Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
96/09.0TAFAL-A.E1
Relator: ANTÓNIO MANUEL RIBEIRO CARDOSO
Descritores: PEDIDO DE RECTIFICAÇÃO OU DE ACLARAÇÃO
RECURSO
SUSPENSÃO DE PRAZO
Data do Acordão: 10/10/2012
Votação: DECISÃO SINGULAR
Tribunal Recorrido: COMARCA DE BEJA – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECLAMAÇÃO
Sumário:
O pedido de rectificação e/ou de aclaração de um despacho interlocutório suspende o prazo de interposição de recurso desse despacho.
Decisão Texto Integral: Os ora reclamantes, arguidos no processo referenciado, notificados do despacho previsto nos arts. 311º e segs. do Código de Processo Penal (diploma a que se referirão todos os preceitos que, doravante, forem invocados sem indicação de outra fonte), apresentaram contestação na qual arguiram a nulidade da acusação e a nulidade das escutas telefónicas.
O Mmº Juiz, por decisão datada de 30.01.2012, pronunciou-se sobre as arguidas questões julgou improcedente a primeira e, quanto à segunda, entendeu não ser aquele o momento processual próprio para dela conhecer. Do mesmo passo alterou a qualificação jurídica dos factos imputados na acusação, declarou o tribunal singular incompetente para o julgamento e determinou a sua realização pelo colectivo.
Notificados desta decisão atravessaram os ora reclamantes, em 21.02.2012, requerimento requerendo «a correcção do Douto Despacho, declarando assim, uma vez que o MP fez uso da norma contida no art.º 16.º n.º 3 do CPP, competente o Tribunal Singular para julgar o presente processo» e a aclaração «com base no mesmo preceito legal supra indicado, o Douto Despacho no que concerne à nulidade da escuta telefónica efectuada entre arguido no processo conexo e o seu advogado, uma vez que não se trata de uma questão de valoração de prova, mas sim de prova proibida nos termos do art.º 126.º n.º 3 do CPP, uma vez que, nunca, um Tribunal poderá valorar, mais ou menos, uma prova proibida.» Invocaram também que «da alteração agora efectuada consta: "Alterando a qualificação jurídica dos factos imputados a Teresa Rendeiro Pinheiro, os autos prosseguirão quanto à mesma, com a imputação em concurso efectivo de dois crimes de branqueamento de capitais, p, e p, pelo art.º 368.° - A, n.º 12 e n.º 2 do Cód. Penal" Presume-se que a referência ao "n.º 12" seja um lapso de escrita, assumindo que se refere ao n.º 1».
Sobre este requerimento recaiu o seguinte despacho datado de 9.03.2012:
«Não se vislumbram obscuridades, erros ou ambiguidades no despacho de fls. 1393 ss. (quer quanto ao uso do art. 16.º, n.º 3 quer quanto às escutas telefónicas, quer quanto à alteração da qualificação jurídica operada) que cumprisse aclarar ou esclarecer - art. 380.º, n.º 1 al. b) e n.º 3 a contrario sensu do Código de Processo Penal. Diferente será a discordância dos arguidos relativamente ao mesmo não sendo o requerimento de aclaração ou esclarecimento a sede própria de suscitar tal discordância.
Existe um lapso material e de escrita no despacho de fls.1393 quando alude, em termos de imputação, ao n.º 12 do art. 368.º-A do C.P., quando apenas se pretendeu escrever n.º 1 do art. 368.º-A do mesmo diploma, lapso de escrita esse que ora se rectifica (art. 380.º al. b) e n.º 3 do C.P.P.).»
Em 11.04.2012 interpuseram os ora reclamantes recurso constando do cabeçalho do respectivo requerimento o seguinte:
«A…, J… e T…, arguidos nos autos à margem referenciados, tendo sido notificados do Douto Despacho que determinou que não havia lugar à correcção do douto Despacho que determinou que o presente processo fosse julgado em Tribunal Colectivo, após o Ministério Público ter accionado o n.º 3 do artigo 16.º do CCP, vem mui respeitosamente por discordar do mesmo, recorrer de tal despacho, para o Venerando Tribunal da Relação de Évora, recurso este que, nos termos legais, sobe imediatamente em separado e com efeito suspensivo».
Foi então proferido o despacho objecto desta reclamação não admitindo o recurso com o fundamento de que o despacho que indefere a correcção ou aclaração é irrecorrível, para além de que o pedido de rectificação ou aclaração não suspende o prazo de interposição do recurso.
Inconformados com esta decisão, vieram os arguidos reclamar, nos termos do art. 405º, impetrando a substituição por outra que admita o recurso.

Cumpre decidir.

Estão em causa nesta reclamação duas questões:
1 – Saber qual foi o despacho objecto do recurso, se o proferido em 30.01.2012, se o prolatado em 9.03.2012;
2 – Saber se, sendo o despacho objecto do recurso o proferido em 30.01.2012, o pedido de rectificação e aclaração desse despacho suspende o prazo para interposição de recurso.

Vejamos então.

1 – Qual foi o despacho objecto do recurso, se o proferido em 30.01.2012, se o prolatado em 9.03.2012.
Refira-se que, de facto, o requerimento de interposição de recurso é pouco linear, sendo legítima a dúvida referenciada.
Na verdade referem os recorrentes:
«A…, J… e T…, arguidos nos autos à margem referenciados, tendo sido notificados do Douto Despacho que determinou que não havia lugar à correcção do douto Despacho que determinou que o presente processo fosse julgado em Tribunal Colectivo, após o Ministério Público ter accionado o n.º 3 do artigo 16.º do CCP, vem mui respeitosamente por discordar do mesmo, recorrer de tal despacho, para o Venerando Tribunal da Relação de Évora, recurso este que, nos termos legais, sobe imediatamente em separado e com efeito suspensivo».
Como se vê, os recorrentes dizem «tendo sido notificados do Douto Despacho que determinou que não havia lugar à correcção do douto Despacho que determinou que o presente processo fosse julgado em Tribunal Colectivo… vem mui respeitosamente por discordar do mesmo, recorrer de tal despacho».
Parece, assim, que o despacho objecto do recurso é o «que determinou que não havia lugar à correcção do douto Despacho que determinou que o presente processo fosse julgado em Tribunal Colectivo» e que foi proferido em 9.03.2012 e não o «Despacho que determinou que o presente processo fosse julgado em Tribunal Colectivo».
E, nesta perspectiva, subscreve-se integralmente o entendimento do tribunal “a quo” no sentido de que tal despacho não é recorrível.
Mas terá sido, efectivamente, este o despacho que os ora reclamantes pretenderam impugnar?
Entendo que não.
É claro, como disse, que a dúvida é legítima.
Mas não sendo totalmente claro, como não é, o objecto do recurso, afigura-se-me que seria mais curial que o Mmº Juiz “a quo”, ao invés de não admitir o recurso, convidasse os recorrentes a esclarecerem a sua pretensão para então, e em face desse esclarecimento, decidir em conformidade.
Apesar daquela referência expressa ao «Despacho que determinou que não havia lugar à correcção do douto Despacho que determinou que o presente processo fosse julgado em Tribunal Colectivo», se analisarmos as alegações do recurso concluímos que o objecto do recurso foi o despacho proferido em 30.01.2012, ou seja, o despacho que alterou a qualificação jurídica dos factos imputados, julgou o tribunal singular incompetente para o julgamento e «determinou que o presente processo fosse julgado em Tribunal Colectivo».
Desde logo espraiam-se os recorrentes, nas alegações, em argumentos na tentativa de demonstrar que o MºPº usou da faculdade prevista no art. 16º, nº 3, que o juiz não podia determinar a realização do julgamento pelo colectivo, já que a competência do tribunal singular estava fixada, nem proceder à alteração da qualificação jurídica, sendo nula tal decisão, para além da nulidade das escutas telefónicas.
Ora, o despacho proferido em 9.03.2012 não se debruçou sobre estas questões tendo-se limitado a consignar que «Não se vislumbram obscuridades, erros ou ambiguidades no despacho de fls. 1393 ss. (quer quanto ao uso do art. 16.º, n.º 3 quer quanto às escutas telefónicas, quer quanto à alteração da qualificação jurídica operada) que cumprisse aclarar ou esclarecer - art. 380.º, n.º 1 al. b) e n.º 3 a contrario sensu do Código de Processo Penal. Diferente será a discordância dos arguidos relativamente ao mesmo não sendo o requerimento de aclaração ou esclarecimento a sede própria de suscitar tal discordância.»
Acresce que, ao longo das alegações, são diversas as referências que demonstram, a meu ver claramente, que o despacho objecto do recurso é o proferido em 30.01.2012.
Assim:
Referem os recorrentes nos nºs 6 e 7 das suas alegações:
«6 - Ora lendo em atenção que aquando da dedução da acusação, o M. P. tinha feito uso do art.º 16,° n.º 3, os recorrentes pensaram tratar-se de um lapso, pois errar é humano, tendo reclamado de tal Despacho. No entanto, manteve o Mmo. Juiz o referido despacho, tendo esclarecido que, ao invés do que os ora recorrentes haviam pensado, não se tratou de um lapso, determinando assim que o presente processo fosse julgado em Tribunal Colectivo, remetendo os autos para a distribuição.
7 - Pelo que, vêm agora os arguidos interpor recurso desta Decisão, com vista à revogação deste Despacho, declarando-o nulo e que contemple, a existência de nulidade insanável por violação das regras de competência material e funcional dos Tribunais, atento o disposto nos art. 16.°, n.º 3 e 119.°, al. e) do C. P. Penal;»
Como parece inquestionável, o despacho que alegadamente violou as regras de competência foi o que alterou a qualificação jurídica, declarou a incompetência do tribunal singular e determinou a realização do julgamento pelo tribunal colectivo.
E continuam:
«40 - Assim, ao ter alterado de um para dois crimes de branqueamento de capitais, pelos quais a arguida Teresa Rendeiro vinha acusada, entendemos que o Juiz, ao proferir tal Despacho, violou o art. 311°, nº 2 e 3, do C.P.P. Mas não só,
41 - Resta também apreciar a questão da possibilidade legal do Mmo. Juiz, remeter para julgamento em Tribunal colectivo, quando o M. P. tinha formulado acusação, na qual requereu e fundamentou a intervenção do Tribunal singular, ao abrigo do art. 16.°, n.º 3 do C. P. Penal, e carecendo de competência para efectuar essa alteração em que consistirá esse vício.»
E mais adiante:
«64 - Daqui resulta, a nosso ver e com todo o respeito, que o Despacho de que ora se recorre para além de se pronunciar sobre matéria relativamente à qual o Mmo Juiz não tem qualquer competência ou função, violou de modo flagrante o princípio da legalidade do processo, na versão decorrente do art. 2.° do C. P. Penal e os direitos de defesa dos arguidos.
65 - E isto porque vai estender a determinação judicial da pena ao correspondente limite máximo legal, que antes, por via da opção inicial do M. P., estava balizada no limite de cinco anos - segundo o citado art. 2.° do C. P. Penal “A aplicação de penas e de medidas de segurança criminais só pode ter lugar em conformidade com as disposições deste Código”.
66 - Infringe igualmente o princípio do acusatório, decorrente do art. 32.°, n.º 5 da C. Rep., segundo o qual "O processo criminal tem estrutura acusatória", o que implica um Juiz imparcial, com uma posição supra-partes, mas que aqui funcionou como um autêntico "dominus do inquérito", pois pronunciou-se sobre matéria reservada ao M. P.,e que não está afecta ao Mmo. Juiz.»
(…)
«69 - Sendo assim afigura-se-nos irrecusável o entendimento que o Mmo, Juiz no âmbito de tal procedimento processual penal não tem qualquer competência para fazer uso ou não da faculdade do art. 16.°, n.º 3 do C. P. Penal, nem recusar a sua aplicação.
70 - Nesta conformidade, entendemos que, quando o Mmo. Juiz faz uso da prerrogativa conferida pelo do disposto no art. 16.°, n.º 3, seja para sujeitar â julgamento em Tribunal singular, seja porque discorda do uso que o M. P. fez desse trecho normativo, por entender que o(s) arguido(s) devem ser julgados por Tribunal colectivo, o mesmo profere um Despacho relativamente ao qual não tem qualquer competência. Por isso, esse despacho é destituído de qualquer "corpus", sendo inexistente - neste sentido o citado Ac. R. C. de 1998/Nov./25, enquanto o referido Ac. Relação de 1997/Mar./19 inclina-se para um caso de nulidade insanável da previsão do art. 119.°, n.º al. e) do C. P. Penal. Pelo que tal Despacho deverá ser revogado, na parte apenas em que o mesmo remete o julgamento para o Tribunal colectivo, devendo ser o mesmo declarado, inexistente, devendo ser substituído por outro que remeta o julgamento para o Tribunal singular.» (o sublinhado aqui é meu).
(…)
«74 - Face ao exposto verifica-se que, também por este fundamento, as escutas telefónicas que constam do elenco das provas da presente Acusação são ilegais e inconstitucionais por violação dos art.ºs 187.° n.º 7 e 126.° n.º 3, ambos do CPP e dos art.ºs 18.°, 32.° n.º 8 e 34.° n.º 4 da CRP, devendo o Douto Despacho de que ora se recorre, ser também quanto a este ponto alterado, porquanto não se trata de uma questão de valoração, pois a nossa Lei Fundamental e a nossa Lei Penal proíbem a valoração de prova proibida.»
(…)
«AM - Nesta conformidade, entendemos que, quando o Mmo. Juiz faz uso da prerrogativa conferida pelo do disposto no art. 16.°, n.º 3, seja para sujeitar a julgamento em Tribunal singular, seja porque discorda do uso que o M. P. fez desse trecho normativo, por entender que o(s) arguido(s) devem ser julgados por Tribunal colectivo, o mesmo profere um Despacho relativamente ao qual não tem qualquer competência. Por isso, esse despacho é destituído de qualquer "corpus", sendo inexistente - neste sentido o citado Ac. R. C. de 1998/Nov./25, enquanto o referido Ac. Relação de 1997/Mar./19 inclina-se para um caso de nulidade insanável da previsão do art. 119.°, n.º al. e) do C. P. Penal.
AN - Pelo que tal Despacho deverá ser revogado. na parte em remete o julgamento para o Tribunal colectivo, devendo ser o mesmo declarado, inexistente, devendo ser substituído por outro que remeta o julgamento para o Tribunal singular.»
Perante estas referências, afigura-se-me claro que, apesar daquelas dúvidas legítimas, o despacho objecto do recurso é o proferido em 30.01.2012.

2 – Se o pedido de rectificação e aclaração de despacho proferido em 30.01.2012 suspende o prazo para interposição do recurso.
No que tange a esta questão não me alongarei em dissertações.
Estabelece o art. 380º, nº 3 que o disposto nos números anteriores relativamente à correcção da sentença é aplicável aos restantes actos decisórios previstos no art. 97º e, assim, nos termos da al. b) do nº 1 deste artigo, aos “despachos, quando conhecerem de qualquer questão interlocutória…”.
Ora, o Tribunal Constitucional no seu acórdão 16/2010 de 12.01.2010, decidiu “julgar inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, a interpretação do artigo 380.º, em conjugação com o artigo 411.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, segundo a qual o pedido de correcção de uma decisão, formulado pelo arguido, não suspende o prazo para este interpor recurso dessa mesma decisão.”
E no acórdão 293/2012 de 6.06.2012 decidiu “julgar inconstitucional, por violação do direito ao recurso consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, a norma do artigo 411.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, segundo a qual o pedido de correção de uma decisão, formulado pelo arguido, não suspende o prazo para este interpor recurso dessa mesma decisão.
No caso, os ora reclamantes pediram a correcção e a aclaração do despacho de 30.01.2012. Consequentemente, transpondo para o caso esta doutrina constitucional, que não tendo embora força obrigatória geral, deve ser observada (o seu não acatamento impõe o recurso obrigatório do MºPº para o Tribunal Constitucional – arts. 280º, n 5, da CRP, 3º, nº 2 da Lei 47/86 (EMP), 70º, nº 1, al. g), e 72º, n 3, ambos da Lei n 28/82), conclui-se que a formulação pelos ora reclamantes de tal pedido de correcção e aclaração suspende o prazo para interposição do recurso da decisão proferida em 30.01.2012.

Pelas razões referidas e sem necessidade de outros considerandos, o recurso é de admitir (sendo embora certo que esta decisão não vincula o tribunal de recurso), atendendo-se, por conseguinte a reclamação apresentada, devendo o despacho reclamado ser substituído por outro que admita o recurso interposto.
Sem custas.
Notifique.
Évora, 10.10.2012
(António Manuel Ribeiro Cardoso)
(Vice-Presidente)