Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2908/19.0T9STB.E1
Relator: GOMES DE SOUSA
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
INSUFICIÊNCIA DE MEIOS ECONÓMICOS
Data do Acordão: 01/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. A suspensão da execução da pena de prisão imposta pelo cometimento do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social é sempre condicionada ao pagamento das quantias devidas à Segurança Social e legais acréscimos (artigo 14º, nº 1, do RGIT), desde que a concreta situação económica, presente e futura, do arguido o permita.
II. Essa concreta situação económica do arguido, presente e futura, não pode deixar de ser avaliada, e devidamente sopesada, na data da prolação da sentença condenatória e face aos factos nela dados como provados.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal da Relação de Évora:

A - Relatório
No Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal - Juízo Local Criminal de (.....) - correu termos o processo comum singular supra numerado no qual são arguidos:
A. (…..);
B. (…..);
C. (…..); e
D. (…..),
imputando-lhes a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social agravado, do artigo 107.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 15/2001, de 05/06 (RGIT), com referência com artigo 105.º, n.ºs 1, 4, alíneas a) e b), e 5, do mesmo diploma legal, sendo a sociedade arguida ainda nos termos do artigo 11.º do Código Penal e o artigo 7.º, n.ºs 1 e 3, do Regime Geral das Infracções Tributárias.
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Os arguidos foram regularmente notificados do despacho que recebeu a acusação, sendo que:
- a sociedade arguida não contestou nem arrolou testemunhas;
- o arguido (….) contestou pugnando pela respectiva absolvição, mais concretamente infirmando ter sido administrador da sociedade arguida desde 31 de Dezembro de 2014 e assinalando que nunca o foi de facto, sendo na verdade um mero empregado desde ente colectivo, não tomando quaisquer decisões a seu respeito e cumprindo meramente ordens. Arrolou testemunhas;
- o arguido (….) ofereceu o merecimento dos autos e arrolou testemunhas; e
- a arguida (…..) contestou, também pugnando pela sua absolvição, asseverando que não era administradora de facto da sociedade arguida, estando na dependência económica do coarguido (…..), tendo sido este que decidiu que ela integraria o conselho de administração, limitando-se a mesma a acatar as decisões deste, não interferindo na gestão daquela sociedade, sendo uma mera assalariada desta. Arrolou testemunhas.
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Comunicou-se a alteração não substancial dos factos, mais concretamente que:
- O montante de € 147.116,78 foi utilizado na satisfação das remunerações dos trabalhadores e no giro comercial da sociedade arguida;
- Por referência aos períodos descritos na acusação, a sociedade arguida encontrava-se em dificuldades económicas motivadas pela falta de pagamento dos clientes das sociedades que integravam o grupo em que se insere a mesma.
Também se comunicou a alteração da qualificação jurídica dos factos, mais concretamente comunicando-se que os mesmos integram uma continuidade criminosa nos termos e para os efeitos do preceituado no artigo 30.º, n.º 2, do Código Penal.
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Por sentença de 12 de Maio de 2023 foi decidido julgar parcialmente procedente por provada a acusação deduzida pelo Ministério Público e, em consequência, decidiu o tribunal recorrido:
A. Absolve a arguida (…..) da prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social agravado do artigo 107.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 15/2001, de 05/06 (Regime Geral das Infracções Tributárias), com referência com artigo 105.º, n.ºs 1, 4, alíneas a) e b), e 5, do mesmo diploma legal;
B. Absolve o arguido (…..) da prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social agravado do artigo 107.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 15/2001, de 05/06 (Regime Geral das Infracções Tributárias), com referência com artigo 105.º, n.ºs 1, 4, alíneas a) e b), e 5, do mesmo diploma legal;
C. Condena o arguido (…..) pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social continuado do artigo 107.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 15/2001, de 05/06 (Regime Geral das Infracções Tributárias), com referência com artigo 105.º, n.ºs 1 e 4, alíneas a) e b), do mesmo diploma legal, conjugado com o artigo 30.º, n.º 2, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão;
D. Considerar não verificada a agravação a que se reporta o artigo 105.º, n.º 5, do Regime Geral das Infracções Tributárias, para o qual remete o n.º 2 do artigo 107.º do mesmo diploma legal.
E. Suspende a execução da pena privativa da liberdade identificada em C. pelo período de 5 (cinco) anos, condicionando a suspensão à entrega por parte do arguido (…..), durante este período da suspensão, da quantia de € 147.116,78 (cento e quarenta e sete mil cento e dezasseis euros e setenta e oito cêntimos), e respectivos acréscimos legais ao Instituto de Segurança Social, devendo esse pagamento ser documentalmente comprovado nos autos até ao termo do período de suspensão;
F. Condena a sociedade “…..” pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social continuado do artigo 107.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 15/2001, de 05/06 (Regime Geral das Infracções Tributárias), com referência com artigo 105.º, n.ºs 1, e 4, alíneas a) e b), do mesmo diploma legal, por referência ao artigo 7.º também do Regime Geral das Infracções Tributárias, na pena de 320 (trezentos e vinte) dias de multa à taxa diária de € 5 (cinco euros), perfazendo o montante global de € 1.600 (mil e seiscentos euros);
G. Considerar não verificada a agravação a que se reporta o artigo 105.º, n.º 5, do Regime Geral das Infracções Tributárias, para o qual remete o n.º 2 do artigo 107.º do mesmo diploma legal.
H. Condena o arguido (…..) e a sociedade “…..” na satisfação individual das custas processuais, fixando a taxa de justiça no montante equivalente a 2 (duas) unidades de conta.
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Inconformado, interpôs recurso o arguido (…..), com as seguintes conclusões:
1 - O recorrente tem 66 anos de idade.
2 – Foi declarado insolvente.
3 -Tem apenas, como habilitações escolares, a antiga 4ª classe.
4 - Encontra-se desempregado, sem receber qualquer subsídio e aguardando a reforma, cuja pensão será certamente consumida por penhoras resultantes de diversos processos de reversão pendentes em execuções instauradas contra as sociedades de que foi gerente e integrantes do mesmo grupo a que pertence a sociedade aqui também arguida.
5 – Vive em casa de um filho, de quem depende economicamente.
6 – Não exerce qualquer actividade profissional.
7 – De salientar ainda que o montante de € 147.116,78, correspondente à dívida à Segurança Social, foi utilizado na satisfação das remunerações dos trabalhadores e no giro comercial da sociedade arguida, a qual por referência aos períodos em que não foram entregues as quotizações, se encontrava em dificuldades económicas motivadas pela falta de pagamento dos clientes das sociedades que integravam o grupo em que a sociedade arguida se inseria.
8 – Isto é, o recorrente, em precária situação económica e financeira, velho e sem expectativa de melhorar a sua situação, em nada beneficiou pessoalmente com a não entrega das quotizações em causa e de cujo montante não se apropriou.
9 – Depois de Maio de 2017, ou seja, desde há seis anos que não praticou o recorrente mais qualquer acto susceptível de ser considerado crime, fosse de que natureza fosse, designadamente de abuso de confiança fiscal ou contra a Segurança Social.
10 – Não gere empresas nem terá mais condições para o fazer.
11 – É pobre, velho e não representa qualquer perigo para a sociedade.
12 – A menos que se queira instrumentalizar o direito penal tributário, utilizando-o como meio de arrecadação de receita e convertendo o julgador em agente de cobrança do Estado, tem o artigo 14º, nº 1 do RGIT que ser interpretado e aplicado de forma a que não seja o julgador afectado na sua liberdade de decidir, assim ficando privado da função jurisdicional.
13 – Isto é, a aplicação cega e automática do artº 14º, nº 1 do R.G.I.T. determinaria uma intolerável invasão da função jurisdicional, reservada exclusivamente aos Tribunais, como órgãos de soberania e como se exige numa sociedade democrática com separação de poderes.
14 – Ora, foi essa invasão numa actividade reservada aos Tribunais, que o Acórdão Uniformizador do S.T.J. nº 8/2012 impede, exigindo a formulação de um juízo de prognose de razoabilidade sobre a possibilidade – ou impossibilidade - de o condenado cumprir a condição a estabelecer.
15– Desde logo porque até por razões de senso comum, de nada valerá estabelecer condições que à partida se revelam impossíveis de alcançar.
16 – E a realidade é esta: como poderá o recorrente, quase septuagenário, desempregado, sem património e para mais declarado insolvente, apenas com o 4º ano de escolaridade, sem qualquer actividade profissional nem vislumbre de que a possa obter, vir a pagar a quantia de € 147.116,78 com acréscimos legais o que elevará seguramente a verba em causa a várias centenas de milhares de euros?
17 – A douta sentença recorrida, ao subordinar a suspensão da execução da pena de prisão a tal pagamento, impôs ao recorrente um dever de cumprimento impossível, não observando assim o comando do artº 51º, nº 2 do Código Penal.
18 – A solução mais adequada à situação pessoal, económica, financeira e social do recorrente, seria não subordinar a condição alguma a suspensão da execução da pena ou estabelecê-la com regime de prova.
19 – A não se adoptar tal solução por se atribuir ao artº 14º, nº 1 do R.G.I.T. uma função instrumental de cobrança de dívidas, desvirtuando desse modo
e salvo o devido respeito, o escopo da sanção penal e “mercantilizando” o instituto da suspensão da pena, então ainda é possível outra solução, resultante da última parte do mesmo nº 1, conforme se refere no citado Acórdão Uniformizador.
20 – Que é condicionar-se a suspensão ao pagamento de quantia inferior à imposta pela sentença recorrida, elevadíssima e inquestionavelmente incompatível com as condições de vida do recorrente.
21 – No caso dos autos e face à comprovada situação do recorrente já atrás descrita, o juízo de razoabilidade imposto pelo Acórdão Uniformizador, determina forçosamente um limite muito baixo para a fixação da importância a pagar pelo recorrente à Segurança Social.
22 – A douta sentença recorrida, ao subordinar a suspensão da execução da pena de prisão de dois anos e quatro meses de prisão que aplicou ao recorrente, ao pagamento à Segurança Social, no prazo de cinco anos, da quantia de € 147.116,78 e respectivos acréscimos legais, além de ter violado o artº 51º, nº 2 do Código Penal, fez uma errada interpretação do artigo 14º, nº 1 do R.G.I.T. e aplicou-o num sentido menos adequado, uma vez que não ponderou de forma correcta o juízo de razoabilidade imposto pelo Acórdão Uniformizador nº 8/2012, atentando nas circunstâncias e condições do recorrente e extraindo daí as devidas consequências.
23 – Pelo que deve a sentença recorrida ser nessa parte alterada no sentido de não se subordinar a condição alguma a suspensão da execução da pena ou, assim não se entendendo, subordiná-la ao pagamento de uma quantia compatível com as condições pessoais, económicas e financeiras do recorrente, muito aquém seguramente dos montantes fixados na sentença recorrida.
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A Digna magistrada do Ministério Público apresentou resposta defendendo a manutenção do decidido, concluindo:
1 – Nos presentes autos, foi o arguido (…..), ora recorrente, condenado pela prática, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social continuado do artigo 107.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 15/2001, de 05/06 (Regime Geral das Infracções Tributárias), com referência com artigo 105.º, n.ºs 1 e 4, alíneas a) e b), do mesmo diploma legal, conjugado com o artigo 30.º, n.º 2, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 5 (cinco) anos, condicionando a suspensão à entrega por parte do arguido (…..), durante este período da suspensão, da quantia de € 147.116,78 (cento e quarenta e sete mil cento e dezasseis euros e setenta e oito cêntimos), e respectivos acréscimos legais ao Instituto de Segurança Social, devendo esse pagamento ser documentalmente comprovado nos autos até ao termo do período de suspensão.
2 – Veio o arguido interpor recurso da sentença proferida, por não se conformar com a pena que lhe foi aplicada. Entende o recorrente que, a douta sentença recorrida, ao subordinar a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento da quantia de € 147.116,78 (cento e quarenta e sete mil cento e dezasseis euros e setenta e oito cêntimos), e respectivos acréscimos legais ao Instituto de Segurança Social, impôs ao recorrente um dever de cumprimento impossível, não observando assim o comando do artº 51º, nº 2 do Código Penal.
3 - Considera o recorrente que a sentença recorrida, além de ter violado o artº 51º, nº 2 do Código Penal, fez uma errada interpretação do artigo 14º, nº 1 do R.G.I.T. e aplicou-o num sentido menos adequado, uma vez que não ponderou de forma correcta o juízo de razoabilidade imposto pelo Acórdão Uniformizador nº 8/2012, atentando nas circunstâncias e condições do recorrente e extraindo daí as devidas consequências.
4 – Pugna o recorrente pela alteração da sentença recorrida, no sentido de não se subordinar a condição alguma a suspensão da execução da pena ou, assim não se entendendo, subordiná-la ao pagamento de uma quantia compatível com as condições pessoais, económicas e financeiras do recorrente, muito aquém seguramente dos montantes fixados na sentença recorrida.
5 – Ora, o artigo 14º, n.º 1 do RGIT estabelece que: “A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.”
6 – Importa ainda atentar ao Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 8/2012, segundo a qual “no processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia”. Conforme se refere ainda em tal decisão, “nada impede que concluindo o julgador pela impossibilidade de cumprimento, se repondere a hipótese de optar por pena de multa, pois o processo de confecção da pena a aplicar não é um caminho sem retorno, há que avaliar todas as hipóteses e dar um passo atrás, se necessário, encarando todas as soluções jurídicas pertinentes, conforme estabelece o artigo 339.º, n.º 4, do CPP".
7 – Da leitura da sentença em crise, resulta que o Tribunal a quo ponderou, uma primeira vez, ser de optar pela aplicação de uma pena de prisão suspensa na sua execução. Tal como ponderou, efectivamente, ser difícil concluir que o arguido reúna condições no sentido de conseguir satisfazer a condição legal imposta pelo artigo 14º, n.º 1 do RGIT.
8 - Nessa sequência, o Tribunal a quo voltou a reponderar a escolha da natureza da pena a aplicar, tendo novamente afastado a possibilidade de aplicação de pena principal de multa, pelos fundamentos que explicitou, e concluiu ser inviável a substituição da pena de prisão por multa ou por trabalho a favor da comunidade, atenta a medida concreta da pena.
9 - Pelo que que a decisão do Tribunal a quo, ao considerar que, ao optar pela suspensão da execução da pena de prisão imposta ao arguido, a mesma tem de ficar subordinada à condição de entrega da prestação tributária em dívida e respetivos acréscimos legais, atenta a imposição da condição do pagamento prevista no artigo 14º, n.º 1 do RGIT, se mostra correcta.
10 – De salientar que no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 8/2012 se menciona ainda que “feita a escolha, a adopção da medida de substituição, cessa a liberdade de punição, porque imposta é a subordinação à condição; o juiz fica subordinado, amarrado, ao incontornável passo seguinte, que é a impor a subordinação ao pagamento”.
11 - Pode ler-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 05/06/2018, relatado pelo Exmo. Senhor Juiz Desembargador José Adriano, processo n.º 3912/12.5T3SNT.L1-5, disponível para consulta em www.dgsi.pt:
“Tal como já referimos em anterior acórdão por nós proferido (no Processo n.º 2387/05.0JFLSB.L2) e que aqui seguimos de perto, aquele acórdão de fixação de jurisprudência em nenhum momento afirma, nem dele se pode extrair que, caso o arguido não tenha capacidade económica para pagar as quantias em dívida ao Estado, a pena de prisão deva ficar suspensa sem a condição imposta pelo art. 14.º, n.º 1, do RGIT, ou que esta condição deva limitar-se ao pagamento de quantia inferior à devida, dentro das possibilidades económicas do arguido.”
12 - Aplicando-se pena de prisão suspensa, no caso de crime tributário, esta fica obrigatoriamente condicionada ao pagamento da prestação tributária e acréscimos legais, nos termos do art. 14.º, n.º 1, do RGIT.
13 - Considera-se que a sentença recorrida foi proferida em obediência com o disposto no artigo 14º, n.º 1 do RGIT, cuja fundamentação se concorda na íntegra, pelo que deverá o recurso interposto pelo arguido ser julgado totalmente improcedente e, em consequência, manter-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
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O Exmº. Procurador-geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu douto parecer defendendo a manutenção do decidido, expondo:
(…).
«O “nó górdio” da questão ora presente a Vossas Excelências Ilustres Desembargadores prende-se com acerto da decisão de suspender a execução da pena, pelo prazo de 5 (cinco) anos, condicionada ao pagamento, no mesmo prazo, da quantia de € 147.116,78, atenta situação económica (actual) do arguido.
Cumpre, desde já, dar nota que a jurisprudência tem proferido diversos acórdãos sobre esta temática em sentido não uniforme:
A) Acórdão Relação de Évora de 13.07.2017, relatora Maria Isabel Duarte No crime de abuso de confiança contra a segurança social, o Tribunal deve abster-se de condicionar a suspensão da execução da pena ao pagamento total ou parcial da indemnização, se as condições pessoais do condenado, ao tempo da condenação e dentro do futuro previsível, não lhe possibilitarem, sem culpa sua, a satisfação de tal requisito.
B ) Acórdão Relação de Guimarães de 11.03.2019, relatora Teresa Coimbra
Não viola o princípio da razoabilidade por não traduzir uma condição impossível ou de muito difícil cumprimento, a imposição de pagamento à segurança social, durante um período de quatro anos, da quantia de 46.869,99€, acrescida de juros, como condição de suspensão da pena de prisão imposta a um arguido condenado pela quarta vez pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, que continua a gerir uma empresa com 7 empregados, um volume mensal de negócios de 20.000€ e salarial de 7000€ e que vive maritalmente com uma arguida que gere outra empresa, com 30 trabalhadores e um negócio mensal na ordem dos 40.000 €, não obstante ambos declararem como remuneração apenas o salário mínimo nacional.
C ) Acórdão da Relação de Évora de 24.05.2022, relatora Maria Clara Figueiredo
I - A densificação da estatuição do artigo 14.º do RGIT impõe a conclusão de que, em caso de condenação por crime de abuso de confiança fiscal ou à segurança social que preveja em alternativa pena de prisão ou de multa, escolhida a pena de prisão e optando-se depois pela suspensão da execução de tal pena, haverá que ponderar a razoabilidade da imposição da condição estabelecida pelo artigo 14.º, n.º 1 do RGIT, considerando o concreto e real circunstancialismo fáctico de vida do devedor, com particular enfoque na sua situação económica, conforme superiormente decidido no Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 8/2012 de 12 de setembro.
II - Os crimes tributários previstos apenas com pena de prisão – como o dos presentes autos – encontram-se fora do âmbito de aplicação da jurisprudência fixada pelo AUJ 8/2012, sendo que o princípio da legalidade determinará que se dê aplicação à norma especial prevista no artigo 14.º do RGIT, respeitando-se a imperatividade da imposição da condição que o mesmo consagra em caso de opção pela pena substitutiva de suspensão da execução da pena de prisão, sob pena de desaplicação de lei expressa.
D ) Acórdão da Relação do Porto de 09.10.2019, relator Pires Salpico
II – Nesse pressuposto, convirá reter que a aplicação do nº 1 do artigo 14º do RGIT não derroga o nº 2 do artigo 51º do Código Penal, pois que constitui apenas uma especialidade ao regime facultativo previsto no nº 1 deste último preceito.
III – Assim sendo, a fixação do montante concreto do condicionamento da prestação tributária e acréscimos legais dos montantes dos benefícios indevidamente obtidos, não poderá deixar de ficar sujeito ao regime previsto no nº 2 do artigo 51º do Código Penal, que enforma o princípio geral da humanidade das penas, impondo que o regime de suspensão não seja condicionado por medidas ou deveres irrealizáveis, sob pena dos fins da suspensão serem negados nos seus próprios termos.
E ) Acórdão da Relação do Porto de 09.11.2022, relator Pires Salpico
I - A aplicação do nº 1 do artigo 14.º do R.G.I.T. não derroga o nº 2 do artigo 51º do Código Penal (ou seja, o pagamento da quantia em causa deve ser razoavelmente exigível em face da situação económica do condenado), constituindo apenas uma especialidade em relação ao regime facultativo previsto no nº1 deste último preceito; tal especialidade impõe que a suspensão seja sempre sujeita ao pagamento de quantias indevidamente obtidas.
II – A fixação do montante concreto do condicionamento da prestação tributária com sujeição ao regime previsto no n.º 2 do artigo 51.º do Código Penal (isto é, que o pagamento de tal montante seja exigível em face da situação económica do condenado) cumpre o princípio geral da humanidade das penas e da proporcionalidade, impondo que o regime de suspensão não seja condicionado por medidas ou deveres irrealizáveis, sob pena de os fins da suspensão perderem racionalidade, tornando-se inoperantes.
III - Na ponderação exigida no Ac.do S.T.J. de fixação de jurisprudência n.º 8/2012, o raciocínio jurídico de penologia que faz depender a escolha da pena das possibilidades económicas do arguido situa-se à revelia das exigências de prevenção previstas nos arts. 40.º n.º1 e 70.º do Código Penal e importa uma distorção grave desta escolha.
IV – Esse raciocínio persegue a ideia de que o pagamento integral da dívida do fisco pertence à fenomenologia da pena, numa ótica da eficácia do sistema penal tributário; no entanto, a verdade é que se descredibiliza a referida eficácia quando, na hipótese de o crime ser apenas punido com pena de prisão e se admite na suspensão da execução da pena a sujeição à condição de pagamento integral do valor devido, nos casos em que é de cumprimento impossível para o arguido (se for essa a condição económica apurada), essa solução representa um fracasso anunciado do pagamento imposto, colidindo com a lógica da suspensão, com perda completa da racionalidade e compreensibilidade da pena.
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Antes de entramos na apreciação da matéria importa referir, ainda que brevemente que um dos “pilares” do orçamento do Instituto da Segurança Social radica nas contribuições das entidades empregadores.
As entidades empregadoras são responsáveis pelo pagamento das contribuições e das quotizações dos trabalhadores ao seu serviço. As quotizações dizem respeito ao montante que a entidade empregadora descontou na respetiva remuneração de acordo com a taxa contributiva que lhes é aplicável.
Consequentemente, a não entrega dessas contribuições à Segurança Social é geradora de dificuldades na sua gestão.
Cumpre ainda referenciar que também os trabalhadores são penalizados com a não entrega dessas contribuições / quotizações (Pese embora tivessem sido descontadas no seu salário), dado que no momento em que solicitam a reforma são confrontados, não raras vezes, com “períodos brancos”, ou seja, períodos em que não foram entregues as pertinentes contribuições e quotizações1 o que vai alterar, muitas vezes, drasticamente o valor da sua pensão.
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No caso em apreço, a Mme Juiz “a quo” ponderando e reponderando e pese embora o arguido ter averbado condenações por crimes de idêntica natureza e ter praticado os crimes referidos nos autos em pleno período da suspensão da execução da pena, ainda assim, entendeu-se que havia uma prognose favorável.
Nessa conformidade, o arguido “beneficiou” ainda de uma nova suspensão da execução da pena, mas condicionada ao pagamento da importância de € € 147.116,78, conforme decorre do disposto no nº 1 do artº 14 do RGIT.
A esse propósito, são judiciosas e pertinentes as considerações explanadas pelo Ilustre Desembargador Pires Salpico. No caso concreto, a própria Mme Juiz “a quo” reconhece a dificuldade de o arguido em cumprir esse pagamento.
A exigência, decorrente do acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 8/2012, de ponderação da razoabilidade do condicionamento da suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento da totalidade da quantia tributária não significa que tal exigência impeça a opção por tal pena, quando nem outras penas não privativas da liberdade, nem a pena de prisão efetiva, sejam adequadas à satisfação das finalidades da pena. O que, de facto, verifica-se no caso concreto.
Considera a sentença recorrida que “in casu” a pena de prisão suspensa na sua execução é a única pena adequada à prossecução das finalidades das penas.
A sentença recorrida fundamenta essa sua opção em razões que se nos afiguram convincentes.
Ainda assim, a sentença recorrida confronta-se com a norma imperativa do artigo 14.º, n.º 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias: a suspensão da execução da pena não pode deixar de ser condicionada ao pagamento da totalidade da quantia tributária e legais acréscimos. Penal (artigo 56.º, n.º 1, a), do Código Penal).
Foi obedecendo a estas premissas que a sentença recorrida condicionou a suspensão da execução da pena em que o arguido / recorrente foi condenado ao pagamento da totalidade da quantia por ele devida à Segurança Social – (Neste sentido, por todos, o recente Ac. Relação do Porto de 08.02.2023, relator Pedro Vaz Pato que consagra: III – De acordo com a jurisprudência do Tribunal Constitucional, não é inconstitucional a subordinação (independentemente da situação económica do condenado) da suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento integral das quantias tributárias devidas imposta pelo artigo 14.º, n.º 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias).
Estabeleceu (e bem) um prazo longo (5 anos) para o seu cumprimento. Sempre se dirá que pese embora a situação económica (actual) do arguido não seja a melhor nada obsta a que haja regresso de melhor fortuna.
O prazo estipulado para a suspensão é suficientemente longo para isso permitir.
Ousa-se, desta forma, sugerir a manutenção da decisão da 1ª instância.
Nesta conformidade e atento tudo o que se deixou exposto deverão Vossas Excelências, Juízes Desembargadores, negar provimento ao recurso apresentado pelo arguido/recorrente (…..) e manter a (aliás) douta sentença recorrida.
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Foi cumprido o disposto no artigo 417º n.º 2 do Código de Processo Penal.
Respondeu o arguido recorrente (…..) reiterando a sua posição no recurso.
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B - Fundamentação:
B.1.1 - O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:
Da acusação
A sociedade “…..” é uma sociedade anónima registada na Conservatória do Registo Comercial de Setúbal, com o NIPC (…..), que tem por objecto a gestão de participações sociais noutras sociedades como forma indirecta de exercício de actividade económica, tendo sede na (…..).
Desde a data do registo da sociedade que os administradores da mesma são os arguidos (…..), sendo o primeiro administrador de facto, obrigando-se a sociedade com a intervenção de um administrador.
3. No período contributivo referente aos meses de Fevereiro a Setembro, Novembro e Dezembro de 2014, Março de 2015 a Julho de 2016, e Fevereiro a Maio de 2017, a administração esteve a cargo do arguido (…..), sendo que este, nessa qualidade, exercia todos os poderes de administração e de gestão da mesma, sendo estes responsável por toda a actividade nela desenvolvida, dando as instruções, ordens e funções a ela atinentes, nomeadamente no tocante ao pagamento dos impostos e contribuições à Segurança Social.
4. Ao arguido (…..) competia, como administrador, de direito e de facto, da sociedade arguida, realizar os descontos nos salários mensais dos trabalhadores dos valores resultantes da aplicação das respectivas taxas contributivas e, juntamente, com as folhas de remuneração preenchidas em conformidade, proceder à entrega dos montantes descontados, na Segurança Social, até ao dia 20 do mês seguinte àquele as contribuições respeitavam, ou regularizar tal situação nos 90 dias posteriores.
5. No exercício desta actividade, a partir de Fevereiro de 2014 e por referência aos períodos identificados em 7., o arguido (…..), no interesse da sociedade arguida, passou a não entregar as quantias referentes às contribuições descontadas e retidas dos salários pagos aos seus trabalhadores, bem como aos seus membros estatutários, os quais a sociedade arguida se encontrava legalmente obrigada a entregar à Segurança Social.
6. Passando o arguido (…..) a integrar tais montantes no património da sociedade arguida, por forma a que as mesmas não fossem recebidas pelo seu legal credor, a Segurança Social, prejudicando, assim, esta entidade, e, bem assim, o Estado Português.
7. Deste modo, no período contributivo referente ao período compreendido entre os meses de Fevereiro a Setembro, Novembro e Dezembro de 2014, Março de 2015 a Julho de 2016, e Fevereiro a Maio de 2017, o arguido (…..), em representação da sociedade arguida, efectuou os seguintes pagamentos de remunerações e de descontos/retenções para a Segurança Social (conforme quadro constante da sentença recorrida).
8. O arguido (…..) procedeu, assim, ao pagamento dos salários, sem que tivesse entregue o valor das quotizações deduzidas, no valor global de € 147.116,78 (cento e quarenta e sete mil, cento e dezasseis euros e setenta e oito cêntimos), nas instituições da Segurança Social, nos prazos legais.
9. Os arguidos não regularizaram as entregas em falta nos noventa dias subsequentes, nos termos do artigo 105.º, n.º 4, alínea a) ex vi artigo 107.º, n.º 2, ambos do Regime Geral Infracções Tributárias, e 43.º, do Decreto-Lei n.º 110/2009, de 26 de Setembro, nem nos trinta dias posteriores, apesar de os arguidos (…..), bem como a sociedade arguida, terem sido notificados para o efeito, de acordo com o disposto no artigo 105.º, n.ºs 4, alínea b), e 6, também do Regime Geral das Infracções Tributárias.
10. A entrega das contribuições à Segurança Social configura uma obrigação legal que nasce no acto do pagamento dos salários, sendo pela sua retenção e pagamento responsável a entidade empregadora.
11. O arguido (…..), em representação da sociedade arguida, sabia que os montantes descontados das remunerações pagas aos seus trabalhadores, bem como aos órgãos estatutários não lhe pertenciam, conhecendo que as mesmas quantias deveriam ser entregues à Segurança Social e qual o prazo legal para o efeito.
12. O arguido (…..) actuou no interesse da sociedade arguida, bem como quis omitir a entrega devida, o que efectivamente fez, retendo tais quantias devida à Segurança Social em proveito da sua representada, conseguindo efectuar a retenção das cotizações e, assim, fez ingressar tais valores no património desta, bem sabendo que não eram sua pertença, mas sim da Segurança Social – Estado Português.
13. Durante o período aludido, sabia o arguido que os montantes que utilizou em proveito da sociedade arguida pertenciam ao Instituto de Segurança Social Portuguesa, a quem devia ter sido entregues, juntamente com as folhas das remunerações processadas, conseguindo assim enriquecer, desde logo, da sociedade, em tal montante, ao mesmo tempo que estava a prejudicar a Segurança Social em, pelo menos, valor equivalente.
14. O arguido (…..) actuou na prossecução de plano previamente gizado por si, de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por Lei.
Mais se apurou com relevância que:
15. O montante de € 147.116,78, supra referido, foi utilizado na satisfação das remunerações dos trabalhadores e no giro comercial da sociedade arguida.
16. Por referência aos períodos referidos em 3., a sociedade arguida encontrava-se em dificuldades económicas motivadas pela falta de pagamento dos clientes das sociedades que integravam o grupo em que se insere aquela.
17. O arguido (…..) detém o certificado de registo criminal n.º (…..), tendo sido condenado:
i. Pela prática de factos que consubstanciam um crime de confiança contra a segurança social do artigo 107.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, cometidos em 1.1.2001, na pena de 20 meses de prisão suspensa na execução pelo período de 4 anos e com a condição de entregar neste período o montante de € 300.000, por sentença proferida em 4.7.2013 e transitada em julgado em 13.3.2015 (processo n.º 1643/09.2TALRS);
ii. Pela prática de factos que consubstanciam um crime de abuso de confiança fiscal do artigo 105.º, n.ºs 1, 2 e 5, do Regime Geral das Infracções Tributárias, cometidos em 2011, na pena de 1 ano e seis meses de prisão suspensa na execução por igual período, por sentença proferida em 27.1.2017 e transitada em julgado em 27.2.2017 (processo n.º 213/11.0IDLSB). Pena declarada extinta por referência a 27.8.2018;
18. O arguido vive com a mulher e dois filhos, um deles menor de idade.
19. Habitam em casa própria, despendendo o montante mensal de € 800 por conta do empréstimo bancário contraído para aquisição dessa habitação.
20. A mulher do arguido e o arguido exercem actividade profissional, cada um deles auferindo a retribuição mensal de € 800
21. O arguido é licenciado em gestão.
22. O arguido (…..) detém o certificado de registo criminal n.º (…..), tendo sido condenado:
i. Pela prática de factos que consubstanciam um crime de confiança contra a segurança social do artigo 107.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, cometidos em 1.1.2001, na pena de 20 meses de prisão, suspensa na execução pelo período de 4 anos, com a condição de entregar a quantia de € 300.000, por sentença proferida em 4.7.2013 e transitada em julgado em 13.3.2015 (processo n.º 1643/09.2TALRS);
ii. Pela prática de factos que consubstanciam um crime de abuso de confiança fiscal do artigo 105.º, n.ºs 1, 2 e 5, do Regime Geral das Infracções Tributárias, cometidos em 2011, na pena de 1 ano e 2 meses de prisão, suspensa na execução por igual período, por sentença proferida em 27.1.2017 e transitada em julgado em 27.2.2017 (processo n.º 213/11.0IDLSB). Pena declarada extinta por referência a 27.4.2018;
iii. Pela prática de factos que consubstanciam um crime de abuso de confiança contra a segurança social do artigo 107.º, n.ºs 1 e 2, do Regime Geral das Infracções Tributárias, por referência ao artigo 105.º, n.º 1, 4, 5 e 7, do mesmo diploma legal, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão, suspensa na execução por igual período, por sentença proferida em 24.1.2019 e transitada em julgado em 25.2.2019 (processo n.º 112/18.4T9LRS). Pena declarada extinta por referência a 25.5.2021;
iv. Pela prática de factos que consubstanciam um crime de abuso de confiança contra a segurança social dos artigos 107.º e 105.º, n.ºs 1 a 5, do Regime Geral das Infracções Tributárias, cometidos em 1.9.2014, na pena de 2 anos e 2 meses de prisão suspensa na execução por igual período, por sentença proferida em 5.12.2019 e transitada em julgado em 17.1.2020 (processo n.º 3694/18.7T9STB). Pena declarada extinta por referência a 17.3.2022.
23. O arguido vive na casa de um filho, sendo auxiliado economicamente por este.
24. Não se exerce actividade profissional, encontrando-se desempregado e não auferindo o correspondente subsídio.
25. Foi declarado insolvente.
26. Enquanto habilitações literárias tem o 4.º ano de escolaridade.
27. A arguida (…..) não tem condenações averbadas no certificado de registo criminal que lhe respeita.
28. A arguida vive com três filhos menores de idade em casa própria, despendendo o montante mensal de € 700 por conta do correspondente empréstimo bancário.
29. Exerce actividade profissional, auferindo a remuneração mensal de € 5.000.
30. Despende o montante mensal de € 1.500 por conta do colégio frequentado pelos filhos.
31.É licenciada em marketing e publicidade.
32. A sociedade arguida não tem condenações averbadas no certificado de registo criminal que lhe respeita.
33. Não deposita as respectivas contas desde o ano de 2017.
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B.1.2 – Factos não provados
A. (……) e (…..) eram administradores de facto da sociedade arguida.
B. A respeito do descrito em 3., o arguido (…..) também era administrador a propósito do período contributivo referente aos meses de Março de 2015 a Julho de 2016 e Fevereiro a Maio de 2017.
C. Por referência ao mencionado em 3., a administração também esteve a cargo dos arguidos (…..) e (…..) e estes exerciam todos os poderes de administração e de gestão da mesma, sendo estes responsáveis por toda a actividade nela desenvolvida, dando as instruções, ordens e funções a ela atinentes, nomeadamente no tocante ao pagamento dos impostos e contribuições à Segurança Social.
D. O referido em 4. também se referia aos arguidos (…..) e (…..).
E. O referido em 5., 6., 7. e 8. decorreu de um plano formulado em data não apurada, mas seguramente anterior a Fevereiro de 2014, por parte dos arguidos, mormente o arguido (…..), e os descontos incidentes sobre as remunerações aí referidas foram efectuadas em concordância com um único desígnio inicial.
F. O referido em 5., 6. ,7. e 8.. ocorreu também por actuação dos arguidos (…..) e (…..).
G. A propósito do assinalado em 6. e 7., o arguido (…..) integrou as quantias retidas no seu próprio património.
H. Também a arguida (…..) foi notificada nos termos referidos em 9..
I. O mencionado de 10. a 14. também se reporta aos arguidos (…..) e (…..).
J. A propósito do mencionado em 11., 12. e 13., o arguido (…..) actuou no seu próprio interesse e quis integrar no seu próprio património as quantias retidas, fazendo-as suas, utilizando-as em proveito próprio.
*
B.1.3 - E apresentou as seguintes razões para fundamentar a matéria de facto:
«Conforme resulta do artigo 374.º, n.º 2, do Código Processo Penal, na sentença deve o julgador explicitar, ainda que concisamente, os motivos fundamentadores da decisão, indicando e apreciando criticamente, para tanto, as provas que serviram para formar a respectiva convicção, sendo certo que, segundo o artigo 127.º do mesmo diploma legal, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e da livre convicção, não significando isso, todavia, um juízo arbitrário e/ou meramente subjectivo acerca da prova produzida.
No caso vertente importa desde já salientar que os arguidos prestaram declarações sobre a factualidade que surge narrada na acusação pública e, cumpre referi-lo, apresentaram versões concordantes entre si.
Assim, mais concretamente, os arguidos (…..) reconheceram que foram membros da administração da sociedade arguida, ainda que o último tenha delimitado tal circunstancialismo, no que a si se refere, até ao final do ano de 2014, o que obtém respaldo na certidão de registo comercial de fls. 147-155, da qual, aliás, se extrai o objecto social da sociedade arguida, respectiva sede e forma de obrigar tal ente colectivo.
Importa, ademais, ter em mente que os arguidos assinalaram que, não obstante os três resultando instituídos administradores da sociedade arguida, somente o arguido (…..) exercia a efectiva gestão de tal ente colectivo, tomando somente ele as decisões atinentes ao destino da sociedade, importando reter que apresentaram um discurso consentâneo entre si sobre o porquê de tal circunstancialismo, fazendo notar que a circunstância de (…..) e (…..) figurarem nominalmente como administradores da sociedade arguida deveu-se à circunstância de a administração carecer de ser plural e em número ímpar devido à sua forma, narrando todos eles que (…..) pediu àqueles o favor de surgirem então como administradores da empresa.
Cumpre salientar que o assinalado por banda dos arguidos se aferiu por ter efectiva concordância com a prova testemunhal produzida no contexto dos presentes autos, não se descurando que os arguidos, para além do já referenciado supra, fizeram notar que a arguida (…..) era trabalhadora da sociedade com funções no departamento de marketing e que o arguido (…..) tinha funções comerciais junto de clientes sedeados no estrangeiro, inclusivamente passando a maior parte do tempo ausente fora do território nacional.
Concretizando, a testemunha (…..), que foi funcionária da sociedade arguida entre 2016 e 2017, aduziu que quem dirigia a empresa era o arguido (…..), assinalando que a arguida (…..) era uma mera “colega” do departamento de marketing, desconhecendo as funções de (…..).
Por seu turno, a testemunha (…..), que referiu ter exercido funções enquanto administrativa na sociedade entre 2008 e 2017, identificou o arguido (…..) como sendo o “patrão” e que os arguidos (…..) e (…..) eram meros colegas da ora depoente, assinalando-se que a alusão a estes arguidos enquanto “colegas” foi sendo uma constante dos depoimentos das testemunhas, logo identificando espontaneamente tais pessoas da aludida forma, daí que por essa via também se logre aferir que não exerciam a gestão efectiva da sociedade arguida, não a administrando, antes exercendo funções, respectivamente, no departamento de marketing e no departamento comercial junto de clientes estrangeiros.
O assinalado por banda das testemunhas (…..) foi ainda o afiançado talqualmente por parte da testemunha (…..), funcionário da sociedade arguida entre 2008 e Maio de 2017, o qual identificou de forma espontânea o arguido (…..) como sendo o decisor do destino do referido ente colectivo, talqualmente aludindo a (…..) como uma sua mera “colega” e referindo que o arguido (…..) raramente se encontrava nas instalações da empresa, encontrando-se amiúde no estrangeiro e sendo responsável pelos clientes sedeados fora do território nacional, sendo de salientar que esta foi precisamente a mesma versão que foi apresentada por parte das testemunhas (…..), funcionária de uma das empresas que integrava o grupo atinente à sociedade arguida, laborando nas instalações desta, e (…..), esta tendo sido funcionária entre os anos de 2008 e 2011, ambas mantendo um relato consentâneo com o dos demais depoentes, assinalando que as funções de administração resultavam atribuídas unicamente ao arguido (…..), tratando os coarguidos (…..) e (…..) de meros funcionários.
De resto, a mesma tónica aferiu-se por subjazer de (…..), trabalhador da sociedade arguido durante o ano de 2016, o qual referiu desconhecer que (…..) fosse administradora da empresa, assinalando que se tratava de funcionária do departamento de marketing e assinalando que nem todas as decisões atinentes a este departamento tinham como responsável final a mencionada arguida, reconhecendo-a como uma qualquer funcionária, e, no que concerne ao arguido (…..) assinalando que poucas vezes esteve com o mesmo por este se encontrar frequente ausente no estrangeiro.
Por seu turno, a testemunha (…..), trabalhadora da sociedade arguida no período de 2011-2017, pese embora conhecedora que os três arguidos pertenciam à “Direcção” da empresa, referiu desconhecer quaisquer reuniões da aludida Direcção, não tendo assistido a qualquer uma, não sabendo quem decidia sobre a realização ou não de pagamentos, em todo o caso acabando por referir que quem mandava na sociedade arguida era o arguido (…..).
Em suma, não a apenas as versões dos arguidos foram consentâneas entre si no sentido de infirmarem o teor da peça acusatória no que se refere à administração de facto alegadamente prosseguida por parte dos arguidos (…..) e (…..), como certo é que todas as testemunhas supramencionadas talqualmente infirmaram esse circunstancialismo, daí que a matéria inscrita na acusação, na parte em que se referia à gestão de facto por banda de tais arguidos e tomada de decisões por estes alegadamente encetadas, nomeadamente no que se atém à não entrega das contribuições à Segurança Social, não se tenha consolidado.
Sedimentou-se essa matéria, todavia, no que concerne ao arguido (…..), não apenas porque a prova testemunha referida supra sempre o colocou como decisor efectivo do destino da sociedade arguida, mas também porque tal sujeito processual assumiu nas suas declarações a efectiva gestão de tal ente colectivo, assinalando que foram satisfeitos os salários dos trabalhadores da sociedade e que foi sua opção não proceder à entrega à Segurança Social dos montantes retidos a propósito de tais remunerações, justificando que essa opção foi tomada ante as dificuldades económicas da sociedade arguida e das empresas por si geridas, aplicando aquelas quantias na gestão da própria empresa, primordialmente para pagamento dos próprios salários e no giro da empresa, já não fluindo das suas declarações que as tenha integrado no seu próprio património (isto é, o do ora arguido), sendo que não foi produzida qualquer prova neste sentido e, assim, a não demonstração dos segmentos correspondentes que surgiam inscritos na acusação.
Importa, aliás, considerar que o quadro de dificuldade económica da sociedade arguida foi asseverada por banda de todos os depoentes que se identificaram supra enquanto seus trabalhadores, explicando inclusivamente que a mesma tinha dificuldade no que tange a satisfazer os ordenados no momento em que se vencia a correspondente obrigação de pagamento, havendo atraso de alguns dias no cumprimento, explicando, aliás, que as sociedades que integravam o grupo a que se porta a sociedade arguida tinham dificuldade em cobrar as dívidas dos correspondentes clientes e, assim, ficando exaurida a capacidade económica da mesma, o que ora talqualmente se inscreve de entre a factualidade demonstrada.
De resto, como se viu, os coarguidos (…..) e (…..) não eram administradores de facto da sociedade arguida, nada decidindo a respeito dos destinos da mesma e, por isso, nem sequer lhes estando atribuída qualquer tarefa efectiva no sentido de entregarem os montantes deduzidos aos salários dos trabalhadores do mencionado ente à Segurança Social ou de decidirem o que quer que fosse a este respeito e, por essa via, surgindo inviável considerar que estabeleceram um plano com o coarguido (…..) no sentido de efectivamente ser retida e não entregue àquele organismo qualquer montante.
Ademais, se é certo que se demonstrou, nomeadamente por via das correspondentes declarações, que a decisão de reter os montantes atinentes aos descontos efectuados nas retribuições partiu do arguido (…..) enquanto administrador de facto da sociedade, cumpre salientar que não foi feita prova no sentido de atestar que este tenha formulado qualquer plano inicial nesse sentido. Mais concretamente, não se sedimentou a versão inscrita na acusação segundo a qual este arguido – mormente com os demais – formulou um propósito inicial de proceder da aludida forma e que esse desígnio ocorreu em momento anterior a Fevereiro de 2014.
Com efeito, não somente não foi produzida prova no sentido de confirmar o trecho ora destacado da acusação pública, o que logo acarretaria a sua não demonstração, como é de ter em atenção o já referido cenário em que ocorre a retenção dos aludidos montantes. Ou seja, no contexto de uma dificuldade económica da sociedade arguida, motivada pela circunstância de as empresas que integram o correspondente grupo não receberem regularmente dos respectivos clientes, tratando-se, assim, inclusivamente de circunstancialismo de carácter variável e incerto, na medida em que o arguido decerto não saberia de antemão quando e em que montantes eventualmente aqueles clientes regularizariam ou não aquelas dívidas e quando e em que medida teria de se socorrer das contribuições devidas à Segurança Social para satisfazer o pagamento dos salários dos colaboradores da sociedade arguida e fazer face e outras despesas correntes inerentes ao funcionamento desta e, assim, antes se aferindo que a avaliação dessa necessidade não foi feita no momento único inicial, ainda previamente a Fevereiro de 2014, o que obstaculiza, portanto, que se dê como provado que o arguido tenha planeado a não entrega contínua das contribuições nos termos em que era feita menção na acusação.
Importa, aliás, ter em mente que subsistiram interregnos por referência aos quais não ocorreu a omissão de entrega das contribuições devidas à Segurança Social, o que acaba por contrariar a existência do aludido plano inicialmente formulado, pois que a existir tenderia a referir-se a uma sucessão integralmente contínua de períodos (meses) contributivos.
Sem embargo do que se vem referindo, é ainda de contextualizar que o arguido (…..) mencionou que foi sua pretensão proceder à alienação da sua participação na sociedade arguida, chegando a apalavrar esse negócio, explicando que os adquirentes inclusivamente assumiriam todas as dívidas, porém reconhecendo que, a respeito dos períodos identificados na acusação, era ele o efectivo administrador da sociedade arguida e que a supramencionada retenção dos descontos efectuados a propósito das remunerações dos trabalhadores da sociedade decorreu de decisão sua.
Relativamente à identificação dos períodos a respeito dos quais incidiu o respectivo desconto, o valor das remunerações e o montante retido por banda da sociedade – como vimos por decisão do arguido (…..) –, o Tribunal, para além de considerar as declarações do referido arguido, talqualmente teve em atenção o depoimento da testemunha (…..), técnico superior do Instituto da Segurança Social, o qual confirmou o teor da acusação neste tocante, explicando que o montante aí mencionado é o que presentemente ainda se mantém por entregar à Segurança Social, dando nota que não foi realizado qualquer pagamento abate parcial ou celebrado qualquer plano de pagamentos.
Complementarmente ao depoimento da testemunha (…..), o Tribunal teve ainda em consideração a prova documental, referindo-nos ao mapa de montantes retidos que consta de fls. 146-147 e que corresponde, precisamente, ao que surge elencado na peça acusatória a este respeito. Por outro lado, no que se atém à circunstância de a sociedade arguida ter trabalhadores ao respectivo serviço, tal, para além de decorrer da prova testemunhal já assinalada supra, decorre ainda do extracto global de remunerações de fls. 208-248 e de fls. 466-561, conjugados com o teor dos recibos de remuneração de fls. 274-280, 289-303, 307-350 e 354-397, daqui também decorrendo que a sociedade arguida, por via da intervenção do seu administrador, o ora arguido, procedia ao pagamento das remunerações atinentes aos seus trabalhadores procedendo aos descontos incidentes sobre essas retribuições, em todo o caso tratando-se de circunstancialismo também afirmado pelos depoentes trabalhadores da sociedade e pelo próprio arguido (…..).
Relativamente à circunstância de os descontos incidentes sobre as remunerações não terem sido entregues à Segurança Social, mormente a respeito do período de noventa dias seguinte ao termo do prazo para o efeito, este circunstancialismo, para além de decorrer das declarações do próprio arguido (…..), também foi afiançado, como já referido, pela testemunha (…..), reiterando-se que deu nota que as correspondentes quantias continuam por entregar à Segurança Social.
Prosseguindo, agora desta feita no que tange aos arguidos terem sido notificados para proceder ao pagamento das quantias retidas, juros e acréscimos legais, por referência a um prazo de trinta dias, cumpre salientar que os autos evidenciam a realização das mesmas no tocante aos arguidos (…..), (…..) e à sociedade arguida, conforme resulta, respectivamente, de fls. 440, 408 e 691, todavia no que tange à arguida (…..), pese embora o teor de fls. 135, é de assinalar que é aí mencionada a recusa da referida arguida assinar a notificação em apreço, todavia sem que o acto de recusa surja certificada por qualquer pessoa concreta, nomeadamente por aquela que resultaria a proceder à notificação, o que implicou inclusivamente que o Ministério Público, ainda em fase de inquérito e conforme melhor resulta de fls. 596 tenha declarado a irregularidade de tal acto e ordenado a sua repetição, mas sem que se afira que o mesmo efectivamente tenha sido repetido e, assim, sem que os autos enquadrem que a referenciada arguida tenha sido notificada nos termos em alusão, não se demonstrando, por isso, a factualidade que resulta inscrita na acusação a este propósito e, naturalmente, no que se atém meramente à arguida (…..).
É ainda de salientar que o depoimento da testemunha (…..), inspectora do departamento de fiscalização da Segurança Social, não se aferiu por relevante na formação da convicção do Tribunal, pois que meramente aludiu ter realizado as inquirições referentes à fase de inquérito.
No que concerne à factualidade referente ao elemento subjectivo, importa considerar que a mesma somente se sedimentou no que tange ao arguido (…..) (e, inerentemente, no que se atém à sociedade arguida), já não a propósito dos demais arguidos ante a circunstância de não se ter sedimentado qualquer intervenção de sua parte, mormente no que se atém à efectiva administração da sociedade arguida.
No que tange à ausência de condenações sofridas por banda da sociedade arguida e da arguida (…..) o Tribunal teve em consideração o teor do certificado de registo criminal de fls. 815 e 816 sendo que a propósito das condenações sofridas pelos arguidos (…..) e (…..) considerou os certificados de registo criminal que constam, respectivamente, de fls. 817-821 e de fls. 822-824.
No que tange às condições pessoais e económicas de cada um dos arguidos, o Tribunal teve em mente o teor das respectivas declarações, as quais se aferiram por verosímeis.
Relativamente à circunstância de a sociedade arguida não apresentar contas desde o ano de 2017, o Tribunal teve em atenção o teor da certidão de registo comercial de fls. 788 e seguintes.

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B.2 – Cumpre conhecer.
B.2.1 – O âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência, ou não, dos vícios indicados no art. 410°, n.° 2, do Código de Processo Penal de acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das secções do STJ de 19/10/95 in D.R., I-A de 28/12/95.
A questão suscitada pelo recorrente limita-se a ser a opção pela pena de prisão e a suspensão da sua execução sob condição de pagamento da quantia em dívida (147.116,78 €) no prazo de suspensão (5 anos).
***
B.2.2 – A questão que vem de se suscitar no presente processo não é nova e subsiste desde a vigência do nº 1 do art. 14º do RGIT - que estabelece que a suspensão da execução da pena de prisão é sempre condicionada ao pagamento da quantia em dívida fiscal ou para-fiscal – desde logo na jurisprudência constitucional e, posteriormente, no confronto com o AUJ (Acórdão de Uniformização de Jurisprudência) nº 8/2012 - Diário da República, 1.ª série, n.º 206, de 24 de outubro de 2012 – que, enfrentando a incongruência de tal opção legislativa no regime das penas, veio a estabelecer a seguinte jurisprudência obrigatória: .
«No processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia.»
É despiciendo tentar historiar a evolução legislativa e doutrinária prévia à prolação de tal aresto, que se entende sabida, bem como da posterior (feita, aliás, pela decisão recorrida), já que a questão se limita a retirar as devidas consequências para o caso concreto daqueles dois parâmetros, o normativo e o jurisprudencial.
E no caso concreto o tribunal recorrido decidiu:
C. Condenar o arguido (…..) pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social continuado do artigo 107.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 15/2001, de 05/06 (Regime Geral das Infracções Tributárias), com referência com artigo 105.º, n.ºs 1 e 4, alíneas a) e b), do mesmo diploma legal, conjugado com o artigo 30.º, n.º 2, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão;
D. Considerar não verificada a agravação a que se reporta o artigo 105.º, n.º 5, do Regime Geral das Infracções Tributárias, para o qual remete o n.º 2 do artigo 107.º do mesmo diploma legal.
E. Suspender a execução da pena privativa da liberdade identificada em C. pelo período de 5 (cinco) anos, condicionando a suspensão à entrega por parte do arguido (…..), durante este período da suspensão, da quantia de € 147.116,78 (cento e quarenta e sete mil cento e dezasseis euros e setenta e oito cêntimos), e respectivos acréscimos legais ao Instituto de Segurança Social, devendo esse pagamento ser documentalmente comprovado nos autos até ao termo do período de suspensão;
F. Condenar a sociedade “…..” pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social continuado do artigo 107.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 15/2001, de 05/06 (Regime Geral das Infracções Tributárias), com referência com artigo 105.º, n.ºs 1, e 4, alíneas a) e b), do mesmo diploma legal, por referência ao artigo 7.º também do Regime Geral das Infracções Tributárias, na pena de 320 (trezentos e vinte) dias de multa à taxa diária de € 5 (cinco euros), perfazendo o montante global de € 1.600 (mil e seiscentos euros);
G. Considerar não verificada a agravação a que se reporta o artigo 105.º, n.º 5, do Regime Geral das Infracções Tributárias, para o qual remete o n.º 2 do artigo 107.º do mesmo diploma legal.
H. Condenar o arguido (…..) e a sociedade “…..” na satisfação individual das custas processuais, fixando a taxa de justiça no montante equivalente a 2 (duas) unidades de conta.
E os factos relativos ao arguido e às penas do caso concreto são claros e objectivos:
23. O arguido vive na casa de um filho, sendo auxiliado economicamente por este.
24. Não exerce actividade profissional, encontrando-se desempregado e não auferindo o correspondente subsídio.
25. Foi declarado insolvente.
26. Enquanto habilitações literárias tem o 4.º ano de escolaridade.
É sabido que neste tipo de criminalidade as “estórias” sobre a situação económica das empresas, instrumento do ilícito, e dos próprios gerentes e administradores, são variadas e imaginativas, mas o que releva agora é apenas aquilo que resultou provado.
E aquilo que resultou provado é que o recorrente foi declarado insolvente e não se demonstra que tenha meios para pagar a indemnização fixada. Pode argumentar-se – e bem – com a «Cláusula de regresso de melhor fortuna», mas com requisitos e consequências civis, que não penais, pois que o ordenamento jurídico penal não permite que a forma de execução de uma pena dela esteja dependente.
Aliás, o aresto (AUJ) é claro quanto à necessidade de análise económica da “situação futura”, que não pode ser feita com apelo a uma imponderável e indeterminada cláusula de “melhor fortuna”.
O problema colocado nos autos não se insere na querela jurisprudencial sobre a constitucionalidade do art. 14º, nº 1 do RGIT, como claramente resulta da jurisprudência constitucional, que já se debruçou bastas vezes sobre esse tema, conforme se demonstra na sentença recorrida, e da proibição da “prisão por dívidas”.
Aliás, os textos legais invocados nessa sede a propósito deste último tema são de uma clareza exemplar quer na CEDH, quer no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos.
Na CEDH o artigo 11º do Protocolo nº 4 à CEDH em que se reconhecem certos direitos e liberdades além dos que já figuram na Convenção e no Protocolo adicional à Convenção (Estrasburgo, 16.9.1963), afirma cristalinamente – com a epígrafe «Proibição da prisão por dívidas» - que “Ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual”.
Nos mesmíssimos termos o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966), igualmente no artigo 11º dispõe que “Ninguém poderá ser preso apenas por não poder cumprir com uma obrigação contratual”.
Ora, não estamos no âmbito de uma obrigação contratual, sim no campo de acção de uma previsão penal, sendo certo que o Tribunal Constitucional, pelo menos desde o acórdão nº 663/98 (sendo relator o cons. Sousa Brito), tornou cristalino que «Há que concluir como no acórdão nº 440/87: "tem, pois, de considerar-se como princípio constitucional consignado nas nossas Constituições - e aqui interessa apenas a de 1976 - a proibição da chamada "prisão por dívidas».
Mas logo acrescentava, “Também é claro que o conjunto de razões invocadas para a proibição de prisão por dívidas não se aplica quando a obrigação não deriva de contrato mas da lei”.
Que é o nosso caso, de crimes fiscais com regime especial, onde a suspensão da pena tem regime diverso dos crimes ditos “comuns”.
Logo, o problema não se restringe a uma análise ao nível do ordenamento constitucional, sim o de saber se ao nível do ordenamento ordinário a decisão recorrida é passível de censura e como!
Quando o AUJ nº 8/2012 afirma que nos crimes fiscais a suspensão da pena fica obrigatoriamente condicionada «de acordo com o artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia» está a consagrar uma nulidade de sentença que, a existir, exige um facere ao tribunal com uma consequência implícita, a de que - caso a “concreta situação económica presente e futura” do arguido obrigado não permita o pagamento da indemnização a que foi condenado – daí retire a sua consequência em termos decisórios.
E essa consequência não pode ser o “voltar atrás” lógico e sistemático para encontrar nova pena que, no caso (como aliás bem afirma o tribunal recorrido) não pode ser a pena de multa (nem outra qualquer pois que legalmente inviabilizadas e desadequadas), tendo que ser necessariamente a pena de prisão.
Tal situação, após a volta do “carrocel lógico e sistemático”, esbarrando de novo na letra do art. 14º, nº 1 do RGIT, voltaria a ter que enfrentar o mesmíssimo problema não resolvido. E andamos a brincar aos carrocéis lógicos e sistemáticos para ficar no mesmo patamar de indecisão! Trata-se, portanto, de um círculo vicioso dogmático do qual há que sair!
Então perguntar-se-á: que deve desaparecer da decisão, a que comando obedece o Juiz? Ao art. 14º do RGIT desprezando o AUJ nº 8/2012, a situação concreta do arguido e a natureza das penas, ou dando prevalência a estas, desprezando aquele?
O problema coloca-se realmente.
E o elenco de acórdãos de tribunais superiores posteriores ao AUJ dá bem nota disso.
Mas, com o devido respeito, bem parece que surpreendidos e enredados nesta aparente contradição, não se teve em devida conta que nos assemelhamos a um cardume de peixes enredados e debatendo-se numa rede piscatória, sem lhe encontrar um buraco salvífico.
Mas - e isso não tem sido enfrentado com a devida clareza e frontalidade - o problema é anterior à jurisprudência referida (AUJ nº 8/2012).
Esta contradição aparente é resultado de duas leis contraditórias. Melhor dito, contradição entre uma lei (art. 14º, nº 1 do RGIT) e um sistema de penas que exige que a pena aplicada seja concreta, justa e adequada ao crime e seu agente, nas condições existentes à data da sentença. A aplicação de uma pena concreta a um cidadão não é uma abstracção, não pode resultar de lucubrações dogmáticas, nem pode ser relegada para o futuro incerto de uma possível interpretação legal – que pode falhar – operada por outros agentes, já em regime de saber a razão do incumprimento, que se sabe de antemão que ocorrerá.
Basta pensar num qualquer despacho tabelar que, após incumprimento, não dê relevo aos factos existentes à data da sentença e se limite a revogar a suspensão da execução da pena.
Poderá uma pena – para mais de prisão – estar sujeita a uma condição cuja verificação se sabe já não vir a ser preenchida?
A resposta a esta dúvida tem que ser encontrada em duas sedes: uma a da interpretação da lei, outra a restrição operada pelo AUJ nº 8/2012.
Quanto à primeira, se bem que a tentação seja grande para operar uma interpretação ab-rogante lógica, pois que as duas “normas” contêm critérios valorativos contraditórios (pena concreta justa, adequada e formalizada à data da sentença versus cobrança fiscal a todo o custo), a literalidade dos dois regimes (o da pena e o fiscal) contém um espaço de compatibilização dado, precisamente, pelo AUJ nº 8/2012.
E aqui Baptista Machado (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1983, pag. 186) e Manuel de Andrade (Ensaio sobre a Teoria da Interpretação da Lei, Arménio Amado, 1963, pag149) dão clara nota de que estamos face a um quadro em que a letra da lei diz mais do que se pretendia dizer. E – afirma o primeiro dos autores citados – “Também aqui a ratio legis terá uma palavra a dizer”.
Se a pretensão do legislador do art. 14º nº 1 do RGIT é a cobrança de imposto a todo o custo, a constatação de que tal cobrança é inviável no caso concreto através do arguido, torna inviável a pretensão. “Cessante ratione legis cessat eius dispositio” (“Onde termina a razão de ser da lei termina o seu alcance”).
Ou, como afirma Manuel de Andrade, “o texto, entendido do modo tão geral como está redigido, viria a contradizer outro texto de Lei” que, aqui, é o regime de penas consagrado no Código Penal.
E esta asserção está de acordo com a regra geral de interpretação da lei contida no art. 9º do CC quando se conclui que a lei (o art. 14º do RGIT), “utilizou uma fórmula demasiado utilizou uma fórmula demasiado ampla, pois o seu sentido é mais limitado. Deve--se proceder então à operação inversa: se proceder então à operação inversa: restringir o texto para exprimir o verdadeiro sentido da lei” (Oliveira Ascensão, in “O Direito ” (Oliveira Ascensão, in “O Direito –– Introdução e Teoria Geral”, Gulbenkian, Lisboa, 3ª ed., 1983, Pa. 338).
E o citado professor vai mais longe afirmando «A prática jurídica tem demonstrado considerável relutância em admitir esta operação. Gerou--se um brocardo, que circula como moeda valida no foro: ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus. Tal afirmação não tem qualquer verdade, pois ela levaria a que nos sujeitássemos inteiramente à letra da lei. Pode aparecer uma afirmação genérica, e verificar-se depois que a regra supõe uma distinção que o texto omitiu fazer».
Ou seja, “preferindo o espírito à letra da lei só assim obedecemos efectivamente às valorações da lei. É por esta capacidade de dar o justo valor aos preceitos em causa que se distingue um jurista de uma pessoa que pode até porventura conhecer muitas leis " (ob. e loc. cit.).
Logo, impõe-se fazer interpretação restritiva do art. 14º, nº 1 do RGIT e interpretá-lo com exclusão dos casos previstos no AUJ nº 8/2012.
O que redundará na interpretação do art. 14º, nº 1 do RGIT com a restrição já prevista no AUJ nº 8/2012, da seguinte forma: “A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais (…), desde que a concreta situação económica, presente e futura, do arguido o permita, avaliada à data da prolação da sentença condenatória”.
A cobrança fiscal está “garantida” pela condenação cível e não é questão que aqui – no caso concreto - seja relevante.
Em função do que apenas haverá que alterar a decisão recorrida na parte respeitante à condição imposta à suspensão da execução da pena, que se não justifica em função do efectivamente provado nos autos.
*
C - Dispositivo
Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogam a sentença recorrida na parte em que condiciona a suspensão da execução da pena de prisão à condição de pagamento da indemnização de 147.116,78 € (cento e quarenta e sete mil cento e dezasseis euros e setenta e oito cêntimos), e respectivos acréscimos legais ao Instituto de Segurança Social.
Sem tributação.
Notifique.

(elaborado e revisto pelo relator antes de assinado).

Évora, 09 de Janeiro de 2024
João Gomes de Sousa
Filipa Costa Lourenço
Renato Barroso