormais ou extraordinárias, decorrentes da atuação do condutor do veículo, essa sim, determinante do acidente, não existindo concausalidade na produção do evento danoso, nem se justificando a decretada repartição de culpa.
IV - Assim, não vindo questionada a verificação dos demais pressupostos da obrigação de indemnizar, por força do contrato de seguro titulado pela apólice junta aos autos, a companhia de seguros é a responsável pela satisfação à lesada dos danos emergentes do evento danoso decorrente de culpa exclusiva do condutor do veículo segurado.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Processo n.º 1431/20.5T8FAR.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro[1]
*****
Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[2]:

I - RELATÓRIO
1. AA, instaurou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra SEGURADORAS UNIDAS, S.A., atual GENERALI - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia global de 1.105.892,03€, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a data da citação até integral pagamento.
Em fundamento alegou, em síntese, que foi projetada de um veículo de golfe, conduzido por um funcionário do empreendimento turístico Vale do Lobo, do que resultaram os danos que concretizou e quantificou, imputando à conduta do condutor do veículo segurado na ré, a culpa exclusiva na produção do acidente, cuja dinâmica descreveu.

2. A ré contestou, invocando a prescrição do direito da autora, e impugnando a generalidade dos factos por esta alegados, imputando ao seu comportamento a culpa na produção do acidente, aduzindo ainda que a autora aceitou extrajudicialmente a repartição de culpa e que são excessivos os montantes de indemnização peticionados.

3. A autora respondeu à matéria de exceção, concluindo pela sua improcedência, e apresentou articulado superveniente, que foi liminarmente admitido, no qual peticionou a condenação da ré em juros de mora, no dobro da taxa legal, a contar da data da citação até integral pagamento.

4. Foi dispensada a realização de audiência prévia e proferido despacho saneador, no qual foi julgada improcedente a exceção perentória de prescrição, foi fixado o objeto do litígio e foram enunciados os temas da prova, sem que tenha sido apresentada reclamação.

5. Foi admitida a apensação da ação intentada por HUK-Coburg Krankenversicherung Ag contra a ré, em que foi peticionada a condenação desta no pagamento da quantia de 24.717,21€, acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar da data da citação até efetivo pagamento, com fundamento nas despesas com tratamentos médicos, deslocações e medicamentos da autora, que aquela companhia suportou, em virtude do contrato de seguro de saúde com esta celebrado.

6. No decurso da audiência final foi admitida a ampliação do pedido formulada pela autora HUK Coburg AG, no montante de 2.570,33€, e após produção da prova, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, ao abrigo das citadas disposições legais, decido:
A) julgar a ação intentada por AA contra Generali Seguros, S.A. parcialmente procedente, por provada, e, em consequência:
a) condeno a ré a pagar à autora a quantia de €4.193,48, a título de dano patrimonial, na vertente das despesas médicas, medicamentosas e de transportes, acrescida de juros de mora, à taxa de juros civis, a contar da data da citação até integral pagamento;
b) condeno a ré a pagar à autora a quantia de €1.950,00 a título de dano patrimonial, na vertente de auxílio prestado por terceiro, acrescida de juros de mora, à taxa de juros civis, a contar da data da citação até integral pagamento;
c) condeno a ré a pagar à autora a quantia que vier a ser liquidada, em sede de incidente de liquidação em execução de sentença, a título de dano patrimonial, na vertente de perda salariais, com o limite de €191.332,60;
d) condeno a ré a pagar à autora a quantia de €58.500,00, a título de dano patrimonial, na vertente de dano biológico, acrescida de juros de mora, à taxa de juros civis, a contar do dia seguinte ao da prolação da sentença até integral pagamento;
e) condeno a ré a pagar à autora a quantia que vier a ser liquidada, em sede de incidente de liquidação em execução de sentença, a título de dano patrimonial futuro, na vertente de despesas com revisão da prótese e tratamentos que venha a necessitar, com o limite de €19.500,00;
f) condeno a ré a pagar à autora a quantia de €35.750,00, a título de danos não patrimoniais, acrescidas de juros de mora, à taxa de juros civis, a contar do dia seguinte ao da prolação da sentença até integral pagamento;
g) absolvo a ré do demais peticionado;
B) julgar a ação intentada por HUK Coburg AG contra Generali Seguros, S.A. parcialmente procedente, por provada, e, em consequência:
f) condeno a ré a pagar à autora a quantia de €17.736,90, a título de reembolso pelas despesas suportadas, acrescida de juros de mora, à taxa de juros legal de 4%, ou outra que lhe sobrevier, contados desde a data da citação e da ampliação do pedido até integral pagamento;
g) absolvo a ré do demais peticionado.
Custas das ações pelas autoras e pela ré na proporção do decaimento (art.º 527.º, nºs 1 e 2 do Código de Processo).
Dispenso a autora AA e a ré do pagamento de 50% do remanescente da taxa de justiça (art.º 6.º, n.º 7 do Regulamento das Custas Processuais)».

7. Inconformada, a autora AA apelou, finalizando a sua minuta recursória com as seguintes conclusões:
«A – Analisada a prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, declarações de parte, concatenada com a demais prova documental constantes dos autos e regras da experiência, verifica-se que houve erro de julgamento no que concerne à apreciação da prova produzida, pois esta impunha relativamente a determinados pontos de facto decisão diferente.
B) – A al. c) dos factos não provados impunha uma resposta afirmativa nos seguintes termos:
Ponto 8-A
O condutor do veículo arrancou, de imediato e de forma abrupta, imprimindo-lhe grande velocidade, mal a Autora e o acompanhante tinham subido e se sentado.
C) – Na mesma senda o ponto 9 dos factos dados como provados deveria ter sido dado como provado com a seguinte redacção:
Ponto 9
Alguns metros após ter arrancado o veículo, o condutor fez uma flexão imediata para o lado esquerdo, de modo a contornar a rotunda existente no percurso que dava acesso ao campo de golfe.
D) – Na génese da al. c) dos factos não provados e do ponto 9 dos factos provados estão os artigos 5º e 6º da p.i.
E) – A conclusão do MMº Juiz a quo de não ter resultado provada a grande velocidade do veículo, na medida em que se trata de veículo eléctrico, que é sabido não conseguir atingir a velocidade de um veículo a motor, atendendo ainda ao curto percurso que efectuou, não gruda.
F) – Assim como não gruda que a projecção se relaciona com a manobra de flexão e excesso de lotação de passageiros, aliada à ausência de cintos de segurança.
G) – Relativamente a estes pontos prestaram depoimento a testemunha BB, ouvida em audiência em 19.01.2021, com início às 14:19:14 e término às 15:58:15 que frisou precisamente o arranque a grande velocidade, seguido de uma flexão imediata para a esquerda.
H) – No que foi secundado pelas declarações de parte da Recorrente, prestadas em audiência de julgamento realizada em 30 de Novembro de 2021, no final da manhã com a duração de 01:03:43 horas e de 00:01:57 horas.
I) – E pelo próprio condutor, a testemunha CC, ouvido em audiência de julgamento realizada em 30 de Novembro de 2021, no início da manhã com uma duração de 00:49:52 minutos.

J) – Os depoimentos das testemunhas/declarações de parte são corroborados pelos factos notórios em sede de funcionamento de veículos eléctricos;
L) – Bem como pelos avisos e especificações constantes do Manual do Proprietário do Carro de Golfe Precedent, junto como Doc. nº 18 do requerimento da Recorrente de 3 de Janeiro de 2022 (referências 40874103 e 40878412);
M) – E ainda pelas regras da física e experiência, sendo certo que o próprio Senhor BB, sentado que vinha no meio do veículo, e sobre quem as forças centrífugas se fizeram, naturalmente, sentir com menor força, foi projectado para fora do veículo.
O) – A que acresce a ausência de quaisquer factos, permitindo concluir pela existência de maior dificuldade na condução do veículo ou provocação de desequilíbrio, sendo, pelo contrário, notório, pelas características dos veículos eléctricos e especificações constantes do sempre mesmo Manual do Proprietário do Carro de Golfe Precedent que tal nunca poderá ter sido o caso, tendo em conta o elevado peso do veículo eléctrico e o facto de todos os ocupantes estarem sentados dentro do veículo e no respectivo banco.
P) – A aplicação do artigo 570º, nº, 1 do CC não tem aqui fundamento legal.
Q) – Não existe nexo de causalidade adequada entre a conduta da Recorrente e a produção do acidente, requisito para a aplicação do artigo 570º, nº 1 do CC.
R) – A mera verificação da violação de normas estradais não é suficiente para estabelecer o nexo causal com a produção do acidente.
S) – O excesso de lotação não configura causa adequada para a projecção da Recorrente e do Senhor BB para fora do veículo.
T) – O responsável pela ocorrência do acidente foi exclusivamente o condutor do veículo que arrancou de imediato e de forma abrupta, imprimindo grande velocidade, mal a Autora e o acompanhante tinham subido e sentado, prescrevendo, alguns metros após ter arrancado o veículo, uma flexão imediata para o lado esquerdo.
U) – Não se encontrando preenchido o requisito do nexo de causalidade entre o comportamento da lesada e o resultado, não é possível assacar qualquer responsabilidade à Recorrente, sendo a culpa pela ocorrência do acidente exclusivamente do seu condutor.
V) – A douta sentença violou o artigo 570º, nº 1 do CC.
Subsidiariamente:
X) – Mesmo que assim não se entenda e para a mera hipótese, sem conceder, de se considerar o comportamento da Recorrente causal do acidente e também culposo, por ter anuído deixar-se transportar como terceira ocupante do veículo, a responsabilidade da Recorrente apenas poderia ser muitíssimo reduzida (não mais que 5% e jamais 35%), se não totalmente excluída, na medida em que o seu comportamento sempre pouco censurável seria.
Y) – Contrariamente, o comportamento do condutor do veículo, o qual tinha a direccção efectiva do veículo, sendo condutor profissional, agindo no interesse da sua entidade patronal, fazendo circular o veículo em via pública e com excesso de lotação, conduzindo com elevada velocidade e guinando repentina e imediatamente para a esquerda, não adaptando a sua condução à existência de dois passageiros e trajectória escolhida, quando tal se lhe impunha, violando, ainda, as regras de segurança para a condução do carrinho de golfe, é gravemente censurável.
Termos em que o presente recurso deve merecer provimento, revogando-se a douta sentença proferida, substituindo-a por outra que condene a Recorrida a indemnizar a Recorrente pela totalidade (100%) dos danos causados e reconhecidos pela sentença».

8. A ré apresentou contra-alegações, declarando conformar-se com a sentença recorrida, e pugnando pela improcedência da apelação.

9. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. O objeto do recurso.
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil[3], é pacífico que o objeto do recurso se limita pelas conclusões das respetivas alegações, evidentemente sem prejuízo daquelas questões cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Assim, vistas as alegações de recurso apresentadas pela Recorrente, as questões a apreciar, pela sua ordem lógica, consistem em saber se a indicada matéria de facto deve ser modificada; se o acidente se deveu a culpa exclusiva do condutor do veículo, porquanto o excesso de lotação não configura causa adequada para a projeção da Recorrente; e, se assim não se entender, apreciar se a responsabilidade da Recorrente deve ser reduzida para não mais que 5%, ou ser totalmente excluída, com as inerentes consequências na fixação do quantum da indemnização.
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III – Fundamentos
III.1. – De facto
Os factos considerados como provados na sentença recorrida foram os seguintes:
«1- A autora nasceu no dia .../.../1956 e é consultora para planos de pensões e de complementos de reforma de empresas, trabalhando por conta própria para diversas empresas e respetivos funcionários.
2- No dia 02.04.2017 a autora viajou até Faro para passar uma semana de férias de golfe no Algarve, com avião de regresso marcado para o dia 10.04.2017.
3- No dia 05.04.2017, por volta das 08h00m, a autora e BB dirigiram-se à receção do Clube de Golfe do Empreendimento Turístico Vale do Lobo, pertencente à sociedade Vale do Lobo- Resort Turístico de Luxo, S.A, sito na Avenida do Mar, Vale do Lobo, freguesia de Almancil.
4- Onde reservaram um tee-time no campo de golfe de 18 buracos daquele Clube de Golfe, incluindo um veículo de golfe.
5- Foi-lhes fornecido um veículo elétrico, modelo Club Car, com a matrícula JE 1629658953, o qual possuía um banco contínuo e dois encostos, com lotação para duas pessoas, o condutor (à esquerda) e um passageiro, não possuindo cintos de segurança.
6- No interior do veículo existia um quadro com regras de segurança redigidas em inglês, das quais se destaca a capacidade de ocupação, o aviso para a queda de passageiros e gravidade das lesões que pode causar, os cuidados a ter nas manobras a realizar e a não circulação em estradas públicas/via pública.
7- Um funcionário de Vale do Lobo acondicionou os sacos de golfe da autora e de BB no veículo de golfe, que se encontrava estacionado junto da receção do Clube de Golfe de Vale do Lobo.
8- De seguida ocupou o veículo, BB sentou-se ao seu lado esquerdo e pouco depois a autora sentou-se ao seu lado direito, a fim de serem transportados até ao primeiro buraco do campo de golfe.
9- Alguns metros após ter arrancado o veículo, o condutor fez uma flexão para o lado esquerdo, de modo a contornar a rotunda existente no percurso que dava acesso ao campo de golfe.
10- Em consequência desta flexão a autora e BB foram projetados para fora do veículo, em sentido oposto em relação ao sentido da marcha.
11- Na sequência da projeção a autora caiu no piso asfáltico da Avenida do Mar, ficou ali imobilizada, com dores, sem ter perdido os sentidos.
12- Sofrendo fratura trocantérico diafisária do fémur direito.
13- Foi assistida no local, em primeiros socorros, pelo INEM e depois transportada ao Hospital Particular do Algarve, onde ficou internada.
14- Foi submetida, nesse mesmo dia, pelas 22h00m, a intervenção cirúrgica, com anestesia geral, com encavilhamento cervico diafisário por via aberta complementado com cerclage.
15- Desde a queda até à anestesia geral administrada a autora sofreu dores.
16- Foi-lhe administrada uma transfusão de sangue, devido a anemia pós-operatória.
17- Após a operação foi medicada contra a dor e teve alta hospitalar em 13.04.2017, com indicação de efetuar marcha com apoio de 2 canadianas e de consulta após 1 semana.
18- Regressou à Alemanha em 15.04.2017 e foi seguida até final de maio de 2017 no Centro de Ortopedia Médica, onde lhe foi diagnosticado desalinhamento rotacional após osteossíntese e descolamento do trocanter menor, com prognóstico de processo de cura prolongado.
19- Por prescrição médica realizou 30 sessões de fisioterapia entre abril e outubro de 2017 e 20 sessões de drenagem linfática ou massagem.
20- Em 19.04.2017 começou a ser seguida na clínica BGU Murnau, mantendo observação regular, onde foi diagnosticado desvio rotacional e alongamento do membro, sendo proposta revisão cirúrgica.
21- A qual foi efetuada em 22.07.2017, com redução aberta e nova osteossíntese com placa e cerclage auxiliar e cavilha cefalo medular, com extração de material anteriormente aplicado.
22- O que implicou osteotomia do fémur direito para realinhamento do mesmo.
23- Desde a data do acidente até esta intervenção cirúrgica deslocou-se com ajuda de 2 canadianas e com dor moderada.
24- Iniciou fisioterapia, ginástica de reabilitação e drenagem linfática manual após a cirurgia, o que perdurou até setembro de 2017.
25- Iniciou marcha com carga total em 03.08.2017 e retomou o trabalho em 22.08.2017.
26- Em fevereiro de 2018 teria calo ósseo de boa consistência e foi recomendado retirar material de osteossíntese 12 a 18 meses após cirurgia.
27- Como sequelas do acidente, foram, em fevereiro de 2018, diagnosticadas à autora perturbação da marcha/claudicação, alongamento da perna direita em cerca de 6mm, não cicatrização do trocanter menor e alterações na articulação da anca direita.
28- Entre 06.09.2017 e meados de janeiro de 2019 utilizou as canadianas de forma intermitente e quando se deslocava sem este apoio tinha de medicar-se contra a dor.
29- Em 16.01.2019 submeteu-se a intervenção cirúrgica no BGU Murnau, onde lhe foram removidas a haste intramedular, a placa auxiliar e a cerclage.
30- Manteve internamento até 20.01.2019 e voltou a sofrer dores e dificuldades em andar e estar sentada, com quadro clínico insidioso e progressivo com dor e limitação funcional da mobilidade da anca direita com carater moderado inicialmente e agravamento progressivo.
31- Tinha dificuldade em conduzir e tomou medicação para alívio da dor, nomeadamente analgésicos opioides.
32- Foi internada no BGU Murnau, em 07.08.2019, com diagnóstico de coxartrose pós-traumática e submetida a intervenção cirúrgica para colocação de uma prótese total da anca direita.
33- Teve alta do internamento em 14.08.2019, sem complicações intra ou pós-operatórias.
34- Sofreu angústia antes da intervenção cirúrgica e no período pós-operatório.
35- Iniciou fisioterapia quando internada e continuou, após alta, em clínica de reabilitação, em regime diário, entre 23.08.2019 e 19.09.2019 e depois desta data com frequência semanal reduzida.
36- Em finais de 2019 foi estimado um grau de invalidez pelo Professor Dr. DD em 30%.
37- Teve processo de adaptação à artroplastia total da anca.
38- Antes do acidente era pessoa saudável, ativa e alegre, não tomava medicação, não tinha limitações físicas ou restrições de mobilidade.
39- Praticava ténis, golfe e esqui, o que deixou de fazer como antes.
40- A autora teve sofrimento, nervosismo, insónias e medo de não vir a recuperar a sua vida normal.
41- Sentindo-se inferiorizada e com perda de auto-estima.
42- A atividade sexual era e é para a autora importante, daí retirando grande equilíbrio emocional e psicológico e alegria de viver.
43- Continua a sentir dores na coxa e anca, na abertura máxima das coxas e em movimentos de rotação.
44- A mobilidade da anca direita atual ficou reduzida e afeta a atividade sexual da autora.
45- Até dezembro de 2020 a autora frequentou tratamentos de fisioterapia e drenagem linfática manual.
46- Em virtude do internamento e cirurgia a autora não utilizou o bilhete de avião de regresso a Munique.
47- E teve de adquirir bilhete de avião para regresso no dia 15.04.2017, pelo qual pagou €407,85.
48- Em táxis do aeroporto de Munique até casa pagou €70,00 e de casa até ao aeroporto €65,00 para levantar o seu carro com ajuda de outra pessoa.
49- Em viagens de táxi para assistir a consultas de médico ortopedista ou sessões de fisioterapia e regresso a casa, nos dias 19.4.2017 e 09.05.2017, pagou €26,00, €30,00, €16,00 e 16,00.
50- A autora celebrou contrato de seguro de saúde junto da HUK-Coburg Krankenversicherung AG, com o n.º300/60..., nos termos do qual esta se obrigou a reembolsar as despesas médicas, hospitalares, medicamentosas, de tratamentos realizados e de transportes e meios auxiliares (cf. doc. de fls.458/463, cujo teor se dá por reproduzido).
51- A autora Huk Coburg Ag reembolsou a autora AA de parte dessas despesas hospitalares, de internamento, medicamentos, exames, tratamentos, consultas médicas, transporte, fisioterapia, quiropatia, imunoterapia, material de implante, bloco operatório, relacionadas com o tratamento das lesões sofridas pela autora, num total de € 27.287,54.
52- Dessas despesas não reembolsadas a autora pagou um total de €5.820,60 e com transportes pagou €630,85.
53- A autora pagou com a elaboração dos relatórios de avaliação de dano corporal e de incapacidade em direito do trabalho as quantias de €750,00 e de €400,00.
54- E pagou pelos serviços de interprete aquando da sua observação pelo perito médico legal Dr. EE a quantia de €147,60 e a quantia de €361,62 pela tradução dos relatórios para a língua alemã.
55- Após internamentos e durante o tempo de recuperação em que permaneceu em casa a autora esteve dependente da ajuda da irmã e de uma amiga para a execução das tarefas domésticas e do dia-a-dia, como fazer compras, vestir, alimentar e tratar da sua higiene.
56- A autora pagou à irmã a quantia de €500,00 por cada semana em que esta a auxiliou, no total de 6 semanas.
57- No ano de 2016 a autora apresentou um rendimento anual ilíquido da atividade de €174.261,00, no ano de 2017 de €103.806,00, no ano de 2018 de €213.454,00 e no ano de 2019 de €153.024,00.
58- A autora imprimiu esforço para manter a atividade profissional, trabalhando com dores e com limitação funcional progressiva com agravamento gradual e implicação na mobilidade.
59- Levando a reduzir ou deixar determinadas atividades profissionais durante o período de incapacidade temporária parcial.
60- Realizando inúmeros contatos telefónicos, porque impossibilitada de se deslocar, com frequência, às instalações dos clientes.
61- A autora empregou mais uma pessoa para colaborar na atividade em setembro de 2018 e outra em janeiro de 2019, dando-lhes formação durante várias semanas.
62- A atividade da autora na área de consultadoria e mediação cobre toda a área geográfica da Alemanha.
63- Desde o início que todos os clientes são em exclusivo angariados pela autora.
64- A consultadoria e mediação de planos de reforma complementares implica longos prazos de preparação junto dos potenciais clientes até culminar na celebração de um contrato de mediação e a implementação de planos de reforma numa determinada empresa.
65- Atendendo a esta especialidade a autora investe tempo na angariação de novos clientes e o tempo remanescente na assistência e manutenção da carteira de clientes existente.
66- No âmbito da atividade de aquisição de novos clientes, a autora organizava e realizava sessões e seminários de informação nas instalações dos potenciais clientes.
67- A autora deixou de organizar e realizar eventos para angariação de clientela, uma vez que tinha dificuldades nas deslocações e sentia-se desmotivada.
68- O que levou a que deixasse de celebrar negócios com novos clientes e outros com clientes já existentes.
69- A autora apresenta as seguintes alterações:
(A) Postura, deslocamentos e transferências: Dificuldade da marcha prolongada e sedestação prolongada;
(B) Sexualidade e procriação: Dificuldade de ordem posicional nomeadamente por limitação da abdução da coxa direita;
(C) Fenómenos dolorosos: Dor residual da anca e coxa direita de carater mecânico e na região sacro coccígeo;
(O) Outras queixas a nível funcional: Dificuldade na mobilização da anca direita.
70- A nível situacional, apresenta:
(1) Atos da vida diária: dificuldade a sair do carro e no vestuário nomeadamente nos agachamentos;
(2) Atos da vida pessoal, social e familiar: perturbações de ordem pessoal e familiar relacionáveis com dificuldades do foro sexual;
(3) Vida profissional ou de formação: dificuldade em estar sentada prolongada com necessidade de aumento de posturas.
71- A autora é destra e apresenta marcha claudicante, sem recurso a ajudas técnicas.
72- Apresenta, como sequelas:
(a) Membro inferior direito: cicatrizes operatórias da face externa da anca com 32 cm, outra mais anterior com 13 cm e distal da face externa com 6 cm e outra distal com 3 cm; dismetria aparente de 1,5 cm sem amiotrofia com ligeira dismorfia pericatricial deprimida; limitação da mobilidade da anca direita com flexão 90° a 100°; rotações de 20° a 30° e adução normal e abdução de 20 a 30°.
73- A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável no dia 07.10.2019.
74- O Período de Défice Funcional Temporário Total foi fixado em 163 (cento e sessenta e três) dias (períodos de internamento e/ou repouso absoluto entre os dias 05.04.2017 a 29.07.2017, de 16.01.2019 a 31.01.2019 e 06.08.2019 a 05.09.2019.
75- O Período de Défice Funcional Temporário Parcial foi fixado em 753 (setecentos e cinquenta e três) dias (entre os dias 30.07.2017 a 15.01.2019, de 01.02.2019 a 05.08.2019 e de 06.09.2019 a 07.10.2019).
76- O período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total foi fixado num período de 235 (duzentos e trinta e cinco) dias (entre os dias 05.04.2017 e 22.08.2017, de 16.01.2019 a 16.02.2019 e de 06.08.2019 a 07.10.2019).
77- O período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Parcial foi fixado num período de 681 (seiscentos e oitenta e um) dias (entre os dias 23.08.2017 e 15.01.2019 e de 17.02.2019 a 05.08.2019).
78- O quantum doloris foi fixado no grau 5/7.
79- O Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica foi fixado em 13 pontos, acrescido de dano futuro.
80- Na Repercussão Permanente da Atividade Profissional foi considerado que as sequelas são compatíveis com o exercício da atividade habitual mas implicam esforços suplementares.
81- O Dano Estético Permanente foi fixado no grau 4/7.
82- A Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer foi fixada no grau 5/7.
83- A Repercussão Permanente na Atividade Sexual foi fixada no grau 3/7.
84- É perspetivada a existência de dano futuro, considerando o agravamento das sequelas que constitui uma previsão fisiopatologicamente certa e segura, com potencial revisão de artroplastia total da anca.
85- É considerada a necessidade de ajudas técnicas permanentes, designadamente ajudas medicamentosas (analgésicos) e tratamentos médicos regulares (fisioterapia regular e periódica - 20 sessões por ano).
86- Por carta dirigida à ré, datada de 22.05.2018, a autora reclamou o ressarcimento dos prejuízos causados com o acidente (cf. doc. de fls.119, cujo teor se dá por reproduzido).
87- Por e-mail, datado de 28.06.2018, a ré respondeu propondo assunção da responsabilidade na medida de 50% (cf. doc. de fls.140vº, cujo teor se dá por reproduzido).
88- A autora não aceitou esta proposta.
89- A responsabilidade civil emergente da circulação do veículo encontrava-se transferida para a ré através da apólice n ...50, sendo o tomador do seguro e proprietário do veículo a sociedade comercial denominada Vale do Lobo Resort Turístico de Luxo, S.A. (cf. doc. de fls.31/32vº, cujo teor se dá por reproduzido)».
E foram considerados não provados os seguintes factos:
«a) o condutor do veículo de golfe convidou a autora a subir no veículo;
b) o condutor do veículo de golfe alertou a autora que o veículo tinha como lotação máxima duas pessoas;
c) o condutor do veículo arrancou, de imediato e de forma abrupta, imprimindo-lhe velocidade, mal a autora e acompanhante tinham subido e sentado;
d) a autora foi projetada na sequência da manobra de arranque;
e) a autora teve consulta médica em 06.09.2017 e teve período de internamento entre 16 e 20.01.2019;
f) a autora sofre dores na região dorsal, no joelho e pé do membro inferior esquerdo, por defesa e sobrecarga do membro colateral;
g) devido à não cicatrização óssea (parcial) do trocânter major e minor do membro inferior direito, sofre de redução da força muscular na anca direita;
h) desde a data do acidente a autora deixou de ter vida sexual devido às dores que sente na zona da anca e coxa que tornam impossível o contacto sexual».
*****
III.2. – O mérito do recurso
III.2.1. – Da impugnação da matéria de facto
Conforme decorre das conclusões do presente recurso, a Autora pretende a reapreciação por este Tribunal da Relação da matéria de facto constante da alínea C) dos factos não provados e do ponto 9 dos factos provados, invocando que houve erro de julgamento no que concerne à apreciação da prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, e considerando que as declarações de parte, concatenadas com a demais prova documental constante dos autos e com as regras da experiência, impunham relativamente àqueles pontos de facto decisão diferente, nos termos que indicou.
Tendo a recorrente cumprido os ónus que sobre si impendem, conforme preceituado no artigo 640.º, n.º 1, alíneas a) a c), e n.º 2, alínea a), do CPC, cumpre-nos proceder à reapreciação da prova produzida, tendo presente que a mesma se destina primordialmente a corrigir invocados erros de julgamento que – atento o preceituado no artigo 662.º, n.º 1, do CPC, que rege sobre a modificabilidade da decisão de facto –, se evidenciem a partir dos factos tidos como assentes, da prova produzida ou de um documento superveniente, por forma a imporem decisão diversa. Significa esta formulação legal que não basta que a prova produzida nos autos permita decisão diversa, necessário é que a imponha. Por isso que, se exige ao Recorrente que motive as alegações de recurso, dizendo as razões que determinam, em seu entender, diverso juízo probatório, para que a Relação possa aquilatar se os meios de prova por aquele indicados impõem ou não decisão diversa da recorrida quanto aos concretos pontos de facto impugnados.
Acresce que, como decorre do seu teor, estão em causa factos atinentes à forma como o acidente ocorreu, os quais a Recorrente aduz terem sido por si oportunamente alegados nos artigos 5.º e 6.º da petição inicial. Cotejando o que consta nesta peça processual com a redação ora proposta verificamos que apesar de não ser integralmente coincidente, a mesma ainda se contém dentro das antes denominadas “respostas explicativas”. Efetivamente, o atual CPC, com a abolição da base instrutória e a opção pela enunciação de temas de prova dá aos tribunais de instância maior liberdade na circunscrição da matéria de facto, nos termos do disposto nas alíneas a) a c) do n.º 2 do artigo 5.º do CPC. Significa isso que, para além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados, os factos referidos neste preceito, designadamente os complementares, assim se consagrando o que há muito a jurisprudência vinha parcialmente fazendo com as denominadas “respostas explicativas”[4]. No caso em apreço, é precisamente assumido na motivação de facto, que “para além de terem sido considerados os factos essenciais que haviam sido alegados pelas partes (art.° 5.°, n.º 1 do Código de Processo Civil), foram também considerados aqueles factos que constituem complemento ou concretização daqueles que as partes haviam alegado e que resultaram da instrução da causa, na medida em que, acerca dos mesmos, tiveram a possibilidade de se pronunciar (alínea b), do n.º 2, do art.º 5.º, do Código de Processo Civil)”.
Isto dito, vejamos, então, se a prova produzida impõe ou não decisão diversa da recorrida.
No que respeita à dinâmica do acidente, e para formarmos a nossa própria convicção, tivemos em conta os mesmos meios de prova de que dispôs a primeira instância.
Assim, auditámos integralmente os depoimentos das testemunhas CC (condutor do veículo), e BB (este, na medida em que nos foi possível fazê-lo, em face das deficientes condições do registo áudio), e as declarações de parte da autora, AA, confrontando-as com a prova documental produzida, mormente as fotos juntas a fls. 22v.º e 23, 430 a 431v.º, e 474 a 490, o “Manual do Proprietário do Carro de Golfe Precedent” junto de fls. 501 a 541, e o relatório de averiguação final referente ao sinistro dos autos, que faz fls. 448 a 451v.º.
Dessa apreciação conjunta da prova produzida, efetuada de acordo com as regras da experiência comum e do normal acontecer, subscrevemos integralmente a fundamentação efetuada pelo tribunal a quo na parte em que afirmou que:
«A testemunha BB e a autora defenderam que foi o condutor que os convidou a subir no veículo e iniciou a condução. A testemunha CC (condutor) afirmou que foram aqueles que pediram para ser transportados naquelas circunstâncias.
Independentemente das versões contrárias apresentadas, uma coisa resulta como certa: nem o condutor foi obrigado a transportar os clientes (embora, atento as suas funções, se afigure normal que não contrariasse a vontade dos clientes do resort de luxo e que se dirigiam para o campo de golfe), nem a autora foi obrigada a entrar no veículo e ser transportada (esse transporte para o campo de golfe era apenas do interesse desta e do outro passageiro).
Outra coisa também parece indiscutível: independentemente de quem leu ou conhecia as regras de segurança afixadas no veículo de forma visível (fls.431/431vº), era notório que o espaço existente e os dois encostos apenas permitia que fossem transportados dois passageiros, o condutor e outra pessoa.
De todo o modo, estamos convencidos que, quer o condutor, por exercer aquela atividade há anos, quer a autora, golfista com experiência, conheciam tal circunstância, como acabaram por admitir, assim como o risco inerente ao transporte de três pessoas, mormente o risco de queda do veículo.
Aliás, a própria autora, numa atitude justificativa, afirmou que se o veículo fosse devagar não existia problema de transportar três pessoas (adultos), o que manifestamente, denota que sabia desse risco ou perigosidade.
A que acresce o facto do veículo não possui cintos de segurança, o que aumenta o perigo de queda dos ocupantes, mesmo em condições normais (dois ocupantes), quanto mais com excesso de lotação (três passageiros).
A testemunha BB, tentou acompanhar a versão dos factos trazida aos autos pela autora, no sentido de ter sido o condutor a convidá-los a entrar no veículo e dizendo que no veículo cabiam os três, acabando por admitir que, normalmente, ou conduz sozinho este tipo de veículos (também é praticante de golfe) ou acompanhado por mais uma pessoa.
Do que transparece não ser a normalidade, por razões óbvias, o transporte de três ocupantes neste tipo de veículos.
A testemunha CC, com a desculpa que tudo se passou muito depressa, que os clientes lhe pediram para os transportar, que estavam atrasados e com pressa para ir jogar golfe, e que bloqueou, também admitiu o que é indesmentível, ou seja, que no veículo só existe lugar para dois ocupantes, o condutor e um passageiro, e que aceitou transportar mais uma pessoa.
Até a própria autora, apesar de afirmar que havia espaço suficiente no veículo (para os três adultos), acabou por afirmar que o veículo serve dois passageiros (condutor e passageiro), o que é incontornável, por mais voltas que se queira dar.
Assim, da conjugação destes meios de prova, ficou a convicção que, quer o condutor aceitou transportar duas pessoas, quando apenas podia transportar uma, quer a autora e o acompanhante aceitaram ser transportados, em conjunto com o condutor, quando o veículo apenas podia transportar um deles.
Também será irrelevante a circunstância de ter sido (ou não) contratada a utilização do veículo com ou sem condutor.
Se foi com condutor a autora sabia que aquele seguiria no veículo, pelo que apenas um deles, ela ou o acompanhante, podia de uma vez só ser transportado.
Se foi sem condutor (o que parece ser o caso e foi referido pela testemunha BB), a autora sabia que aquele não iria conduzir o veículo e aceitou que o fizesse, transportando ambos os jogadores.
Aliás, até fará sentido a versão do condutor, quando afirmou que os jogadores estavam com pressa e pediram-lhe que os levasse. Ademais, como a autora declarou, era a primeira vez que jogava neste campo, pelo que seria natural que desconhecesse onde se localizava o buraco de saída (e a testemunha BB afirmou não se recordar se era a primeira vez que lá jogava).
Donde, seria conveniente aquele transporte pelo condutor, que saberia onde se localizava esse ponto de partida.
Que ambos os jogadores, autora e BB, tinham como destino o campo de golfe resulta inequívoco dos respetivos depoimento e declarações, defluindo que pretendiam seguir juntos, no mesmo veículo, pois que anuíram a que os respetivos sacos de golfe fossem colocados, ao mesmo tempo, no veículo.
Os depoimentos e declarações são coincidentes quanto ao que sucedeu após o condutor iniciar a marcha, defluindo do relatório de averiguações a fls.448/452 e das fotografias de fls.22vº/23 e 474/483 que, depois de percorrer alguns metros (não concretamente apurados), o condutor fletiu para a esquerda (para contornar a rotunda), provocando a projeção da autora e do outro passageiro para fora do veículo».
Sufragamos esta apreciação, notando apenas que a testemunha BB foi ouvida em audiência realizada em 19 de janeiro de 2021, em sede de produção antecipada de prova, e a testemunha CC e a Autora, apenas em 30 de novembro de 2021, tendo sido bastante acentuada a posição defensiva assumida pelo condutor do veículo, no sentido de contrapor à versão trazida aos autos por aquele, a ideia de que foi aquela testemunha quem tomou a iniciativa de tudo, quase que inculcando que obedecia às “ordens” do cliente, começando por invocar uma falta de memória que depois em outros momentos do depoimento aparecia como sendo rigorosa, por exemplo, indicando as horas (dizendo que os jogadores ficam em stress quando estão atrasados e que esse atraso no caso já seria de cerca de meia hora), que decorria um evento, os pormenores de onde estavam os sacos, onde apanhou o Senhor, que foi este quem lhe disse para arrancar, tudo como se não tivesse outra possibilidade. Questionado porque aceitou levar ambos, refere que foi uma grande confusão, que ele lhe tinha aparecido de repente no parque dos buggys, pedindo-lhe ajuda porque já estava atrasado para começar a jogar, que só na receção é que se apercebeu que havia outra pessoa, porque lhe foi dito, e que lhe foi pedido para esperar, que quando a senhora chegou o senhor se encostou mais a ele, ela entrou, ele disse que era para ele andar, e ele arrancou, ou seja, e no fundo, imputando à pressa dos clientes para chegarem ao campo 1, o facto de ter aceitado levar os dois. Por seu turno, a testemunha BB, disse que pediu o veículo na receção, e que era para o conduzir. Tanto ele como a Autora referiram que foi o condutor quem apareceu na receção e se ofereceu para os levar, por não saberem onde era o campo.
Aliás, tal como a própria Recorrente alega, afigura-se-nos ser indiscutível que no dia 5 de abril de 2017, a mesma foi vítima de um acidente de viação quando seguia, na Avenida do Mar, Vale do Lobo, Almancil, juntamente com o Senhor BB, num carrinho de golfe conduzido por um funcionário do empreendimento turístico Vale do Lobo Resort Turístico de Luxo, S.A. e pertencente a este.
É também certo que esse funcionário, após carregar os sacos de golfe da Recorrente e do Senhor BB nesse mesmo carrinho de golfe, se sentou ao volante, seguido do Senhor BB e da Recorrente e arrancou para levar a Recorrente e o Senhor BB ao primeiro buraco do campo de golfe, sendo que, na sequência de uma manobra de flexão do condutor, tanto a Recorrente como o Senhor BB foram projetados para fora do veículo em sentido contrário ao da marcha, tendo a Recorrente ficado gravemente ferida.
Somos assim chegados ao momento da fundamentação expressa pela julgadora que merece uma reanálise mais cuidada.
Prossegue a motivação de facto dizendo que «Essa projeção surge assim, em nosso entender, associada ao excesso de lotação, que naturalmente comprometeu a dirigibilidade do veículo, mormente dificultando a execução da manobra que se pretendia efetuar (contornar a rotunda) e provocando a queda dos dois passageiros, que seguiam sem cinto de segurança (o qual não existe no veículo).
Já quanto aos factos respeitantes à dinâmica do acidente que foram julgados não provados, o tribunal a quo ponderou que «Quanto aos factos constantes das alíneas c) e d), resultou das declarações da autora e depoimento da testemunha BB que já se encontravam sentados no veículo e tinham percorrido alguma distância (o primeiro falou em 20 metros a segunda em 2 metros) e que foi na sequência da manobra de flexão que se dá a projeção e subsequente queda.
Aliás, diremos, tratando-se de veículo elétrico, que é sabido não consegue atingir a velocidade de um veículo a motor, atendendo ainda ao curto percurso que efetuou, não resulta apurada a referida factualidade, relacionada com a velocidade.
Evidenciando-se, da prova, que a projeção se relaciona com a manobra de flexão e excesso de lotação de passageiros, aliada à ausência de cintos de segurança».
Concordando com a motivação expressa na decisão recorrida, a Apelada sustenta que «independentemente de quem solicitou o transporte, isto é, se foi o condutor que convidou a recorrente a subir no veículo ou se foi a recorrente e o seu amigo que pediram para ser transportados, a autora não foi obrigada a entrar no veículo e ser transportada.
Mais, se diz que era notório que o espaço existente e os dois encostos apenas permitia que fossem transportados dois passageiros, o condutor e outra pessoa.
A própria recorrente referiu que sabia perfeitamente que o veículo apenas podia transportar duas pessoas, mas mesmo assim aceitou o risco de ser transportada naquelas circunstâncias, facto aliás mais notório ainda, por se tratar de uma golfista com experiência, ou seja, conhecedora melhor de que ninguém das características daquele tipo de veículo.
Da matéria dada como provada, resulta claramente a existência do nexo de causalidade entre o comportamento da recorrente e o resultado. Na verdade, se a autora não tivesse aceitado ser transportada naquelas circunstâncias, bem sabendo que o veículo apenas podia transportar duas pessoas, o acidente não teria ocorrido».
Por seu turno, contrapõe a Recorrente que «do depoimento da testemunha BB, (ouvido em condições técnicas adversas e com o intérprete inicialmente sentado no fundo da sala, sem contacto visual com a testemunha, devido aos condicionamentos impostos pela pandemia) bem como das declarações da Autora/Recorrente, resulta, desde logo e de forma incontornável que o condutor do veículo de golfe arrancou a grande velocidade, prescrevendo, de seguida, uma curva apertada», concluindo que foi a sua condução e não a lotação do veículo, que motivou o acidente, convocando excertos das declarações daqueles e também do condutor do veículo, que, a seu ver, impõem decisão diversa da que foi dada aos acima indicados factos.
Verificamos, portanto, que a reapreciação dos factos impugnados vem perspetivada de forma entrelaçada com a determinação de qual o comportamento que foi causal do acidente: se só a atuação do condutor, ou se também a da autora.
Por isso, e antes de mais, cremos que o caso em apreço justifica uma primeira observação, porquanto evidencia muito bem a sagaz afirmação de URBANO A. LOPES DIAS[5] de que “tudo parece ser matéria de direito: não há nada que se possa só considerar como matéria de facto”, lembrando as palavras de CASTANHEIRA NEVES quando ensinava que “o direito não pode prescindir do facto e o facto não pode prescindir do direito”. Citando este Ilustre Professor, sintetiza que “[…] «os factos são seleccionados e objectivamente determinados em função do direito aplicável […], também o direito aplicável não pode deixar de ser seleccionado, determinado e reconstituído em função das exigências problemático-concretas do caso a decidir […]: ao considerar «a questão-de-facto» está implicitamente presente e relevante a «questão-de-direito» e ao considerar-se a «questão-de-direito» não pode prescindir-se da codeterminante influência da questão-de-facto.” E acrescenta, que “«a questão-de-facto» e a «questão-de-direito» não são duas entidades em si, de todo autónomas e independentes, antes mutuamente se condicionam, além de também mutuamente se pressupõem e remetem uma para a outra”.
Vale isto por dizer que, ao apreciarmos, à luz das regras da experiência comum, a narração factual respeitante à causa de um acidente, e extrairmos as ilações que esse circunstancialismo fático convoca, estamos também já a influenciar ou determinar a questão de direito. Tanto assim é, que na motivação da matéria de facto da decisão recorrida se considera que “a projeção se relaciona com a manobra de flexão e excesso de lotação de passageiros, aliada à ausência de cintos de segurança”, enquanto a Apelante, na impugnação da matéria de facto, defende que a projeção foi causada pelo excesso de velocidade do veículo e pela manobra de flexão.
Isto dito, avancemos, reapreciando a prova produzida, com o fito de desvendar, se afinal, como pretende a Recorrente, é redutor o entendimento expresso na sentença recorrida de que a projeção da Recorrente e do Senhor BB surge associada ao excesso de lotação, que terá comprometido a dirigibilidade do veículo, mormente dificultando a execução da manobra que se pretendia efetuar (contorno da rotunda), devendo modificar-se a factualidade para que da mesma decorra que tal projeção resultou de o condutor arrancar de forma súbita e repentina, a grande velocidade, infletindo, de seguida, o sentido da marcha realizada.
Vejamos, então, começando pelas características do veículo.
Extrai-se do Manual do Proprietário do Carro de Golfe Precedent junto como Doc. 18, a fls. 501 e ss. que:
- o mesmo contém autocolantes com aviso de segurança;
- o condutor deve certificar-se de que todas as pessoas se encontram sentadas e seguras às pegas ou corrimãos;
- pressione o pedal do acelerador lentamente. O travão de estacionamento libertar-se-á automaticamente e o veículo começará a mover-se;
- enquanto o pedal do acelerador é pressionado, a velocidade aumenta até ser atingida a velocidade máxima;
- o veículo deve funcionar entre 19 e 24 km/h, em superfícies planas;
- para evitar possíveis lesões a um passageiro desprevenido e/ou danos no veículo, evite arranques repentinos, paragens bruscas e curvas apertadas;
- para evitar o capotamento do veículo, conduza lentamente em curvas;
- não devem estar no veículo mais do que duas pessoas por assento de cada vez;
- para prevenir quedas, permaneça sentado num veículo em movimento e segure-se sempre às pegas ou corrimãos;
- para evitar a possibilidade de lesões graves, mantenha todo o corpo dentro do veículo;
- não utilize o veículo em estradas públicas. Não foi concebido para ser utilizado na rua e não deverá ter permissão para ser utilizado em estradas públicas.
Por seu turno, no autocolante de aviso colocado em lugar visível do lado direito da ignição constam alguns destes avisos em língua inglesa, e designadamente os seguintes:
- não ligar o veículo sem que todos os ocupantes estejam sentados;
- conduzir lentamente nas curvas;
- em andamento manter-se agarrado às pegas ou corrimões;
- máximo de (2) duas pessoas por assento.
E abaixo de sinalética de triângulo de aviso, em maiúsculas, consta que o capotamento ou queda pode causar ferimentos graves ou morte.
No caso em presença, sabemos que o condutor tinha experiência na condução deste tipo de veículo, uma vez que o fazia desde 2006, conforme declarou. De igual modo, os passageiros, ambos praticantes de golfe, com larga experiência, conheciam bem as suas características. A Autora declarou que joga golfe há 25 anos, e já andou “milhares de vezes” transportada em carros (como passageira), mas normalmente prefere ir a pé. Tendo-lhe sido exibida foto junta na audiência confirmou que o veículo podia ter sido este, salientando que é de 2 passageiros, mas o banco é contínuo. Mais referiu que quando veio da casa de banho o BB já estava sentado no meio, e ela entrou e havia espaço suficiente. Por seu turno, este declarou a este respeito que o condutor estava sentado, ele sentou-se e quando a Autora veio, o condutor convidou-a a entrar para o buggy e ela sentou-se. Instado disse que couberam os 3. Também o condutor referiu que colocou os sacos e entrou para o veículo, o senhor entrou e chegou-se para o lado dele condutor, e ela chegou e sentou-se.
Temos, pois, que, apesar de a lotação do veículo ser de 2 pessoas, o facto é que couberam estas 3 pessoas, sem que fosse mencionado por qualquer uma delas, e especialmente pelo condutor que isso lhe dificultou a condução, ou que a passageira estava sentada para fora dos limites do veículo (sendo que tudo indica que a tal obstaria a pega ou corrimão lateral à qual é suposto que os passageiros vão agarrados). Aliás, a autora inclusivamente declarou que “não é incomum, quando há pessoas para serem levadas para o ponto de partida do campo de golfe que levam mais do que uma pessoa. Só que quando fazem isso, têm que conduzir com consciência. Ele tem de saber o que faz, tem que ter cuidado”, e, perguntada pela Senhora Juíza: “Então, será um risco maior se levar dois do que levar um?”, respondeu “Se conduzir devagar e moderado, não tem problema”. Acresce que, não vimos no manual do proprietário qualquer limite de peso para o transporte dos passageiros, sendo que não vislumbramos, por si só, que o facto de serem duas pessoas para além do condutor, cuja estatura lhes permita que caibam todos no assento, aparentemente sem notórios constrangimentos, como foi o caso (o veículo tem uma largura de 120cm e o banco ocupa esse espaço menos o do suporte lateral), possa comprometer notoriamente mais a manobrabilidade do veículo do que se for apenas uma pessoa que pese o mesmo que aquelas. Note-se até que, nos factos provados 7 e 8, não impugnados, consta que o condutor depois de acondicionar os sacos de golfe no veículo que se encontrava estacionado junto da receção do clube de Golfe de Vale do Lobo, ocupou o veículo, BB sentou-se ao seu lado esquerdo e, pouco depois, a autora sentou-se ao seu lado direito, e nada mais se refere a respeito de como ficaram os 3 acomodados.
Portanto, não podemos subscrever, sem mais, a conclusão expressa na motivação de facto da decisão recorrida de que a projeção surge associada ao excesso de lotação, que naturalmente comprometeu a dirigibilidade do veículo, mormente dificultando a execução da manobra que se pretendia efetuar (contornar a rotunda) e provocando a queda dos dois passageiros.
Vejamos, agora, a questão da velocidade do arranque e da execução da manobra.
A este respeito, o condutor que, como já vimos, era experimentado na condução destes veículos, perguntado se, como tinha percorrido um metro ou dois, e sendo a velocidade do buggy baixinha, estaria numa velocidade muito baixa, respondeu: “Sim. Não, aquilo não foi muito baixo. Aquilo foi …, eu para lhe dizer a verdade, nem sei, como é que aquilo aconteceu, pronto. Aquilo foi uma coisa tão rápida …, assim que arranco aquilo vai, tão bem. Como é que eu posso explicar… O veículo quando arranca, arranca. Quase que começou a andar, pronto.” Mais disse que “avançou 1 metro, e metro e meio, e viu-a caída no chão, parou logo”. Confrontado com a foto de fls. 430, disse que arrancou mais ou menos no início e foi esta a direção que fez mas não acabou a rotunda porque assim que começou a contornar que viu a Senhora caída, conforme se vê na foto de fls. 22 v.º.
Nesta foto, vemos a Autora caída na estrada, a ser assistida pelo INEM, estando na direção do meio da pequena rotunda ali existente (trata-se de um vaso grande com um círculo de empedrado à volta), vendo-se, atrás, o edifício com vidros. Depois, se virmos a perspetiva que nos é dada do local marcado com tracejado e setas indicadoras da marcha que o condutor confirmou, e coincide com a descrição da testemunha BB (salvo quanto aos metros indicados, mas bem sabemos quanto algumas pessoas têm dificuldade em precisar as medidas), verificamos que serão poucos metros até ao momento em que o condutor inicia o contorno da dita rotunda, e diz ver a senhora caída, não se lembrando de ver o senhor e afirmando “quando olho não me consigo lembrar se ele caiu ou não. Só me lembro dele estar no meio, e dela no chão”. Bem, dir-se-á, se ele tivesse permanecido no meio, provavelmente não veria a senhora no chão…
Acontece que, de acordo com os factos provados em 10 e 11, já sabemos que em consequência da manobra efetuada para contornar a rotunda, ou da “flexão para o lado esquerdo”, como consta na decisão, a autora e BB foram projetados para fora do veículo em sentido oposto em relação ao sentido de marcha. Nas suas declarações, um e outro dizem terem sido projetados/catapultados ele a cerca de 2 m. e ela, autora, a cerca de 5 m. Pese embora tal não tenha sido objeto de melhor prova e que não conste do elenco factual, a verdade é que a gravidade das lesões sofridas pela autora inculcam que a projeção dela foi com alguma força centrífuga, o que nos remete para a questão da velocidade, talvez melhor dizendo no caso, da rapidez do arranque e da subsequente manobra, aptas a produzir a projeção ocorrida.
Ainda a este respeito, e para além do referido depoimento do condutor, a testemunha, BB quando perguntado como é que o condutor iniciou a marcha, disse que “ele começou muito rápido, e virou muito, muito rápido para a esquerda, e nós fomos projetados para o lado direito do carro”; mais adiante referiu “não me recordo mas nós fomos projetados a seguir a ter arrancado, arrancámos com muita velocidade e fomos logo projetados para a esquerda, entre o arranque e esse momento passaram poucos segundos”. Mais disse, e repetiu, que o senhor tinha sido simpático e prestável, mas tudo aconteceu porque arrancou rapidamente, e fez uma guinada para a esquerda que os projetou do veículo. Por seu turno, a autora disse que “ela entrou, o condutor arrancou em linha reta e virou de repente para a esquerda; com a aceleração rápida do carro e o voltar de repente para a esquerda, foi catapultada”.
Recordando a fundamentação de facto atinente à matéria julgada não provada na alínea c), onde consta: “o condutor do veículo arrancou, de imediato e de forma abrupta, imprimindo-lhe velocidade, mal a autora e companheiro tinham subido e se sentado”, não podemos, pois, subscrever a convicção firmada pela julgadora de que Quanto aos factos constantes das alíneas c) e d), resultou das declarações da autora e depoimento da testemunha BB que já se encontravam sentados no veículo e tinham percorrido alguma distância (o primeiro falou em 20 metros a segunda em 2 metros) e que foi na sequência da manobra de flexão que se dá a projeção e subsequente queda. Aliás, diremos, tratando-se de veículo elétrico, que é sabido não consegue atingir a velocidade de um veículo a motor, atendendo ainda ao curto percurso que efetuou, não resulta apurada a referida factualidade, relacionada com a velocidade. Evidenciando-se, da prova, que a projeção se relaciona com a manobra de flexão e excesso de lotação de passageiros, aliada à ausência de cintos de segurança”.
No caso em presença, a ausência de cintos de segurança apenas releva para acentuar a necessidade do cumprimento pelo condutor das regras de segurança do fabricante, mormente as que se referem a pressionar o pedal do acelerador lentamente, uma vez que, enquanto o pedal do acelerador é pressionado, a velocidade aumenta até ser atingida a velocidade máxima. Também por isso, para evitar possíveis lesões a um passageiro desprevenido e/ou danos no veículo, deve ainda evitar arranques repentinos, e curvas apertadas, devendo inclusivamente conduzir lentamente em curvas, para evitar o capotamento do veículo.
De todas estas instruções de segurança, que o condutor bem conhecia, evidencia-se que, apesar da objetivamente baixa velocidade máxima dos veículos de golfe, de entre 19 a 24 km/h, em superfícies planas, como era aquela via em que circulava, as características de segurança deste veículo não se comparam a um ligeiro de passageiros. Assim, as cautelas devem ser redobradas, tanto mais que os passageiros não estão presos com cinto de segurança, evitando os momentos já identificados como sendo os mais perigosos. São eles: o arranque, devendo evitar-se que sejam repentinos, uma vez que enquanto o acelerador é pressionado a velocidade aumenta até à máxima; e evitar também as curvas apertadas, precisamente porque podem levar até ao capotamento do veículo, perigo que justifica a advertência visível no veículo para ser conduzido lentamente em curvas ou viragens.
Das declarações do condutor, que não soube ou não quis explicar o evento mas referiu o que já se reproduziu acima, da testemunha e da autora, de que foram projetados no início da manobra para contornar a rotunda à esquerda, cremos dever concluir-se, em face das regras da experiência comum, que estas normas não foram cumpridas, como afiançaram os passageiros, tendo o condutor arrancado de forma repentina, acelerando e desse modo imprimindo velocidade ao mesmo, e curvando à esquerda alguns metros após, inferindo-se que o fez sem que diminuísse a velocidade a que seguia, só isso justificando que, para além da autora que seguia na ponta do veículo, também o outro passageiro que seguia entre ela e o condutor fosse projetado, facto que já foi considerado provado e que julgamos não poder justificar-se com a sobrelotação do veículo. Na verdade, cremos poder afirmar, que só a velocidade imprimida e a manobra apertada à esquerda, desadequadas para o veículo e local, poderiam ter a força centrífuga necessária a projetar ambos os passageiros do veículo, como se mostra provado. E isto, mesmo que tal velocidade seja para um outro veículo objetivamente baixa, porquanto, como bem sabemos, o comportamento dos veículos é muito diferente consoante as suas características.
Consequentemente, consideramos que a prova produzida efetivamente impõe decisão diversa da recorrida, devendo aditar-se o facto 8.º-A, com o seguinte teor:
8-A- Logo após, o condutor arrancou de forma repentina, acelerando e imprimindo velocidade ao veículo.
Consequentemente, deve eliminar-se a alínea c) dos factos não provados.
E, concordantemente com o antedito, por forma a precisar o tipo de flexão efetuada, não sendo possível medir os graus apontados pela autora na petição, ilustrando com o uso do aditamento de expressão de senso comum, deve ainda alterar-se o facto provado sob o número 9, nos seguintes termos:
9- Alguns metros após ter arrancado, o condutor fez uma flexão apertada para o lado esquerdo, de modo a contornar a rotunda existente no percurso que dava acesso ao campo de golfe.
Procede, pois, nos termos expostos, a impugnação da matéria de facto, devendo considerar-se esta modificação nos lugares próprios da factualidade acima descrita.
*****
III.2.2. Responsabilidade civil
Conforme decorre do relatório supra, na presente ação a autora alegou factos tendentes a demonstrar a culpa efetiva e exclusiva do condutor do veículo segurado na ré na produção do acidente, pressuposto da respetiva obrigação de indemnizar integralmente os danos decorrentes do mesmo.
Na sentença recorrida, depois de enunciados os pressupostos da responsabilidade civil, ponderou-se que «o que se discute é a ocorrência de um acidente de viação, no dia 05.04.2017, em que foi interveniente um veículo de golfe, no qual a autora seguia como passageira, na Avenida do Mar, onde se localiza o Empreendimento Turístico de Vale do Lobo, freguesia de Almancil, concelho de Loulé.
Este veículo de golfe, muitas das vezes apelidado de "buggy", segundo as regras do golfe, publicitadas no site da Federação Portuguesa de Golfe, constitui um equipamento desportivo.
Porém, face às regras do Código da Estrada, também pode ser considerado um veículo de circulação terrestre, por ser identificável para este fim, desde logo, enquanto veículo dotado de quatro rodas e que pode transitar sem sujeição a carris.
Embora, como se apura, pelas suas caraterísticas, fizesse parte das respetivas normas de segurança de utilização a proibição de condução em via pública.
Este veículo, no qual a autora seguia, após ter iniciado a marcha, fletiu à esquerda, para contornar a rotunda existente no empreendimento, o que fez com que a autora fosse projetada e caísse ao chão.
No veículo, para além da autora e condutor, era transportado outro passageiro, que acompanhava a autora, ambos com destino ao campo de golfe.
Não se apura (nem se alegava) uma concreta velocidade a que se deslocava, embora se saiba que, enquanto veículo elétrico, não atingirá as velocidades de um veículo automóvel.
O veículo podia transportar apenas dois ocupantes, o condutor e o passageiro, o que não sucedia na altura, em que era ocupado por três adultos.
Nos termos do art.º 54.º, n.º 3 do Código da Estrada, "É proibido o transporte de pessoas em número que exceda a lotação do veículo ou de modo a comprometer a sua segurança ou a segurança da condução".
Manifestamente, foi esta norma violada, tanto pelo condutor do veículo, que transportou dois passageiros, quando apenas era permitido mais um, como pela autora, que se fez transportar nestas circunstâncias em contravenção.
A postura adotada por ambos não deixa margem para dúvida que confiaram que podiam fazê-lo sem que ocorresse acidente.
Afigura-se que seria exigível ao condutor evitar o transporte em excesso de passageiros, o que comprometia a segurança, encontrando-se em condições de perceber que, ao transportar mais um passageiro, existia sério risco de queda.
O mesmo sucede com a autora que, na posição em que se encontrava, podia prever que não seria seguro serem transportadas três pessoas, também pelo risco de queda do veículo.
A que acresce o facto de, ultrapassado o limite da capacidade de lotação, surge maior dificuldade na direção efetiva do veículo, mormente a execução de curvas e manobras mais delicadas, podendo provocar desequilíbrios e a consequente queda os passageiros.
Ou seja, o facto de serem transportados três adultos, fez aumentar o peso total (massa) do veículo e, consequentemente, a respetiva energia cinética, o que fez com que, ao fletir para a esquerda, se tenha dado a projeção dos passageiros, precisamente em sentido oposto ao sentido de marcha.
Era previsível, quer para o condutor, quer para a autora, que não era possível o transporte em segurança dos dois passageiros, para além do condutor, tanto mais que se trata de um veículo estreito e sem cintos de segurança.
Um homem médio, colocado na posição do condutor, com experiência na condução deste tipo de veículos, assim como na da autora, com experiência na prática de golfe, teria tido essa perceção.
Estas circunstâncias deveriam ter determinado o condutor a não transportar os dois passageiros e a autora a não aceitar ser transportada nessas condições.
Ambos confiaram que nada sucederia, revelando imprudência, sendo a respetiva conduta merecedora de um juízo ético-jurídico de censura.
Incumprindo, assim, os deveres de cuidados que lhes eram exigíveis e objetivamente requeridos, no circunstancialismo em que se encontravam.
Deste modo, apurando-se que o condutor e a autora não tiveram estes deveres de cuidado, mais não resulta senão concluir que tiveram culpa na verificação do acidente de viação e na produção do resultado.
De resto, como referimos, a jurisprudência tem entendido que, no caso de violação de norma estradal que foi causal de acidente de viação, a integração do elemento subjetivo da responsabilidade civil (culpa: nexo de imputação do facto ao lesante) basta-se, em princípio, com a inobservância dos deveres de cuidado imposto pelas regras de trânsito.
Pelo que, concluímos, com as respetivas condutas quer a sinistrada, quer o condutor do veículo, terão contribuído para a produção do acidente, que o mesmo é dizer tiveram culpa, pois a sua conduta contribuiu de forma juridicamente relevante para a verificação dos danos, havendo, pois, concorrência entre a culpa do lesante e a culpa do lesado», vindo adiante a concretizar a percentagem dessa concorrência de culpas considerando que «a culpa será maior do condutor e a gravidade dos danos também potenciada pelo condutor do veículo (em 65%), por comparação à conduta da autora/passageira (35%)».
Como vimos, a Recorrida concorda com essa distribuição de responsabilidade.
Por seu turno, a Recorrente insurge-se contra tal entendimento, considerando que «a projeção da Recorrente e do Senhor BB para fora do veículo deveu-se, no plano da causalidade (como no plano da culpa), exclusivamente ao comportamento do condutor do carrinho de golfe, desde logo pela falta de perícia e inobservância das mais rudimentares regras de prudência e de cuidado na condução do veículo em questão, nomeadamente ao arrancar de forma súbita e repentina, a grande velocidade, infletindo, de seguida, o sentido da marcha realizada».
Vejamos.
Em face do disposto no artigo 483.º do CC “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação".
Acresce que, nos termos genéricos do artigo 342.º do Código Civil[6], também afirmados a propósito da matéria referente à responsabilidade civil, no artigo 487.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, ao autor (lesado) incumbe a prova dos factos constitutivos do direito invocado, no caso, “a culpa do autor da lesão”, apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso - n.º 2 do citado artigo 487.º - incumbindo, ao invés, à ré seguradora a prova de que o acidente ocorreu por culpa do lesado.
Ora, os pressupostos deste tipo de responsabilidade, designada por responsabilidade por factos ilícitos, agrupam-se num elenco de cinco, a saber: a) o facto; b) a ilicitude; c) a imputação do facto ao lesante; d) o dano; e) um nexo de causalidade entre o facto e o dano[7].
Como é evidente, a existência de um dano é condição essencial da obrigação de indemnizar: o facto ilícito e culposo tem que causar um prejuízo a alguém, o sofrimento de uma perda nos seus interesses patrimoniais ou mesmo não patrimoniais.
No caso, não se colocam dúvidas que os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pela autora foram causados pelo acidente.
É também sabido que o facto é ilícito quando viola um direito subjetivo de outrem, de natureza absoluta, ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, como ocorre quando a norma violada protege interesses particulares, mas sem conceder ao respetivo titular um direito subjetivo, dependendo, então, a indemnização a arbitrar que a tutela dos interesses particulares figure, de facto, entre os fins da norma violada e que o dano se tenha registado no círculo de interesses privados que a lei visa tutelar[8].
Na espécie, e grosso modo, a matéria de facto alegada pela Autora relativamente à dinâmica do acidente quando submetida a julgamento, em ambas as instâncias, logrou revelar-se provada, salvo quanto ao facto de ter sido chamada pelo condutor, o que, conforme bem se considerou na decisão recorrida, é irrelevante, porquanto se trata de uma praticante de golfe experimentada que conhecia a lotação do veículo, cujo encosto, aliás, evidencia que é de 2 pessoas, tendo-se feito transportar no mesmo com outro passageiro e o condutor.
Na sentença recorrida considerou-se que o facto de condutor e lesada, bem sabendo daquela lotação do veículo, terem aceitado, aquele transportar e esta ser transportada no veículo, configurou a violação por ambos do disposto no artigo 54.º, n.º 3, do Código da Estrada, de acordo com cuja estatuição, "é proibido o transporte de pessoas em número que exceda a lotação do veículo ou de modo a comprometer a sua segurança ou a segurança da condução", ainda que com diversa medida da culpa.
Acontece que, para além da violação de norma legal, no tocante ao nexo de causalidade entre o facto e o dano, o artigo 563.º do CC, consagrou a doutrina da causalidade adequada, segundo a qual, na sua formulação positiva, para que um facto seja causa de um dano é necessário, antes de mais, que no plano naturalístico, ele seja condição sem o qual o dano não se teria verificado, e ainda que, em abstrato ou em geral, o facto seja causa adequada do dano; e, na sua formulação negativa, a condição deixa de ser causa do dano sempre que, segundo a sua natureza geral, a mesma era de todo indiferente para a produção do dano e só se tornou condição dele, em virtude de outras circunstâncias extraordinárias, sendo, portanto, inadequada para a ocorrência desse dano[9].
Já quanto à imputação do facto ao lesante, a responsabilidade civil pressupõe, em regra, a culpa, que se traduz numa determinada posição ou situação psicológica do agente perante o facto, consistindo, em sentido amplo, na referida imputação do facto ao agente[10], ou ainda num enquadramento normativo, entendido como a omissão da diligência que seria exigível ao agente medida de acordo com o padrão de conduta que a lei impõe[11], sempre apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (artigo 487.º, n.º 2, do CC).
No caso vertente, a questão que o recurso convoca, é pois, a de saber se aquela comprovada conduta da autora pode ou não, no concreto circunstancialismo de facto em apreço, considerar-se como sendo, ainda que parcialmente, causal do acidente e imputável à mesma.
Para o efeito, importa ainda ter presente o artigo 563.º do CC que, sob a epígrafe “nexo de causalidade”, dispõe que “a obrigação de indemnizar só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”.
As partes dissentem quanto à medida em que tais danos são exclusivamente de imputar à conduta do condutor do veículo ou foram também causados pela conduta da lesada, ou seja, em que medida foi a atuação desta foi também causa do resultado.
VAZ SERRA[12], afirmava que “não podendo considerar-se como causa em sentido jurídico toda e qualquer condição, há que restringir a causa àquela ou àquelas condições que se encontrem para com o resultado numa relação mais estreita, isto é, numa relação tal que seja razoável impor ao agente responsabilidade por esse mesmo resultado. O problema não é um problema de ordem física ou, de um modo geral, um problema de causalidade tal como ser havido nas ciências da natureza, mas um problema de política legislativa: saber quando é que a conduta do agente deve ser tida como causa do resultado, a ponto de ser obrigado a indemnizar. Ora, sendo assim, parece razoável que o agente só responda pelos resultados, para cuja produção a sua conduta era adequada, e não por aqueles que tal conduta, de acordo com a sua natureza geral e o curso normal das coisas, não era apta para produzir e que só se produziram em virtude de uma circunstância extraordinária”.
Revertendo estas considerações ao caso em presença, verificamos que da factualidade provada apenas consta que, sendo a lotação do veículo de duas pessoas, o condutor (à esquerda) e um passageiro, no caso, para além deles, sentou-se ainda do lado direito deste, a autora. Nada mais consta na matéria de facto que respalde a influência da sobrelotação do veículo na ocorrência do evento.
Ora, tal como se ponderou no aresto do Tribunal da Relação do Porto[13], citado pela Recorrente, num caso em que num motociclo eram transportadas 3 pessoas, “não resulta da factualidade provada que o sinistro tenha sido causado pelo excesso de lotação ou pela circulação fora dos assentos. Desconhece-se a medida do excesso da tara do motociclo (…)”. Mas, mais, e tal como no nosso caso, “a dinâmica do sinistro não dá nota de qualquer desequilíbrio ou dificuldade na condução resultante do excesso de lotação do veículo. (…) Por outro lado, relativamente aos danos verificados, não existe factualidade provada que permita inferir que a violação da lotação do motociclo foi pelo menos concausal deles”, concluindo-se, pois, não dever tal circunstância ser relevada em sede de culpa do lesado. E este é o ponto crucial também na situação em presença, o qual, aliás, sempre se colocaria ainda que não tivesse sido modificada a matéria de facto nos termos sobreditos, tanto mais que na pág. 72 do Manual do Proprietário pode ler-se a referência a que se trata de 2 lugares padrão, não havendo sequer menção a peso máximo dos ocupantes do habitáculo, por exemplo.
Ainda com relevo a este respeito, o artigo 570.º, n.º 1, estatui que “quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída”.
Como observa MÁRIO JÚLIO ALMEIDA COSTA[14], a formulação legal “afasta os actos do lesado que, embora constituindo concausa do dano, não mereçam um juízo de reprovação ou censura”. Por outras palavras, “a redução ou exclusão da indemnização só ocorre quando o prejudicado não adopte a conduta exigível com que poderia ter evitado a produção do dano ou o agravamento dos seus efeitos”.
BRANDÃO PROENÇA[15], afirma que esta norma do artigo 570.º «integra um princípio elementar de justiça, requerido pela própria consciência ético-jurídica, estatuindo, com naturalidade, determinadas consequências ligadas à repercussão patrimonial do dano para que concorreu a conduta “culposa” do lesado”», precisando mais adiante que “De acordo com a interpretação que fazemos do artigo 570º,...parece-nos mais coerente com a autonomia dogmática da “culpa” do lesado explicar o fundamento desse normativo recorrendo à ideia jurídica de uma auto-responsabilidade do lesado...no sentido de uma imputação das consequências patrimoniais decorrentes de opções livres que tomou e que se revelaram desvantajosas para os seus interesses, dada a sua aptidão auto­lesiva...Nem cremos incorrecto falar-se aqui de uma dupla imputação, ora de feição mais objectiva (a imputação danosa) ora de conteúdo mais pessoal (a imputação da conduta à acção livre e “culposa” do “lesado”».
Revertendo estas considerações para a concreta situação ajuizada não há qualquer base factual comprovativa de que a circunstância de a Autora fazer a viagem juntamente com o condutor e outro passageiro, num veículo com lotação de dois lugares, mas no qual, aparentemente sem constrangimentos para a segurança da condução, se acomodaram três pessoas, tivesse concorrido para a produção dos danos que sofreu.
Ao invés, tendo presente a acima referida teoria da adequação, ainda que a entrada voluntária da Autora no carro, já com a lotação preenchida, tivesse atuado como condição da produção do evento danos, a verdade é que a sua atuação sempre deixaria de ser considerada como causa adequada do acidente quando para a sua produção concorreram decisivamente as circunstâncias que podem qualificar-se como anormais ou extraordinárias, decorrentes da atuação do condutor do veículo, essa sim, determinante do acidente.
De facto, quando se aprecia o comportamento do condutor do veículo, que trabalhava no Club Car do Resort de Vale de Lobo, conhecendo as características do veículo desde 2006, e que, ainda assim, não apenas aceitou transportar mais um passageiro, como ainda arrancou de forma repentina, acelerando e imprimindo velocidade ao veículo, e alguns metros depois, efetuou uma manobra apertada de flexão à esquerda, tudo ao arrepio do que consta bem salientado nas regras de segurança específicas deste tipo de veículo, que comandam que não se efetue um arranque repentino porque enquanto o pedal do acelerador está premido o veículo acelera até à velocidade máxima, e também que se façam as curvas lentamente e sem brusquidão para não haver risco de capotamento, vemos que apenas a este comportamento é atribuível a ocorrência do evento danoso.
Perante este quadro, cremos efetivamente ser possível concluir que foi o condutor do buggy, que tinha a direção efetiva do veículo, e só ele, que mediante a realização das indicadas manobras deu causa ao acidente; sem tal conduta ilícita e culposa a autora não teria sofrido quaisquer danos, porque ia a ser transportada no assento do veículo junto com o outro passageiro, sem que se tenha demonstrado que esse facto da lesada tenha contribuído para qualquer uma daquelas manobras do condutor. Conforme bem notou a Apelante, “no que diz respeito à violação do artigo 54º, nº 3 do Código da Estrada, o responsável pela contra-ordenação sempre é o condutor do veículo, o qual tem o domínio efectivo do veículo e está obrigado a tomar todas as precauções para a segurança da circulação, não devendo, consequentemente, conduzir em circunstâncias que diminuam a segurança da circulação, para os utentes da via ou para as pessoas que transporte”, como fez este condutor.
Para além deste preceito atinente à lotação do veículo e, a nosso ver, mais determinantemente neste caso, estabelece ainda o artigo 24.º do Código da Estrada que “O condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente”.
Ora, «[o] conceito de velocidade excessiva, definido no art.24 nº1 do CE, comporta duas realidades distintas: uma vertente absoluta (sempre que exceda os limites legais) e uma vertente relativa, a não adequação à situação concreta»[16].
No caso em apreço, não se demonstrou concretamente a que velocidade seguia o condutor do veículo segurado na Ré, pelo que estamos perante a segunda das situações referidas, cuja verificação ocorreu, em concreto. E, perante o quadro factual acima descrito, não temos dúvida em afirmar que o acidente se ficou a dever única e exclusivamente à conduta contravencional do condutor do veículo segurado na Ré que, sabendo que transportava mais um passageiro, que não podia arrancar bruscamente e fazer manobras repentinas, não regulou a velocidade a que seguia nem no arranque, nem especialmente quando efetuou a flexão apertada à esquerda, que motivou a projeção dos ocupantes do veículo.
Assim, conforme se julgou inter alia no aresto do nosso mais Alto Tribunal de 17.10.2006, «sabido apenas que havia um objectivo excesso de lotação do veículo, porque aferido apenas pelo número de ocupantes da viatura, sem que, como dito, se possa estabelecer qualquer relação entre esse facto e as causas do acidente, que, face ao demonstrado, se ficaram a dever à actuação gravemente negligente do condutor, não pode, utilizando o enunciado critério, formular-se outro juízo que não seja o de que a circunstância de a vítima seguir no automóvel, no lugar que ocupava como passageiro, não ser causa adequada do evento danoso, por se não mostrar que tal favorecia ou modificava, elevando-os, os riscos de verificação do dano».
Nesta conformidade, os danos verificados no acidente devem ser considerados como consequência de factos exclusivamente imputáveis ao condutor do veículo, único responsável pela respetiva indemnização.
Ex abundantia, ainda se dirá que, pese embora não tenha sido convocada, a verdade é que, estando demonstrado que o veículo em causa, pertence ao Clube de Golfe do Empreendimento Turístico Vale do Lobo, pertencente à sociedade Vale do Lobo- Resort Turístico de Luxo, S.A, onde a Autora e o Sr. BB reservaram um tee-time no campo de golfe de 18 buracos daquele Clube de Golfe, incluindo um veículo de golfe, que era conduzido por um seu funcionário (factos provados 3, 4, 5, e 7), sempre funcionaria a presunção decorrente do n.º 3 do artigo 503.º do CC.
Preceitua a primeira parte desta norma que “aquele que conduzir o veículo por conta de outrem responde pelos danos que causar; salvo se provar que não houve culpa da sua parte”, significando que a presunção ali plasmada só é afastada se aquele que conduzia o veículo demonstrar que não houve culpa da sua parte.
Ademais, conforme notam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA[17], “na hipótese prevista na primeira parte do n.º 3, à responsabilidade do comissário, fundada na culpa, acresce a do comitente, baseada no risco (n.º 1)”.
Assim, em face da factualidade demonstrada, também por este fundamento, nunca seria possível concluir que o condutor do veículo tivesse conseguido demonstrar que não houve culpa da sua partes, antes pelo contrário.
Concluindo, diremos que, não vindo questionada a verificação dos demais pressupostos da obrigação de indemnizar, por força do contrato de seguro titulado pela apólice junta aos autos, a companhia de seguros é a responsável pela satisfação à lesada dos danos emergentes do evento danoso decorrente de culpa exclusiva do condutor do veículo cuja circulação estava devidamente segurada, já que nos termos do artigo 64.º, n.º 1, alínea a), do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto vigente à data do sinistro, as ações destinadas à efectivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, em caso de existência de seguro, devem ser deduzidas obrigatoriamente só contra a empresa de seguros, quando o pedido formulado se contiver dentro do capital mínimo obrigatório do seguro obrigatório, como acontece no caso dos autos.
Efetivamente, a responsabilidade extracontratual é uma responsabilidade pessoal, e não objetiva pela circulação de veículos ou de outras coisas e é sobre a pessoa responsável que recai o dever de indemnizar, daí que, o seguro de responsabilidade civil por acidente de viação, é sempre pessoal, apesar de destinado ao uso de certo e determinado veículo ou à sua direção efetiva, razão pela qual assenta na atuação ilícita ou com risco do respetivo condutor.
Consequentemente, e sem necessidade de ulteriores considerações, a seguradora ora Recorrida, encontra-se obrigada a satisfazer à lesada 100% dos danos decorrentes do acidente em causa, tal como reconhecidos na sentença recorrida, sendo procedente a apelação.
Finalmente, cabe determinar as custas.
Vencida, a Recorrida suporta integralmente as custas do recurso, que no caso são apenas as custas de parte, suportando as custas da ação na proporção do decaimento, como já mencionado na sentença recorrida, tudo de harmonia com o princípio da causalidade e em face do preceituado nos artigos 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do CPC, dispensando-se a autora e a ré do pagamento de 50% do remanescente da taxa de justiça (art.º 6.º, n.º 7 do Regulamento das Custas Processuais).
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IV - Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal em julgar procedente a apelação, revogando a sentença recorrida, na parte em que considerou a autora parcialmente responsável, devendo a Seguradora, ora Recorrida, indemnizar a Autora, ora Recorrente, pela totalidade dos danos causados, tal como se mostram reconhecidos na sentença[18], condenando a Ré:
a) a pagar à autora a quantia de €6.451,50, a título de dano patrimonial, na vertente das despesas médicas, medicamentosas e de transportes, acrescida de juros de mora, à taxa de juros civis, a contar da data da citação até integral pagamento;
b) a pagar à autora a quantia de €3.000,00 a título de dano patrimonial, na vertente de auxílio prestado por terceiro, acrescida de juros de mora, à taxa de juros civis, a contar da data da citação até integral pagamento;
c) a pagar à autora a quantia que vier a ser liquidada, em sede de incidente de liquidação em execução de sentença, a título de dano patrimonial, na vertente de perda salariais, com o limite de €294.357,86;
d) a pagar à autora a quantia de €90.000,00, a título de dano patrimonial, na vertente de dano biológico, acrescida de juros de mora, à taxa de juros civis, a contar do dia seguinte ao da prolação da sentença até integral pagamento;
e) a pagar à autora a quantia que vier a ser liquidada, em sede de incidente de liquidação em execução de sentença, a título de dano patrimonial futuro, na vertente de despesas com revisão da prótese e tratamentos que venha a necessitar, com o limite de €30.000,00;
f) a pagar à autora a quantia de €55.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescidas de juros de mora, à taxa de juros civis, a contar do dia seguinte ao da prolação da sentença até integral pagamento;
No demais, mantem-se a decisão recorrida.
Custas do Recurso pela Recorrida, e na primeira instância, por ambas as partes, na proporção do respetivo decaimento, dispensando-se a autora e a ré do pagamento de 50% do remanescente da taxa de justiça.
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Évora, 27 de outubro de 2022
Albertina Pedroso [19]
Francisco Xavier
Maria João Sousa e Faro

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[1] Juízo Central Cível de Faro - Juiz 3.
[2] Relatora: Albertina Pedroso; 1.º Adjunto: Francisco Xavier; 2.ª Adjunta: Maria João Sousa e Faro.
[3] Doravante abreviadamente designado CPC.
[4] Cfr. PAULO RAMOS DE FARIA e ANA LUÍSA LOUREIRO, in Primeiras Notas ao Código de Processo Civil, vol. I, 2.ª edição, Almedina 2014, na nota de rodapé 27, pág. 40.
[5] No paper intitulado “As competências e as limitações cognitivas do Supremo Tribunal de Justiça, publicado no Blog do IPPC, em 16.11.2021, para o qual se remete para maiores desenvolvimentos.
[6] Doravante CC.
[7] No entender de ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, vol. I, 5.ª edição, pág. 478, entendimento que é maioritariamente seguido. Já PESSOA JORGE, Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil, Coimbra, 1995, pág. 55, reduz esses mesmos pressupostos a dois: acto ilícito e prejuízo reparável.
[8] Cfr. ANTUNES VARELA, obra citada, págs. 486 a 497.
[9] ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, I, pág. 651 e ss..
[10] No dizer de GALVÃO TELES, Direito das Obrigações, 7ª edição, revista e atualizada, 1997, pág. 346. Note-se que esta imputação do facto ao agente, para além do dolo em qualquer uma das suas modalidades, pode ainda resultar, no âmbito da denominada mera culpa, de negligência consciente - quando o agente prevê a produção de um facto ilícito como possível, mas, por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria, crê na sua não verificação, e só, por isso, não toma as providências necessárias para o evitar -, ou mesmo de negligência inconsciente, que ocorre quando o agente não chega sequer a conceber a possibilidade de o facto se verificar, por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão, podendo e devendo prevê-lo e evitar a sua verificação, se usasse da diligência devida – cfr. ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, I, págs. 394 e 395.
[11] Vd. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, I, 8ª edição, 2009, pág. 313; MENEZES CORDEIRO, Direito das Obrigações, 2º volume, AAFDL, 1990, pág. 309.
[12] Citado por PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, in Código Civil Anotado, vol. I, 3.ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, 1982, pág. 547.
[13] Proferido em 02.02.2014, no Proc.º n.º 2138.10.7TBPRD.P1.85, também disponível em www.dgsi.pt.
[14] In Direito das Obrigações, 10ª edição, Almedina, pág. 782.
[15] Na sua dissertação de doutoramento intitulada “A Conduta do Lesado como Pressuposto e Critério de imputação do Dano Extracontratual, Almedina 1997, págs. 415 e 417.
[16] Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29.03.2011, disponível in www.dgsi.pt.
[17] In Código Civil Anotado, vol. I, 3.ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, 1982, pág. 486.
[18] Reproduzindo-se o dispositivo com os valores atribuídos e constantes do corpo da sentença.
[19] Texto elaborado e revisto pela Relatora, e assinado eletronicamente pelos três desembargadores desta conferência.