Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
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| Relator: | MANUEL BARGADO | ||
| Descritores: | RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL INDEMNIZAÇÃO DANOS PATRIMONIAIS DANOS NÃO PATRIMONIAIS NULIDADE FACTO CONCLUSIVO | ||
| Data do Acordão: | 11/27/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | CONFIRMADA A DECISÃO RECORRIDA | ||
| Área Temática: | CÍVEL | ||
| Sumário: | Sumário:
I - A nulidade por excesso de pronúncia, prevista na alínea d) do nº 1 do art. 615º do CPC, reconduz-se a um vício formal, em sentido lato, traduzido em error in procedendo ou erro de atividade que afeta a validade da decisão. II - Tal nulidade radica no conhecimento de questões que não podiam ser julgadas por não terem sido suscitadas pelas partes, nem serem de conhecimento oficioso. III - Ao tribunal incumbe proceder às qualificações jurídicas que tiver por corretas, ao abrigo do disposto no artigo 5º, nº 3, do CPC, de modo a esgotar as possíveis qualificações dos factos alegados em função do efeito prático-jurídico pretendido, segundo o denominado “princípio de exaustão”. IV - Não tem natureza conclusiva a expressão implicar esforços suplementares e, em todo o caso, os factos conclusivos traduzidos na consequência lógica retirada de outros factos, uma vez que, ainda assim, constituem matéria de facto, devem permanecer na factualidade provada quando facilitem a apreensão e compreensão da realidade, visando uma melhor adequação e ponderação de todas as circunstâncias na resolução do litígio. V - Ao dano biológico não pode ser conferida autonomia enquanto tertium genus e, por esse motivo, todas as variantes do dano-consequência terão de traduzir-se sempre num dano patrimonial e/ou num dano não patrimonial. VI - O dano-consequência tratado nos autos insere-se na vertente do dano patrimonial, pois embora sem repercussão direta e imediata na atividade profissional e na obtenção do ganho dela resultante, implica um maior esforço no exercício dessa mesma atividade por parte da autora. | ||
| Decisão Texto Integral: | Proc. nº 198/23.0T8ADV.E1
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora I - RELATÓRIO AA instaurou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra Companhia de Seguros Vitória, S.A., pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia global de € 45.000,00 (quarenta e cinco mil euros), a título de danos não patrimoniais, incluindo ressarcimento pelos danos futuros, quantia essa acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até efetivo pagamento. Alega, em síntese, que no dia 10.03.2022, no interior do supermercado Intermarché, sito na Estrada 1, em Vila 1, quando aí andava, tropeçou numa palete de madeira, que se encontrava no meio do caminho, sem qualquer tipo de sinalização, o que provocou o seu desequilíbrio, acabando por cair desamparada no solo, o que lhe causou um trauma ao nível do tornozelo da perna esquerda e as demais lesões descritas na petição inicial, danos de que se quer ver ressarcida, sendo a ré responsável pelo pagamento da respetiva indemnização, por força do contrato de seguro de responsabilidade civil que celebrou com o Intermarché. A ré contestou, começando por assumir a responsabilidade pelo sinistro, alegando ter efetuado o pagamento de todas as despesas, incluindo de deslocação, realizadas pela autora, tendo apresentado uma proposta de indemnização de € 9.500,00 que não foi aceite. No mais, refere que os montantes peticionados, a título de ressarcimentos dos danos não patrimoniais sofridos, se encontram desconformes com os critérios legais e jurisprudenciais, sendo tais valores muito superiores aos atribuídos pelos tribunais. Termina, dizendo não questionar os factos resultantes da documentação hospitalar e dos certificados de incapacidade, mas impugna genericamente os factos alegados pela autora, bem como os relatórios médicos (avaliação médico-legal) que foram juntos aos autos. Foi realizada audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador tabelar, com subsequente identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova. Realizada a audiência final, foi proferida sentença em cujo dispositivo se consignou: «Nestes termos e face ao exposto, julgo totalmente procedente por provada a acção e, em consequência decido: 1. Condenar a Ré COMPANHIA DE SEGUROS VITÓRIA, S.A. a pagar à Autora AA a quantia de 45.000,00 (quarenta e cinco mil euros), acrescidos acrescida de juros de mora á taxa legal, desde a data da presente decisão, até integral e efetivo pagamento. 2. Condenar a Ré nas custas da ação (cfr. art.s 527.º n.ºs 1, 2 e 3, e 528.º n.ºs 1 e 3 do C.P.C.).» Inconformada, a ré apelou do assim decidido, finalizando a respetiva alegação com a formulação das conclusões que se transcrevem: « Nulidade (parcial) da sentença recorrida 1. O pedido da A. contra a R. desdobra-se em duas parcelas: 1ª € 15.000,00, por danos patrimoniais futuros resultantes de uma nova cirurgia; 2ª € 30.000,00, por danos não patrimoniais. 2. A A. submeteu à apreciação do tribunal a quo, essencialmente, duas questões: saber, por um lado, se a A. tinha necessidade de se submeter a uma nova cirurgia e se esta a faria incorrer num gasto de € 15.000,00 e, por outro, se sofrera os danos não patrimoniais alegados e em que medida estes deveriam ser compensados. 3. O objecto do processo e os temas de prova deixam isso claro. 4. No que concerne aos alegados danos patrimoniais futuros, a A. logrou provar a necessidade de uma nova operação, mas não que, com essa cirurgia, iria ter um gasto de € 15.000,00 ou qualquer outro valor, nem, tão-pouco, empreendeu qualquer esforço probatório nesse sentido. 5. Os factos provados espelham essa absoluta ausência de prova, deles não resultando que da cirurgia mencionada no seu nº 30 advenha para a A. algum dano patrimonial futuro, e muito menos no peticionado montante de € 15.000,00, o que obrigava à improcedência desse pedido. 6. Verifica-se que o tribunal a quo, em lugar de conhecer dessa questão (isto é, dos alegados danos patrimoniais futuros relacionados com a cirurgia mencionada no nº 30 dos factos provados), conheceu de outra questão, que extravasa, claramente, o objecto do processo, pronunciando-se sobre outros pretensos danos patrimoniais futuros, por si presumidos a partir do dano biológico e da suposta diminuição da capacidade de trabalho da A., cujo ressarcimento não foi pedido por esta. 7. Para justificar a apreciação da questão dos danos patrimoniais futuros advenientes do dano biológico, que a A. não suscitou e que é uma “não questão” à luz dos seus pedidos, o tribunal a quo convocou a sua liberdade na qualificação jurídica dos factos provados. 8. Não é isso que está em causa no caso sub judice. 9. Na p.i., a A. não classificou o seu dano biológico (como dano não patrimonial ou de outra forma); o que fez, nesse articulado, foi delimitar o pedido nos termos que entendeu, peticionando o ressarcimento dos danos patrimoniais futuros relacionados com o custo de uma nova cirurgia e a compensação dos danos não patrimoniais que lhe advieram do sinistro, incluindo as consequências não patrimoniais do dano biológico (sendo o dano biológico um dano real ou dano-evento, que pode ter consequências patrimoniais e/ou não patrimoniais, a A. não submeteu à apreciação do tribunal a quo a questão das consequências patrimoniais futuras do dano biológico e muito menos pediu o seu ressarcimento). 10. Às partes cabe delimitar o objecto do processo (composto pelas questões submetidas nos articulados à apreciação do tribunal), sendo que ao autor compete definir a quantidade e o objecto do pedido. 11. O conhecimento do tribunal está restringido a essas questões (salvo as questões de conhecimento oficioso) e uma eventual condenação está limitada à quantidade e ao objecto do pedido, nos termos dos arts. 698º/2 e 609º/1 do CPC. 12. Essas normas processuais foram desrespeitadas pelo tribunal a quo na sentença recorrida, na medida em que, invocando tratar-se de uma questão de mera qualificação jurídica dos factos e não estar vinculado à qualificação (pretensamente de dano não patrimonial) dada pela A. ao seu dano biológico, o tribunal a quo não só conheceu da questão das consequências patrimoniais futuras do dano biológico da A., que esta não submetera à sua apreciação, como condenou a R. a pagar à A. uma indemnização a esse título, quando esta não a pedira! 13. Já a questão (suscitada pela A.) dos danos patrimoniais futuros relacionados com uma nova cirurgia, no valor de € 15.000,00, ficou por apreciar e o correspondente pedido de condenação (formulado pela A.) ficou por julgar (sendo que esta pretensão, efectivamente formulada pela A., deveria ter sido julgada improcedente, por falta de prova desses danos). 14. Por o tribunal a quo se ter pronunciado sobre questão que não fora submetida à sua apreciação e ter condenado a R. em objecto diverso do pedido da A., a sentença recorrida é nula, na parte em que condenou a R. a pagar à A. a quantia de € 25.000,00 a título de danos patrimoniais futuros resultantes do dano biológico, nos termos da 2ª parte das als. d) e e) do nº 1 do art. 615º do CPC. Impugnação da decisão de facto (FP 27 e FP 42, parte final) 15. Do relatório do INML de 25.3.2024 (1ª perícia), no campo das “Queixas” relativas à “Vida profissional ou de formação”, resulta que a A. “mantem a mesma profissão com alguma limitação ocasional, mas não afeta de modo geral a sua atividade que é predominantemente sentada e sedentária.”. 16. Do relatório do INML de 6.11.2024 (2ª perícia), naquele mesmo campo, resulta “Dificuldades na mobilidade da empresa entre 1º e 2º andar, pelas escadas e com necessidade de carregar algum peso.”. 17. Quanto à repercussão permanente das sequelas na actividade profissional, o INML concluiu, quer no relatório da 1ª perícia, quer no da 2ª perícia, pela compatibilidade das sequelas com o exercício da profissão habitual, mas com esforços suplementares, cuja necessidade não fundamentou concretamente. 18. O relatório emitido em 6.9.2024 pelo cirurgião ortopédico que operou a A. (junto ao requerimento da 2ª perícia da A.) não alude a quaisquer pretensos esforços adicionais, dele apenas resultando “Última consulta a 15/03/2024, com 2 anos de evolução. Sem queixas álgicas. Sem limitações das AVDs. RX de controlo bem.”. 19. Sobre a questão dos esforços adicionais da A. no exercício da actividade profissional incidiram os seguintes elementos probatórios: a) Declarações de parte da A. (ficheiro 2025-03-11_09-50-29, passagens da gravação: 00:00:28 – 00:00:48, 00:08:02 – 00:08:19 e 00:10:20 – 00:11:40); b) Testemunho do marido da A., BB (ficheiro 2025-03-11_10-07-54, passagem da gravação: 00:13:10 – 00:13:41); c) Testemunho da irmã da A., CC (ficheiro 2025-03-11_10-58-31, passagem da gravação: 00:11:00 – 00:11:42). 20. Da prova indicada na conclusão anterior resulta que, no pós-operatório, e durante algum tempo, a A. teve de fazer esforços adicionais, na subida e descida de escadas, para aceder ao seu local de trabalho, que, na altura, se situava no 1º andar dos escritórios do Intermarché, onde “funcionava” a contabilidade, sendo que esses esforços foram temporários (relacionado com o específico acesso ao local de trabalho no pós-sinistro), e não permanentes, tanto mais que a A. já ali não trabalha, tendo começado a trabalhar na C. M. de Vila 1 em 1.7.224, como assistente operacional. 21. A referida prova obriga à revogação da decisão vertida nos nºs 27 e 42 (na parte em que diz “mas implicam esforços suplementares”) dos factos provados, com a sua consequente eliminação da decisão de facto. 22. O nº 27 dos factos provados é, desde logo, conclusivo, e não factual. Acresce que ficou provada a sedentariedade da actividade profissional da A., quer à data do sinistro (em que trabalhava na contabilidade do Intermarché), quer actualmente (em que é assistente operacional na Câmara Municipal), sendo que essa sedentariedade é incompatível com a decisão ali vertida; com efeito, a prova referida, com destaque para as declarações de parte da A., é claramente insuficiente para se extrair a conclusão, reflectida naquele nº 27, de que a A., no âmbito da sua profissão, “tem de fazer deslocações frequentes” e, por isso, devido às sequelas, tem de fazer esforços acrescidos ao nível da marcha e da condução de veículo automóvel. 23. Também a parte final do nº 42 dos factos provados (“mas implicam esforços suplementares”) tem natureza conclusiva, sendo desprovida de suporte fáctico. 24. Ambas as decisões, vertidas nos nºs 27 e 42 dos factos provados, pecam por deixar transparecer a existência de um dano permanente, relacionado com os esforços suplementares a que a A. Estaria obrigada no exercício da sua profissão habitual em resultado das sequelas, quando a prova acima indicada demonstrou que só temporariamente (no pós-operatório e durante algum tempo) a A., por força das lesões do sinistro e do seu tratamento cirúrgico, sofreu algum condicionamento no acesso ao seu local de trabalho, devido às dificuldades então sentidas na subida e descida das escadas, sendo que actualmente já nem aí trabalha. Do Direito 25. Ainda que a arguida nulidade da sentença recorrida não fosse declarada, o que apenas se admite por mero dever de cautela e de patrocínio, a esperada procedência da impugnação da decisão de facto, com a consequente eliminação dos nºs 27 e 42 (na parte em que diz “mas implicam esforços suplementares”) dos factos provados, importaria, automaticamente, a revogação da condenação da R. (fundada naqueles pontos de facto impugnados) no pagamento do montante de € 25.000,00 por danos patrimoniais futuros presumidos pelo tribunal a quo a partir do dano biológico da A.. 26. A reclamada revogação do referido segmento condenatório impor-se-ia mesmo numa hipotética improcedência da referida impugnação da decisão de facto. 27. O dano biológico é um dano real ou dano-evento, que pode ter consequências patrimoniais e/ou não patrimoniais. 28. Depois de, aparentemente, declarar apoio a essa posição, que é a da Sra. Professora Doutora e Juíza Conselheira do STJ Mª da Graça Trigo, o tribunal a quo acabou, na aplicação do Direito, por dela se afastar, ao confundir o pedido da A. (que não inclui o ressarcimento de quaisquer consequências patrimoniais futuras do dano biológico) com uma pretensa classificação do dano biológico como dano não patrimonial e ao afirmar a sua desvinculação a essa “qualificação dos factos”, que, na verdade, não o é, pois a A. não classificou o dano biológico, apenas tendo alegado lesões e sequelas (isto é, o seu dano biológico, enquanto dano real ou dano-evento) e as consequências não patrimoniais sofridas em seu resultado, concluindo pela formulação de um pedido de indemnização de € 30.000,00 a esse título. 29. A A. não alegou que, em resultado do seu dano biológico, sofrera danos patrimoniais ou que, previsivelmente, iria sofrê-los no futuro; o mesmo é dizer que a A., no uso da sua liberdade na configuração da causa de pedir e na formulação do pedido, não integrou esses eventuais danos patrimoniais (advindos do dano biológico) na causa de pedir, nem no seu pedido, assim os excluindo do objecto do processo. 30. Ao considerar que a simples alegação e prova do dano biológico e de esforços acrescidos no exercício da profissão lhe permitiam condenar a R. a pagar à A. uma indemnização por danos patrimoniais futuros advindos do dano biológico, ao abrigo da sua liberdade de qualificação jurídica dos factos, o tribunal a quo decidiu ao arrepio dos limites do poder jurisdicional previstos no art. 608º/2 do CPC e dos limites de condenação previstos no art. 609º/1 do CPC (já que a A. não submetera a questão dos danos patrimoniais futuros advindos do dano biológico à apreciação do tribunal a quo, nem pedira a condenação da R. na sua indemnização). 31. Ainda que os impugnados nºs 27 e 42 (parte final) dos factos provados fossem confirmados, o que apenas se admite por mero dever de cautela e de patrocínio, os esforços adicionais no exercício da profissão habitual, só por si, isto é, desacompanhados de qualquer outra prova que permita concluir, com suficiente grau de previsibilidade, pela diminuição da capacidade de ganho do lesado e consequente afectação negativa do seu património no futuro, não devem conduzir, automaticamente, à indemnização de (ficcionados) danos patrimoniais futuros, sobretudo quando o próprio lesado não prevê que o seu dano biológico venha a ocasionar danos dessas natureza, como é o caso da A., que nada alegou nesse sentido. 32. O portador de dano biológico só deve ser indemnizado por danos patrimoniais futuros se estiverem preenchidos os pressupostos do art. 564º/2 do CC, ou seja, se for previsível que das sequelas resulte uma perda efectiva da capacidade de ganho (se a incapacidade apenas acarretar um aumento de penosidade do trabalho, sem se demonstrar qualquer efeito, directo ou indirecto, no património da vítima, apenas as consequências não patrimoniais do dano biológico devem ser compensadas). 33. A perda de rendimento no futuro não deve ser ficcionada pelo julgador, contrariamente ao que fez o tribunal a quo, que condenou a R. a pagar à A. uma indemnização a esse título que não fora pedida por esta. 34. Em suma, ainda que improcedesse a impugnação dos nºs 27 e 42 (parte final) dos factos provados, o que apenas se admite por mero dever e cautela e de patrocínio, sempre se imporia a revogação da condenação da R. no pagamento de € 25.000,00 a título de danos patrimoniais futuros advindos do dano biológico, com a consequente redução da condenação total para o valor de € 20.000,00 (fixado a título de danos não patrimoniais). 35. A sentença recorrida violou os arts. 608º/2 e 609º/1 do CPC e o art. 564º/2 do CC.» Termina pedindo que seja declarada «nula a sentença recorrida, na parte em que condenou a R. a pagar à A. a quantia de € 25.000,00 por danos patrimoniais futuros decorrentes do dano biológico, ou, subsidiariamente, revogar essa condenação, absolvendo a R. dessa parte do “pedido”». A autora contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e consequente manutenção da sentença recorrida. Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir. II – ÂMBITO DO RECURSO Sendo o objeto dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), as questões a decidir consubstanciam-se em saber: - se a sentença recorrida enferma de nulidade parcial; - se deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto; - se deve ser atribuída uma indemnização à autora a título de danos patrimoniais futuros advindos do dano biológico. III – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICO JURÍDICA Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos1: 1. A Autora no dia 10 de Março de 2022, cerca das 17H15, encontrava-se no interior do supermercado Intermarché, sito na Estrada 1, em Vila 1, do qual é proprietária a empresa DD, Supermercados Lda, com sede na Rua 1, ..., Vila 1, trazendo ao colo a sua filha de 9 meses de idade. 2. Na secção dos congelados, a Autora ao virar para o expositor ali existente, e ao contornar as arcas dos congelados, tropeçou numa palete de madeira, que se encontrava no meio do caminho, tendo-se desequilibrado, e acabado por cair desamparada no solo. 3. No local descrito em 2) era inexistente qualquer tipo sinalização. 4. Em consequência directa e necessária do descrito em 2) a Autora sofreu fractura do pilão tibial esquerdo com envolvimento articula, Ruedi-Algower II. 5. Na verdade, em consequência da queda, a Autora foi assistida no local e de seguida transportada pelo INEM para o Hospital Distrital de Beja, onde foi observada no Serviço de Urgência em Cirurgia Geral e Ortopedia. 6. Aí, depois de ter realizado vários exames complementares foi-lhe diagnosticada fractura do pilão tibial tipo II com indicação cirúrgica. 7. Foi-lhe então imobilizada a perna esquerda com tala gessada posterior e teve alta medicada para o seu domicílio. 8. A Autora foi internada em 11 de Março de 2022 no Hospital Distrital de Beja. 9. E, em 12 de Março de 2022, foi sujeita a intervenção cirúrgica, que consistiu em redução cruenta e osteossíntese do peróneo com placa de reconstrução e redução cruenta e osterossíntese do pilão tibial com placa posterior em batente. 10. Em 13 de Março de 2022, a Autora regressou à sua residência mantendo-se em repouso absoluto, cerca de dois meses. 11. Durante esse tempo a Autora não pôde sair da sua residência, tendo permanecido na sala da sua casa, sita no rés-do-chão, já que o seu quarto de dormir no 1.º andar e estava impossibilitada de subir e descer escadas. 12. Durante todo esse tempo, a Autora precisou de assistência prestada por terceiros, diariamente afim de poder executar tarefas diárias básicas, como a sua higiene pessoal, vestir-se, pentear-se, comer, levantar-se, deitar-se e deslocar-se pela casa. 13. Nos primeiros dias após a cirurgia descrita em 9), a Autora teve de utilizar uma cadeira de rodas. 14. Posteriormente passou a usar canadianas, situação que perdurou até Maio de 2022. 15. Manteve-se a ser seguida em consulta externa no mesmo hospital. 16. Nessa altura, após ter sido observada em consulta da especialidade, iniciou um programa de recuperação em fisioterapia que se manteve durante cerca de 4 meses, mais precisamente até Setembro de 2022. 17. No documento intitulado “Diário Clínico”, emitido pela ULSBA, datado de 09.09.2022, emitido por Dra. EE, consta, além do mais, “(…) Mulher de 37 anos, saudável. 6 meses pós fractura do pilão tibial esquerdo, Ruedi-Algow er II. No dia 12.03.2022 foi submetida (LV+OT), por via postero-externa, a redução cruenta e osteossíntese do peróneo com placa de reconstrução; redução cruenta e osteossíntese do pilão tibial com placa posterior em batente. Sob Ft. Sente-se melhorada. Marcha sem auxiliares. Dor esporádica. Edema residual. Queixas essencialmente na região terminal do complexo gastrosolear-aquiles, queixas no extremo da flexão plantar. Mobilidades articulares ok. Marcha ainda claudicante (…)”. 18. E apesar da fisioterapia, na data da consolidação médico-legal, em 01 de Novembro de 2022, a Autora continuou a apresentar claudicação ligeira da marcha, rigidez do tornozelo e retro pé com déficit da flexão nesta data aos 5º e da extensão aos 20º, e rigidez na inversão/eversão, com ligeira e mau posicionamento do pé antálgico. 19. Uma cicatriz no tornozelo esquerdo com cerca de 20 cm. 20. Até à presente data a Autora continua a ter dificuldades acrescidas nos posicionamentos e marcha com dor em carga. 21. Mostra-se impossibilitada de correr ou fazer agachamentos, e apresenta dificuldade em passo mais rápido, com claudicação da marcha. 22. Apresenta ainda edema do tornozelo e do pé esquerdo, ao final do dia. 23. Sofreu dores, quer no momento do acidente, quer antes e após a operação cirúrgica a que foi sujeita. 24. Além de que teve inúmeras dores aquando dos tratamentos de fisioterapia a que foi sujeita. 25. E também dores e de rigidez matinal e dificuldades em descer escadas. 26. As dores tornam-se mais acentuadas com a mudança de tempo. 27. E devido as limitações acima referidas, a Autora, que no âmbito da sua actividade profissional, tem de fazer deslocações frequentes, tem de, quer ao nível da marcha quer da condução de veículo automóvel, desenvolver esforços acrescidos. 28. Antes de ter sofrido o acidente a Autora praticava dança (zumba) e fazia regularmente caminhadas. 29. Devido à lesão sofrida como consequência directa e necessária do descrito em 2), a Autora não conseguiu retomar a prática de dança (na modalidade zumba). 30. A Autora sabe por indicação médica que de futuro terá de ser submetida a nova cirurgia para extraçao de material de osteossíntese, artrose do tornozelo devido a quadro artrósico que se ira estabelecer. 31. O que implica que à Autora vai ter de ser administrada anestesia geral para realização de nova cirurgia, para remoção do material de osteossíntese, tendo de vivenciar segundo pós-operatório com necessidade de assistência de terceiros e de tratamentos de fisioterapia, e previsão de período de incapacidade para recuperação funcional, bem como tratamentos adjuvantes de fisioterapia. 32. Desde a data do acidente e até ao final da época em Junho de 2022, a Autora viu-se impossibilitada de poder acompanhar o filho mais velho, que tinha na altura 10 anos de idade, nos jogos do Futebol Clube ... onde este é jogador, situação que lhe provocou grande tristeza. 33. A Autora tem uma filha que na data do acidente tinha apenas 9 meses de idade e que ainda era amamentada. 34. Devido ao acidente a Autora ficou impossibilitada de cuidar do bebé que teve de passar a pernoitar com uma tia materna durante dois meses, impossibilitando também a continuidade da amamentação, facto que causou a Autora grande ansiedade, tristeza e frustração por se ver privada da filha e obrigada a proceder ao desmame repentinamente. 35. Ainda hoje, a Autora continua a ter dificuldades físicas para poder acompanhar a filha, nas brincadeiras da criança e até quando andam na rua, sente receio que esta se possa escapar da sua mão, estando a Autora impossibilitada de correr para evitar que a criança se encaminha para uma via pública, onde possa ser vítima de acidente. 36. À data do acidente a empresa DD, Supermercados Lda celebrou com a Ré um contrato de seguro do Ramo Responsabilidade Civil, titulado pela Apólice n.º ..., através do qual transferiu a responsabilidade civil pelos danos em relação a terceiros decorrente da sua actividade, encontrando-se tal responsabilidade transferida para a Ré à data do descrito em 2). 37. A Ré assumiu a responsabilidade pelo sinistro, tendo pago à Autora a parte do seu vencimento não coberta pela baixa médica, todas as despesas médicas e medicamentosas e ainda todas as sessões de fisioterapia. 38. A Autora nasceu em 02.03.1985, tendo à data do acidente 37 anos de idade. 39. Era saudável. 40. Em consequência do descrito em 2) a Autora apresenta as seguintes sequela: Membro inferior esquerdo: Estado pós colocação de osteossíntese do perónio (placa de reconstrução) e do pilão tibial (placa posterior em batente). Tem edema maleolar medial e cicatriz na face lateral posterior do terço distal da pera com L6cm. Rigidez da tibiotarsica, na flexão plantar (possível de 0 a 20") a na flexão dorsal (possível de 0 a L0'). Não consegue realizar marcha ou a posição em bicos de pés ou em calcanhares, não faz a posição de cócoras pela rigidez da tibiotársica nos últimos graus de flexão, sem instabilidade da articulação. 41. Tais lesões determinaram para a Autora: a. Um período de défice funcional temporário total de 64 dias; b. Um período de défice funcional temporário parcial de 188 dias; c. Um período de repercussão temporária na actividade profissional total de 252 dias; d. Um quantum doloris fixável no grau 4/7; e. Um dano estético permanente fixável no grau 2/7 - a cicatriz e o edema maleolar crónico; f. Um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 7 pontos; g. Uma repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer no grau 2/7 - Não consegue correr, dificuldades em subi e descer rampas e escadas, dificuldades nas brincadeiras com os filhos, não consegue frequentar as aulas de dança; 42. As sequelas descritas são, em termos de Repercussão Permanente na Atividade Profissional, compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares. E foi considerado não provado que: «a. Até ao momento em que foi intentada a acção, em 21.09.2023, a Autora não tenha conseguido retomar caminhadas, o que provocou um aumento de peso.» Da nulidade (parcial) da sentença Segundo a recorrente, a sentença recorrida é nula na parte em que condenou a ré a pagar à autora a quantia de € 25.000,00 a título de danos patrimoniais futuros resultantes do dano biológico, nos termos das segundas partes das alíneas d) e e) do nº 1 do art. 615º do CPC. Alega a recorrente que o tribunal a quo, «invocando tratar-se de uma questão de mera qualificação jurídica dos factos e não estar vinculado à qualificação (pretensamente de dano não patrimonial) dada pela A. ao seu dano biológico, (…) não só conheceu da questão das consequências patrimoniais futuras do dano biológico da A., que esta não submetera à sua apreciação, como condenou a R. a pagar à A. uma indemnização a esse título, quando esta não a pedira!» A nulidade por excesso de pronúncia, prevista na alínea d) do nº 1 do art. 615º do CPC, reconduz-se a um vício formal, em sentido lato, traduzido em “error in procedendo” ou erro de atividade que afeta a validade da decisão. Esta nulidade está diretamente relacionada com o artigo 608º, nº 2, do CPC, segundo o qual “[o] juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.” Tal nulidade radica, pois, no conhecimento de questões que não podiam ser julgadas por não terem sido suscitadas pelas partes, nem serem de conhecimento oficioso. In casu, a autora pedia a condenação da ré no pagamento da quantia global de € 45.000,00, a título de danos não patrimoniais, incluindo ressarcimento pelos danos futuros, sendo € 30.000,00 a título de danos não patrimoniais e € 15.000,00 a título de danos futuros. Relativamente a estes últimos danos, alegou a autora que sabe, por indicação médica, que de futuro terá de ser submetida a nova cirurgia com anestesia geral para extração de material de osteossíntese, artrodese do tornozelo devido a quadro artrósico que se irá estabelecer, com necessidade de assistência de terceiros e de tratamentos de fisioterapia, o que acarretará gastos muito elevados, em montante nunca inferior € 15.000,00. A sentença condenou a ré a pagar à autora a quantia de € 45.000,00, sendo que, como resulta da respetiva fundamentação, € 20.000,00 foram arbitrados a título de danos não patrimoniais, e € 25.000,00 a título «do dano biológico lato sensu, na sua vertente patrimonial (perda não imediata) - dano patrimonial futuro». Neste campo, é consensualmente aceite que ao tribunal incumbe proceder às qualificações jurídicas que tiver por corretas, ao abrigo do disposto no art. 5º, nº 3, do CPC, de modo a esgotar as possíveis qualificações dos factos alegados em função do efeito prático-jurídico pretendido, segundo o denominado “princípio de exaustão”2. Lê-se na sentença recorrida: «(…) embora pareça que a Autora na petição inicial classifique tal dano advindo do défice funcional permanente de integridade física psíquica como dano não patrimonial, a verdade é que o tribunal não está vinculado à qualificação dos factos dadas pelas partes processuais. Em síntese do sobredito, cremos poder afirmar que no âmbito da responsabilidade civil extracontratual decorrente do acidente inclui-se a atribuição de indemnização pelo dano biológico, independentemente da sua qualificação como dano de natureza patrimonial ou não patrimonial e da existência de perda efetiva de rendimentos salariais pelo lesado desde que as lesões sofridas determinem um esforço acrescido no desempenho das suas atividades habituais sejam estas profissionais, domésticas ou de outra natureza». Ora, numa perspetiva não estritamente formalista, antes atendendo aos efeitos prático-jurídicos pretendidos pela autora, pode afirmar-se que a razão de ser da decisão condenatória da sentença recorrida, radicou na consideração de que estando provado que a autora, no âmbito da sua atividade profissional, tem de fazer deslocações frequentes, necessitando de desenvolver esforços acrescidos, quer ao nível da marcha, quer da condução de veículo automóvel, entendendo o tribunal recorrido que sendo tal dano subsumível ao dano biológico na vertente patrimonial, assistia à autora o direito a ser indemnizada a esse título. A exposição do raciocínio empreendido pela 1ª instância permite considerar que o pedido formulado foi interpretado de modo a compreender o valor do dano patrimonial futuro, ainda que com um enquadramento diverso do que foi dado pela autora, sendo certo que só existe excesso de pronúncia quando o tribunal conhece de matéria que se insere em causa de pedir distinta da invocada na ação3, o que não sucede no caso. Por sua vez, atento o referido efeito prático-jurídico pretendido, é irrelevante que a autora não tenha logrado provar o montante do dano patrimonial futuro relacionado com a nova cirurgia a que terá de ser submetida, pelo que não se impunha qualquer consideração adicional a esse respeito na sentença recorrida. Acresce que se mostram respeitados os limites da condenação contidos no artigo 609º, nº 1, do CPC, os quais «têm de ser entendidos como referidos ao valor do pedido global e não às parcelas em que aquele valor se desdobra, sendo esta a orientação assumida como válida na solução de casos em que o efeito jurídico pretendido se apresenta como indemnização decorrente de um único facto ilícito, traduzindo-se o total do pedido na soma dos valores de várias parcelas, que correspondem, cada uma delas, a certa espécie ou classe de danos, componentes ou integrantes do direito cuja tutela é jurisdicionalmente solicitada»4. Pelas razões expostas, considera-se que a Sr.ª Juíza a quo conheceu de questão de que podia tomar conhecimento, e que a consideração do dano patrimonial futuro nos termos acima referidos se situa no plano da qualificação jurídica permitida ao juiz pelo nº 3 do art. 5º do CPC, concluindo-se pela inexistência das invocadas nulidades das alíneas d) e e) do nº 1 do do art. 615º do CPC. Da impugnação da matéria de facto Como resulta do artigo 662º, nº 1, do CPC, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se os factos tidos como assentes e a prova produzida impuserem decisão diversa. Do processo constam os elementos em que se baseou a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto: prova documental, pericial, declarações de parte da autora e depoimentos das testemunhas registados em suporte digital. Considerando o corpo das alegações e as suas conclusões, pode dizer-se que a recorrente cumpriu formalmente os ónus impostos pelo artigo 640º, nº 1, do CPC, já que especificou os concretos pontos da matéria de facto que considerou incorretamente julgados, indicou os elementos probatórios que conduziriam à alteração daqueles pontos nos termos por ela propugnados, referiu a decisão que no seu entender deveria sobre eles ter sido proferida e indicou as passagens da gravação em que funda o recurso. Infere-se das alegações/conclusões da recorrente, que esta discorda da decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal a quo, relativamente aos pontos 27 e 42, que pretende ver eliminados do elenco dos factos provados. No ponto 27 deu-se como provado que «devido às limitações acima referidas, a Autora, que no âmbito da sua atividade profissional, tem de fazer deslocações frequentes, tem de, quer ao nível da marcha quer da condução de veículo automóvel, desenvolver esforços acrescidos» No ponto 42 foi dado como provado que as sequelas descritas nos pontos anteriores, «são, em termos de Repercussão Permanente na Atividade Profissional, compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares». Diz a recorrente, no que respeita à repercussão permanente das sequelas na atividade profissional da autora, que o INML concluiu, quer no relatório da 1ª perícia, quer no relatório da 2ª perícia, pela compatibilidade das sequelas com o exercício da profissão habitual, mas com esforços suplementares, cuja necessidade não fundamentou concretamente, sendo que o relatório emitido em 06.9.2024 pelo cirurgião ortopédico que operou a autora - junto ao requerimento da 2ª perícia da autora - não alude a quaisquer esforços adicionais, dele apenas resultando “Última consulta a 15/03/2024, com 2 anos de evolução. Sem queixas álgicas. Sem limitações das AVDs. RX de controlo bem.”. Sustenta também a recorrente, que das declarações de parte da autora e dos depoimentos das testemunhas BB, marido da autora, e CC, irmã da autora, «resulta que, no pós-operatório, e durante algum tempo, a A. teve de fazer esforços adicionais, na subida e descida de escadas, para aceder ao seu local de trabalho, que, na altura, se situava no 1º andar dos escritórios do Intermarché, onde “funcionava” a contabilidade, sendo que esses esforços foram temporários (relacionado com o específico acesso ao local de trabalho no pós-sinistro), e não permanentes, tanto mais que a A. já ali não trabalha, tendo começado a trabalhar na C. M. de Vila 1 em 1.7.224, como assistente operacional». Mais aduz a recorrente que o ponto 27 é conclusivo, e não factual, a que acresce ter ficado provada «a sedentariedade da actividade profissional da A., quer à data do sinistro (em que trabalhava na contabilidade do Intermarché), quer actualmente (em que é assistente operacional na Câmara Municipal)”, sedentariedade essa que, segundo a recorrente, é incompatível com a decisão de facto vertida naquele ponto. De igual modo, sustenta a recorrente que a parte final do ponto 42 dos factos provados (“mas implicam esforços suplementares”) tem natureza conclusiva, sendo desprovida de suporte fáctico. Após analisarmos de forma crítica, conjugada e concatenada a prova produzida, não nos merece qualquer censura a decisão de facto quanto aos pontos 27 e 42 dos factos provados. Senão vejamos. Os relatórios do IML da 1ª e 2ª perícias, são muito claros quanto à compatibilidade das sequelas com o exercício da profissão habitual, mas com esforços suplementares, cuja necessidade, ao invés do que defende a recorrente, está devidamente fundamentada e resulta da consideração das lesões sofridas pela autora e das respetivas sequelas, como se alcança com meridiana clareza dos referidos relatórios. Também ao invés do que sustenta a recorrente, o ponto 27 não é conclusivo, pois a matéria dele constante é factual, referindo uma situação concreta da autora, não revestindo feição conclusiva a expressão “esforços complementares” aí utilizada, podendo assim a matéria em causa integrar a seleção da matéria de facto relevante para a decisão, o mesmo valendo para a expressão “mas implicam esforços suplementares” constante da parte final do ponto 42. Sem conceder, ainda que se considerasse que a utilização das aludidas expressões revestia feição conclusiva, sempre haveria de ter presente que relativamente a determinados pontos da matéria de facto, «pese embora algum défice de densificação e concretização no plano factual, uma vez que não acolhem conceitos normativos de que dependa a solução do caso, no plano jurídico, e na medida em que contêm um inquestionável substrato factual, que deve ser interpretado em conexão com os restantes segmentos que integram o acervo factual provado, devem subsistir como factos materiais a considerar»5. Noutra perspetiva, «factos conclusivos traduzidos na consequência lógica retirada de outros factos uma vez que, ainda assim, constituem matéria de facto, devem permanecer na factualidade provada quando facilitem a apreensão e compreensão da realidade visando uma melhor adequação e ponderação de todas as circunstâncias na resolução do litígio»6. In casu, a questão não é, pois, estarmos perante matéria conclusiva, mas sim se os factos em causa estão ou não provados e, a nosso ver estão, designadamente por aquilo que já referimos supra, considerando a existência das lesões descritas nos vários pontos da matéria de facto provada, onde sobressai, desde logo, um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 7 pontos, que embora compatível com o exercício da atividade habitual da autora, não pode deixar de implicar esforços suplementares/acrescidos, independentemente de estarmos perante uma atividade “sedentária”, ao invés do que defende a recorrente. Isto não é minimamente posto em causa pelas declarações de parte da autora, nem pelos depoimentos das testemunhas, dos quais nada se pode extrair que contrarie tal estado de coisas, o mesmo sucedendo com o relatório elaborado em 06.9.2024 pelo cirurgião ortopédico que operou a autora, o qual não se pronunciou sequer sobre a questão, daí não podendo retirar-se, como se afigura evidente, o contrário. Nenhuma censura há, pois, a fazer à decisão de facto relativamente aos pontos 27 e 42, os quais se mantêm intocados. Da indemnização a título de danos patrimoniais futuros (dano biológico) Segundo a recorrente, mesmo improcedendo a impugnação dos pontos 27 e 42 (parte final) dos factos provados, sempre se imporia a revogação da condenação da ré no pagamento de € 25.000,00 a título de danos patrimoniais futuros advindos do dano biológico, com a consequente redução da condenação total para o valor de € 20.000,00 (fixado a título de danos não patrimoniais). Isto porque, alegadamente, «a perda de rendimento no futuro não deve ser ficcionada pelo julgador, contrariamente ao que fez o tribunal a quo, que condenou a R. a pagar à A. uma indemnização a esse título que não fora pedida por esta». Vimos já, a propósito da discussão sobre a alegada nulidade parcial da sentença recorrida, que nada impedia que o tribunal a quo fizesse um enquadramento diverso do que foi dado pela autora, relativamente aos danos patrimoniais futuros, pelo que se remete para o que acima se deixou dito. No demais, não merece censura a indemnização fixada na sentença recorrida pelo dano biológico na sua vertente de dano patrimonial futuro, não havendo muito mais a acrescentar às judiciosas considerações feitas na sentença a este respeito. Na verdade, a lesão corporal sofrida pela autora, bem evidenciada na matéria de facto dada como provada, constitui em si um dano real ou dano-evento, designado por dano biológico, na medida em que afeta a integridade físico-psíquica do lesado, traduzindo-se em ofensa do seu bem “saúde”. Trata-se de um “dano primário”, do qual podem derivar, além das incidências negativas não suscetíveis de avaliação pecuniária, a perda ou diminuição da capacidade do lesado para o exercício de atividades económicas, como tais suscetíveis de avaliação pecuniária7. Lê-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.10.20198: «É largamente maioritária a jurisprudência no sentido de não conferir autonomia ao dano biológico, enquanto tercium genus, com natureza bem específica, que não se esgota num qualquer dano patrimonial em sentido estrito (com repercussões na actividade laboral) nem num simples dano não patrimonial. A realidade normativa de que emergiu, na doutrina e na jurisprudência italianas, essa modalidade autónoma de dano, não encontra paralelo no ordenamento jurídico português. Essa a razão pela qual todas as variantes do dano-consequência terão de traduzir-se sempre num dano patrimonial e/ou num dano não patrimonial. Assim, o défice funcional, ou dano biológico, representado pela incapacidade permanente resultante das lesões sofridas em acidente de viação, é susceptível de desencadear danos no lesado de natureza patrimonial e/ou de natureza não patrimonial. Serão do primeiro tipo, quando a incapacidade, total ou parcial, se repercuta negativamente no exercício da actividade profissional habitual do lesado, e, consequentemente, nos rendimentos que dela poderia auferir; serão ainda desse primeiro tipo quando, embora sem repercussão directa e imediata na actividade profissional e na obtenção do ganho dela resultante, implique um maior esforço no exercício dessa mesma actividade ou limite significativamente as possibilidades de o lesado optar por outras vias profissionais ao longo da sua vida activa.» Ora, o dano-consequência tratado nos autos insere-se claramente na segunda das vertentes do dano patrimonial referida, a justificar a atribuição de uma indemnização. No caso, não vem questionado o montante de € 25.000,00 arbitrado pelo tribunal - o que a recorrente impugna é a atribuição desse valor a título de indemnização -, o qual, aliás, se encontra em linha com os critérios jurisprudenciais mais recentes, como ilustrado na sentença recorrida. Por conseguinte, o recurso improcede. Vencida no recurso, suportará a ré/recorrente as respetivas custas – art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC. IV – DECISÃO Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida. Custas pela recorrente. * Évora, 27 de novembro de 2025 Manuel Bargado (Relator) José António Moita Maria Adelaide Domingos (documento com assinaturas eletrónicas)
_____________________________________ 1. Mantém-se a numeração e redação da sentença recorrida.↩︎ 2. Cf. Ac. do STJ de 18.09.2018, proc. 21852/15.4T8PRT.S1; neste mesmo sentido já se havia pronunciado o Ac. do STJ de 08.02.2018, proc. 633/15.0T8VCT.G1.S1, e pronunciou-se, mais recentemente, o acórdão do mesmo Tribunal de 20.06.2023, proc. 105557/19.3YIPRT.G1.S1, todos disponíveis, como os demais adiante citados sem indicação de origem, in www.dgsi.pt.↩︎ 3. Cf., inter alia, os Acs. do STJ de 03.03.2021, proc. 1652/18.0T8LRA.C1.S1, e de 31.10.2024, proc. 19039/19.6T8LSB.L1.S1.↩︎ 4. Cf. Ac. do STJ de 25.03.2010, proc. 1052/05.2TTMTS.S1.↩︎ 5. Cf. Ac. do STJ de 12.12.2017, proc. 2211/15.5T8LRA.C2.S1.↩︎ 6. Cf. Ac. do STJ de 13.10.2020, proc. 2124/17.6T8VCT.G1.S1.↩︎ 7. Cfr., a este propósito, as doutas considerações do Acórdão do STJ de 21.03.2013, proc. 565/10.9TBVL.S1.↩︎ 8. Proc. 7614/15.2T8GMR.G1.S1.↩︎ |