Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | MOREIRA DAS NEVES | ||
Descritores: | LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA FUNDAMENTAÇÃO DAS SENTENÇAS EXAME CRÍTICO DAS PROVAS | ||
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Data do Acordão: | 04/09/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | I. A matriz liberal do processo penal moderno caracteriza-se pela tutela dos direitos, das liberdades e das garantias dos cidadãos. E em termos probatórios assenta no princípio da livre valoração pelo tribunal de todas as provas válidas suscetíveis de demonstrar a malfeitoria (artigo 127.º CPP). II. O princípio da livre apreciação da prova não serve para aprisionar o juiz na formação da sua convicção. Pelo contrário, giza libertá-lo das amarras e critérios preestabelecidos pela lei. Sendo uma aquisição civilizacional do liberalismo, que justamente libertou o juiz das amarras da prova tarifada, em prol de uma melhor Justiça, conferindo ao tribunal uma larga margem de apreciação das provas. III. A racionalidade subjacente ao princípio da livre apreciação da prova atende às regras da lógica e à experiência comum. Sendo todavia limitada por algumas regras imperativas (desde logo pelas proibições de prova – artigo 126.º CPP e ainda pelas limitações impostas ao depoimento indireto, sobre vozes públicas ou convicções pessoais – artigos 129.º e 130.º CPP; pelo especial valor probatório de documentos autênticos e autenticados – artigo 169.º CPP; pela proibição de valoração de provas não produzidas na audiência – artigo 355.º CPP); sendo também integrada pelo especial valor da prova pericial – artigo 163.º CPP. IV. É a fundamentação das sentenças que possibilita aos destinatários da decisão, realizarem a reconstrução do percurso mental efetuado pelo julgador, que se apresenta como sustentador do juízo probatório, permitindo-lhes, ademais, verificar que a decisão tomada não foi arbitrária. V. A fundamentação deverá ser clara, lógica e suficiente, pois que fundamentar é justificar, apresentar as razões que estruturaram a convicção formada pelo julgador naquele sentido e não noutro e que foram determinantes para a prova de uns factos e o juízo de não provado relativamente a outros, com base na valoração dos meios de prova disponíveis, de forma coerente e objetiva. Abarcando esta fundamentação quer a decisão sobre os factos quer a solução jurídica encontrada e aplicada. VI. O exame crítico das provas (artigo 374.º/2 CPP), por seu turno, consiste não apenas na indicação destas, mas também na explicitação dos raciocínios que, de acordo com as regras da lógica e da expediência comum, foram racionalmente seguidos e que conduziram à convicção formada pelo tribunal. | ||
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Decisão Texto Integral: | ACÓRDÃO I – RELATÓRIO 1. No Juízo de Competência Genérica de …, do Tribunal Judicial da comarca de …, procedeu-se a julgamento em processo comum perante tribunal singular de AA, nascido a … de 1976, com os demais sinais dos autos, a quem fora imputada a prática, como autor, de um crime de ofensa à integridade física grave por negligência, previsto no artigo 148.º, § 1.º e 3.º, por referência ao artigo 144.º, al. a) a d) do Código Penal (CP). A final, na sentença, o tribunal condenou o arguido pela prática, como autor, de um crime de ofensa à integridade física grave por negligência, previsto no artigo 148.º, § 1.º e 3.º, por referência ao artigo 144.º, al. a) a d) CP, na pena de 1 ano e 2 meses de prisão, a qual suspendeu na sua execução por 18 meses com regime de prova e na pena acessória de proibição de conduzir por 6 meses. 2. Inconformado, veio o arguido interpor recurso, rematando as pertinentes motivações com as seguintes conclusões1: «(…) 13.A motivação da decisão quanto aos factos dados como provados está eivada de erro e revela-se insuficiente pois tece considerações gerais e normativas para fundamentar a decisão sobre matéria de facto. 14. Na Sentença a quo é consignado que foram tidas em conta as declarações do Arguido, a prova testemunhal e a prova documental e pericial. 15 A Sentença a quo não circunstancia os depoimentos das testemunhas, não os confronta com outras provas, designadamente, os documentos, não faz análise do teor dos depoimentos que serviram para elucidar o Tribunal a quo sobre o modo como o Arguido agiu e sobre o modo como o Ofendido agiu. 16 O Tribunal a quo não procedeu a um verdadeiro exame crítico da prova produzida e examinada na Audiência de Discussão e Julgamento. 17 Está em causa um complexo de factos atinente à actuação de um Arguido mas também de um Ofendido e, da análise da Sentença a quo, difícil se torna concluir com segurança quais as concretas provas que o Tribunal a quo considerou para concluir, nos termos em que o fez, quanto à actuação de cada um dos Intervenientes no acidente de viação. (…) 28. As declarações da Testemunha BB não são confortadas pelos demais elementos de prova, quer documental e pericial (cfr. participação de acidente (fls. 268 a 271); esboço sem escala (fls. 272); informação sumária de acidente de trânsito; Cota (fls. 64); expediente (fls. 67 a 81); documentação clínica (fls. 82 a 83); relatório final (fls. 88 a 91); relatório de ocorrência (fls. 100 a 100-v); informação do SNS (fls. 103); informações clínicas (fls. 105 a 156-v); informação da ANSR (fls. 158 a 163 e fls. 168); informação (fls. 176); folha de suporte (fls. 192 a 193); folha de suporte (fls. 215 a 216); declaração médica (fls. 227); folha de suporte (fls. 230); relatório fotográfico (fls. 231 a 242) e relatório (fls. 243 a 256), quer testemunhal. 29. O Julgador rompe esta imposição de objectividade e racionalidade da prova quando extrai asserções factuais que não se baseiam em elementos concretos que lhe permitam alicerçar uma convicção real ou quando dá voz a rumores ou a convicções estritamente pessoais que não encontram qualquer suporte ou reflexo nos elementos do Julgamento. (…) 34. O Tribunal a quo para além de fazer, claramente, uma incorrecta interpretação da prova produzida em Audiência de Discussão e Julgamento e também dos inúmeros documentos juntos ao processo, exorbita a prova que lhe foi apresentada e perante si produzida para chegar a uma decisão sobre a matéria de facto, ultrapassando largamente o que lhe seria permitido concluir. (…) 38. Da prova testemunhal que consubstancia a matéria de facto dada como provada e a condenação na Sentença a quo, há dois depoimentos, um da Testemunha BB e outro da Testemunha CC que suportarão a Sentença a quo contudo os mesmos apresentam discrepâncias entre si e o da Testemunha CC apresenta ainda contradições internas e afirmações não fundamentadas. 39. O Arguido AA prestou depoimento que foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal (H@bilus Media Studio), de 10:36 horas a 10:53 horas (duração 00:17:02 horas) – cfr. Acta da Audiência de Discussão e Julgamento de 04 de Abril de 2024), tendo prestado declarações de forma clara, calma, adequada e coerente, das quais resulta que: • o motociclo encontrava-se fora da faixa de rodagem, a circular na berma direita e que, de repente se encostou à parte direita do camião, o que viu pelo espelho direito, continuando o motociclo a desviar-se para a sua esquerda, obrigando-o a chegar-se mais para a esquerda para se afastar do motociclo; • buzinou uma vez, mas o motociclo continuou a encostar-se para a esquerda, contra a lateral direita do veículo pesado; • estava a chover mas a visibilidade era boa; • não viu o motociclo fazer qualquer sinalização luminosa de manobra e nunca o viu no eixo da via, pensando que o motociclo ia para a sua direita; • depois do embate parou e chamou o INEM, não viu la mais ninguém naquele momento, mas até chegar o INEM apareceram pessoas; matéria de facto esta que deve ser dada como provada. 40. O depoimento do Arguido, a descrição da dinâmica do acidente, é consentâneo com a prova documental e pericial existente nos autos (cfr. fls. 268 a 271, 272, 82 a 83, 88 a 91, 100 a 100-v, 192 a 193, 215 a 216, fls. 231 a 242 e 243 a 256). 41.Do confronto dos factos dados como provados na Sentença a quo com os elementos probatórios documentais constantes dos autos resulta que estes não suportam aqueles. 42. O Tribunal a quo desvalorizou os meios de prova produzida em Audiência de Discussão e Julgamento – as declarações do Arguido e a documental e pericial – em nome de uma aparente consideração do Ofendido, olvidando toda aquela prova e as circunstâncias concretas do caso sub judice. 43. O Tribunal a quo desvalorizou indevidamente, como alegado, o depoimento do arguido, conjugados com a prova documental e pericial e, por outro lado, valorizou, sem o devido suporte e justificação, os depoimentos das Testemunhas BB e CC, mesmo com as contradições existentes e contra a prova documental e pericial, o que é gerador de erro na apreciação da prova, com as legais consequências, que se invoca. 44. As declarações do Arguido, conjugadas com os depoimentos contraditórios entre si e em si das Testemunhas BB e CC e confrontadas com os elementos documentais e periciais constantes dos autos a fls. 268 a 271, 272, 82 a 83, 88 a 91, 100 a 100-v, 192 a 193, 215 a 216, fls. 231 a 242 e 243 a 256, são suficientes para dar como não provados os factos, acima expressamente indicados, dos números 6., 7., 8., 9., 10., 12., 13., 18., 20., 21., 22., 24., 25., 26. e 27. (como expressamente indicado, a negrito). 45. Devendo, em consequência, toda esta factualidade ser julgada como não provada, o que se impõe. 46. Pelas razões elencadas, não existe factualidade que possa preencher os elementos objectivo e subjetivo que permitam tipificar o crime imputado ao Arguido que, de todo, deve ser absolvido pelas razões supra invocadas, devendo, em consequência, também toda esta factualidade ser julgada como não provada, o que se impõe. 47 (…) o Tribunal a quo violou frontalmente o princípio da livre apreciação da prova, mas sobretudo, o princípio do in dubio pro reo. (…) 55. O Arguido entende que o Tribunal a quo extrapolou o referido princípio da livre apreciação da prova ao ter confirmado a factualidade vertida na Acusação sustentando-se em prova que se não fez. (…) 70. Em obediência ao determinado no artigo 412º do CPP, considerando os pontos de facto incorrectamente julgados, os que deveriam ter sido dados por provados e, principalmente, como não provados e os meios probatórios que impunham (impõem) decisão diversa que acima foram objecto de extensa especificação, cumpre ainda indicar: a. as normas jurídicas violadas: artigo 32º, da Constituição da República Portuguesa; artigos 158º, nº 1 e 2, al. b) (conjugado com o disposto nos artigos 14º, nº 1 e 26º), 154º, nº 1 e 155º, nº 1, al. a) (conjugados com o disposto nos artigos 14º, nº 1, 22º, 23º e 26º), 212º, nº 1 (conjugado com o disposto nos artigos 14º, nº 1 e 26º), todos do Código Penal; artigo 127º do Código do Processo Penal; e artigo 7º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. b. Os princípios jurídicos violados: Princípio da legalidade, Princípio da livre apreciação da prova, Princípio da imediação da prova, Princípio do contraditório, Princípio da oralidade, Princípio do acusatório, Princípio da investigação, Princípio da vinculação temática, Princípio da presunção da inocência e Princípio in dubio pro reo.» 3. O recurso foi recebido, tendo o Ministério Público junto do Tribunal de 1.ª instância respondido ao mesmo, sustentando, aliás doutamente, dizendo, no essencial, que: «1. O Tribunal a quo fez uma correta interpretação dos factos e das provas constantes dos autos e, nessa medida, não incorreu em erro de julgamento da matéria de facto, nos termos do artigo 410.º, n.º a al. a) do Código de Processo Penal nem na nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1 al. c) do Código de Processo Penal; 2. O Tribunal a quo apreciou devidamente os depoimentos das testemunhas, bem como os demais elementos probatórios existentes nos autos, designadamente a documentação clínica e pericial e com base nesses elementos deu como provados os pontos 7, 8, 9, 10, 12, 13, 18, 20, 21, 22, 24, 25, 26 e 27 da matéria de facto dada provada da sentença sub judice; 3. O Tribunal a quo justificou e explicou os motivos da sua decisão, declarou a razão pela qual deu mais credibilidade a uns depoimentos e não a outros, julgou relevantes ou irrelevantes certas conclusões da testemunha e achou satisfatória, ou não, a prova resultante de documentos, racionalizando, detalhadamente, a motivação da decisão da matéria de facto pelo que cumpriu, na íntegra, o dever de motivação da decisão proferida sobre a matéria de facto donde, a decisão sub judice não está eivada de qualquer erro nem se revela insuficiente; 4. Afere-se da sentença proferida que os depoimentos das testemunhas são todos circunstanciados e confrontados devidamente com as outras provas existentes nos autos, designadamente, com os documentos e com o relatório pericial, dela resultando uma análise crítica do teor dos depoimentos que serviram para elucidar o Tribunal a quo sobre o modo como o acidente ocorreu e como o Recorrente agiu, existindo um verdadeiro exame crítico da prova produzida em sede de julgamento e um enquadramento concreto - e do caso concreto - sobre a valoração da prova; 5. O Tribunal a quo aduziu que da prova produzida não decorrem dúvidas quanto à verificação dos factos que considerou como provados e não provados e clarificou, detalhadamente, quais os concretos meios de prova que foram tidos em consideração, explicando que atendeu ao depoimento do arguido e não ignorou ou desconsiderou a existência de versões diferentes, pelo contrário, o Tribunal a quo evidenciou tal facto na sentença concluindo que “o Tribunal atendeu à versão apresentada pela testemunha BB, considerando a sua razão de ciência, os cerca de 20 anos de experiência no núcleo de acidentes de viação e a sua imparcialidade e objectividade perante os factos. A testemunha relatou os factos com objectividade, explicando e justificando as suas conclusões de forma perceptível, circunstanciada e fundamentada. De igual forma as conclusões da testemunha são parcialmente corroboradas pelo arguido e pela testemunha CC.” 6. O Recorrente visa apenas e tão só por em causa a apreciação que o Tribunal a quo fez da prova produzida e que se estribou na sua convicção com alicerce no princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal; 7. Os limites impostos pela lei a este princípio são a proibição de provas ilegais ou nulas (artigo 126.º do Código de Processo Penal), a existência de provas vinculadas, sendo exemplo a prova pericial (artigo 163.º do Código de Processo Penal), as limitações decorrentes dos depoimentos indiretos ou vozes públicas (artigos 129.º e 130.º do Código de Processo Penal), os documentos autênticos e autenticados, ainda que possam ser postos em causa (artigo 169.º do Código de Processo Penal) e, por fim, não podem ser valoradas as provas que não forem produzidas em audiência de julgamento (artigo 355.º do Código de Processo Penal). No mais, este princípio traduz-se na apreciação das provas indicadas e produzidas em audiência, ancorada nas regras de experiência comum, ou seja, “em regras de comportamento que exprimem aquilo que sucede na maior parte das vezes (id quod plerumque accidit)”; 8. O Tribunal a quo entendeu, com base neste princípio, que o Recorrente praticou os factos constantes da factualidade dada como provada e valorizou os depoimentos que o Recorrente quer descredibilizar, sobretudo o sobretudo o depoimento da testemunha BB, que, refira-se, não tem qualquer relação com os intervenientes, e o depoimento sofrido do filho do falecido; 9. Não se vislumbra qualquer erro notório na apreciação da prova, nem qualquer outro, porquanto, a convicção do Tribunal a quo não assentou em raciocínios contrários à lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica, convicção essa que o tribunal a quo não deixou de fundamentar, e bem, nos termos do artigo 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal; 10. Em face da prova produzida em julgamento estão preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime pelo qual foi o Recorrente foi condenado; 11. A sentença proferida não nos merece qualquer censura e não violou qualquer disposição legal, designadamente o disposto no artigo 32.º, da Constituição da República Portuguesa; artigo 7.º da Convenção Europeia sobre os Direitos do Homem nos artigos 412.º, 410.º, n.º 2 al. a), 379.º, n.º 1 al. c), 127.º todos do Código de Processo Penal; nos artigos 14.º, n.º 1, 22.º, 23.º e 26.º, 158.º, n.º 1 e 2, al. b), 154.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a), 212.º, nº 1, todos do Código Penal, assim como não violou os princípios da legalidade, da livre apreciação da prova, da imediação da prova, do contraditório, da oralidade, do acusatório, da investigação, da vinculação temática, da presunção da inocência e do in dubio pro reo.» 4. Junto deste Tribunal Superior o Ministério Público pronunciou-se no sentido de o recurso não ser merecedor de provimento. 5. No exercício do contraditório não foi apresentada qualquer resposta. II – FUNDAMENTAÇÃO I.Delimitação do objeto do recurso O objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, nas quais resume as razões do pedido, desse modo delimitando as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigos 403.º, § 1.º, e 412.º, § 1.º CPP)2. Das conclusões do recorrente extrai-se que as razões de divergência com a decisão impugnada, são as seguintes: i. nulidade da sentença por falta de fundamentação e exame crítico da prova; ii. violação das garantias de defesa iii. erro de julgamento da questão de facto; e, iv. qualificação jurídica dos factos. 2. Na sentença recorrida deram-se como provados e não provados os seguintes factos: «1. No dia 29 de abril de 2020, cerca das 15 horas e 46 minutos, o ofendido DD conduzia o motociclo com a matrícula …, na Estrada Nacional …, ao km 15,430 no sentido de … para a localidade de …, circulando em direção ao cruzamento dessa estrada com a “…”, para onde pretendia seguir. 2. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar e no mesmo sentido de trânsito, o arguido conduzia o veículo automóvel pesado de mercadorias com a matrícula …, que nesse momento tinha atrelado o reboque com a matrícula …, o qual seguia imediatamente atrás do veículo conduzido pelo ofendido. 3. A estrada nacional … ao km 15,430 configura uma reta, com dois sentidos de trânsito, com uma via de trânsito para cada um dos sentidos, delimitados pela marca longitudinal, linha contínua M1, tendo a faixa de rodagem 6,90 metros de largura total. 4. Atento o sentido de marcha de ambos os veículos, a via de trânsito é seguida de um cruzamento formado por essa faixa de rodagem com a entrada para o parque de festas da …, à direita, e a “…”, à esquerda. 5. À data o piso apresentava-se em bom estado de conservação e, atenta a hora, havia luminosidade no local. 6. Ao chegar junto ao referido cruzamento da Estrada Nacional … com a “…” situado no lado esquerdo da via, atento o seu sentido de marcha, o ofendido prosseguia a marcha em direção à “…”. 7. Nesse momento, o arguido, por não ter tomado as devidas precauções, não se apercebeu que o veículo conduzido pelo ofendido iniciava a mudança e direção à esquerda, não moderando a velocidade. 8. E, presumindo que o veículo conduzido pelo ofendido prosseguia em frente, o arguido iniciou manobra de ultrapassagem do mesmo, tendo para o efeito transposto a linha contínua M1 e assim circulando para a via de trânsito da esquerda ao mesmo tempo que aumentou a velocidade, momento em que embateu com a parte lateral direita do seu veículo na parte lateral esquerda do veículo motociclo conduzido pelo ofendido. 9. Por força do embate, o ofendido foi projetado para o solo, a uma distância não concretamente apurada. 10. Em consequência direta e necessária do embate causado pelo arguido, o ofendido sofreu, designadamente, as seguintes lesões e sequelas: i. Crânio: estado pós traumatismo cranioencefálico; ii. Ráquis/Cervical: estado pós fratura do corpo da 2ª vertebra e do pedículo, da o planalto superior da 3ª vertebra e da apófise espinhosa da 6ª vertebra; iii. Ráquis/Tórax: estado pós fratura da apófise espinhosa da 8ª vertebra, da 11.ª e 12ª vertebra. Estado pós fraturas dos arcos costais posteriores à esquerda, da 4ª à 12ª costela; e iv. Membros inferiores: alterações da força muscular – grau 4 em 5. 11. Tais lesões determinaram ao ofendido um período de doença de, pelo menos, 104 dias com afetação da capacidade de trabalho geral e da capacidade de trabalho profissional, tendo a consolidação médico legal das lesões apenas ocorrido no dia 11/08/2020. 12. Por virtude da conduta desatenta do arguido, que deu origem ao embate supra referido, o ofendido sofreu as consequências permanentes acima referidas, as quais, sob o ponto de vista médico-legal, se traduzem em afetação grave da capacidade de trabalho, da possibilidade de utilização das capacidades intelectuais e da possibilidade de utilizar o corpo. 13. Acresce que o ofendido sofreu perigo concreto de vida, uma vez que, na sequência dos factos supra descritos, aquando da sua entrada no Serviço de Urgência do Hospital … em …, apresentava um quadro de coma GCS=8, com diagnóstico de múltiplos focos de contusão encefálicos, fratura do corpo da 2.ª vertebra cervical e do pedículo, da o planalto superior da 3.ª vertebra cervical, da apófise espinhosa da 6.ª vertebra cervical, da apófise espinhosa da 8.ª vertebra torácica, da 11.ª e 12.ª vertebra torácica, compressiva, fraturas dos arcos costais posteriores à esquerda, da 4.ª à 12.ª costela, hemotórax bilateral. 14. Por força das lesões que sofreu o ofendido ficou internado em unidade de cuidados intensivos até ao dia 29/04/2020. 15. Nessa data o ofendido foi transferido para a Unidade Vertebro Medular do Hospital …, em …, onde permaneceu para cirurgia por fraturas D11 – D12 até ao dia 16/06/2020, tendo, nessa sequência, ficado internado em ortopedia até ao dia 11/08/2020, data em que foi transferido para uma Unidade de Cuidados Continuados da Santa Casa da Misericórdia de …. 16. Aí ficando até ao dia 31/12/2020, data em que integrou a Unidade de Cuidados Continuados de …. 17. O ofendido faleceu a 18 de novembro de 2022. 18. Em resultado da conduta do arguido e até à data da sua morte, o ofendido ficou dependente para todas as atividades da vida diária, com exceção da alimentação, em que ficou parcialmente dependente. 19. Passou a usar fraldas, por total incontinência de esfíncteres, e perdeu a capacidade de macha autónoma, necessitando do auxílio de terceiros para se levantar da cama e sentar-se num cadeirão. 20. No mais, e como consequência dos factos supra descritos e até à data da sua morte, o ofendido revelou desorientação alo psíquica, défice cognitivo e discurso incoerente. 21. O acidente poderia ter sido evitado se o arguido tivesse colocado na condução a atenção que lhe era devida, de modo a aperceber-se atempadamente da intenção de mudança de direção à esquerda pelo veículo conduzido pelo ofendido. 22. O arguido, como condutor devidamente habilitado a conduzir, sabia também que tinha a obrigação de se abster da prática de atos suscetíveis de prejudicar o exercício da condução em segurança. 23. O arguido estava ciente de que era, e é proibido realizar a manobra de ultrapassagem imediatamente antes dos cruzamentos e entroncamentos assim como era, e é proibido pisar ou transpor a marca longitudinal continua M1, estando obrigado a circular à direita enquanto essa linha faz, como fazia, a separação dos sentidos de transito. 24. Ainda assim, consciente de tal, o arguido não se inibiu de o fazer infringindo, por isso, os deveres de zelo, cuidado e diligência que impendem sobre todos os condutores de veículos automóveis, bem como o disposto nos artigos 11.º, n.ºs 2 e 4, 41.º n.º 1 al. c), 145.º, n.º 1, alínea f), e 146.º, alíneas o), todos do Código da Estrada. 25. O arguido tinha ainda conhecimento e plena consciência desses deveres e normas de circulação rodoviária e sabia ser possível que a sua conduta causasse, como causou, lesões físicas graves a outros condutores. 26. Todavia, o arguido atuou acreditando que tal não iria acontecer, sendo, contudo, a sua condução desatenta e descuidada a causa do embate supra referido e, consequentemente, das graves lesões e sequelas sofridas pelo ofendido. 27. O arguido atuou de forma livre, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal. Provou-se ainda que: 28. O arguido estudou até ao 9.º ano e trabalha como motorista, auferindo um salário de 1.300 €. 29. Reside com a esposa e dois filhos, de 21 e 13 anos, ambos ainda a estudar. 30. Reside em casa própria, suportando uma prestação mensal de cerca de 300,00 €. 31. Do certificado de registo criminal do arguido não consta qualquer averbamento. Factos não provados: Com relevância para a decisão da causa, não resultou provado o seguinte: A. À data do acidente o piso estava seco. B. O ofendido ligou o sinal luminoso de mudança de direção à esquerda e encostou-se ao eixo da via. C. Que o ofendido tenha sinalizado a sua manobra.» 2.1 Motivando-se tal acervo factológico do seguinte modo: «O Tribunal firmou a sua convicção na ponderação, à luz das regras da experiência comum e na livre convicção do julgador, da análise crítica e conjugada dos meios de prova produzidos, nomeadamente na participação de acidente (fls. 268 a 271); esboço sem escala (fls. 272); informação sumária de acidente de trânsito; Cota (fls. 64); expediente (fls. 67 a 81); documentação clínica (fls. 82 a 83); relatório final (fls. 88 a 91); relatório de ocorrência (fls. 100 a 100-v); informação do SNS (fls. 103); informações clínicas (fls. 105 a 156-v); informação da ANSR (fls. 158 a 163 e fls. 168); informação (fls. 176); folha de suporte (fls. 192 a 193); folha de suporte (fls. 215 a 216); declaração médica (fls. 227); folha de suporte (fls. 230); relatório fotográfico (fls. 231 a 242); relatório (fls. 243 a 256); documentos de colheita de sangue para exame toxicológico (fls. 279 a 280); informação clínica (fls. 289 291); nota de alta (fls. 292 a 295); informação da segurança social (fls. 302 a 303); assento de nascimento do ofendido (fls.352 e 353); assento de óbito do ofendido (fls. 354); assento de casamento do ofendido (fls. 313 e 314); relatório de exame clínico toxicológico (fls. 93 a 95); relatório toxicológico (fls. 275 a 276); relatório de perícia de avaliação do dano corporal (fls. 287 a 288-v) e no CRC do arguido, bem como nas declarações do arguido e das testemunhas ouvidas CC (filho do ofendido), EE (bombeiro); FF (esposa do ofendido), GG (militar da GNR), BB (militar da GNR) e HH (gestor de tráfego na empresa onde o arguido trabalha). Em detalhe: No que respeita às circunstâncias de tempo e espaço nos quais ocorreram os factos, bem como à identificação dos veículos e respetivos condutores e ainda direção em que circulavam, bem como ao local em que se deu o acidente (factos 1 a 5), tal factualidade decorre desde logo da leitura conjugada da participação de acidente (fls. 268 a 271); do esboço sem escala (fls. 272); relatório final (fls. 88 a 91); relatório de ocorrência (fls. 100 a 100-v); relatório fotográfico (fls. 231 a 242) e do relatório (fls. 243 a 256). Ademais, resultou ainda confirmada quer pelo arguido que confirmou que conduzia o veículo pesado, o sentido em que seguia bem como o sentido em que seguia o motociclo, bem como pelas declarações do filho do ofendido que seguia a pé, no mesmo sentido que os veículos. De igual forma as testemunhas EE e GG confirmaram o local do acidente onde foram chamados, descreveram o local e o que encontraram. Quanto às condições climatéricas e da via, o arguido referiu que a visibilidade era boa e as condições da via à data do acidente e mesmo de iluminação constam retratadas nas fotografias tiradas no dia do acidente. No mais, quanto à dinâmica do acidente propriamente dito (factos 6 a 9), arguido e testemunhas (CC e BB) relataram de forma não consentânea os factos. Assim, o arguido explicou que o motociclo se encontrava fora da faixa de rodagem, a circular na berma direita e que, de repente se encostou à parte direita do camião, o que o arguido viu pelo espelho direito, continuando o motociclo a desviar-se para a sua esquerda, obrigando o arguido a chegar-se mais para a esquerda para se afastar do motociclo. Explicou ainda que buzinou uma vez, mas o motociclo continuou a encostar-se para a esquerda, contra a lateral direita do camião. Disse que estava a chover, mas a visibilidade era boa, não viu o motociclo fazer qualquer sinalização luminosa de manobra e nunca o viu no eixo da via, pensando que o motociclo ia para a sua direita. Depois do embate parou e chamou o INEM, não viu la mais ninguém naquele momento, mas até chegar o INEM apareceram pessoas. Já a testemunha CC, filho do ofendido, explicou que tinha estado a ajudar o pai a regar a horta, o pai seguia para o …, de moto à sua frente e ele a pé pela berma, mais atrás. Explicou que viu o pai, dentro da sua mão quando o camião embateu nele. Referiu ainda que o camião passou por ele a alta velocidade, saiu fora de mão (desviou-se para fora da sua faixa, já ia a meio da faixa contrária) e foi embater no pai da testemunha, que de acordo com a testemunha, tinha o pisca do lado esquerdo ligado. Estava a uns 150/200 metros da moto, a última vez que vê o pai está do lado esquerdo, a fazer pisca para a esquerda, depois de o camião passar deixou de ter angulo para ver a mota, por isso não viu o embate propriamente dito, apercebe-se do embate e só vê o pai ser cuspido por baixo do camião. Finalmente, a testemunha BB explicou que não esteve no local na data dos factos, tendo elaborado o relatório do acidente, tendo-se deslocado ao local posteriormente, vistoriado o motociclo (que não conseguiu ligar por já não ter bateria) e ouvido o filho do ofendido. A testemunha fez um relato do que apurou e das suas conclusões em moldes semelhantes aos que deixou vertidos no relatório de fls. 243 a 256. Explicou a sua razão de ciência, bem como as diligências que realizou e o que lhe foi possível apurar com base nos elementos já disponíveis e naqueles que recolheu. Assim, esclareceu que o motociclo apresentava marcas de material branco, do seu lado esquerdo, o que corrobora o primeiro embate na lateral direita do camião e lado esquerdo do motociclo, confirmando a trajetória de mudança de direção do motociclo à esquerda. De acordo com a testemunha, atendendo à posição final do motociclo, conjugada com as marcas visíveis no camião e no motociclo, conclui que este ia virar à esquerda quando o arguido se encontrava a ultrapassar, dando-se o embate na parte lateral do trator do veículo pesado, perto do 1.º eixo (marcas visíveis na fotografia 6), por força do qual o motociclo rodopia sobre si próprio (o que é corroborado pela marca ténue do arrastamento do motociclo visível na fotografia 2) e volta a embater no veículo pesado, desta feita no guarda lamas do lado direito (fotografia 7 e 19). Confirmou ainda que tirou as fotografias de fls. 235-242. Afasta a possibilidade de o motociclo já se encontrar no eixo da via, uma vez que nesse caso o embate teria sido na parte frontal do veículo e o ofendido teria sido projetado para a frente, o que não aconteceu. Ademais, se o motociclo já se encontrasse no eixo da via, o veículo pesado podia ter ultrapassado pela direita, o que de igual forma também não sucedeu. Assim, conclui que o motociclo vira à esquerda quando o camião já o vai a ultrapassar e por isso é que os danos são na lateral direita do camião e do lado esquerdo do motociclo. Confrontada com as versões diferentes trazidas ao processo, o Tribunal atendeu à versão apresentada pela testemunha BB, considerando a sua razão de ciência, os cerca de 20 anos de experiência no núcleo de acidentes de viação e a sua imparcialidade e objetividade perante os factos. A testemunha relatou os factos com objetividade, explicando e justificando as suas conclusões de forma percetível, circunstanciada e fundamentada. De igual forma as conclusões da testemunha são parcialmente corroboradas pelo arguido e pela testemunha CC. Assim, do relato do acidente feito pelo arguido este coloca-se sempre à esquerda do motociclo no momento do acidente, confirmando o embate na sua lateral, o que só poderia ocorrer se o arguido se encontrasse a ultrapassar o motociclo (e assim à sua esquerda), o que no local em que o arguido circulava não era permitido por anteceder um cruzamento. Também a ultrapassagem de um veículo que não atinge grandes velocidades (como é o caso do motociclo em causa), mesmo sem estarem reunidas todas as condições de segurança é (infelizmente) coerente com as regras da experiência comum, uma vez que tais situações são frequentes, em especial em estradas menos movimentadas, como seria o caso à data e hora dos factos. No mesmo sentido vai a convicção expressa pelo arguido de que o ofendido iria até virar à direita, fortalecendo a conclusão de que se encontrava a ultrapassar o motociclo e confirmando também o facto de o arguido não ter ultrapassado o veículo pela direita, por não se ter apercebido de que o mesmo iria viria à esquerda. Por seu turno, o depoimento do filho do ofendido, foi ainda considerado, nomeadamente quanto à direção que o ofendido pretendia tomar, uma vez que, ainda que marcado por algumas contradições e por algumas afirmações pouco fundamentadas, tem que ser lido à luz das circunstâncias especialmente penosas em que a testemunha teve conhecimento dos factos, não podendo olvidar-se que assistiu a um acidente de viação que vitimou gravemente o seu pai, o que de alguma forma explica a postura defensiva e sucinta com que prestou o seu depoimento. As testemunhas EE (bombeiro) e GG (militar da GNR) apenas depuseram sobre os momentos após o acidente, nomeadamente sobre a altura em que foram acionados os respetivos meios de socorro. A testemunha GG, militar da GNR, explicou que foi chamado ao acidente e, como estava de patrulha sozinho, foi acompanhado pelo comandante do posto e pelo colega que se encontrava na secretaria. Quando chegaram ao local a vítima estava caída no chão, perto da moto e havia bocados de mota por todo o lado e o camião estava parado fora de mão. Quando chegou ao local já la estavam algumas pessoas, entre as quais um filho do ofendido. Tirou as fotografias de fls. 268/271. Já a EE explicou que, quando chegou ao local a GNR já se encontrava no local, estando o ferido grave no chão, inconsciente na via de sentido … - … e que foi necessário pedir mais meios de socorro. As consequências do embate sofridas pelo ofendido, o tratamento médico e os cuidados continuados que recebeu (factos 10 a 16 e 18 a 20) decorrem da prova pericial (fls. 287/288v) conjugado com a informação clinica contante do processo (nomeadamente informações clínicas (fls. 105 a 156-v); informação (fls. 176); folha de suporte (fls. 192 a 193); folha de suporte (fls. 215 a 216); declaração médica (fls. 227); folha de suporte (fls. 230); relatório fotográfico (fls. 231 a 242); relatório (fls. 243 a 256); documentos de colheita de sangue para exame toxicológico (fls. 279 a 280); informação clínica (fls. 289 291); nota de alta (fls. 292 a 295)). Também a esposa do ofendido e o seu filho prestaram declarações confirmando o estado de saúde e as limitações que o ofendido apresentava após o acidente. Quanto a estes factos, sobretudo quanto às condições físicas e psíquicas do ofendido antes do acidente e após o mesmo, as mesmas foram igualmente corroboradas pelo depoimento da esposa do ofendido FF e do filho de ambos, CC. A esposa do ofendido explicou que, na altura do acidente o marido era autónomo, ia duas vezes por dia à horta, andava bem e ajudava-a a cuidar da filha de ambos que é dependente de terceiros. Relatou os internamentos hospitalares e clínicos do ofendido após o acidente (…, …, …, …), referindo que depois do acidente o ofendido já não chegou a estar em casa, tendo estado sempre internado. Explicou ainda que depois do acidente o marido muitas vezes já não os reconhecia (a ela e aos filhos) e ficou totalmente dependente (não andava, não mexia braços, nem pernas e alimentava-se com muita dificuldade). Também CC atestou que o pai estava perfeitamente autónomo antes do acidente, era ativo, sociável, trabalhador, respeitador e que depois do acidente não conseguia fazer nada sozinho e só os reconhecia às vezes. O falecimento do ofendido decorre atestado pelo assento de óbito junto aos autos (fls. 354). Relativamente aos elementos subjetivos (factos 21 a 27), o Tribunal conjugou os meios de prova supra expostos, com as regras da experiência comum, os quais permitem concluir que o arguido, não só sendo titular de carta de condução como sendo ainda motorista de profissão, não podia deixar de conhecer as normas estradais, nomeadamente aquelas que proíbem a ultrapassagem imediatamente antes de cruzamentos, bem sabendo que as manobras de ultrapassagem são manobras que necessitam de antecipação e atenção redobrada e ainda assim empreendeu a manobra nas circunstâncias em que o fez, apesar de saber possível que dela adviessem consequências físicas e materiais para si e para terceiros. No que respeita às condições socioeconómicas do arguido (factos 28 a 30), aquelas resultam das declarações do arguido, que o Tribunal as entendeu como credíveis, tanto mais que não incidem sobre qualquer circunstância que possa desfavorecer o arguido. Também sobre o arguido, nomeadamente sobre as suas circunstâncias profissionais e pessoais, prestou depoimento a testemunha HH, gestor de tráfego na empresa na qual o arguido trabalha, que explicou que depois do acidente o veículo estava em condições de andar, apenas com a lateral mais danificada (plásticos) e quando voltou à … verificaram o tacógrafo e não encontraram nada para processo disciplinar. Atestou ainda que o arguido é um bom condutor, um bom motorista, nada havendo a relatar por parte da empresa. Pessoalmente é uma pessoa sã, alegre, cumpridora. Quanto à ausência de antecedentes criminais do teve o Tribunal em consideração o certificado de registo criminal junto aos autos, lido em cumprimento do disposto na Lei n.º 37/2015, de 5 de maio (facto 31). No que respeita à factualidade não provada, desde logo, não se apurou que o piso estivesse seco. Na verdade, apesar de tal constar da participação de acidente, quer o arguido, quer as testemunhas GG e EE referiram estar a chover no momento em que se deslocaram ao local do acidente, resultando igualmente das fotografias de fls. 231 a 234 que o piso estava molhado no momento em que aquelas foram tiradas (isto é, no dia do acidente e após o mesmo), não permitindo ao Tribunal formar convicção suficiente quanto ao estado (molhado/seco) em que se encontrava a via. No que respeita à sinalização luminosa da mudança de direção à esquerda por parte do ofendido, não obstante ter sido referido pela testemunha CC que teria visto o pisca e esta versão é contrariada pelo arguido (que refere que o ofendido não sinalizou a manobra), não tendo sido possível apurar com grau de certeza necessário se o ofendido teria ou não sinalizado a sua manobra. De igual modo, esta testemunha também referiu que os militares da GNR no local teriam confirmado essa circunstância ao ligarem a motorizada, o que não foi confirmado por nenhuma testemunha, atendendo a que a testemunha GG referiu que não viram se a mota pegava, se estava a funcionar e também a testemunha BB referiu que, quando inspecionou a mota a posteriori nada pôde apurar uma vez que a mesma não tinha bateria. Também a localização exata do motociclo no momento do embate não resulta cabalmente demonstrada, sendo contraditórias as versões apresentadas pelo arguido (que situa o ofendido na berma) e pela testemunha CC (que o coloca no eixo da via), não tendo sido possível apurar onde se encontrava o motociclo quando iniciou a manobra de viragem à esquerda. Em face do que antecede, julgaram-se não provados os factos A a C.» 3. Apreciando. 3.1 Da nulidade da sentença por falta de fundamentação e exame crítico das provas O recorrente assinala em diversos momentos do seu recurso que a sentença é deficiente em matéria de fundamentação, aludindo também por várias vezes à falta de exame crítico das provas, o que nos termos da lei constitui nulidade (artigo 379.º, § 1.º, al. a)3, por referência ao artigo 374.º, § 2.º CPP. Sobre este aspeto o Ministério Público na sua resposta, refere que a sentença recorrida evidencia terem as declarações do arguido e os depoimentos das testemunhas sido todos devidamente circunstanciados e em referência a todas as demais provas, designadamente documental e relatório pericial, nela se fazendo a respetiva análise, nomeadamente sobre o modo como agiu o arguido e se verificou o embate entre o veículo pesado conduzido por aquele e o motociclo, ali circunstanciadamente se detalhando os concretos meios de prova que foram tidos em consideração e o modo como o foram. Pois bem. A fundamentação das decisões judiciais encontra esteio normativo no texto da Lei Fundamental (artigo 205.º, § 1, da Constituição), onde se consagra o princípio da fundamentação das decisões que não sejam de mero expediente. O dever de fundamentação das decisões judiciais advém igualmente do princípio do processo equitativo, a que se reportam os artigos 20.º, § 4.º da Constituição da República; 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem; 14.º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e 47.º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia (todos inspirados no artigo 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem). «A exigência da fundamentação é, simultaneamente, um ato de transparência democrática do exercício da função jurisdicional, que a legitima, e das diversas garantias constitucionais da motivação decisória, com destaque para os direitos da defesa, de forma a aferir-se da sua razoabilidade e a obstar a decisões arbitrárias.»4 Para cumprir os valores assinalados a fundamentação das sentenças deve ser clara, lógica e suficiente. Pois só desse modo permite a sua compreensão e aceitação pelos seus destinatários; mas também a sua impugnação, sendo ainda (indiretamente) um meio para disciplinar o juiz na ponderação que lhe cabe realizar e na estruturação da sua decisão. Fundamentar é justificar, apresentar as razões que estruturaram a convicção formada pelo julgador naquele sentido e não noutro e que foram determinantes para a prova de uns factos e o juízo de não provado relativamente a outros, com base na valoração dos meios de prova disponíveis, de forma coerente e objetiva. Abarcando esta fundamentação quer a decisão sobre os factos quer a solução jurídica encontrada e aplicada. Tal explicitação deverá ser feita de modo a possibilitar aos destinatários da decisão realizarem a reconstrução do percurso mental efetuado pelo julgador e que se apresenta como sustentador do juízo probatório, permitindo-lhes, ademais, verificar que a decisão tomada não foi arbitrária.5 Neste contexto, o exame crítico das provas consiste não apenas na indicação destas, mas também na explicitação dos raciocínios que, de acordo com as regras da lógica e da expediência comum, foram racionalmente seguidos e que conduziram à convicção do tribunal. Na confrontação da fundamentação da sentença recorrida, na parte relativa à motivação da decisão de facto, que acima transcrevemos, verificamos, ao contrário do que afirma o recorrente, estarem enumerados os factos provados e os não provados, expondo-se depois, de forma clara, racional e perfeitamente compreensível, os raciocínios lógico-dedutivos subjacentes à formação da convicção probatória quanto aos mesmos. O mesmo sucedendo relativamente às questões de direito, todas devidamente identificadas e explicadas com menção da base legal em que se fundaram. Concluímos, pois, não assistir nenhuma razão nestes fundamentos do recurso, designadamente quando se afirma a insuficiência de fundamentação e a ausência de exame crítico das provas, pelo que não se verifica a invocada nulidade da sentença. 3.2 Da violação das garantias de defesa Sem concretamente precisar as circunstâncias em que considera vulnerados os princípios da legalidade, da livre apreciação da prova, da imediação, da oralidade, do acusatório, da investigação, da presunção de inocência, do in dubio pro reo e da vinculação temática (!), o recorrente afirma essa vulneração na motivação e/ou nas conclusões de recurso (p. ex. conclusão 70.)! Pronunciando-se sobre esta parte dos fundamentos recursivos, refere o Ministério Público que o tribunal a quo «justificou e explicou os motivos da sua decisão, declarou a razão pela qual deu mais credibilidade a uns depoimentos e não a outros, julgou relevantes ou irrelevantes certas conclusões da testemunha e achou satisfatória, ou não, a prova resultante de documentos, racionalizando, detalhadamente, a motivação da decisão da matéria de facto.» E que para tanto estribou na sua convicção com alicerce no princípio da livre apreciação da prova, não tendo valorado provas proibidas ou o valor específico da prova pericial, nem depoimentos indiretos, vozes públicas ou documentos autênticos ou autenticados. Vejamos. A ausência da concretização id est a não efetivação da devida explicitação e concretização dos eventos, passos ou momentos em que se entende verificada a vulneração de cada um dos referidos princípios, seria, logo por isso, razão suficiente para se desconsiderarem tais referências, dado o modo genérico e impreciso (ausência de uma verdadeira concretização do respetivo objeto) de tais alegações. Não deixaremos, ainda assim, de referir que não vislumbramos, quer nos procedimentos seguidos na audiência, quer na sentença recorrida, qualquer circunstância de que ressalte a vulneração de qualquer dos referidos princípios norteadores do processo penal. Designadamente não vemos que ao arguido tenha sido imputado crime ou aplicada pena não previstos na lei! Ou que a acusação não tenha, prévia e devidamente, delimitado o thema decidendum. Que na audiência se tenham preterido provas ou impedido o arguido de exercer todas as garantias de defesa, designadamente a presença nela e a respetiva audição. Que o julgamento não tenha sido realizado pela autoridade judicial competente. Ou se não tenha respeitado o princípio da livre apreciação da prova. E, consequente, que a decisão tomada não se mostre assente na motivação efetuada. Ou que na sentença se tenham vulnerado as regras atinentes à valoração da prova pericial. Ou ainda que tendo o tribunal chegado a um non liquet relativamente a qualquer dos factos controvertidos e tenha valorado as provas concernentes contra o arguido! Mostrando-se, pois, infundado este fundamento do recurso. 3.3 Do erro de julgamento da questão de facto Antes de nos debruçarmos sobre a impugnação da matéria de facto, feita nos termos previstos no § 3.º do artigo 412.º CPP, cabe fazer uma breve menção à impropriedade da alegação feita a dado passo do recurso (ponto B.1.3.), de haver «erro notório na apreciação da prova», por referência ao julgamento como provados dos factos alinhados em «6., 7., 8., 9., 10., 12., 13., 18., 20., 21., 22., 24., 25., 26. e 27. (…) no entendimento do Recorrente AA devem ser considerados e julgados como não provados pelo Venerando Tribunal da Relação»!
Constata-se que o recorrente não invoca com propriedade o vício da sentença a que se reporta o § 2.º do artigo 410.º CPP, antes utiliza a expressão «erro notório» para significar erro de julgamento (por isso mesmo se reporta a factos que indica)! E assim o entendemos porquanto nada mais o recorrente adianta quanto à caracterização do tal (alegado) vício! Ora, conforme dispõe a lei, os vícios previstos no normativo citado (na al. c) do § citado), entre os quais figura o «erro notório na apreciação da prova», respeitam a anomalias decisórias ao nível da elaboração da sentença, circunscritas embora à matéria de facto, mas apreensíveis pela simples leitura do respetivo texto, sem recurso a quaisquer elementos externos a ela (isto é, sem valoração de provas concretas com referência a factos concretizados), e que são impeditivos de bem se decidir tanto ao nível da matéria de facto como de direito. Efetivamente, o vício do erro notório na apreciação da prova, vem sendo caracterizado pela doutrina e (sobretudo) pela jurisprudência, como sendo o erro indiscutível, facilmente percetível pelo comum dos observadores. É aquele que é facilmente cognoscível pela generalidade das pessoas, de tal modo que não haja motivo para duvidar da sua ocorrência.6 O Supremo Tribunal de Justiça7 refere que haverá erro notório «... quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida». Também ocorrendo quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das leges artis. Sucede que a mais de o recorrente nada indicar acerca da morada do «erro notório» que invoca, ao percorrermos o texto da sentença recorrida, nela não vislumbramos tal vício! E assim porquanto do seu texto, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, não emerge (menos ainda que com toda a evidência) conclusão contrária àquela a que chegou o tribunal recorrido. Circunstâncias estas que impõem a conclusão de que da decisão recorrida não emerge o invocado erro notório na apreciação da prova. O que o recorrente deveras parece preconizar, é assinalar a sua discordância relativamente ao julgamento dos factos provados constantes (justamente) dos pontos 6., 7., 8., 9., 10., 12., 13., 18., 20., 21., 22., 24., 25., 26. e 27. Importando, pois, conhecer do invocado erro de julgamento, aportado com referência aos aludidos factos julgados provados. Atentemos, então. Há erro de julgamento na questão de facto quando o tribunal considera provado um determinado facto, sem que em relação a ele tivesse sido feita prova bastante, razão pela qual o mesmo deveria ter sido considerado não provado (ou quando se dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado). O recurso da matéria de facto perante a Relação, não se confunde com um novo julgamento, em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª instância, como se o julgamento anterior não existisse. Antes constitui (e constitui apenas) um remédio jurídico, destinado a colmatar erros in judicando (por violação de normas de direito substantivo) ou in procedendo (por violação de normas de direito processual). Daí que não baste ao recorrente indicar que discorda da decisão que o tribunal recorrido tomou, porque se fosse ele a julgar teria decidido de modo diferente! Como que pretendendo sobrepor a sua convicção à do julgador, como claramente sucede no presente caso. Breve: é ao tribunal que a Constituição e a lei atribuem o poder de apreciar livre e imparcialmente as provas, segundo parâmetros racionais controláveis, conforme decorre do disposto no artigo 127.º CPP, com o que está pressuposto no princípio da livre apreciação da prova, que ali se enuncia. «A liberdade de apreciação da prova é uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a verdade material – de tal sorte que a apreciação há de ser, em concreto, recondutível a critérios objetivos e, portanto, em geral, suscetível de motivação e controlo. (…) A livre ou íntima convicção do juiz não poderá ser uma convicção puramente subjetiva, emocional e, portanto, imotivável. (…) Se a verdade que se procura é uma verdade prático-jurídica e se, por outro lado, uma das funções primaciais de toda a sentença é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão, a convicção do juiz há de ser, é certo, uma convicção pessoal, mas, em todo o caso, também ela uma convicção objetivável e motivável, portanto, capaz de impor-se aos outros».8 No acórdão do Tribunal Constitucional n.º 198/2004, de 24 de março de 2004, a este propósito, com assinalável mestria, refere-se que: «O ato de julgar é do tribunal, e tal ato tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção. Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objetivos para uma formação lógico-intuitiva. Como ensina Figueiredo Dias (in Lições de Direito Processual Penal, 135 e ss.) na formação da convicção haverá que ter em conta o seguinte: - a recolha de elementos – dados objetivos – sobre a existência ou inexistência dos factos e situações que relevam para a sentença, dá-se com a produção da prova em audiência; - sobre esses dados recai a apreciação do Tribunal – que é livre, art.º 127.º do Código de Processo Penal – mas não arbitrária, porque motivada e controlável, condicionada pelo princípio da persecução da verdade material; - a liberdade da convicção, aproxima-se da intimidade, no sentido de que o conhecimento ou apreensão dos factos e dos acontecimentos não é absoluto, mas tem como primeira limitação a capacidade do conhecimento humano, e portanto, como a lei faz refletir, segundo as regras da experiência humana; - assim, a convicção assenta na verdade prático-jurídica, mas pessoal, porque assume papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis- como a intuição. Esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objetivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objetiváveis). Para a operação intelectual contribuem regras, impostas por lei, como sejam as da experiência a perceção da personalidade do depoente (impondo-se por tal a imediação e a oralidade) a da dúvida inultrapassável (conduzindo ao princípio in dubio pro reo). A lei impõe princípios instrumentais e princípios estruturais para formar a convicção. O princípio da oralidade, com os seus corolários da imediação e publicidade da audiência, é instrumental relativamente ao modo de assunção das provas, mas com estreita ligação com o dever de investigação da verdade jurídico-prática e com o da liberdade de convicção; com efeito, só a partir da oralidade e imediação pode o juiz perceber os dados não objetiváveis atinentes com a valoração da prova. A Constituição da República Portuguesa impõe a publicidade da audiência (art.º 206.º) e, consequentemente, o Código Processo Penal pune com a nulidade a falta de publicidade (art.º 321.º); publicidade essa que se estende a todo o processo – a partir da decisão instrutória ou quando a instrução já não possa ser requerida (art.º 86.º), querendo-se que o público assista (art.º 86.º/a); que a comunicação social intervenha com a narração ou reprodução dos atos (art.º 86.º/b); que se consulte os autos, se obtenha cópias, extratos e certidões (art.º 86.º/c). Há um controlo comunitário, quer da comunidade jurídica quer da social, para que se dissipem dúvidas quanto à independência e imparcialidade. A oralidade da audiência, que não significa que não se passem a escrito os autos, mas que os intervenientes estejam fisicamente perante o Tribunal (art.º 96.º do Código de Processo Penal), permite ao Tribunal aperceber-se dos traços do depoimento, denunciadores da isenção, imparcialidade e certeza que se revelam por gestos, comoções e emoções, da voz, p. ex. A imediação que vem definida como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de tal modo que, em conjugação com a oralidade, se obtenha uma perceção própria dos dados que haverão de ser a base da decisão. É pela imediação, também chamado de princípio subjetivo, que se vincula o juiz à perceção à utilização à valoração e credibilidade da prova. A censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objetivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção. Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão.» Por outro lado, a gravação dos depoimentos prestados oralmente em audiência, permitindo o controlo pelo tribunal superior da conformidade da decisão com as afirmações produzidas em audiência, não substitui as vantagens da oralidade e da imediação nem a análise conjugada dos outros meios de prova.9 O controlo do julgamento de facto pelo tribunal de recurso exerce-se, pois, através da avaliação da prova produzida na audiência, para tanto impondo a lei ao recorrente o ónus de fixar o objeto dessa reapreciação, especificando os concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados; mas também as concretas provas que impõem (e não apenas que permitem) decisão diversa relativamente a cada um deles (§ 3.º do artigo 412.º CPP). Neste caso o recorrente apresenta-se a impugnar a matéria de facto por via do disposto no artigo 412.º, § 3.º e 4.º do CPP (a chamada «impugnação ampla»), com a abrangência já citada: «pontos 6., 7., 8., 9., 10., 12., 13., 18., 20., 21., 22., 24., 25., 26. e 27.» da matéria de facto provada. Mas como muito bem assinala o Ministério Público na sua resposta ao recurso, «o Tribunal a quo justificou e explicou os motivos da sua decisão, declarou a razão pela qual deu mais credibilidade a uns depoimentos e não a outros, julgou relevantes ou irrelevantes certas conclusões da testemunha e achou satisfatória, ou não, a prova resultante de documentos, racionalizando, detalhadamente, a motivação da decisão da matéria de facto pelo que cumpriu, na íntegra, o dever de motivação da decisão proferida sobre a matéria de facto donde, a decisão sub judice não está eivada de qualquer erro nem se revela insuficiente; Afere-se da sentença proferida que os depoimentos das testemunhas são todos circunstanciados e confrontados devidamente com as outras provas existentes nos autos, designadamente, com os documentos e com o relatório pericial, dela resultando uma análise crítica do teor dos depoimentos que serviram para elucidar o Tribunal a quo sobre o modo como o acidente ocorreu e como o Recorrente agiu, existindo um verdadeiro exame crítico da prova produzida em sede de julgamento e um enquadramento concreto - e do caso concreto - sobre a valoração da prova; O Tribunal a quo aduziu que da prova produzida não decorrem dúvidas quanto à verificação dos factos que considerou como provados e não provados e clarificou, detalhadamente, quais os concretos meios de prova que foram tidos em consideração, explicando que atendeu ao depoimento do arguido e não ignorou ou desconsiderou a existência de versões diferentes, pelo contrário, o Tribunal a quo evidenciou tal facto na sentença concluindo que “o Tribunal atendeu à versão apresentada pela testemunha BB, considerando a sua razão de ciência, os cerca de 20 anos de experiência no núcleo de acidentes de viação e a sua imparcialidade e objectividade perante os factos. A testemunha relatou os factos com objectividade, explicando e justificando as suas conclusões de forma perceptível, circunstanciada e fundamentada. De igual forma as conclusões da testemunha são parcialmente corroboradas pelo arguido e pela testemunha CC.” O Recorrente visa apenas e tão só por em causa a apreciação que o Tribunal a quo fez da prova produzida e que se estribou na sua convicção com alicerce no princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal (…)» Cabia ao recorrente, em cumprimento do ónus imposto pelo artigo 412.º, § 3.º, al. b) CPP, indicar que as provas em que o tribunal se baseou para sustentar a sua convicção, não existem; ou não têm o sentido que o tribunal delas extraiu. Isto é, deveria indicar «as concretas provas que impõem decisão diversa» da que foi tomada. Mas não o fez. Tendo-se limitado a fazer uma leitura diversa das mesmas provas! Refere o recorrente nas suas conclusões 15, 17. e 28. que: «15. a sentença a quo não circunstancia os depoimentos das testemunhas, não os confronta com outras provas, designadamente, os documentos, não faz análise do teor dos depoimentos que serviram para elucidar o Tribunal a quo sobre o modo como o Arguido agiu e sobre o modo como o Ofendido agiu. (…) 17 Está em causa um complexo de factos atinente à actuação de um Arguido mas também de um Ofendido e, da análise da Sentença a quo, difícil se torna concluir com segurança quais as concretas provas que o Tribunal a quo considerou para concluir, nos termos em que o fez, quanto à actuação de cada um dos Intervenientes no acidente de viação. (…) 28. As declarações da Testemunha BB não são confortadas pelos demais elementos de prova, quer documental e pericial (cfr. participação de acidente (fls. 268 a 271); esboço sem escala (fls. 272); informação sumária de acidente de trânsito; Cota (fls. 64); expediente (fls. 67 a 81); documentação clínica (fls. 82 a 83); relatório final (fls. 88 a 91); relatório de ocorrência (fls. 100 a 100-v); informação do SNS (fls. 103); informações clínicas (fls. 105 a 156-v); informação da ANSR (fls. 158 a 163 e fls. 168); informação (fls. 176); folha de suporte (fls. 192 a 193); folha de suporte (fls. 215 a 216); declaração médica (fls. 227); folha de suporte (fls. 230); relatório fotográfico (fls. 231 a 242) e relatório (fls. 243 a 256), quer testemunhal. A mais de o recorrente não indicar onde mora o erro de julgamento relativamente a cada facto (p. ex. que o tribunal fundou a sua convicção relativamente a dado facto ou conjunto de factos num dado depoimento, mas que o depoente produziu declarações contrárias às que o tribunal indica; que o tribunal firmou a sua convicção relativamente a um dado facto com base num dado depoimento, mas esse facto só é suscetível de prova pericial ou só se permite através de documento e nem um nem outro constam dos autos; etc.). Limita-se a afirmar, genericamente, que o tribunal não conjugou as provas testemunhais com as outras provas produzidas. Mas o recorrente não tem razão. Bastará atentar na leitura da motivação (que também por isso transcrevemos supra), para ver contrariada essa afirmação. As provas em que o tribunal firmou a sua convicção acerca do modo como ocorreu o embate entre o veículo pesado e o motociclo, não só existem, como são conjugadamente demonstrativas dos factos que se julgaram provados, conforme com toda a lógica evidencia a motivação da sentença. Esclareçamos. A atividade probatória serve finalidades antinómicas: por um lado giza a descoberta da verdade material; e, por outro, a proteção de direitos fundamentais, um dos quais é, justamente, o da presunção de inocência, consagrado no artigo 32.º, § 2.º da Constituição da República (e reconhecido em diversos referentes internacionais recebido pela nossa lei fundamental: v. g. artigo 11.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem; artigo 6.º, § 2.º da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos e Liberdades Fundamentais; artigo 14.º, § 2.º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos; e artigo 48.º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia). A presunção de inocência protege as pessoas que são alvo de suspeita, garantindo que não serão julgadas culpadas enquanto não se demonstrarem os factos imputados, através de prova inequívoca, constituindo o in dubio pro reo uma das suas dimensões, traduzido na imposição de valoração do non liquet a que a prova tenha conduzido sempre no sentido favorável ao arguido. Neste contexto, a vários passos, o recorrente refere-se ao princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127.º CPP, referindo p.ex. que o tribunal recorrido o «violou frontalmente» (cls. 47) ou que o tribunal de julgamento «extrapolou» (cls. 55. e 58.) nessa liberdade, sem que verdadeiramente se compreenda o que se visa! Clarifiquemos. Produzir, apreciar e valorar livremente as provas, tal como o preconiza a lei (artigos 127.º e 340.º CPP) é, deveras, «um trabalho d’intelligencia d’uma ordem mais elevada», por «carece[r] de maior somma de regras» para chegar à verdade.10 Sendo o princípio da livre apreciação da prova uma aquisição liberal (civilizacional, mesmo), que libertou o tribunal das amarras da prova tarifada, em prol de uma melhor Justiça. Conferindo ao tribunal uma larga margem de apreciação das provas. Quer-se dizer: o princípio da livre apreciação da prova não serve para aprisionar o juiz na formação da sua convicção; pelo contrário, visa libertá-lo de amarras e critérios preestabelecidos pela lei (como sucedia no modelo da prova tarifada). Estamos longe do tempo em que, por exemplo, a «mulher forçada», para prova da malfeitoria que lhe houveram feito, tinha de se humilhar para tal provar. Se fora violada em povoado «devia fazer a sua querela em alta voz dizendo uedes que me fazem e nomeando o forçador pelo nome. Ao mesmo tempo, tinha de percorrer pelo menos três ruas da localidade. Se assim fizesse as justiças deviam considerar valida a querela. E se a violação ocorresse em lugar deserto, a querela tinha de ser feita de acordo com os cinco sinais previstos na lei: a mulher devia dar grandes brados imediatamente após a violação, nomeando o forçador pelo nome; devia apresentar-se perante as pessoas, toda carpida; devia queixar-se à primeira, segunda e terceira pessoa que encontrasse; devia sem tardamento nenhum, encaminhar-se para a vila mais próxima; e por fim, devia dirigir-se de imediato às justiças, não entrando antes em nenhuma casa. Se algum destes requisitos faltasse, a querela não era válida, não podendo, em consequência, o juiz recebê-la.»11 A matriz liberal do processo penal moderno caracteriza-se pela tutela dos direitos, das liberdades e das garantias dos cidadãos. E em termos probatórios assenta na livre valoração pelo tribunal de todas as provas válidas suscetíveis de demonstrar a malfeitoria (artigo 127.º CPP), dispensando – como é óbvio - a humilhação da vítima. E a racionalidade que subjaz ao princípio da livre apreciação da prova atende à racionalidade, às regras da lógica e à experiência comum. Sendo todavia limitada por algumas regras imperativas (desde logo pelas proibições de prova – artigo 126.º CPP e ainda pelas limitações impostas ao depoimento indireto, sobre vozes públicas ou convicções pessoais – artigos 129.º e 130.º CPP; pelo especial valor probatório de documentos autênticos e autenticados – artigo 169.º CPP; pela proibição de valoração de provas não produzidas na audiência – artigo 355.º CPP); e também integrada pelo especial valor da prova pericial – artigo 163.º CPP. Daí que a livre convicção do juiz não se possa confundir com uma qualquer convicção libertária, emotiva, caprichosa ou preconceituosa. Sendo, antes, um processo intelectual ordenado, que conjuga e articula os factos e o direito, a lógica e as regras da experiência comum. Alberto dos Reis12 ensinava, a propósito da livre apreciação da prova no processo civil, que «o que está na base do conceito é o princípio da libertação do juiz das regras severas e inexoráveis da prova legal, sem que, no entanto, se queira atribuir-lhe o poder arbitrário de julgar os factos sem prova ou contra as provas (….) O sistema da prova livre não exclui, e antes pressupõe, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica».13 Também o Tribunal Constitucional frisa que «o sistema da livre apreciação da prova não deve definir-se negativamente pela ausência de regras e critérios legais predeterminantes do seu valor, havendo antes de se destacar o seu significado positivo, que há se traduzir-se em valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objetivar a apreciação dos factos.»14 Daí que apreciar e conjugar a prova é, em verdade, um dever que axiologicamente se impõe ao julgador por força do princípio do Estado de Direito e da Dignidade da Pessoa Humana (artigos 1.º e 2.º da Constituição). É, em suma: uma «liberdade de acordo com um dever»15, de que o processo penal moderno não pode prescindir. Clarificado o modo como a prova é (e foi também neste caso) apreciada pelo tribunal, vamos agora aos argumentos do recorrente. Começa por afirmar não ser verdadeiro que «as declarações da testemunha BB (militar da GNR) não sejam confortadas pelos demais elementos de prova». Descartemos já que nada do que esta testemunha disse em juízo tem que ver com as lesões sofridas pela vítima (daí que as menções feitas pelo recorrente, p. ex. quanto aos elementos clínicos e à prova pericial, sejam contextualmente incompreensíveis) e, deveras - porque não explicadas - são irrelevantes!. O seu depoimento cingiu-se ao modo como o embate se terá dado, aferido pelas constatações objetivas das marcas deixadas e colhidas no local (na via e nos veículos). Também contrariamente ao alegado pelo recorrente, tais declarações e constatações da testemunha BB, encontram conforto (corroboração) no depoimento da testemunha CC, filho do ofendido), que no dia do sinistro em causa seguia a pé pela mesma estrada, no mesmo sentido do motociclo (pelo lado direito da via em que circularam ambos os veículos envolvidos). Esta testemunha declarou ter visto o condutor do motociclo (seu pai) na estrada à sua frente, a circular dentro da sua mão de trânsito (vinham ambos do mesmo sítio – conforme a testemunha esclareceu). Tendo avistado também a aproximação do veículo pesado, no mesmo sentido do ciclomotor, atrás dele. E estava a 150 ou 200 metros do local do embate quando este se deu. Tendo visto o veículo pesado a embater no motociclo conduzido pelo seu pai. Conforme referiu, o motociclo iria virar à esquerda no cruzamento que surgia adiante, porque o seu pai se dirigia para … (…). E foi justamente nesse cruzamento de vias que viu o veículo pesado, conduzido pelo recorrente, a colher o motociclo e seu condutor. Relatou, com conhecimento efetivo de causa, ter visto o camião a passar por ele «a alta velocidade». E viu-o também a desviar-se para fora da sua faixa de rodagem, entrando na de sentido contrário. Notoriamente a preparar-se, com antecedência, para ultrapassar o motociclo que adiante veio a colher (justamente quando este no cruzamento respetivo virava para o lado esquerdo). Acresce que conforme se provou (de modo incontestado) naquele local não era lícito ao veículo pesado sair da sua faixa de rodagem para fazer uma ultrapassagem ao ciclomotor. Relevando esta constatação para confortar a credibilidade do depoimento da testemunha CC, de que o veículo pesado saiu da sua faixa e colheu o motociclo no cruzamento quando este virava para entrar na via que ficada à sua esquerda. Também os depoimentos das testemunhas EE (bombeiro que acorreu ao local do acidente) e GG (militar da GNR que estava de patrulha e foi ao local do acidente tomar conta da ocorrência), descreveram o que ali então encontraram, em nada contrariando as constatações expressas no depoimento da testemunha BB. Este, por seu turno, constatou o que se mostra registado objetivamente nas fotografias (mormente 2, 6, 7, 19): que o motociclo apresentava marcas de material branco, do seu lado esquerdo (o que é compatível com a versão de que o primeiro embate foi da lateral direita do camião com o lado esquerdo do motociclo), conforme relatou. Acrescendo que das demais fotografias constantes dos autos nada contraria tal versão do sucedido. A qual também não contraria as regras da experiência comum. Na verdade, em contrário dessa versão (como visto bem confortada pelas provas objetivas), surgem apenas as declarações do arguido. As quais, contudo, por boas razões, não são merecedoras de credibilidade, porque não logram esteio em nada do que emerge da prova objetiva (designadamente nas marcas colhidas nos dois veículos) nem na prova testemunhal. Todo este raciocínio está, a seu modo, bem expresso na motivação da sentença, a propósito da análise crítica das provas. Pelo que nela não descortinamos, a propósito do juízo sobre as provas, qualquer ofensa ao princípio da livre apreciação da prova. O que a lei preconiza em sede de impugnação da matéria de facto é, aliás, coisa diversa da estratégia gizada pelo recorrente! Pois é a ele que compete escolher e evidenciar as provas que impõem decisão diversa da recorrida (artigo 412.º, § 3.º, al. b) CPP. Cabendo, pois, perguntar: onde estão as provas que impõem decisão diversa! Acrescentaremos que nem o recorrente demonstra, nem da decisão recorrida ressalta, que a formação da convicção positiva posta nos factos provados não tenha suporte probatório bastante; nem ainda que o tribunal perante uma dúvida razoável ante a prova produzida, a tivesse resolvido contra o arguido (mas qual?)! Nem se constata que o tribunal a quo haja por qualquer modo vulnerado as garantias de defesa do arguido/recorrente, ou por qualquer outra forma tenha inviabilizado um procedimento justo (artigos 20.º, § 4.º da Constituição da República e 6.º da CEDH). E, como assim, concluímos que também este segmento dos fundamentos do recurso se mostra inconsistente. 4. Da qualificação jurídica dos factos Considera o arguido/recorrente que se não se tivessem provado os factos que impugnou não existiria factualidade suscetível de integrar o ilícito pelo qual foi condenado. E considera bem. Mas não havendo razão para alterar a factualidade provada, esta mantém-se integralmente, sendo a mesma indubitavelmente integradora do crime de ofensa à integridade física grave por negligência, previsto no artigo 148.º, § 1.º e 3.º, por referência ao artigo 144.º, al. a) a d) CP, tal como considerado na sentença recorrida. Com efeito, o crime de ofensa à integridade física grave por negligência, previsto no artigo 148.º, § 1.º e 3.º, por referência ao artigo 144.º, al. a) a d) CP, é cometido por quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa: privando-o de importante órgão ou membro, ou desfigurá-lo grave e permanentemente; tirar-lhe ou afetar-lhe, de maneira grave, a capacidade de trabalho, as capacidades intelectuais, de procriação ou de fruição sexual, ou a possibilidade de utilizar o corpo, os sentidos ou a linguagem; provocar-lhe doença particularmente dolorosa ou permanente, ou anomalia psíquica grave ou incurável; ou provocar-lhe perigo para a vida. E é punível com pena de prisão de dois a dez anos. O bem jurídico protegido por tal incriminação é a integridade física da pessoa humana, englobando o tipo legal um determinado resultado quer através de ofensas no corpo, quer lesando a saúde. Sendo o ilícito cometido por quem omite um dever objetivo de cuidado, adequado segundo as circunstâncias concretas de cada caso, a evitar o evento lesivo. Devendo o resultado produzido encontrar-se numa relação tal com a ação violadora do dever de cuidado que permita afirmar-se que aquele tem como causa esta última. Ora, nas circunstâncias do caso, tal como se apurou, a manobra de ultrapassagem feita pelo arguido/recorrente (condutor do veículo pesado) ao motociclo conduzido pelo ofendido, em local e circunstâncias que não permitiam legalmente realizá-la, para mais sendo de noite e tratando-se o obstáculo a transpor, de um veículo de duas rodas, tal ação constituiu violação do dever objetivo de cuidado que o arguido conhecia e que estava em condições de observar, a qual foi determinante do embate, em sequência direta da qual se produziram no ofendido lesões corporais e sequelas muito graves para a sua saúde, conforme se demonstrou. Resta concluir, como concluiu o tribunal recorrido, que o arguido se constituiu autor de um crime de ofensa à integridade física grave por negligência, previsto no artigo 148.º, § 1.º e 3.º, por referência ao artigo 144.º, al. a) a d) CP, pelo qual veio a ser bem condenado. Restando, assim, considerar que o recurso não é merecedor de provimento. III - Dispositivo Destarte e por todo o exposto, acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: a) Negar provimento ao recurso e, em consequência, manter integralmente a decisão recorrida. b) Custas pelo arguido/recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (artigo 513.º, § 1.º e 3.º do CPP e artigo 8.º Reg. Custas Processuais e sua Tabela III). c) Notifique-se. Évora, 9 de abril de 2025 Francisco Moreira das Neves (relator) Mafalda Sequinho dos Santos Laura Goulart Maurício
---------------------------------------------------------------------------------------- 1 No figurino normativo dos recursos as conclusões têm uma função precisa, sendo coisa muito distinta da que o recorrente apresenta! A doutrina e a jurisprudência vêm bastamente sublinhando o que são e como devem apresentar-se. Seguindo o critério de acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17/2/2005 (relator Pereira Madeira), processo n.º 05P1441, www.dgsi.pt , entendemos que o recurso não deve ser serventuário do que sob tal «título» («conclusões») os recorrentes ali entendam colocar. Devendo proceder-se ao devido «aparo», para que as conclusões (e só estas) cumpram a função gizada na lei. O que são, afinal, e para que servem (no contexto do recurso penal) as conclusões? Elas são: «um resumo das questões discutidas na motivação» (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2011, pp. 1136, nota 14); não podem constituir uma «reprodução mais ou menos fiel do corpo motivador, mas sim constituírem uma síntese essencial dos fundamentos do recurso» (Sérgio Gonçalves Poças, Processo penal quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto, revista Julgar n.º 10, 2010, pp. 23; «devem ser concisas, precisas e claras (…)» (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. III, Do Procedimento - Marcha do Processo, Universidade Católica Editora, 2014, pp. 335). Neste mesmo sentido vem a jurisprudência decidindo: cf. acórdão deste Tribunal da Relação de Évora, de 1set2021, proc. 430/20.1GBSSB.E1, relator Gomes de Sousa; acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11jul2019, proc. 314/17.0GAPTL.G1, relator Mário Silva; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 5abr2019, proc. 349/17.3JDLSB.L1-9, relatora Filipa Costa Lourenço; e do mesmo Tribunal da Relação de Lisboa, acórdão de 9mar2023, proc. 135/18.3SMLSB.L2-9, relator João Abrunhosa. 2 Cf. Acórdão do STJ n.º 7/95, de 19/10/1995 (Fixação de Jurisprudência), publicado no DR, I-A, de 28/12/1995. 3 O recorrente indica o artigo 379.º, § 1.º, al. c) como sendo a base legal para a preterição do exame crítico das provas. 4 Joaquim Correia Gomes, A motivação judicial em processo penal e as suas garantias constitucionais, revista JULGAR, n.º 6, 2008. 5 Cf. a este propósito, entre outros, o Acórdão do STJ proferido no proc. 733/17.2JAPRT.G1.S1 e disponível em www.dgsi.pt. 6 Cf. acórdão do STJ, 6abr1994, CJ XIX, t. II, 185. 7 Acórdão do STJ, 4out2001 (CJ/AcSTJ, IX, T. III, 182). 8 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, vol. I, Coimbra Editora (reimpressão 2004), pp. 202 ss. 9 Neste exato sentido cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, vol. I, Coimbra Editora (reimpressão 2004), pp. pp. 233-234. 10 Francisco Augusto das Neves e Castro, Theoria das provas e sua aplicação aos actos civis, Livraria Internacional, de Ernesto Chardron, Porto, 1880, pp. 47. 11 Ordenações Afonsinas, Título VI, do livro V, título 6, § 1.º, cit. por José Eduardo Marques dos Santos, O processo penal português no período medieval, Edições ECOPY, 2012, pp. 222/223. 12 CPC Anot., vol. III, ed. 1981, p. 245. 13 Neste mesmo sentido pode ver-se Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, vol. II, ed. 1981, pp. 297 ss.); e também Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, ed. 1993, pp. 111 ss.). O mesmo tem vindo igualmente a ser sublinhado pela jurisprudência (cf. acórdão STJ, de 18/1/2001, proc. 3105/00 – www.dgsi.pt). 14 Acórdão do Tribunal Constitucional, de 19nov1996 (publicado no DR n.º 31, II Série, de 6fev1997, pp. 1569 ss.). 15 Neste exato sentido cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 2004, Coimbra Editora, pp. 202/203. |