Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1279/15.9T8STR.E1
Relator: MÁRIO SERRANO
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
PESSOA SINGULAR
Data do Acordão: 01/21/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário:
O PER á aplicável a qualquer devedor, pessoa singular, pessoa coletiva, património autónomo, titular de empresa ou não, dado o silêncio da lei quanto a qualquer dos requisitos – art.º 1º, n.º 2, e art.º 17º- A, n.º 1, do CIRE.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

I – RELATÓRIO:

No âmbito de processo a correr termos na Secção de Comércio da Instância Central da Comarca de Santarém, em que os requerentes B… e C…, casados entre si, sob o regime de comunhão de adquiridos, alegaram encontrar-se em situação económica difícil e formularam, coligadamente, pedido de prossecução do procedimento especial de revitalização (PER), ao abrigo do artº 17º-C do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo Decreto-Lei nº 53/2004, de 18/3, foi pelo tribunal de 1ª instância proferida decisão (cfr. fls. 39-41) que decretou o indeferimento liminar daquele pedido.

No essencial, louvou-se essa decisão em Ac. RG de 23/2/2015, na qual se sustentou que o PER não se destina a devedores pessoas singulares que não sejam comerciantes ou empresários, com o argumento de que este regime especial foi criado para permitir a recuperação do tecido empresarial, como decorre da exposição de motivos do diploma que o instituiu, o que não faria sentido para devedores nas referidas condições, para os quais continuaria reservado o regime do “plano de pagamento aos credores”, previsto nos artos 249º e ss. do CIRE, que determina a suspensão da declaração de insolvência. Nessa base, entendeu-se que, devido ao facto de os requerentes não se apresentarem como empresários ou comerciantes, e apenas invocarem a sua situação de conjugalidade (apesar de o cônjuge marido até ter sido empresário), tal obstaria ao prosseguimento do pretendido PER, havendo fundamento para indeferir liminarmente a pretensão dos requerentes.


Inconformados com tal decisão, dela apelaram os requerentes, formulando as seguintes conclusões:

«– É precisamente esta situação de conjugalidade o cerne da questão que merece a nossa atenção pela análise dos efeitos da aplicação do direito que a decisão da sentença conduziria.
– Como veremos de seguida a interpretação da lei no sentido exposto na sentença levaria a uma desprotecção exagerada, inusitada e ineficiente, além do uso de meios processuais diversos contra economia processual sem que outros valores ou princípios legais salvaguardasse.
– Conforme sentença, a requerente B… deveria apresentar uma petição de Insolvência com plano de pagamentos nos termos do artigo 251º e seguintes do CIRE.
– Contudo, o requerente C…, cônjuge da anterior, como não poderia estar incluído naquele forma processual com a sua esposa, conforme previsão da alínea a) do nº 1 e nº 2 do artigo 249º do CPC, teria de optar por outra forma processual, eventualmente o PER.
– Ora, tal conduziria a dualidade de processos, com iguais dívidas num e outro processo dos cônjuges, mas duplicadas e com todas as consequências de difícil ou mesmo impossível tratamento dessas dívidas, obrigações e encargos com livranças e mútuos, ainda que algumas respeitem à actividade do requerente Ricardo, mas todas elas solidárias dos dois cônjuges, como é prática normal aquando das exigências das entidades bancárias aos dois cônjuges, mesmo que alguns mútuos respeitem a sociedade onde apenas um é sócio e gerente.
– Consideramos ainda estarmos perante situação de litisconsórcio necessário activo, nos termos do nº 1 do artigo 34º do Código do Processo Civil-CPC, pois, e para lá de outras perspectivas, todas as dívidas ou encargos foram assumidas pelos dois cônjuges.
– Pelo que qualquer racionalidade ou dúvida sobre a legitimidade de um cônjuge em determinada forma processual terá de desvanecer-se face a esta realidade.
– Tornaria ainda mais difícil ou inexequível, e em prejuízo injustificado do casal e do agregado familiar, sem benefício adicional para os credores em termos formais do processo, a realização de acordos separados e resultantes de estas estarem a ser exigidas em dois processos judiciais diferentes.
– Como tal, expostos que estão os efeitos da interpretação do direito da decisão a quo e do Acórdão do TRG, o qual se sustenta unicamente numa interpretação racional, mas muito literal, das normas, enquanto que o entendimento que agora perfilhamos integra, além do vector racional com compatibilidade do elemento literal da norma, o principio da análise dos efeitos práticos da aplicação do direito, donde resulta incomparavelmente preferível o tratamento processual unificado dos dois cônjuges e de todo injustificados os efeitos produzidos no sentido da sentença de que agora se recorre.
– Resulta, pelo exposto, todo o sentido em admitir a petição inicial de PER apresentada.»

Como é sabido, é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (cfr. artos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (cfr. artº 608º, nº 2, ex vi do artº 663º, nº 2, do NCPC).

Do teor das alegações dos apelantes resulta que a matéria a decidir se resume a apurar se, perante a petição inicial do procedimento especial de revitalização (PER), haveria fundamento para determinar o indeferimento liminar daquela petição, por se reportar a devedores pessoas singulares que não se apresentaram como comerciantes ou empresários, tal como se entendeu na decisão recorrida – sendo que, em caso contrário, se imporá o prosseguimento dos presentes autos em substituição do indeferimento liminar decretado.

Cumpre apreciar e decidir.
*
II – FUNDAMENTAÇÃO:
Como vimos, a questão central do presente recurso passa pela aferição da pretensa impropriedade do PER para se aplicar a devedores pessoas singulares que não se apresentam como comerciantes ou empresários (como é o caso dos requerentes e ora recorrentes).

Sobre esta questão existe uma notória divisão doutrinária e jurisprudencial.

No sentido de que o PER apenas se aplica a pessoas colectivas ou a pessoas singulares que sejam comerciantes ou empresários, surgem, como referências doutrinárias, as posições de CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA ou PAULO OLAVO CUNHA. Neste Tribunal de recurso, e para citar jurisprudência publicada, acompanharam esta tese, v.g., os Acs. RE de 9/7/2015 (Proc. 718/15.3TBSTR.E1, in www.dgsi.pt), de 10/9/2015 (Proc. 531/15.8T8STR.E1, idem) e de 10/9/2015 (Proc. 979/15.8TBSTR.E1, idem). Tal tese assenta a sua argumentação, essencialmente, na exposição de motivos da proposta legislativa que deu origem à Lei nº 16/2012, de 20/4, e que introduziu o PER no CIRE, na qual se pode ler que «o principal objectivo prosseguido por esta revisão passa por reorientar o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas para a promoção da recuperação, privilegiando-se sempre que possível a manutenção do devedor no giro comercial» – o que apontaria para a caracterização do PER como um processo «focalizado na obtenção de um acordo para a revitalização da empresa, permitindo que esta regularize os seus compromissos para com os seus credores de forma preventiva, isto é, antes de entrar numa situação irreversível de insolvência».

Em plano oposto, sustentando que o PER se aplica a qualquer devedor, mesmo que pessoa singular, seja ou não titular de uma empresa (i.e., ainda que não sejam empresários nem exerçam, por si, qualquer actividade autónoma e por conta própria), surgem, como referências doutrinárias, as posições de LUÍS M. MARTINS, MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, FÁTIMA REIS SILVA, PAULO TARSO DOMINGUES, CATARINA SERRA, NUNO CASANOVA e DAVID DINIS, e ISABEL ALEXANDRE. Neste Tribunal de recurso, acompanharam esta tese, v.g., os Acs. RE de 9/7/2015 (Proc. 1518/14.3T8STR.E1, idem), de 10/9/2015 (Proc. 1234/15.9T8STR.E1, idem) e de 5/11/2015 (Proc. 371/15.4T8STR.E1, idem). A tese em apreço apoia-se, essencialmente, na consideração de que a letra da lei, no regime do PER, não faz qualquer distinção quanto ao seu âmbito de aplicação, referindo-se genericamente à sua utilização por «todo o devedor» (cfr. artº 17º-A, nº 2, do CIRE) – o que alcança reforço na fórmula do artº 17º-D, nº 11, do CIRE, quando se refere ao «devedor (…) no caso de aquele ser uma pessoa colectiva», a qual sugere igualmente a possibilidade de pessoas singulares recorrerem ao PER.

No balanço das duas teses em confronto, propendemos para a última apresentada, a qual mereceu a adesão de dois dos membros deste colectivo no referenciado aresto de 9/7/2015, proferido no Proc. 1518/14.3T8STR.E1, assim dando a sua concordância à argumentação ali expendida, que passamos a transcrever na parte mais relevante:

«Na decisão impugnada seguiu-se o entendimento de que, embora a lei não o diga expressamente, o Processo Especial de Revitalização não se destina aos devedores pessoas singulares que não sejam comerciantes ou empresários nem exerçam, por si mesmos, qualquer actividade autónoma e por conta própria, não existindo com a aprovação de tal instituto qualquer propósito de pretender reabilitar os devedores singulares.
Apesar de esta posição ser efectivamente sustentável (v. Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, 143; Paulo Olavo Cunha, in II Congresso do Direito da Insolvência, 2014, 220-221) temos para nós, onde a lei não distingue não deve ser o seu aplicador a fazer tal distinção, assumindo tarefa que cabia ao legislador.
Conforme salienta Luís M. Martins (Recuperação de Pessoas Singulares, vol. 2, edição 14-15), “Atendendo à forma como a lei foi redigida, e não obstante o processo especial de revitalização inserido no CIRE, ter sido anunciado como um meio de recuperação das empresas, o objectivo de fundo do memorando no que respeita à matéria em causa, era “facilitar o resgate efectivo das empresas viáveis e apoiar reabilitação de indivíduos financeiramente responsáveis...”, pretendendo, de raiz, abranger as empresas e as pessoas singulares.
Talvez por esse motivo, os novos arts. 17º-A a 17º-I, que regulam o processo especial de revitalização, em momento algum referem que a sua aplicação está limitada às pessoas colectivas ou entidades equiparáveis, antes anunciando, expressamente, que o processo de revitalização pode ser utilizado “por todo o devedor”. Assim, não deixa de ser aplicável às pessoas singulares quando estas estejam na situação descrita e sejam financeiramente responsáveis – cfr. nº 2 do art. 17º-A.
Podem assim recorrer ao procedimento especial de revitalização todos os sujeitos previstos no artº 2º, prevalecendo o critério da autonomia patrimonial tenham ou não personalidade judiciária.”
A mesma posição é assumida por Maria do Rosário Epifânio (O Processo Especial de Revitalização, 2015, 15-16), ao referir que “o PER é aplicável a qualquer devedor, pessoa singular ou colectiva, e ainda aos patrimónios autónomos, independentemente da titularidade de uma empresa (é aplicado na sua plenitude o disposto no artº 2º, n.º 1” do CIRE (v. também, no mesmo sentido, Fátima Reis Silva, in Processo Especial de Revitalização – Notas Práticas e Jurisprudência Recente, 2014, 21; Paulo Tarso Domingues, in I Colóquio do Direito da Insolvência de Santo Tirso, 2014, 15). Também Catarina Serra (O Regime Português da Insolvência, 5ª edição, 176) defende a mesma posição ao salientar que “o regime do PER aplica-se, assim, a qualquer devedor, pessoa singular, pessoa coletiva, património autónomo, titular de empresa ou não, dado o silêncio da lei quanto a qualquer dos requisitos (cfr. artº 1º, n.º 2, e artº 17º- A, n.º 1» do CIRE)”.
“O devedor não terá necessariamente de ser uma sociedade comercial. As pessoas singulares e demais pessoas colectivas e patrimónios autónomos previstos no artº 2º, n.º 1, do CIRE podem ser objecto de PER… Sendo certo que o PER foi concebido no interesse da recuperação do tecido empresarial, ainda assim as vantagens de um processo expedito e não estigmatizante pode até ser mais justificado no caso de pessoas singulares”, conforme defendem Nuno Casanova e David Dinis (O Processo Especial de Revitalização, 1ª edição, 13-14). Também, acolhendo a mesmo entendimento veja-se Isabel Alexandre (II Congresso do Direito da Insolvência, 2014, 235), afirmando que “os sujeitos que podem utilizar o processo de revitalização não são necessariamente titulares de empresas… o processo de revitalização tem sido também utilizado por pessoas singulares não titulares de empresas” (…)»

Neste conspecto, será de entender ter-se por lícita a utilização do PER por pessoas singulares sem actividade empresarial ou comercial própria, como sucede com os aqui requerentes – o que arredará a orientação sustentada pelo tribunal a quo na decisão recorrida.

Questão que ainda subsistirá será a de saber se podem esses requerentes formular em coligação um pedido de PER, invocando a sua conjugalidade, sob o regime de comunhão de adquiridos. Tal questão mereceu também já apreciação no citado aresto de 5/11/2015, proferido no Proc. 371/15.4T8STR.E1, em sentido que também merece a nossa concordância. Aí se apelou ao lugar paralelo do artº 264º, nº 1, do CIRE, segundo o qual «incorrendo marido e mulher em situação de insolvência e não sendo o regime de bens o da separação, é lícito aos cônjuges apresentarem-se conjuntamente à insolvência (…)», o que leva a permitir a coligação no processo de insolvência quando ambos os cônjuges se encontrem nessa situação e o regime de bens não seja o da separação – e, nessa base, por referência ao PER, argumentou-se como segue:

«Ora, concluindo-se por tal possibilidade legal [de coligação] no processo de insolvência, e bem assim, que o PER pode ser requerido por pessoas singulares, não se vê razão para não lhe ser extensível tal possibilidade de coligação.
Com efeito, como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, “(…) a circunstância de o processo de revitalização não ser uma espécie nem modalidade do processo de insolvência não afasta, também, a possibilidade de, quando necessário e apropriado, se aplicarem àquele normas que a este directamente respeitam.
Impõem-no as normais regras da hermenêutica e da integração de lacunas (legis), tendo para mais em conta que, conquanto prosseguindo objectivos que não se justapõem, ambos os processos têm, todavia, em comum, múltiplos aspectos, à frente dos quais ressalta o facto de, um e outro, se conformarem como instrumento de resolução de situações deficitárias que não devem (podem) manter-se.
Fundamental é que a norma a aplicar não seja contraditória com o regime específico do processo de revitalização nem remanesçam outras razões que a excluam” (C.I.R.E. Anotado, 2ª ed., Quid Juris, p. 141).
Ora, é o caso da aplicação ao PER da coligação activa dos cônjuges prevista para o processo de insolvência.
Como refere Catarina Serra, “O âmbito subjectivo de aplicação do PER parece coincidir com o âmbito subjectivo de aplicação do processo de insolvência” (Manual de Direito da Insolvência, 5ª ed., Almedina, 2013, p. 276).
Atente-se, de resto, que podendo, no âmbito do PER, desencadear-se o processo de insolvência, conforme resulta do disposto nos nos 3, 4 e 7 do artº 17º-G do CIRE, não se vê razão para negar aos requerentes de tal procedimento a coligação dos cônjuges que lhes é reconhecida naquele processo.»

Acolhendo nós esta orientação, somos então levados a concluir no sentido de assistir plena razão aos recorrentes na sua pretensão de não haver fundamento para o indeferimento liminar decretado pelo tribunal a quo – e assim deverão os autos prosseguir a sua tramitação própria, como PER, a fim de ser decidido, oportunamente, sobre se os cônjuges requerentes devem beneficiar, e em que termos, da pretendida revitalização.

Em suma: merece provimento o presente recurso – por se considerar que não havia motivo para o indeferimento liminar decretado pelo tribunal a quo (do pedido de PER formulado pelos requerentes) –, devendo ser revogado o referido despacho de indeferimento liminar sob recurso, que será substituído por outro despacho que dê seguimento aos trâmites processuais previstos nos artos 17º-A a 17º-I do CIRE, se outra causa a isso não obstar e nos termos que o tribunal de 1ª instância entender mais adequados.
*
III – DECISÃO:
Pelo exposto, decide-se julgar procedente a presente apelação, revogando o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro despacho liminar que dê seguimento aos pertinentes trâmites processuais, nos termos acima descritos.
Sem custas.

Évora, 21/01/2016
Mário António Mendes Serrano
Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes (dispensei o visto)
Mário João Canelas Brás (dispensei o visto)