Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1461/02.9PBFAR.E1
Relator: SÉRGIO CORVACHO
Descritores: DECLARAÇÃO DE CONTUMÁCIA
TRÂNSITO EM JULGADO
Data do Acordão: 06/23/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - A contumácia do arguido depende da verificação de determinados pressupostos, que são os previstos nos nºs 1 e 2 do art. 335º do CPP, tem de ser declarada judicialmente e, uma vez declarada, dá origem à suspensão da tramitação do processo, com excepção dos actos urgentes, e impõe a separação de processos, quando haja conexão deles.

- O despacho declarador da contumácia do arguido não é de mero expediente, nem corresponde ao exercício de um poder discricionário pelo Tribunal, mas antes integra uma decisão de mérito interlocutória, que está sujeita aos princípios gerais do esgotamento do poder jurisdicional e do trânsito em julgado.

- Uma vez transitada em julgado, a decisão impõe-se ao Tribunal que a proferiu, não podendo alterá-la, mesmo com fundamento em deficiências do processado que a antecedeu.

Decisão Texto Integral: ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I. Relatório

No processo comum nº 1461/02.9PBFAR, que corre termos no Juízo Local Criminal de Faro do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, em que é arguida EACS, pela Exª Juiz titular dos autos foi proferido, em 21/11/2018, um despacho do seguinte teor:

«---Compulsados os presentes autos, constata-se o seguinte: -----

--- - a arguida foi constituída nessa qualidade apenas com a dedução da acusação, nunca tendo prestado Termo de Identidade e Residência; -----

--- - não foi, até ao momento, notificada da acusação pública contra si deduzida; -----

--- - no despacho de recebimento da acusação pública não foi designada data para a realização da audiência de julgamento (cfr. fls, 99 a 100); -----

--- - a arguida foi declarada contumaz por despacho datado de 02 de Maio de 2007 (cfr. fls, 151);

--- - a declaração de contumácia foi precedida da afixação de editais na sequência da prolação do despacho que recebeu a acusação pública mas não designou data para a realização da audiência de julgamento. -----

--- Conforme resulta do disposto no art. 335.°, 1, do Código de Processo Penal, a declaração de contumácia depende sempre da impossibilidade de notificar o arguido do despacho que designa data para a audiência de julgamento, sendo que é nessa sequência que se procede à afixação de editais. -----

--- Ora, considerando que, no presente caso, a declaração de contumácia não decorreu da falta de notificação da arguida para a audiência de julgamento, a qual nem sequer foi designada, entende-se que tal declaração não observou os requisitos a que alude o art. 335.° do Código de Processo Penal, pelo que padece de irregularidade nos termos do art. 118.°, 2, do Código de Processo Penal, irregularidade essa que é de conhecimento oficioso em face das consequências que resultam da mesma e por afectar o valor da declaração de contumácia (art. 123.°,2, do Código de Processo Penal). -----

--- A este respeito, lê-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 04/11/2010, no processo n." 1482/08.8PJLSB-AL1-9, que: -----

--- "Só a declaração de contumácia permite a situação processual de suspensão dos termos do processo por ausência do arguido) como aliás resulta do disposto no art. 335. ~ n.º 1 do C. P. Penal. -----

--- Tal declaração só poderá decorrer desde que gorada a notificação do despacho (complexo) que designa dia para a audiência) que legalmente a precede. -----

--- E só poderá haver lugar à declaração de contumácia) quando se regista a não comparência à audiência) por não ser possível a notificação do arguido que não prestou termo de identidade e residência) o que pressupõe a prévia e exigível marcação da mesma. -----

--- Sendo) pois) pressuposto para a declaração de contumácia a prévia marcação de uma efectiva data para a audiência de julgamento) a omissão dessa diligência) sem a qual tal declaração não poderá ocorrer, como resulta do disposto no n.º 1 do art. 335.º do CPP. Penal, não configura a prática de acto inútil posto que tal acto visa assegurar um dos requisitos exigíveis para a verificação de tal declaração. -----

--- Concluindo: Não podendo haver declaração de contumácia) sem que antes tenha havido uma prévia designação de data para julgamento) a marcação desta) mesmo que se venha a reputar como frustrada) pelo desconhecimento do paradeiro do arguido) não configura a prática de acto inútil posto que só após essa notificação pode o arguido ser notificado por éditos até 30 dias) sob pena de ser declarado contumaz. -----

--- Só a declaração de contumácia tem a virtualidade de suspender os ulteriores termos do processo. -----

--- Essa declaração não pode ser adiada com diligências tendentes à localização do paradeiro do arguido, posto que a mesma, conforme resulta dos arts. 120.º e 121.º do C. Penal, configura uma das causas suspensivas e interruptivas do procedimento criminal." -----

--- Entende-se, pois, que a declaração de contumácia da arguida EACS é irregular, nos termos dos arts. 118.°,2, e 123.°, 1 e 2, ambos do Código de Processo Penal, o que implicará a sua cessação com efeitos à data da sua declaração - 02 de Maio de 2007 - com a correspondente invalidade dos demais actos praticados em consequência da mesma. -----

*

--- Face ao exposto, nos termos dos arts. 118.°,2, e 123.°, 1 e 2, ambos do Código de Processo Penal, declaro, para todos os efeitos, a irregularidade da declaração de contumácia da arguida EACS por inobservância dos requisitos previstos no art. 335.° do Código de Processo Penal, declarando-se a mesma cessada com efeitos à data da sua declaração ¬02 de Maio de 2007 - e, em consequência, determino: -----

--- - a eliminação da declaração de contumácia no registo de contumazes com indicação do respectivo motivo (irregularidade) e data de efeitos da cessação (02 de Maio de 2007, remetendo cópia do presente despacho - art. 337.°, 6, do Código de Processo Penal e art. 19.°,3, c), e 21.°, 1, do Decreto-Lei n.º 381/98, de 27/11; -----

--- - a pertinente comunicação da cessação da contumácia às entidades às quais a sua declaração haja sido comunicada, remetendo cópia do presente despacho; -----

--- - a invalidade e correspondente ineficácia de quaisquer mandados de detenção da arguida, considerando-se os mesmos sem qualquer efeito; -----

--- - a comunicação da cessação da contumácia a todos os Órgãos de Polícia Criminal, com a informação de que ficam sem efeito quaisquer mandados de detenção da arguida que aí se encontrem pendentes, remetendo cópia do presente despacho; -----

--- - a invalidade dos demais actos praticados em consequência da declaração de contumácia (incluindo a inscrição no SIRENE, se efectuada). -----

--- Notifique. -----

***

--- Declarada a irregularidade da declaração de contumácia da arguida EACS, e cessada a mesma com efeitos à data da sua declaração - 02 de Maio de 2007 -, importa agora apreciar da eventual prescrição do procedimento criminal. -----

--- Compulsados os presentes autos, constata-se o seguinte: -----

--- - Contra a arguida foi deduzida acusação pública pela prática, em 09 de Agosto de 2002, de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256.°, 1, b) e 3, do Código Penal, o qual é punivel, na moldura abstracta, com pena de prisão de 6 meses a 5 anos ou com pena de multa de 60 a 600 dias; -----

--- - A acusação pública deduzida nos autos não foi, até ao momento, notificada à arguida. -----

--- Considerando o supra exposto e tendo por presente as disposições legais contidas nos arts. 118.°, 1, alínea b), e 119.°, 1, ambos do Código Penal, temos por certo que o prazo de prescrição do presente procedimento criminal é de 10 anos, e que tal prazo de prescrição se iniciou em 09 de Agosto de 2002. -----

--- Ora, declarada cessada a contumácia da arguida, por irregularidade, com efeitos à data da sua declaração, deixa de verificar-se, nos presentes autos, a causa de suspensão e de interrupção do prazo de prescrição do procedimento criminal, prevista nos arts. 120.°, 1, c), e 121.°, 1, c), do Código Penal. -----

--- A prescrição do procedimento nunca se interrompeu. -----

--- Assim, em 09 de Agosto de 2012, decorridos 10 anos sobre o inicio do prazo, veio a ocorrer a prescrição do presente procedimento criminal. -----

--- Por todo o exposto, e ao abrigo do disposto nos arts. 118.°, 1, b), 119.°, 1, 120.°, a contrario e 121.°, 1, a), todos do Código Penal, declaro extinto, por prescrição, o presente procedimento criminal. -----

*

--- Notifique. -----»

Do despacho proferido o MP interpôs recurso, devidamente motivado, formulando as seguintes conclusões:

1 - Nos presentes autos a arguida EACS foi acusada pela prática, em 09 de Agosto de 2002, de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256.°, 1, al. b) e 3, do Código Penal.

2 - A arguida foi declarada contumaz por despacho datado de 02 de Maio de 2007 (cfr. fls. 151).

3 - Por Douto Despacho recorrido proferido em 21.11.18, constante de fls. 179 a 182, o Tribunal a quo que declarou, "para todos os efeitos legais, a irregularidade da declaração de contumácia da arguida EACS, por inobservância dos requisitos previstos no art. 335.° do Código de Processo Penal, declarando-se a mesma cessada com efeitos à data da sua declaração - 02 de Maio de 2007", com a correspondente invalidade dos demais actos praticados em consequência da mesma, em virtude de ter verificado que o despacho que recebeu a acusação pública não designou data para a realização da audiência de julgamento, antes de os autos avançarem para a declaração de contumácia.

4 - Todavia, o Tribunal a quo não podia apreciar o mérito do despacho judicial proferido em 02 de Maio de 2007, constante de fls. 151, que declarou a contumácia da arguida EACS, pois trata-se de um despacho de mérito susceptível de recurso, e, ao fazê-lo, violou o caso julgado.

5 - Na verdade, o referido despacho foi notificado ao Ilustre Defensor por notificação postal remetida em 03.10.2007 (fls. 153) e notificado ao MP em 3.10.2007 (fls. 152). Nenhum sujeito processual reagiu contra o seu conteúdo, tendo transitado em julgado decorrido o prazo de recurso, com as legais consequências.

6 - No Douto Despacho recorrido foi realizada uma errada interpretação do disposto no referido artigo 123.° do CPP, pois a previsão do n.º 2 diz respeito a irregularidades na tramitação dos autos (v. g., notificações e prazos) e não ao conteúdo dos despachos e interpretações realizadas para sustentar a decisão proferida. Dito de outra forma, no caso em apreço não foi praticada qualquer irregularidade processual, podendo apenas falar-se de uma, eventual, interpretação errada do regime da contumácia e dos seus pressupostos.

7 - Por outro lado, os artigos 118.°,2, e 123.°, 1, ambos do Código de Processo Penal, devem ser interpretados no sentido de as irregularidades susceptíveis de reparação oficiosa dizerem respeito a acções ou omissões relacionados com a tramitação dos autos e não directamente com o conteúdo do mérito dos despachos judiciais decisórios, dando conteúdo à máxima antiga «dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se".

8 - O artigo 335.°, 1, do Código de Processo Penal, deve ser interpretado no sentido de o despacho que declara a contumácia de arguido ser um despacho de mérito e que transita em julgado, caso não seja objecto de recurso.

9 - O Tribunal a quo ao proferir o despacho recorrido violou o caso julgado, "tratando-se de uma excepção dilatória que se traduz num pressuposto processual negativo" que impedia uma nova apreciação daquela matéria anteriormente decidida - citando o Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.02.2012, processo 42/08.8TBMTL.E2.S1, relator Alves Velho, disponível em dgsi.pt

10 - Neste sentido, não podia a Mmª Juiz proferir um despacho cujo conteúdo na prática significou uma revogação do despacho anterior proferido por Mm" Juiz anteriormente titular, quando o poder jurisdicional já estava esgotado, verificando-se a excepção de caso julgado.

11- Nesta medida, deverá o despacho recorrido ser revogado na íntegra e substituído por Douto Acórdão que defira a promoção de fls. 178, dando sem efeito as consequências legais retiradas no Douto Despacho recorrido e elencadas a fls. 181 a 182.

12 - Em consequência, também deve ser revogado o despacho recorrido ao declarar erradamente, ao abrigo do disposto nos arts. 118.°, 1, b), 119.°, 1, 120.°, a contrario e 121.°, 1, a), todos do Código Penal, declaro extinto, por prescrição, o presente procedimento criminal, visto que ocorreu declaração de contumácia da arguida que constituiu, simultaneamente, causa de suspensão e de interrupção do prazo de prescrição do procedimento criminal, prevista nos arts. 120.°, 1, c), e 121.°, 1, c), do Código Penal, cujos efeitos devem ser mantidos e preservados.

13 - O Douto Despacho recorrido violou o disposto nos artigos 118.°, 2, e 123.°, 1 e 2, e 335.°, 1, todos do Código de Processo Penal.

14 - Pelo exposto, deverá ser proferido Douto Acórdão que revogue o Douto Despacho recorrido (proferido em 21.11.2018 e constante de fls. 179 a 182) e substituído por Douto Acórdão que defira a promoção de fls. 178, mantendo na íntegra os efeitos e a validade da declaração da contumácia da arguida EACS.

Contudo, Vªs Exas. Decidirão Conforme for de LEI e JUSTIÇA.

O recurso interposto foi admitido com subida imediata, nos próprios autos, e efeito devolutivo.

Não foram apresentadas respostas à motivação do recurso.

Pelo Digno Procurador-Geral Adjunto em funções junto desta Relação foi emitido parecer sobre o recurso em presença, no sentido da sua procedência.

O parecer emitido foi notificado à arguida, a fim de se pronunciar, não tendo exercido o seu direito de resposta.

Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se à conferência.

II. Fundamentação

Nos recursos penais, o «thema decidendum» é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, as quais deixámos enunciadas supra.

A sindicância da decisão recorrida, que transparece das conclusões do Digno Recorrente, resume-se à pretensão de reversão da declaração da irregularidade do despacho judicial de 2/5/2007, que declarou contumaz a arguida ES, repristinando-se o estatuído nesse despacho, com todas as legais consequências.

A pretensão recursiva baseia-se no entendimento de que o despacho, que declarou a contumácia do arguido, transitou em julgado e, como tal, impõe-se ao Tribunal que o proferiu, por força do princípio do esgotamento o do poder jurisdicional do Juiz.

A declaração de contumácia do arguido vem prevista no art. 335º do CPP:

1 - Fora dos casos previstos nos n.os 1 e 2 do artigo anterior, se, depois de realizadas as diligências necessárias à notificação a que se refere o n.º 2 e a primeira parte do n.º 3 do artigo 313.º, não for possível notificar o arguido do despacho que designa o dia para a audiência, ou executar a detenção ou a prisão preventiva referidas no n.º 2 do artigo 116.º e no artigo 254.º, ou consequentes a uma evasão, o arguido é notificado por editais para se apresentar em juízo, num prazo até 30 dias, sob pena de ser declarado contumaz.

2 - Os editais contêm as indicações tendentes à identificação do arguido, do crime que lhe é imputado e das disposições legais que o punem e a comunicação de que, não se apresentando no prazo assinado, será declarado contumaz.

3 - A declaração de contumácia é da competência do presidente e implica a suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação ou à detenção do arguido, sem prejuízo do disposto no n.º 4 e da realização de atos urgentes nos termos do artigo 320.º

4- Em caso de conexão de processos, a declaração de contumácia implica a separação daqueles em que tiver sido proferida.

5 - A declaração de contumácia não impede o prosseguimento do processo para efeitos da declaração da perda de instrumentos, produtos e vantagens a favor do Estado.

Por seu turno, o art. 336º do CPP dispõe sobre a caducidade da contumácia:

1 - A declaração de contumácia caduca logo que o arguido se apresentar ou for detido, sem prejuízo do disposto no n.º 4 do artigo anterior.

2 - Logo que se apresente ou for detido, o arguido é sujeito a termo de identidade e residência, sem prejuízo de outras medidas de coacção, observando-se o disposto nos n.os 2, 4 e 5 do artigo 58.º

3 - Se o processo tiver prosseguido nos termos da parte final do n.º 5 do artigo 283.º, o arguido é notificado da acusação, podendo requerer abertura de instrução no prazo a que se refere o artigo 287.º, seguindo-se os demais termos previstos para o processo comum.

O art. 123º do CPP define o regime de cognição das irregularidades:

1 - Qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado.

2 - Pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afectar o valor do acto praticado.

O regime das nulidades e irregularidades processuais tem de ser aplicado e interpretado de forma a não colidir com outros princípios da lei de processo, como o trânsito em julgado das decisões judiciais ou o esgotamento do poder jurisdicional do Juiz, a que se referem os arts. 619º e 613º do CPC, extensivos ao processo penal «ex vi» do art. 4º do CPP, os quais a seguir reproduzimos:

- Art. 619º do CPC

1 - Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º.

2 - Mas se o réu tiver sido condenado a prestar alimentos ou a satisfazer outras prestações dependentes de circunstâncias especiais quanto à sua medida ou à sua duração, pode a sentença ser alterada desde que se modifiquem as circunstâncias que determinaram a condenação.

- Art. 613º do CPC

1 - Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.

2 - É lícito, porém, ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes.

3 - O disposto nos números anteriores, bem como nos artigos subsequentes, aplica-se, com as necessárias adaptações aos despachos.

Do regime emergente dos normativos agora transcritos apenas se excluem os despachos de mero expediente ou os que corresponderem ao exercício de um poder discricionário do Juiz.

O Digno Recorrente mobiliza a favor da sua pretensão o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça identificado no ponto 9 das conclusões da motivação do recurso.

Contudo, tal Aresto foi proferido num processo de natureza cível e não tratou especificamente da questão do trânsito em julgado da declaração de contumácia em processo penal.

Pelo contrário, temos conhecimento de um conjunto de recentes Acórdãos desta Relação de Évora (disponíveis em www.dgsi.pt), que versaram sobre a questão que agora nos incumbe dirimir, proferidos nas datas, nos processos e relatados pelos Exºs Desembargadores a seguir indicados:

- 5/11/2019, 99/07.9ZRFAR.E1, Dra. Maria Fernanda Palma;

- 10/9/2019, 129/07.4PTFAR.E1, Dr. Alberto João Borges;

- 2/7/2019, 82/10.7GDFAR.E1, Dra. Laura Goulart Maurício;

- 8/6/2019, 11/02.1ZFFAR.E1, Dra. Ana Barata de Brito;

-21/5/2019, 13/06.9ZFFAR.E1, Dra. Laura Goulart Maurício.

Todos os Acórdãos citados dirimiram a questão em apreço no sentido propugnado pelo Digno Recorrente, ou seja, que o despacho declarativo da contumácia do arguido corresponde a uma decisão de mérito do Tribunal, transita em julgado e não pode ser alterado pelo órgão que o proferiu.

Não temos conhecimento de decisão de sinal contrário.

De resto, não vislumbramos razão para não concordar com a orientação jurisprudencial agora detectada.

Na verdade, a contumácia do arguido depende da verificação de determinados pressupostos, que são os previstos nos nºs 1 e 2 do art. 335º do CPP, tem de ser declarada judicialmente e, uma vez declarada, dá origem à suspensão da tramitação do processo, com excepção dos actos urgentes, e impõe a separação de processos, quando haja conexão deles.

Nos termos dos nº s 1 e 3 do art. 337º do CPP, a declaração da contumácia pode acarretar limitações da capacidade jurídico-civil do visado e tem como consequência ao nível jurídico-penal substantivo, pelo menos, a suspensão do decurso da prescrição, por força do disposto no art. 120º nº 1 al. c) do CP.

Nestas condições, não restarão dúvidas que o despacho declarador da contumácia do arguido não é de mero expediente, nem corresponde ao exercício de um poder discricionário pelo Tribunal, mas antes integra uma decisão de mérito interlocutória, que está sujeita aos princípios gerais do esgotamento do poder jurisdicional e do trânsito em julgado.

Uma vez transitada em julgado, a decisão impõe-se ao Tribunal que a proferiu, não podendo alterá-la, mesmo com fundamento em deficiências do processado que a antecedeu.

Consequentemente, teremos de concluir que não era lícito ao Tribunal «a quo» reverter, no despacho recorrido, a declaração de contumácia do arguido decidida pelo despacho judicial de 2/2/2007, reconhecendo-se razão ao Digno Recorrente.

A repristinação da declaração de contumácia terá as consequências próprias desta e, desde logo, a suspensão dos termos do processo, com excepção dos actos urgentes.

De igual modo, não poderá subsistir o juízo de extinção do procedimento criminal, por efeito da prescrição, formulado pelo Tribunal «a quo», em consequência da invalidação da declaração de contumácia.

III. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso e revogar o despacho recorrido, repristinando a declaração de contumácia da arguida ES, decidida no despacho judicial de 2/5/2007, com todas as legais consequências, incluindo em matéria de prescrição do procedimento criminal.

Sem custas.

Notifique.

Évora, 23/6/20 (processado e revisto pelo relator)

(Sérgio Bruno Povoas Corvacho)

(João Manuel Monteiro Amaro)