Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
285/22.1T8BJA.E1
Relator: MÁRIO BRANCO COELHO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
FIXAÇÃO DA INCAPACIDADE
PERÍCIA POR JUNTA MÉDICA
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
ANULAÇÃO DA DECISÃO
Data do Acordão: 01/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1. No âmbito do procedimento para fixação da incapacidade emergente de acidente de trabalho, padece de falta de fundamentação a resposta dos peritos médicos que não reconhece a existência de sequelas efectivamente diagnosticadas ao sinistrado e identificadas em relatório clínico junto aos autos – sequelas na coluna vertebral.
2. A omissão de diligências para determinar a natureza e extensão de tais sequelas, quando os autos revelam que eram necessárias para a determinação da incapacidade do sinistrado, configura deficiência na produção da prova e determina a anulação da decisão recorrida, nos termos do art. 662.º n.º 2 al. c) do Código de Processo Civil.
(Sumário elaborado pelo relator)
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo do Trabalho de Beja, foi efectuada participação de acidente de trabalho sofrido em 18.05.2021 por AA, quando exercia as funções de servente sob as ordens e direcção de BINITER – Aluguer de Máquinas e Terraplanagens, Lda., cuja responsabilidade se encontrava transferida para Generali – Companhia de Seguros, S.A..
No exame médico realizado na fase conciliatória, o perito médico do Gabinete Médico-Legal declarou que as lesões se consolidaram em 17.02.2022, ficando o sinistrado afectado de uma IPP de 13,36%.
Na tentativa de conciliação houve desacordo quanto à incapacidade – quer o sinistrado, quer a Seguradora, discordaram da IPP atribuída pelo perito médico.
Porém, apenas o sinistrado requereu a realização de junta médica, enquanto a Seguradora se remeteu ao silêncio.
Foi solicitado ao IEFP a avaliação do posto profissional do sinistrado, com caracterização da actividade profissional desenvolvida, especificação das tarefas do posto de trabalho e seu conteúdo funcional e descrição da função e da situação do sinistrado no período antes e após o acidente.
Junto o parecer do IEFP, realizou-se junta médica, na qual os peritos médicos atribuíram, por unanimidade, uma IPP de 5,9806%.
A sentença declarou o sinistrado afectado da referida IPP de 5,9806%, e fixou a pensão obrigatoriamente remível devida em função dessa incapacidade.

Inconformado, o sinistrado recorre e conclui:
A. Deve ser aumentada a IPP ponderando as sequelas na coluna vertebral do sinistrado.
B. Deve ser declarada a nulidade da sentença nos termos do art. 615º, nº1, alíneas b) e c) e 608º, nº2 do CPC;
C. Impugna-se a resposta à matéria de facto que deve ser alterada como plasmado.
D. Deve ser fixada uma pensão anual vitalícia não remível que considere uma IPATH.
E. Deve ser arbitrado e pago duma só vez um subsídio de elevada incapacidade permanente.

A Seguradora não contra-alegou.
Já nesta Relação, a Digna Magistrada do Ministério Público apresentou Parecer propondo o provimento do recurso deduzido pelo sinistrado.
Cumpre-nos decidir.

A matéria de facto provada foi assim estabelecida na sentença recorrida:
1. No dia 18.05.2021, pelas 10.55 horas o sinistrado sofreu um acidente em Aljustrel, quando se encontrava no seu local de trabalho sofreu deslize e queda de uma pedra em cima do sinistrado, com embate na cabeça (partiu o capacete), facial com ferida do nariz, cervical e dedos da mão esquerda. Foi assistido no hospital de Beja e seguro.
2. O sinistrado nascido em …/…/1974, trabalhava prestando serviço como Servente, sob as ordens e orientação de “Biniter Aluguer de Máquinas de Terraplanagens, Lda.”, mediante a retribuição anual de € 14.337,80 euros (salário base – 665,00€x14m; subsídio de alimentação - 129,80€x11m; outros subsídios - 300,00€x12m).
3. O sinistrado sofreu as lesões corporais descritas no relatório pericial do GML, tendo sofrido TCE, facial com ferida do nariz e fractura do indicador da mão esquerda.
4. À data do sinistro a responsabilidade por acidentes de trabalho em relação ao sinistrado estava transferida para a seguradora ora ré pelo montante salarial anual de € 14.337,80 euros (salário base – 665,00€x14m; subsídio de alimentação – 129,80€x11m; outros subsídios - 300,00€x12m).
5. Como sequelas das lesões resultantes do aludido acidente o sinistrado apresenta sequelas - status pós ferida da palma da mão esquerda e anquilose da IFD e rigidez de IFP do indicador da mão esquerda.
6. Em virtude das aludidas sequelas o sinistrado mostra-se afectado de uma incapacidade permanente parcial para o trabalho de 5,9806% desde a data da alta, que ocorreu a 21.02.2022.
7. A seguradora acordou, no âmbito da tentativa de conciliação, datada de 26.09.2021, pagar ao sinistrado a quantia de € 20,00 euros (vinte euros) a título de despesas de transportes por deslocação que este tinha realizado para comparência no Tribunal em tentativa(s) de conciliação (1x) e no GML para realização de exame(s) médico(s) (1x).
8. No âmbito dos presentes autos o sinistrado deslocou-se uma (1) vez ao GML em 27.05.2022 para observação em Exame Pericial (1x), uma (1) vez ao Tribunal para Tentativa de Conciliação em 26.09.2022 e uma (1) vez ao Tribunal em 21.06.2023 para observação em Exame por Junta Médica.
9. O sinistrado despendeu o valor de € 859,69 euros (oitocentos e cinquenta e nove euros e sessenta e nove cêntimos) referente a despesas com deslocações, ajudas técnicas, exames e consultas.

APLICANDO O DIREITO
Da incapacidade
De acordo com o art. 138.º n.º 1 do Código de Processo do Trabalho, a parte que não se conformar com o resultado da perícia realizada na fase conciliatória do processo, requer perícia por junta médica, a qual se realiza nas condições previstas no art. 139.º do mesmo diploma.
A prova assim apreciada pelo juiz é essencialmente pericial, tanto mais que estão em apreciação factos para os quais são necessários conhecimentos especiais, nomeadamente de carácter médico, que os julgadores não possuem. Porém, “apesar de a resposta do perito assentar, por via de regra, em conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, é ao tribunal, de harmonia com o prudente critério dos juízes, que se reconhece o poder de decidir sobre a realidade do facto a que a perícia se refere. Parte-se do princípio de que aos juízes não é inacessível controlo do raciocínio que conduz o perito à formulação do seu lado e de que lhes é de igual modo possível optar por um dos laudos ou afastar-se mesmo de todos eles, no caso frequente de divergência entre os peritos.”[1]
No âmbito do procedimento para fixação da incapacidade emergente de acidente de trabalho, o juiz não apenas preside à perícia por junta médica, como pode solicitar aos peritos os esclarecimentos que entender por convenientes, formular quesitos e determinar a realização de exames e pareceres complementares ou requisitar pareceres técnicos, se o considerar necessário – art. 139.º n.ºs 1, 6 e 7 do Código de Processo do Trabalho. E pode fazê-lo por sua própria iniciativa, independentemente do impulso processual das partes, pois está em causa um poder discricionário do juiz.[2]
No caso em apreciação, os peritos médicos divergiram ao longo dos exames realizados ao longo dos autos: na fase conciliatória, o perito médico do Gabinete Médico-Legal atribuiu uma IPP de 13,36%, enquanto os peritos médicos reunidos na junta médica atribuíram apenas uma IPP de 5,9806%, que a sentença aceitou.
A principal divergência residiu na atribuição de incapacidade por sequelas na coluna vertebral.
O perito médico do Gabinete Médico-Legal detectou no exame objectivo que realizou, no pescoço, cervicobraquialgia direita, com contractura muscular, e enquadrou tais sequelas no Capítulo I) 1.1.1.b) na TNI – raquialgia residual na coluna vertebral – e atribuiu a esse título um coeficiente de incapacidade de 7% (a TNI prevê um intervalo entre 2% e 10%).
Por seu turno, a junta médica recusou atribuir qualquer incapacidade a esse título, “por não haver queixas cervicobraquialgia na data do acidente nem nas consultas subsequentes, até à data de alta.”
No entanto, está junto aos autos um relatório clínico na Unidade Local de Saúde da área de residência do sinistrado (fs. 94-95), que revela que tal afirmação não é exacta.
Na verdade, o sinistrado realizou em 17.01.2022, logo, antes da data da alta, uma RMN da coluna cervical que detectou ali lesões: “Em C2-C3 existe debrum osteofitário foraminal direito e hérnia discal pósterolateral direita, aspectos que condicionam estenose foraminal ipsilateral de grau acentuado, com provável conflito de espaço com a raiz C3 direita. Por persistência das cefaleias no tempo, decidiu-se pelo encaminhamento para consulta externa de neurologia na ULSBA, agendada para 27.04.2022.”
A referida RMN não foi junta aos autos, nem foi solicitada qualquer informação junto da consulta externa de neurologia na ULSBA, para apurar qual o diagnóstico ali realizado e qual o tratamento proposto.
Outros elementos juntos autos permitem também concluir pela ocorrência de sequelas ao nível da coluna vertebral, produzindo significativas limitações na capacidade de trabalho do sinistrado.
O parecer produzido pelo IEFP revela que o sinistrado – exercendo as funções de servente de pedreiro – após a alta apenas esteve ao serviço cerca de uma semana, pois desde 01.03.2022 se encontra em situação de baixa, com certificados de incapacidade temporária para o serviço emitidos pelo médico de família. Tem dificuldade em efectuar movimentos de preensão com a mão esquerda, falta de força e fenómenos dolorosos na mesma, fenómenos dolorosos na zona cervical, dificuldade em dormir e pesadelos associados ao acidente, e falta de interesse por actividades que antes lho suscitavam.
No mesmo parecer, declara-se que a capacidade funcional do membro superior esquerdo apresenta limitações, face à incapacidade de efectuar adequadamente a preensão com a mão esquerda, que a eficiência pessoal e profissional está diminuída, mercê de perturbação pós-traumática, acrescida de raquialgia ao nível cervical.
Mais se declarou que “a limitação funcional do membro superior esquerdo do trabalhador afigura-se limitativa do exercício das tarefas do posto de trabalho que (…) exercia à data do acidente de trabalho e que requerem o manuseamento e/ou sustentação de instrumentos de trabalho com ambas as mãos, como sejam a marreta, a pá e a mangueira de alta pressão, mas não totalmente impeditiva. Todavia, a consideração da globalidade das limitações que o trabalhador parece apresentar parece-nos muito dificilmente compatível, pelo menos no imediato, com o exercício seguro do posto de trabalho habitual.”
O Supremo Tribunal de Justiça vem afirmando que os casos de IPATH são situações típicas de não reconvertibilidade do sinistrado em relação ao seu anterior posto de trabalho.[3] Se o trabalhador retoma o essencial das suas funções, embora com limitações decorrentes das lesões sofridas no acidente, não se pode concluir que se mostra em situação de IPATH; se, pelo contrário, não consegue desempenhar o essencial das tarefas inerentes ao seu posto de trabalho, então já se poderá concluir que se encontra afectado de IPATH.[4]
Ora, as conclusões dos peritos na junta médica estão erroneamente fundamentadas, pois negam quaisquer sequelas ao nível da coluna vertebral, quando elas foram efectivamente detectadas em RMN realizada em 17.01.2022 e foi proposto seguimento clínico.
Ponderando que não foi solicitado esse exame de diagnóstico, nem qualquer informação junto da consulta externa de neurologia na ULSBA, para apurar qual o diagnóstico ali realizado e qual o tratamento proposto, e ponderando também que tais elementos clínicos se revelavam necessários para determinar as sequelas ao nível da coluna vertebral e a influência das mesmas no desempenho das tarefas inerentes ao posto de trabalho do sinistrado, e assim se concluir por uma eventual IPATH, temos a declarar que a resposta dos peritos médicos em junta médica mostra-se infundamentada e os autos carecem de exames e pareceres complementares necessários à sua decisão consciente e informada.
Consequentemente, por deficiência na produção da prova, determina-se a anulação da decisão recorrida, nos termos do art. 662.º n.º 2 al. c) do Código de Processo Civil, com vista ao respectivo suprimento.[5]

DECISÃO
Destarte, concede-se provimento ao recurso, anula-se a decisão recorrida e determina-se:
· a requisição da RMN da coluna cervical realizada ao sinistrado em 17.01.2022, referida no relatório clínico da Unidade de Saúde de Aljustrel de 27.04.2022;
· a requisição de informação clínica completa à consulta externa de neurologia na ULSBA, para apurar qual o diagnóstico ali realizado e qual o tratamento proposto, quanto às sequelas na coluna cervical;
· posteriormente, a reabertura da junta médica, para descrição do exame objectivo realizado ao sinistrado, apreciação dos exames clínicos juntos aos autos, descrição pormenorizada das sequelas que o afectavam à data da alta, e, em caso de eventual divergência de enquadramento das sequelas em relação ao perito médico que interveio na fase conciliatória, fundamentação dessa divergência.
Custas do recurso pela Seguradora.

Évora, 25 de Janeiro de 2024

Mário Branco Coelho (relator)
Emília Ramos Costa
Paula do Paço

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[1] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2.ª ed., 1985, pág. 583.
[2] Neste sentido, vide o Acórdão de Relação de Lisboa de 13.07.2016 (Proc. 1491/14.8T2SNT.L1-4), e da Relação de Guimarães de 02.11.2017 (Proc. 12/14.7TTBCL-C.G1), ambos em www.dgsi.pt.
[3] Em especial, no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 10/2014, de 28.05.2014 (publicado no DR, I Série, de 30.06.2014), chamando-se a atenção para a jurisprudência citada na respectiva nota 12.
[4] Cfr., a propósito, o Acórdão da Relação de Lisboa de 07.03.2018 (Proc. 1445/14.4T8FAR.L1-4), publicado em www.dgsi.pt.
[5] Neste sentido, o Acórdão da Relação de Guimarães de 04.02.2016 (Proc. 233/13.0TTGMR.1.G1), publicado na mesma base de dados.