Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
184/22.7GAGLG-A.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: RECLAMAÇÃO CONTRA DESPACHO QUE NÃO ADMITIR OU RETIVER RECURSO
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PROCESSO URGENTE
Data do Acordão: 04/04/2024
Votação: RELATOR
Texto Integral: S
Sumário: 1 – Os processos por crime de violência doméstica têm natureza urgente, ainda que não haja arguidos presos, sendo-lhes aplicável a disciplina provisionada no n.º 2 do artigo 103.º do Código de Processo Penal.
2 – Os processos por crime de violência doméstica mantêm a natureza urgente até ao trânsito em julgado da sentença, mesmo nos casos em que o arguido seja absolvido do crime de violência doméstica que lhe foi imputado no libelo acusatório e seja condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 184/22.7GAGLG-A.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo Local de Competência Criminal do Entroncamento – J1
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I – Relatório:
(…) veio reclamar do despacho de não admissão do recurso por si interposto, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 405.º do Código de Processo Penal.
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O arguido estava acusado da prática de um crime de violência doméstica, revisto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea a), do Código Penal.
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Na sessão da audiência de julgamento realizada a 05/12/2023, ao abrigo do disposto nos nºs 1 e 3 do artigo 358.º do Código de Processo Penal, foi proferido despacho de alteração dos factos constantes da acusação, entendendo-se que a referida factualidade integrava a prática de um crime de ofensa à integridade física, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal.
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Por sentença datada de 19/12/2023, o Tribunal a quo decidiu:
1. absolver o arguido (…) pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea a), do Código Penal.
2. condenar o arguido (…) pela prática, em autoria material e na forma consumada de 1 (um) crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido no artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à razão diária de € 8,00 (oito euros), no valor global de € 1.200,00 (mil e duzentos euros).
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A sentença foi depositada no mesmo dia e, conforme resulta da acta de audiência de audiência de julgamento, no acto de leitura, estiveram presentes o arguido e o seu Ilustre Mandatário, que foram devidamente notificados.
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O arguido apresentou o seu recurso em 31/01/2024.
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II – Dos factos com interesse para a decisão:
Os factos com interesse para a justa decisão do litígio são os que constam do relatório inicial.
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III – Enquadramento jurídico:
Do despacho que não admitir ou que retiver o recurso, o recorrente pode reclamar para o presidente do tribunal a que o recurso se dirige, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 405.º[1] do Código de Processo Penal.
Em matéria de recursos dispõe a alínea b) do n.º 1 do artigo 411.º do Código de Processo Penal que o prazo para a respectiva interposição é de 30 dias e conta-se, tratando-se de sentença ou acórdão, do respectivo depósito na secretaria.
Da leitura do disposto no artigo 28.º[2] da Lei n.º 112/2009, de 16/9, os processos por crime de violência doméstica têm natureza urgente, ainda que não haja arguidos presos. E daí decorre que seja aplicada à situação a disciplina provisionada no n.º 2 do artigo 103.º[3] do Código de Processo Penal.
Em termos práticos, tal significa que os prazos processuais, onde inclui o de interposição de recurso, correm durante os fins-de-semana, férias e feriados para todos os sujeitos e intervenientes processuais e para a secretaria, mesmo que não haja arguidos presos, como resulta do disposto no n.º 2 do artigo 104.º[4] do Código de Processo Penal.
A finalidade desta opção, desta busca de especial celeridade, não é a tutela do arguido, mas a protecção do ofendido, tal como decorre da exposição de motivos de uma das iniciativas legislativas de que resultou a Lei n.º 112/2009 (Proposta de Lei n.º 248/X, Diário da Assembleia da República, II Série A, de 22 de Janeiro de 2009) e das opções legislativas ali inscritas.
O reclamante insurge-se contra o sentido decisório do despacho de não admissão de recurso, porque, na sua visão, a alteração da qualificação jurídica retirou ao procedimento penal a sua natureza de processo urgente, passando a aplicar-se a regra geral de contagem.
Porém, neste particular, existe jurisprudência consolidada que afirma que os processos por crime de violência doméstica mantêm a natureza urgente até ao trânsito em julgado da sentença, mesmo nos casos em que o arguido seja absolvido do crime de violência doméstica que lhe foi imputado no libelo acusatório e seja condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física[5].
Aliás, o próprio Tribunal Constitucional já concluiu, por diversas vezes, pela não inconstitucionalidade do artigo 28.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 112/2009, na interpretação que os processos por crime de violência doméstica têm natureza urgente, ainda que não haja arguidos presos, não se suspendendo no período de férias judiciais o prazo para interposição de recurso de decisões nele proferidas[6].
Em adição, o princípio da tramitação unitária em caso de qualificação de um dado processo como urgente implica que as regras excepcionais relativas ao tempo para a prática dos actos e ao modo de contagem dos prazos tenham aplicação global e funcionem como um todo, abrangendo todos os actos de todos os operadores judiciários e de todos os intervenientes processuais, não podendo aqui existir prazos distintos para a interposição de recursos.
Por conseguinte e em função disto, por força desta linha directora, caso o Ministério Público – ou o assistente (ou ambos) – discordasse da absolvição e pretendesse a condenação do arguido pela prática do crime de violência doméstica estaria sujeito a impugnar a decisão no prazo de 30 dias contado de forma contínua.
Nestes termos é, assim, de validar a conclusão do Meritíssimo Juiz de Direito quando afirma que «considerando que o prazo para a interposição de recurso se iniciou no dia 20.12.2023, o prazo de 30 dias a que se refere o n.º 4 do artigo 411.º do Código de Processo Penal esgotou-se no dia 18.01.2024, podendo, no entanto, mediante o pagamento de uma multa, o recurso ser apresentado nos três dias úteis subsequentes, isto é, até 23.01.2024».
Nessas circunstâncias, não tem base legal a afirmação que, a partir daquela comunicação da alteração da qualificação jurídica, ocorreu o trânsito em julgado da convolação operada, ficando afastada a possibilidade de condenação pela prática de um crime de violência doméstica e, por essa via, o processo deixou de ter natureza urgente.
Neste espectro lógico-jurídico, o recurso apresentado pelo arguido no dia 31/01/2024 foi interposto quando a sentença já havia transitado em julgado, devendo assim manter-se o despacho de não admissão de recurso, por extemporaneidade.
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IV – Sumário: (…)
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V – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção as considerações expendidas e o quadro legal aplicável, mantém-se o despacho reclamado, não se admitindo o recurso interposto.
Custas a cargo do arguido, fixando a taxa de justiça em 2 Uc´s.
Notifique.
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Processei e revi.
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Évora, 04/04/2024
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho


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[1] Artigo 405.º (Reclamação contra despacho que não admitir ou que retiver o recurso):
1 - Do despacho que não admitir ou que retiver o recurso, o recorrente pode reclamar para o presidente do tribunal a que o recurso se dirige.
2 - A reclamação é apresentada na secretaria do tribunal recorrido no prazo de 10 dias contados da notificação do despacho que não tiver admitido o recurso ou da data em que o recorrente tiver tido conhecimento da retenção.
3 - No requerimento o reclamante expõe as razões que justificam a admissão ou a subida imediata do recurso e indica os elementos com que pretende instruir a reclamação.
4 - A decisão do presidente do tribunal superior é definitiva quando confirmar o despacho de indeferimento. No caso contrário, não vincula o tribunal de recurso.
[2] Artigo 28.º (Celeridade processual):
1 - Os processos por crime de violência doméstica têm natureza urgente, ainda que não haja arguidos presos.
2 - A natureza urgente dos processos por crime de violência doméstica implica a aplicação do regime previsto no n.º 2 do artigo 103.º do Código de Processo Penal.
[3] Artigo 103.º (Quando se praticam os actos):
1 - Os actos processuais praticam-se nos dias úteis, às horas de expediente dos serviços de justiça e fora do período de férias judiciais.
2 - Exceptuam-se do disposto no número anterior:
a) Os actos processuais relativos a arguidos detidos ou presos, ou indispensáveis à garantia da liberdade das pessoas;
b) Os atos relativos a processos em que intervenham arguidos menores, ainda que não haja arguidos presos;
c) Os actos de inquérito e de instrução, bem como os debates instrutórios e audiências relativamente aos quais for reconhecida, por despacho de quem a elas presidir, vantagem em que o seu início, prosseguimento ou conclusão ocorra sem aquelas limitações;
d) Os actos relativos a processos sumários e abreviados, até à sentença em primeira instância;
e) Os actos processuais relativos aos conflitos de competência, requerimentos de recusa e pedidos de escusa;
f) Os actos relativos à concessão da liberdade condicional, quando se encontrar cumprida a parte da pena necessária à sua aplicação;
g) Os actos de mero expediente, bem como as decisões das autoridades judiciárias, sempre que necessário.
h) Os atos considerados urgentes em legislação especial.
3 - O interrogatório do arguido não pode ser efectuado entre as 0 e as 7 horas, salvo em acto seguido à detenção:
a) Nos casos da alínea a) do n.º 5 do artigo 174.º; ou
b) Quando o próprio arguido o solicite.
4 - O interrogatório do arguido tem a duração máxima de quatro horas, podendo ser retomado, em cada dia, por uma só vez e idêntico prazo máximo, após um intervalo mínimo de sessenta minutos.
5 - São nulas, não podendo ser utilizadas como prova, as declarações prestadas para além dos limites previstos nos n.ºs 3 e 4.
[4] Artigo 104.º (Contagem dos prazos de actos processuais):
1 - Aplicam-se à contagem dos prazos para a prática de actos processuais as disposições da lei do processo civil.
2 - Correm em férias os prazos relativos a processos nos quais devam praticar-se os actos referidos nas alíneas a) a e) do n.º 2 do artigo anterior.
[5] Neste sentido podem ser consultados os acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 12/04/2021, do Tribunal da Relação do Porto de 07/06/2010, disponibilizados em www.dgsi.pt..
[6] Na decisão sumária n.º 276/2020, de 08/05/2020, disponibilizada em www.tribunalconstitiucional.pt, entre muitas outras, é feita uma resenha da posição do Tribunal Constitucional sobre este assunto.