Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1032/19.0T8STR-B.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
INCOMPATIBILIDADE DE PEDIDOS
Data do Acordão: 05/21/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1. A actividade processual desenvolvida pelas partes deve ser aproveitada até ao limite, de forma que todos os esforços deverão ser levados a cabo, quer pelo Juiz, ainda que ex officio, quer pelas partes, por sua iniciativa ou a convite daquele, sempre que seja possível corrigir as irregularidades ou suprir as omissões verificadas, de modo a viabilizar uma decisão de mérito.
2. No actual enquadramento sistemático do código revisto, a insupribilidade é hoje residual, respeitando tão só àquelas excepções que, pela sua natureza ou por via do seu regime, não consentem suprimento, oficioso ou mediante convite às partes.
3. A existência de um quadro de contradição do objecto do processo por dedução de pedido substancialmente incompatível é sanável, por aplicação do regime vinculativo do dever de gestão processual estabelecido no nº 2 do artigo 6º e nos nº 2 e 3 do artigo 590º do Código de Processo Civil.
4. A redução teleológica do nº 4 do artigo 186º do Código de Processo Civil, quando conciliada com a aplicação analógica do artigo 38º do mesmo diploma, admite que, nas situações de cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis, a nulidade não subsista em caso de desistência do pedido ou da instância ou acto de natureza equivalente relativamente a um desses pedidos, pois a escolha de uma única pretensão jurídica compatível faz desaparecer os pressupostos que, inicialmente, conduziriam a uma hipótese de ineptidão da petição inicial, desaparecendo assim, por actividade ulterior correctiva, os fundamentos que determinariam a absolvição da instância.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo nº 1032/19.0T8STR-B.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo Local de Competência Cível de Santarém – J2
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Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório:
Na presente acção de condenação proposta por (…) contra (…) e (…), os Réus vieram interpor recurso do despacho saneador na parte em que julgou improcedente a excepção de ineptidão da petição inicial, por incompatibilidade entre os pedidos formulados, absolvendo-os parcialmente da instância relativamente a parte dos pedidos incompatíveis apresentados pelos Autores, na sequência da aplicação analógica do disposto no artigo 38º do Código de Processo Civil. *
O Autor pediu que os Réus fossem condenados a:
1) reconhecer que o contrato que firmaram ocorreu de forma meramente verbal, que não deram cumprimento ao acordado e, portanto, mercê deste não cumprimento, deixou de ter qualquer interesse na sua concretização e, em consequência serem condenados a restituir-lhe a quantia paga de € 5.000,00 e, bem assim, as despesas havidas com a requisição de crédito bancário para a aquisição no montante de € 239,20, e juros vencidos até esta data no montante de € 148,49.
2) reconhecer que não tendo sido observada a forma legal é o mesmo nulo e em consequência também são obrigados a restituir-lhe a dita quantia de € 5.000,00 acrescida das mencionadas despesas com a requisição de empréstimo bancário, no montante de € 239,20 e o indicado montante de € 148,49 a título de juros (rendimento).
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Para tanto, a parte activa invocou que os Réus eram donos de um imóvel sito em … (…), que foi colocado à venda e que o Autor se mostrou interessado na compra do referido bem, tendo apresentado uma proposta de aquisição no valor de 125.000,00 (cento e vinte e cinco mil euros), em regime de aquisição em compropriedade com um terceiro.
Mais assinala que o Réu marido aceitou a proposta apresentada pelo Autor, que foi necessário o recurso a um empréstimo bancário e que, entretanto, ocorreu uma violação contratual por parte dos Réus, a qual é causadora de prejuízos ao demandante.
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Em sede de contestação, entre outra matéria, os Réus alegaram que ocorria um cenário de ineptidão da petição inicial por cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis.
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O Autor apresentou terceiro articulado em que se pronuncia sobre a matéria da excepção.
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Em sede de audiência prévia, ao abrigo do disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 6º do Código de Processo Civil, o Autor foi notificado para suprir a imprecisão do seu articulado e esclarecer se pretendia desistir do pedido formulado na primeira parte do seu petitório e manter unicamente a pretensão de declaração de nulidade do contrato promessa verbalmente celebrado com os Réus, a restituição da quantia de € 5.000,00 e a condenação dos Réus no pagamento das despesas alegadas, no montante de € 387,69.
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Em cumprimento do referido despacho, o Autor veio comunicar que: «embora de forma verbal, o Réu não haver cumprido os termos do contrato que estabeleceu, se mantenha apenas o pedido de declaração de nulidade do contrato promessa de compra e venda verbal que o requerido interveniente e o Réu marido e a consequente restituição da quantia paga pelo autor no valor de € 5.000,00 e o montante das despesas alegadas».
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A parte contrária disse que se opunha ao prosseguimento dos autos, por a ineptidão gerar a nulidade de todo o processado.
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Em sede de despacho saneador, o Juízo de Competência Cível de Santarém julgou improcedente a excepção dilatória de ineptidão da petição inicial e absolveu os Réus da instância relativamente aos pedidos de condenação a reconhecerem que não deram cumprimento ao contrato celebrado e, em consequência, a restituírem ao autor a quantia paga de € 5.000,00, acrescida de despesas havidas com a requisição de crédito bancário para a aquisição no montante de € 239,20 e juros vencidos no montante de € 148,49.
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Os recorrentes não se conformaram com a referida decisão e as alegações de recurso continham as seguintes conclusões:
A) Na sua contestação, os RR. invocaram a ineptidão da p.i., tendo alegado que o A. tanto se sustentava no incumprimento do contrato, como na nulidade do mesmo.
B) Que tais pedidos, eram totalmente incompatíveis, uma vez que para se alegar o incumprimento, é preciso que o contrato seja válido.
C) Que nos termos do artigo 186º, nº 1, do CPC será “nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial” e, uma vez que se tratam de pedidos substancialmente incompatíveis, deveria ser declarada inepta, nos termos da alínea c), do nº 2 do artigo 186º do CPC.
D) A Mmª. Juiz no despacho de fls. , que proferiu aquando da audiência prévia e que consta da respectiva acta, reconheceu implicitamente a verificação na ineptidão da petição inicial.
E) Ao invés de ter de imediato, declarado inepta a p.i. e, consequentemente declarar a nulidade de todo o processo e absolver os RR. da instância, a Mmª. Juiz «a quo», resolveu convidar o A. “a desistir do pedido formulado na primeira parte do seu petitório”, o que é um comportamento totalmente anómalo.
F) Veja-se, como também refere no seu despacho a Mmª. Juiz «a quo», “em resposta à exceção de nulidade de ineptidão da petição inicial, o autor limitou-se a sustentar que não se verifica qualquer contradição entre pedidos deduzidos e, bem assim, que os réus entenderam e interpretaram claramente quer o pedido, quer a causa de pedir”.
G) A Mmª. Juiz «a quo» quis substituir-se à parte e, apesar da resposta que o A. deu à alegada ineptidão da p.i., convidou-o, não a aperfeiçoar o que quer que fosse da p.i., mas sim a desistir de um pedido em concreto, o que é manifestamente ilegal.
H) Notificados para se pronunciarem quanto ao dito “convite ao aperfeiçoamento”, os RR. opuseram-se ao prosseguimento dos autos, insistindo que a p.i., deveria ser declarada inepta, e consequentemente nulo todo o processo.
I) Por força do despacho recorrido, a Mmª. Juiz «a quo» persiste na sua intenção de “regularizar” o que é irregular e, uma vez que o A. desistiu do pedido, tal como lhe foi sugerido, julgou improcedente a excepção de ineptidão da p.i.
J) A norma constante do artigo 186º, nº 1 é muito clara, quando refere que é nulo todo o processo quando a petição inicial for inepta e, ela de facto é-o, uma vez que dela constam dois pedidos substancialmente incompatíveis.
K) Pelo que deveria a Mmª. Juiz «a quo» ter declarado a nulidade de todo o processo e em consequência, absolver os RR. da instância.
L) Estamos perante cumulação de pedidos/causas de pedir que são incompatíveis, o que determina a ineptidão da petição inicial, persistindo esta nulidade ainda que se verifique convite ao suprimento de irregularidades ou aperfeiçoamento do articulado, dado que esta irregularidade não é susceptível de sanação.
M) “Apenas é lícito aos autores corrigir da incompletude dos pedidos/causas de pedir formuladas pelo que o juiz apenas poderia/deveria usar do poder de convidar as partes a completarem factos insuficientes” – Acórdão Tribunal Relação de Coimbra de 14/11/2017.
N) Ainda, o Acórdão da Relação de Coimbra de 18/10/2016, “que não deve ser efectuado convite para que a parte corrija a petição inicial quando esta seja inepta (186º CPC), dado que só um articulado que não padeça dos vícios prescritos no aludido preceito legal poderá ser objeto de convite à correção”.
O) Daí que se depreende que quando esteja em causa a ineptidão da petição inicial tal exceção dilatória não poderá ser corrigida, gerando-se, concomitantemente, a nulidade de todo o processado.
P) O convite ao aperfeiçoamento dos articulados tem como único fim a supressão de irregularidades dos articulados, sendo que as deficiências suscetíveis de correcção terão de ser “estritamente formais ou de natureza secundária” – Acórdão da Relação de Lisboa de 24/1/2019.
Q) Por fim, “o aperfeiçoamento do articulado apenas pode ter por objecto pequenas omissões ou meras imprecisões”, de acordo com a decisão proferida pelo Acórdão da Relação de Coimbra de 11/01/2011.
R) Por todo o exposto, deve ser revogado o douto despacho recorrido e substituído por outro que declare a p.i. inepta e em consequência que declare a nulo todo o processo e absolva os RR da instância.
S) A douta sentença recorrida violou entre outras, as normas constantes do artigo 186º, nº 1 e 2, alínea c), 577º, alínea b) e 576º, nº 2, do CPC.
Nestes termos e nos melhores de direito a suprir por Vªs Exªs, Venerandos Desembargadores, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e em consequência, o douto despacho recorrido ser substituído por outro, que declare inepta a petição inicial e em consequência, declare igualmente a nulidade de todo o processo e absolva os RR. da instância, tudo com as legais consequências.
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Não houve lugar a resposta.
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Admitido o recurso, foram observados os vistos legais.
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II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigo 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do mesmo diploma).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação da questão da existência de ineptidão da petição inicial e da possibilidade de a parte ser convidada a desistir de um pedido incompatível com os demais, circunstância esta que conduziu à absolvição parcial da instância.
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III – Factos com interesse para a justa solução do recurso:
Os factos interesse para a justa resolução do recurso são aqueles que constam do relatório inicial.
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IV – Fundamentação:
O presente recurso assenta em três realidades sequenciais, complementares e incindíveis ao nível do resultado final: o convite de escolha de eliminação de pedido incompatível, a redução do objecto da causa por via dessa faculdade concedida ao Autor e, finalmente, o julgamento da excepção de ineptidão da petição inicial.
A solução integrada encontrada pela Primeira Instância acaba por absolver da instância os Réus relativamente a um conjunto de pedidos substancialmente incompatíveis e é isso que obstaculiza à procedência da excepção deduzida. Por isso, a tarefa inicial deste Tribunal passa assim por apreciar a noção de pedidos substancialmente incompatíveis.
Do disposto no nº 3 do artigo 581º do Código de Processo Civil retira-se, em termos conceptuais, que o pedido, na sua vertente substantiva, consiste no efeito jurídico que o autor pretende obter com a acção, o que se reconduz à afirmação postulativa do efeito prático-jurídico pretendido, efeito este que não se restringe necessariamente ao seu enunciado literal, podendo ser interpretado em conjugação com os fundamentos da acção com eventual suprimento pelo Tribunal de manifestos erros de qualificação, desde que se respeite o conteúdo substantivo da espécie de tutela jurídica pretendida e as garantias associadas aos princípios do dispositivo e do contraditório[1].
É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial (artigo 186º, nº 1, do Código de Código Civil). Nos termos do número do artigo acima transcrito, «diz-se inepta a petição:
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis».
A ineptidão da petição inicial, embora seja uma excepção dilatória, gera a anulação de todo o processado. E, na opinião dos recorrentes a sentença recorrida violou entre outras, as normas constantes do artigo 186º, nºs 1 e 2, alínea c), 577º, alínea b)[2], e 576º, nº 2[3] do Código de Processo Civil.
O Autor pode deduzir vários pedidos cumulativos contra o Réu, desde eles sejam entre si substancialmente compatíveis, se não se verificarem as circunstâncias que impedem a coligação[4], de harmonia com a disciplina impressa no nº 1 do artigo 555º[5] do Código de Processo Civil
Para Teixeira de Sousa a existência de contradição no objecto do processo constitui um pressuposto processual[6] e a ineptidão da petição inicial configura a falta deste pressuposto, constituindo uma excepção dilatória de conhecimento oficioso[7] [8], que, quando conhecida depois da citação do Réu, conduz à absolvição da instância[9].
A dedução cumulativa de pedidos entre si incompatíveis implica contradição no objecto do processo que impede a sua necessária identificação[10].
E é entendimento consensual que é manifesto que a decisão de mérito se mostra inviabilizada quando se pretende a extinção contratual (declaração de nulidade do contrato) e, ao mesmo passo, a condenação da contraparte no seu integral cumprimento.
Aliás, isso é expressamente reconhecido pelo julgador «a quo» quando avança que «não é possível pedir, a título principal, o cumprimento de um contrato e a declaração de nulidade do mesmo».
O nó górdio judicando assenta assim na interpretação da possibilidade de sanação do objecto do processo nos casos de cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis.
Aquilo que importa apurar é se, nos casos de ineptidão da petição inicial por contradição entre pedidos principais formulados, o Tribunal pode convidar o Autor a esclarecer qual é o pedido inconciliável que pretende ver apreciado?
Ou, noutra formulação, cumpre apreciar se o dever de gestão processo inscrito nos artigos 6º[11] e 590º[12] do Código de Processo Civil é aqui inoperante e se, tal como defende o recorrente, a possibilidade de correcção apenas é viável quando se esteja perante «omissões ou meras imprecisões».
Como regime regra, no actual cenário normativo, ao juiz cabe providenciar, por iniciativa oficiosa se as partes não o requererem, o suprimento da falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação ou de nulidades dos actos praticados, pois a existência do vício deixou de conduzir automaticamente à absolvição da instância. Esta sanção processual só tem lugar quando a sanação for impossível, bem como nos casos em que, dependendo de acto de vontade da parte, esta se mantiver inactiva.
No caso de dedução de pedidos substancialmente incompatíveis, Lebre de Freitas[13] [14] defende a aplicação analógica da solução contida no artigo 38º[15] do Código de Processo Civil, facultando à parte a escolha do pedido com o qual o processo deve prosseguir.
Também Abrantes Geraldes parece ser apoiante desta ideia do máximo aproveitamento da posição expressa nos articulados[16]. Efectivamente, a generalidade das excepções dilatórias são supríveis, quer por iniciativa do autor, quer por determinação oficiosa do Tribunal. Certamente, por isso, utilizando as palavras do actual Juiz Conselheiro, a propósito da falta de requisitos dos pedidos, deve prevalecer o entendimento de «impor o aproveitamento da instância, em conjugação com todo um conjunto de princípios que sempre devem orientar o intérprete na busca das melhores soluções – (economia processual, prevalência da substância sobre a forma, eficiência do sistema, cooperação mútua) – exigem que a questão em análise seja resolvida de forma diversa daquela que deveria emergir do anterior CPC, ao nível do despacho saneador»[17].
Após a mudança de paradigma promovida pela reforma do Código de Processo Civil, na jurisprudência nacional assiste-se a uma inflexão[18] e actualmente é admitida a solução que preconiza que, ao abrigo do disposto no nº 2 do artigo 6º do referido diploma, o Tribunal pode convidar o autor a aperfeiçoar a petição inicial em que se tenha deduzido pedidos incompatíveis, mediante a escolha daquele que pretende que seja apreciado na acção ou a ordenação de ambos em relação de subsidiariedade[19].
Mesmo na antiga formulação, nos casos de dedução de pedidos incompatíveis, a legislação adjectiva não interditava a possibilidade de, até ao momento da actividade de condensação dos autos, a parte activa apresentar desistência de uma das pretensões substantivamente inconciliáveis e permitia assim a continuação dos autos para a apreciação do mérito. E, no plano axiológico, não existe divergência relevante entre esta situação e aquela que nos é submetida à apreciação em sede do presente recurso.
No novo regime processual civil foi reforçada a ideia que sustentava que a actividade processual desenvolvida pelas partes deve ser aproveitada até ao limite, de forma que todos os esforços deverão ser levados a cabo, quer pelo Juiz, ainda que ex officio, quer pelas partes, por sua iniciativa ou a convite daquele, sempre que seja possível corrigir as irregularidades ou suprir as omissões verificadas, de modo a viabilizar uma decisão de meritis[20].
Aliás, a redução teleológica do nº 4 do artigo 186º do Código de Processo Civil, quando conciliada com a aplicação analógica do artigo 38º do mesmo diploma, parece admitir que, nas situações de cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis, a nulidade só subsista quando um dos pedidos não seja aproveitável por causa da ocorrência de uma situação de incompetência do Tribunal ou por erro na forma do processo.
O processo é uma organização normativa de actos (existência), com o sentido e alcance global da constituição do caminho tendente à solução de diferendos e à pacificação social e individual (essência)[21]. E, por isso, os fundamentos para a declaração da falta manifesta de certos pressupostos processuais ou nulidade de todo o processo implicam que se esteja perante um quadro de absoluta insupribilidade.
No actual enquadramento sistemático do código revisto, a insupribilidade «é hoje residual, respeitando tão só àquelas excepções que, pela sua natureza ou por via do seu regime, não consentem suprimento, oficioso ou mediante convite às partes»[22], ao abrigo do dever de gestão estatuído no nº 2 do artigo 6º do Código de Processo Civil.
E, assim fora desse quadro ali excepcionado (incompetência do Tribunal e erro na forma do processo), por via dos poderes vinculados de determinação oficiosa do suprimento de excepções dilatórias, fica aberto o caminho para a adopção de uma solução de escolha entre as pretensões incompatíveis. Esta, nos seus efeitos práticos, traduz-se numa desistência da instância relativamente a um dos pedidos anteriormente apresentados por autor ou reconvinte. E, com isso, consegue-se a regularização da objectiva da lide, sem necessidade de proposição de uma nova acção com o seu objecto reduzido, valorizando-se assim os princípios da economia processual, da adequação formal, do máximo aproveitamento das pretensões apresentadas em juízo, aliados ao poder de direcção do processo, em detrimento de um veredicto formado em questões estritamente formais.
Em suma, a existência de um quadro de contradição do objecto do processo por dedução de pedido substancialmente incompatível é sanável, por aplicação do regime vinculativo do dever de gestão processual estabelecido no nº 2 do artigo 6º e nos nº 2 e 3 do artigo 590º do Código de Processo Civil.
Assim, em caso de escolha – ainda que sugerida pelo Tribunal – ou desistência do pedido ou da instância relativamente a um dos pedidos substancialmente incompatíveis, a selecção de uma única pretensão jurídica compatível faz desaparecer os pressupostos que, inicialmente, conduziriam a uma hipótese de ineptidão da petição inicial, desaparecendo assim, por actividade ulterior correctiva, os fundamentos que determinariam a absolvição da instância.
Deste modo, não merece crítica a decisão tomada pela Primeira Instância, mantendo-se assim na sua completude o decidido em Primeira Instância.
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V – Sumário:
(…)
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V – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar improcedente o recurso apresentado, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo dos recorrentes, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 527º, nº 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Notifique.
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(acto processado e revisto pelo signatário nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 138º, nº 5, do Código de Processo Civil).
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Évora, 21/05/2020

José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho

Mário Branco Coelho

Isabel de Matos Peixoto Imaginário

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[1] Sobre a noção do pedido como efeito prático-jurídico, pode consultar-se Anselmo de Castro, Direito Processual Declaratório, Vol. 1º, Almedina, Coimbra, 1981, pág. 203.
[2] Artigo 577.º (Exceções dilatórias):
São dilatórias, entre outras, as exceções seguintes:
a) A incompetência, quer absoluta, quer relativa, do tribunal;
b) A nulidade de todo o processo;
c) A falta de personalidade ou de capacidade judiciária de alguma das partes;
d) A falta de autorização ou deliberação que o autor devesse obter;
e) A ilegitimidade de alguma das partes;
f) A coligação de autores ou réus, quando entre os pedidos não exista a conexão exigida no artigo 36.º;
g) A pluralidade subjetiva subsidiária, fora dos casos previstos no artigo 39.º;
h) A falta de constituição de advogado por parte do autor, nos processos a que se refere o n.º 1 do artigo 40.º, e a falta, insuficiência ou irregularidade de mandato judicial por parte do mandatário que propôs a ação;
i) A litispendência ou o caso julgado.
[3] Artigo 576.º (Exceções dilatórias e perentórias – Noção).
1 - As exceções são dilatórias ou perentórias.
2 - As exceções dilatórias obstam a que o tribunal conheça do mérito da causa e dão lugar à absolvição da instância ou à remessa do processo para outro tribunal.
3 - As exceções perentórias importam a absolvição total ou parcial do pedido e consistem na invocação de factos que impedem, modificam ou extinguem o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor.
[4] Artigo 37.º (Obstáculos à coligação):
1 - A coligação não é admissível quando aos pedidos correspondam formas de processo diferentes ou a cumulação possa ofender regras de competência internacional ou em razão da matéria ou da hierarquia.
2 - Quando aos pedidos correspondam formas de processo que, embora diversas, não sigam uma tramitação manifestamente incompatível, pode o juiz autorizar a cumulação, sempre que nela haja interesse relevante ou quando a apreciação conjunta das pretensões seja indispensável para a justa composição do litígio.
3 - Incumbe ao juiz, na situação prevista no número anterior, adaptar o processado à cumulação autorizada.
4 - Se o tribunal, oficiosamente ou a requerimento de algum dos réus, entender que, não obstante a verificação dos requisitos da coligação, há inconveniente grave em que as causas sejam instruídas, discutidas e julgadas conjuntamente, determina, em despacho fundamentado, a notificação do autor para indicar, no prazo fixado, qual o pedido ou os pedidos que continuam a ser apreciados no processo, sob cominação de, não o fazendo, ser o réu absolvido da instância quanto a todos eles, aplicando-se o disposto nos nºs 2 e 3 do artigo seguinte.
5 - No caso previsto no número anterior, se as novas ações forem propostas dentro de 30 dias a contar do trânsito em julgado do despacho que ordenou a separação, os efeitos civis da propositura da ação e da citação do réu retrotraem-se à data em que estes factos se produziram no primeiro processo.
[5] Artigo 555.º (Cumulação de pedidos).
1 - Pode o autor deduzir cumulativamente contra o mesmo réu, num só processo, vários pedidos que sejam compatíveis, se não se verificarem as circunstâncias que impedem a coligação.
2 - Nos processos de divórcio ou de separação sem consentimento do outro cônjuge é admissível a dedução de pedido tendente à fixação do direito a alimentos.
[6] Teixeira de Sousa, Introdução ao Processo Civil, Lex, Lisboa, 1993, pág. 74.
[7] Artigo 196.º (Nulidades de que o tribunal conhece oficiosamente):
Das nulidades mencionadas nos artigos 186.º e 187.º, na segunda parte do n.º 2 do artigo 191.º e nos artigos 193.º e 194.º pode o tribunal conhecer oficiosamente, a não ser que devam considerar-se sanadas; das restantes só pode conhecer sobre reclamação dos interessados, salvos os casos especiais em que a lei permite o conhecimento oficioso.
[8] Artigo 578.º (Conhecimento das exceções dilatórias):
O tribunal deve conhecer oficiosamente das exceções dilatórias, salvo da incompetência absoluta decorrente da violação de pacto privativo de jurisdição ou da preterição de tribunal arbitral voluntário e da incompetência relativa nos casos não abrangidos pelo disposto no artigo 104.º.
[9] Artigo 278.º (Casos de absolvição da instância):
1 - O juiz deve abster-se de conhecer do pedido e absolver o réu da instância:
a) Quando julgue procedente a exceção de incompetência absoluta do tribunal;
b) Quando anule todo o processo;
c) Quando entenda que alguma das partes é destituída de personalidade judiciária ou que, sendo incapaz, não está devidamente representada ou autorizada;
d) Quando considere ilegítima alguma das partes;
e) Quando julgue procedente alguma outra exceção dilatória.
2 - Cessa o disposto no número anterior quando o processo haja de ser remetido para outro tribunal e quando a falta ou a irregularidade tenha sido sanada.
3 - As exceções dilatórias só subsistem enquanto a respetiva falta ou irregularidade não for sanada, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º; ainda que subsistam, não tem lugar a absolvição da instância quando, destinando-se a tutelar o interesse de uma das partes, nenhum outro motivo obste, no momento da apreciação da exceção, a que se conheça do mérito da causa e a decisão deva ser integralmente favorável a essa parte.
[10] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, pág. 358.
[11] Artigo 6.º (Dever de gestão processual):
1 - Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.
2 - O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo.
[12] Artigo 590.º (Gestão inicial do processo):
1 - Nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente, aplicando-se o disposto no artigo 560.º.
2 - Findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho pré-saneador destinado a:
a) Providenciar pelo suprimento de exceções dilatórias, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º;
b) Providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados, nos termos dos números seguintes;
c) Determinar a junção de documentos com vista a permitir a apreciação de exceções dilatórias ou o conhecimento, no todo ou em parte, do mérito da causa no despacho saneador.
3 - O juiz convida as partes a suprir as irregularidades dos articulados, fixando prazo para o suprimento ou correção do vício, designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa.
4 - Incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.
5 - Os factos objeto de esclarecimento, aditamento ou correção ficam sujeitos às regras gerais sobre contraditoriedade e prova.
6 - As alterações à matéria de facto alegada, previstas nos nºs 4 e 5, devem conformar-se com os limites estabelecidos no artigo 265.º, se forem introduzidas pelo autor, e nos artigos 573.º e 574.º, quando o sejam pelo réu.
7 - Não cabe recurso do despacho de convite ao suprimento de irregularidades, insuficiências ou imprecisões dos articulados.
[13] José Lebre de Freitas, A ação declarativa comum, Coimbra Editora, Coimbra, 2013, nº 11 (7).
[14] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, pág. 361.
[15] Artigo 38.º (Suprimento da coligação ilegal):
1 - Ocorrendo coligação sem que entre os pedidos exista a conexão exigida pelo artigo 36.º, o juiz notifica o autor para, no prazo fixado, indicar qual o pedido que pretende ver apreciado no processo, sob cominação de, não o fazendo, o réu ser absolvido da instância quanto a todos eles.
2 - Havendo pluralidade de autores, são todos notificados, nos termos do número anterior, para, por acordo, esclarecerem quais os pedidos que pretendem ver apreciados no processo.
3 - Feita a indicação a que aludem os números anteriores, o juiz absolve o réu da instância relativamente aos outros pedidos.
[16] Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, vol. I, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, pág.126, 132 e 147 a 150.
[17] Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, vol. I (1 – Princípios Fundamentais. 2 – Fase inicial do processo declarativo), Almedina, Coimbra, 1997, pág. 158.
[18] De acordo com a posição expressa no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14/12/2010, disponível em www.dgsi.pt, «a ineptidão da petição inicial por incompatibilidade substancial de causas de pedir e de pedidos é insuprível».
[19] Acórdão do tribunal da Relação de Coimbra de 31/05/2016, in www.dgsi.pt.
[20] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07/06/2010, publicado em www.dgsi.pt, que sustenta que o autor deve ser convidado a corrigir a petição inicial, mediante a formulação dos pedidos em regime de subsidiariedade.
[21] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26/05/1994 [acórdão do Pleno para uniformização de jurisprudência], in www.dgsi.pt.
[22] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2017, pág. 623.