Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
293/09.8PALGS.E1
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
MAUS TRATOS A MENORES
NULIDADE DE ACÓRDÃO
INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
ELEMENTO SUBJECTIVO DO TIPO DE ILÍCITO
SILÊNCIO DO ARGUIDO
Data do Acordão: 12/06/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: DECRETADO O REENVIO
Sumário: 1. Decorre da lei que o tribunal deve atender a todos os factos que o M.P. elegeu como integrantes do objecto do processo, desde que – ou sempre que – juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena (art. 124.º do CPP). Daqui decorre que a amplitude do objecto da prova – e, logo, do facto – tal como o M.P. o apresenta no processo tem como única condicionante a sua relevância para a decisão de direito.

2. Da estrutura acusatória do processo decorre que impende sobre o acusador a exposição total do facto que imputa ao arguido. Esta definição do objecto do processo implica a narração dos factos – de todos os factos – que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido. É a acusação que fixa e delimita o objecto do processo, fixando também, em consequência, os limites dos poderes de cognição do tribunal. Mas esta limitação é dupla e funciona em dois sentidos: por um lado, impede o tribunal de conhecer para lá do facto, mas, pelo outro, obriga-o a pronunciar-se até ao limite do facto narrado pelo M.P., ou seja, impede-o de ficar aquém do facto.

3. Se o M.P. cumpriu o seu dever de exposição total do facto que imputa ao arguido, narrando todos os factos geradores da responsabilidade criminal, nenhum deles pode deixar de ser objecto da discussão da causa e constar da decisão final.

4. A expressão agiu de forma livre, deliberada e consciente, sabendo a sua conduta proibida, desacompanhada de outras que no caso se imponham – consoante o tipo de crime em causa – dificilmente constituirá base factual bastante para a afirmação do dolo. A base factual tem de conter factualidade susceptível de integrar o dolo genérico.

5. E é errado pensar que tais factos – subjectivos - possam resultar logicamente dos factos objectivos narrados. É que uma coisa é a base factual que constitui a decisão de facto, prévia e pressuposto da decisão de direito, e outra é a prova desses mesmos factos que, esta sim, pode fazer-se com recurso a presunções e inferências lógicas.

6. Se o acórdão não só não narrou adequadamente os factos relativos ao dolo, como subtraiu, fazendo desaparecer totalmente, factos que integravam a acusação, com relevância para a decisão, ocorre o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, suprível através do reenvio para novo julgamento.

7. É juridicamente errado incluir nos factos provados que o arguido “manteve o silêncio”. O silêncio do arguido não é um facto, no sentido de facto-com-conteúdo-normativo. Não é um facto porque dele não se pode retirar qualquer consequência jurídica. O arguido não presta qualquer declaração sobre os factos que lhe são imputados no exercício de um direito que lhe é reconhecido, consagrado nos art. 61.º, n.º1, al. d), 132.º, n.º 2, 141.º, n.º4, a), e 343.º, n.º 1, do CPP e unanimemente considerado como de tutela constitucional implícita. O silêncio, mesmo que não o possa beneficiar, não pode, a nenhum título, prejudicá-lo. Logo, estamos perante um não-facto que, como tal, não poderá constar dos factos provados, na sentença.
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. No processo nº 293/09.8PALGS do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Lagos, foi proferido acórdão que condenou o arguido NM pela prática de dez crimes de abuso sexual de criança do nº 1 do artº 171º do Código Penal, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão por cada um deles, pela prática de cinco crimes de maus-tratos da alínea a ) do nº 1 do artº 152º-A do Código Penal , na pena de 20 meses por cada um deles e, em cúmulo, na pena única de 13 anos de prisão e na proibição de “leccionar a menores por 15 anos”.

Inconformado com o assim decidido, recorreu o arguido, concluindo da forma seguinte:

I – A prova constante dos autos é manifestamente insuficiente para conduzir à condenação do Arguido;

II – A prova constante das gravações da audiência são permite concluir que o Arguido tenha praticado o crime de maus-tratos sobre os seus alunos;

III – Inclusivamente a aluna MS é peremptória ao afirmar que o professor N não batia nos alunos;

IV – Os depoimentos das auxiliares não revelam quaisquer receios dos alunos perante a figura do professor N – o Arguido;

V – A aluna J afirma no seu depoimento que o professor a ela não lhe fez nada;

VI – O Mmo. a quo com a sua frase “se calhar foi bem puxado” permite identificar a atitude do Arguido como nada tendo de ilícito ou criminoso;

VII – O depoimento da aluna CS permite pressupor que o crime de abuso sexual de crianças não se tenha verificado nunca;

VIII – Mais veio informar que o L também se sentou ao colo do professor e que também levou uns calduços;

IX – O depoimento da MS, “esqueceu-se” dos abusos.

XVII – Estamos perante dois tipos diferenciados de crimes, alegadamente cometidos pelo Arguido;

XVIII – Antes de mais, considera o Arguido Recorrente, que à luz da doutrina e da jurisprudência não terá nunca praticado qualquer acto sexual com as suas alunas, seja ele de relevo ou não;

XIX – A actuação do Arguido com os seus alunos não foi em caso algum passível de fazer perigo á liberdade e/ou autodeterminação de cada uma delas individualmente considerada;

XX – A sentença proferida pelo Tribunal a quo está ferida de nulidade;

XXI – De facto, foi a mesma proferida em violação clara do disposto no art. 374º n.º 2 do C. P. P., que, por consequência se encontra violado;

XXII – Com efeito, a fundamentação, quer da factualidade dada como provada quer da sua componente jurídica;

XXIII – A motivação da decisão assume varias características na sua essência, quer no que respeita ao agente, quer ainda e não de somenos, na sua vertente pedagógica e funcional;

XXIV – A sentença condena o Arguido em mais um crime que aquele que vinha acusado;

XXV – A sentença em apreço não se baseia em qualquer prova concreta para condenar o Arguido pelos crimes de maus tratos;

XXVI – Crimes de maus tratos dos quais o Arguido deve ser absolvido;
XXVII – De igual modo se requer a absolvição dos crimes de abuso sexual de menores de que vem acusado, pois a prova produzida não permite, para além da dúvida que beneficiaria o Arguido, concluir pela verificação de tais factos ou que este tenha violado ou coarctado a liberdade e/ou a autodeterminação sexual de qualquer das alunas;

XXVIII – Quanto aos maus tratos reforça-se que as queixas iniciais não versam sequer sobre a matéria;

XXIX – Antes parecendo um forma alternativa de condenar o Arguido se os abusos não se conseguissem provar;

XXX – O Arguido não fez mais do que dar uns calduços ou ligeiros puxões de orelhas perante uma resposta ou exercícios errados, com o mesmo carinho e atitude com que dava um rebuçado no caso da resposta certa;

XXXI – Não pode pois por tal ser condenado por maus tratos;

XXXII – Verifica-se, pois, uma gritante violação do disposto no artigo 152-A do C. P.

XXXIII – A medida da pena encontrada e aplicada ao Arguido encontra-se manifestamente fora do contexto das decisões proferidas pelos tribunais;

XXXIV – Atentado de forma drástica contra a jurisprudência dos nossos tribunais;

XXXV – A pena aplicável ao Arguido está em total desconformidade com a conduta resultante da prova produzida;

XXXVI – Bem como totalmente desajustada à culpa do Arguido;

XXXVII – A douta sentença em apreço viola ainda o artigo 30º n.º 2 e 3 do C. P. ao não qualificar os eventuais crimes de abuso sexual de menores como crime continuado contra cada uma das vitimas;

XXXVIII – Para alem da “frontalidade” a douta sentença não fundamenta porque razão considera não dever aplicar in casu o instituto do crime continuado;

XXXIX – O que constitui mais um motivo de nulidade por violação do disposto no artigo 374º, n.º 2 do C.P.;

XL – A aplicação de tal, admitindo-se a autoria dos crimes, permitirá, tendo em conta as atenuantes que abonam em favor do Arguido, a aplicação de pena pelos mínimos legais admissíveis;

XLI – O que permitirá a suspensão da execução da pena nos termos do artigo 50º do C.P.

XLII – Normativo que, em consequência, se encontra, a par do artigo 30º n.º 2 e 3 do C.P., também violado;

XLIII – A suspensão da execução da pena que vier a ser aplicada ao Arguido impõe-se e exige-se, pois é a única forma de promover decente e eficazmente a reintegração social do Arguido;

XLIV – O que se pretende.”

O M.P. respondeu ao recurso pronunciando-se no sentido da rejeição do recurso perante o incumprimento das exigências previstas no art. 412º, nºs 3 e 4 do CPP e sua apresentação no prazo ampliado de trinta dias; e, caso assim não se entenda, pela confirmação da decisão recorrida.

Neste Tribunal, o Senhor Procurador-geral adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência da questão prévia suscitada pelo M.P. da 1ª instância, não devendo haver lugar a rejeição do recurso que, pelo contrário, deve ser julgado procedente, por ocorrência de vício do art. 410º, nº2 do CPP e de nulidade do acórdão.

Colhidos os Vistos, teve lugar a Conferência.

2. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, independentemente do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410º, nº2 do CPP (AFJ de 19.10.95), as questões a apreciar são as seguintes:

- Impugnação da matéria de facto;
- Nulidades de sentença por falta de fundamentação;
- Erro de subsunção de direito;
- Medida da pena.

Da questão prévia suscitada pelo M.P. em 1ª instância:

Defende o M.P. em 1ª instância – mas já não aqui, neste Tribunal da Relação – que o recurso deve ser rejeitado por extemporaneidade decorrente da utilização indevida do prazo ampliado do nº 4 do art. 411º.

Não tem razão.

Com efeito, o arguido pretende impugnar a matéria de facto, em conformidade com o que a lei lhe possibilita (art. 428º do CPP) e procede para tanto de acordo com o disposto no art. 412º, nº3 do CPP, com obediência às formalidades nele exigidas.

Estabelece este normativo que, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e/ou as que deviam ser renovadas, fazendo-se essa especificação por referência ao consignado na acta devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação (art. art. 412º, nºs 3 e 4 do CPP).

A actual redacção resulta da Reforma de 2007 (Lei nº 48/2007 de 29/08), que, mantendo o modelo do recurso da matéria de facto introduzido em 1998 e partindo das mesmas regras para a impugnação em matéria de facto - ónus de especificação dos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados, ónus de especificação das provas que impõem decisão diversa da recorrida, ónus de especificação das provas que devem ser renovadas – passou a exigir a especificação dos concretos pontos de factos e das concretas provas.

O incumprimento das exigências legais, quer por via da omissão, quer por via da deficiência, obstaria ao conhecimento do recurso da matéria de facto.

Ora, discutindo o acerto da factualidade dada como provada na decisão recorrida o recorrente especifica as provas que pretende ver reapreciadas – tanto no corpo da motivação como nas conclusões – relacionando-as com os pontos de facto que pretende ver sindicados.

E fá-lo por referência às declarações das vítimas, ao depoimento das mães e ao depoimento de duas auxiliares de educação. É certo que procede às respectivas transcrições quase integrais, mas fá-lo dizendo por que razão, na sua óptica, destas se impõem conclusões probatórias diversas daquelas a que o tribunal chegou, tanto no que respeita aos factos integrantes de abuso sexual como aos factos subsumidos no crime de maus tratos, pontos de facto que sinaliza também concretamente.

Não pode assim dizer-se que o que o recorrente pede ao tribunal de recurso é apenas que proceda à reapreciação de toda a prova, fazendo um novo julgamento por discordar da forma (e dos resultados) como este foi efectuado em 1ª instância. Ele procede à impugnação da matéria de facto de forma compatível com as exigências legais, assim beneficiando do prazo ampliado em que, tempestivamente, exerceu o seu direito ao recurso, de acordo aliás com a posição constante do parecer do senhor Procurador-geral adjunto neste tribunal.

Dos vícios do art. 410º, nº2 do CPP e das nulidades de sentença:

Suscita o recorrente a questão da nulidade da sentença por deficiente fundamentação da matéria de facto, no que é secundado pelo M.P. neste tribunal da Relação, que se pronuncia ainda no sentido existência de vício do art. 410º, nº2 do CPP – insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Esta insuficiência traduzir-se-ia, na óptica do Sr. Procurador-geral adjunto, na ausência de determinação e precisão da matéria de facto provada, não podendo o acórdão, por força do vício, fundamentar uma condenação.

No acórdão condenatório foram considerados os seguintes factos provados:

“1. Durante o ano lectivo de 2008/2009 e quando o arguido era professor de uma turma do --º ano do ensino básico na Escola..., Lagos, por várias vezes sentou ao seu colo as suas alunas F ( nascida em 28.5.1998 ), M ( nascida em 20.8.1998 ), C ( nascida em 29.8.1998 ) H (nascida em 2.11.1999) e LM ( nascida em 13.10.1999 );

2. Nalgumas dessas ocasiões, na sala de aulas daquela turma e durante o decurso das mesmas, o arguido pedia àquelas alunas que o beijassem e acariciava-as nas pernas, peito e vagina, pondo por vezes as mãos por debaixo das roupas daquelas;

3. Nas mesmas circunstâncias de tempo e local, o arguido agrediu por várias vezes as suas alunas F, J (nascida em 8.8.1999), R (nascida em 13.12.1997), S (nascida em 23.8.1999) e CS (nascida em 19.10.1998), com puxões de orelhas, bofetadas e carolos;

4. Agiu o arguido de forma, livre, deliberada e consciente, sabendo as suas condutas proibidas;

5. O arguido não tem antecedentes criminais. Em audiência manteve em silêncio”

(Consigna-se que os pontos 6. a 12. (..) tratam da narração de factos pessoais do arguido)

Foram, por seu turno, considerados os seguintes factos não provados:

“Não se provaram outros factos, nomeadamente que alguma vez o arguido tenha introduzido os dedos na vagina de C, ou a tenha agredido, bem como outros concretos pormenores relativos a actuações de índole sexual sobre alunas ou de agressões às mesmas”.

De acordo com a jurisprudência fixada pelo Ac. do STJ de 19.10.1995, o tribunal de recurso conhece oficiosamente dos vícios da sentença indicados no art. 410º, nº2 do CPP.

A sua al. a) prevê a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Verifica-se este vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a decisão de direito.

E só existe quando o tribunal deixar de investigar o que devia e podia, tornando a matéria de facto insusceptível de adequada subsunção jurídica, concluindo-se pela existência de factos não apurados que seriam relevantes para a decisão da causa.

É uma “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito” (Simas Santos, Recursos em Processo Penal, 2007, p. 69).

Esta insuficiência terá de decorrer de omissão de pronúncia sobre facto alegado, ou resultante da discussão da causa, relevante para a decisão. Ou seja, sobre facto de que o tribunal não conheceu, podendo e devendo dele ter conhecido.

E para aferir da eventual omissão de pronúncia sobre facto alegado, nada como ir à acusação do M.P.

Como não houve instrução, foi esta que fixou o objecto do processo, fazendo-o da forma seguinte:

1. Durante o ano lectivo com início em Setembro de 2008 e término em Junho de 2009, o arguido NM exercia as funções de professor na escola de Ensino Básico...., em Lagos.

2.No exercício da sua actividade profissional o arguido estava incumbido de leccionar à turma 13 (treze), do 4° ano, com um horário lectivo da parte de tarde, entre as l3h15 e as l8h15. Estava ainda incumbido de dar apoio a esta turma nas disciplinas de língua portuguesa, estudo do meio e matemática, o que ocorria às quartas-feiras das 10h15 às llh15 e às sextas-feiras das 10h30 às llh15.

3. A referida turma --, do ...° ano, era composta por 22 alunos, sendo 10 deles do sexo masculino e 12 do sexo feminino.

4. Frequentavam as aulas desta turma, entre outros alunos, as menores F, nascida a 29 de Maio de 1998, M, nascida a 20 de Agosto de 1998, C, nascida a 29 de Agosto de 1998, H, nascida a 02 de Novembro de 1999, LM, nascida a 13 de Outubro de 1999; J, nascida a 08 de Agosto de 1999, R, nascida a 23 de Dezembro de 1997 e CD, nascida a 19 de Outubro de 1998.

5.Durante todo o tempo em que decorriam as aulas, no horário descrito em 1, o arguido era o único adulto que se ocupava de todos os menores que a elas assistiam, com o compromisso e encargo únicos de lhes transmitir os ensinamentos programados nas várias disciplinas.

6.As aulas da turma ---, do -° ano, decorriam normalmente numa sala do primeiro andar com o n.º -- da referida escola..., desta cidade de Lagos.

7. Desde o inicio do ano lectivo, em Setembro de 2009, que o arguido manifestava um comportamento diferente com os alunos do sexo feminino, especialmente com os identificados em 4°, uma vez que os convidava frequentemente para se sentaram no seu colo.

8°Com efeito, relativamente à menor F, a partir de data que não é possível determinar, mas cerca de duas semanas após terem iniciado as aulas em Setembro de 2008, o arguido começou a solicitar a esta criança, nessa data com cerca de 10 anos, que se sentasse no seu colo, ao que a mesma acedia.

9° Tal pedido ocorria, habitualmente, quando o arguido estava sentado na secretária destinada ao professor na sala de aula.

10° Enquanto mantinha a menor F sentada no seu colo o arguido abraçava-a e beijava-a pedindo-lhe que ela também o beijasse.

11° Quando esta usava calções metia-lhe as mãos por debaixo dos calções para desta forma lhe acariciar a vagina.

12º Quando a menor usava calças o arguido acariciava-lhe a parte superior da vagina, começando a esfregar as suas mãos por cima das calças, na zona genital.

13° O arguido também fazia deslizar a sua mão na zona do peito da menor, quer por dentro quer por fora da blusa.

14° Estes factos ocorriam com uma frequência quase diária, durante os períodos lectivos em que duravam as sessões leccionadas pelo arguido, aumentando a intensidade das carícias com o decorrer do tempo.

15° Como consequência directa e necessária dos factos descritos, a criança F sentiu-se angustiada e sem vontade de regressar à escola, pedindo aos seus pais para deixar de usar saias e calções e para mudar de turma.

16° Também durante o ano lectivo com início em Setembro de 2008 e término em meados de Junho de 2009, na sala de aula e no decurso desta, em datas que não é possível determinar, o arguido, por vezes, como forma de castigar a criança F, puxava-lhe as orelhas, tendo-lhe uma vez desferido uma bofetada, provocando-lhe dor.

17º Quanto à menor M.

Desde o início do ano lectivo, em Setembro de 2008, até meados de Maio de 2009 em datas que não é possível apurar, mas sempre no período lectivo das 13h15 e 18h15, estando o arguido sentado na sua secretária da sala de aula, convidava a criança M, nessa altura com cerca de 10 anos de idade, para se sentar no seu colo, ao que esta acedia.

18° Enquanto mantinha a criança M sentada no seu colo, o arguido acariciava-lhe a vagina, por dentro e por fora das calças, beijava-a e pedia que esta também o beijasse, e acariciava-lhe o peito, igualmente por dentro e por fora da blusa.

19° Em meados de Março de 2009, no período lectivo e na sala de aula, o arguido pediu a criança M para se sentar no seu colo.

20° Durante os cerca de 15 minutos em que esta esteve sentada no seu colo o arguido meteu a mão direita por dentro da roupa da criança e acariciou-lhe a vagina, pela parte exterior das cuecas.

21º Noutra ocasião, Na aula de quarta-feira dia 13 de Abril de 2009, entre as 17h00 e as 17h30 o arguido chamou a criança M à sua secretária para que esta se sentasse no seu colo, ao que esta acedeu.

22° O arguido sentou-a na sua perna esquerda e com a mão direita desapertou-lhe as calças.

23° Seguidamente o arguido introduziu a sua mão direita para por baixo das meias "collants" e das cuecas e mexeu-lhe na vagina, acariciando-a.

24° De seguida o arguido procurou ainda introduzir-lhe um dedo na vagina, o que apenas não veio a conseguir porque a criança apertou as pernas, impedindo-o. Nesse momento a criança pediu para ir à casa de banho.

25° Quando a criança regressou da casa de banho, o arguido estava a sua espera à entrada da sala, tendo-a abraçado com um braço e com o outro puxou a mão da criança M de modo que esta lhe tocasse no pénis, o que apenas não ocorreu porque esta puxou o braço.

26° Como consequência directa e necessária das condutas supra descritas a criança M sofreu: dores, sangramento na zona genital, vulva e intróito vaginal eritematoso.

27º Quanto à criança C.

Desde o início do ano lectivo, em Setembro de 2008, até meados de Maio de 2009 em datas que não é possível determinar, mas sempre no período lectivo das 13h15 e 18h15, estando o arguido sentado na sua secretária da sala de aula, convidava a criança C nessa altura com cerca de l0 anos de idade, para se sentar no seu colo, ao que esta acedia.

28° O arguido abria as suas pernas e fazia com que a criança se sentasse, com as pernas igualmente abertas, numa das suas pernas, e com a mão o arguido acariciava-lhe a vagina, por dentro e por fora das calças, beijava-a e pedia que esta também o beijasse, e acariciava-lhe os seios, igualmente por dentro e por fora da blusa.

29° Estes factos ocorreram durante aquele período com uma frequência diária.

30° Em algumas dessas situações, cujo número não foi possível apurar, o arguido chegou a introduzir os seus dedos na vagina da criança C.

31° Pelo menos por três vezes durante aquele período, em dias distintos e depois de ter sido acariciada pelo arguido, a criança C apresentou sangramento na zona genital.

32° Alguns dias, cujas datas e número preciso não foi possível apurar, o arguido não deixava, que a criança C fosse para o intervalo brincar para o recreio, mantendo-a dentro da sala, contra sua vontade, sentada no seu colo, enquanto a acariciava da forma descrita em 28°.

33° Em diversas ocasiões cujo número concreto não foi possível determinar, nas circunstâncias descritas, o arguido aproveitava ainda o facto de ter a criança C sentada no seu colo e roçava o seu pénis erecto na perna da criança, sempre sem retirar as calças.

34° Como consequência directa e necessária dos referidos factos a criança C sofreu dores e sangramento na zona genital, bem como uma forte angústia.

35° Quanto à criança H.

Desde o início do ano lectivo, em Setembro de 2008, até meados de Maio de 2009 em datas que não é possível apurar, mas sempre no período lectivo das 13h15 e 18h 15, estando o arguido sentado na sua secretária da sala de aula, convidava a criança H, nessa altura com cerca de 10 anos de idade, para se sentar no seu colo.

36° O arguido abria as suas pernas e fazia com que a criança se sentasse, com as pernas igualmente abertas, numa das suas pernas. Com o braço esquerdo abraçava-a e acariciava-lhe a perna e com a sua mão direita o arguido acariciava-lhe a vagina, começando por fora e passando para dentro das calças, beijava-a e pedia que esta também o beijasse, e acariciava-lhe os seios, igualmente por dentro e por fora da blusa.

37° Numa data ocorrida depois do Natal, a meio do segundo período lectivo, nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 41°, o arguido pediu à criança H que se sentasse no seu colo.

38º Durante a cerca de meia hora que a criança esteve sentada no seu colo, o arguido acariciou-lhe a vagina por dentro das calças mas por fora das cuecas.

39º Os descritos factos sofridos pela criança H ocorreram com uma frequência semanal.

40º Como consequência directa e necessária dos factos descritos a criança H sofreu: dores; sangramento na zona genital; intróito vaginal eritematoso.

41º Quanto à criança LM.

A seguir ao Natal e a meio do segundo período do ano lectivo 2008-2009 em datas que não é possível determinar, mas sempre no horário lectivo das 13h15 e 18h15, estando o arguido sentado na sua secretária da sala de aula, convidava a criança LM, nessa altura com cerca de 10 anos de idade, para se sentar no seu colo, ao que esta acedia.
42º Depois de a criança se sentar no seu colo, o arguido acariciava-lhe as pernas barriga e peito, sempre por fora da roupa.

43° No dia 15 de Abril de 2009, nas descritas circunstâncias de tempo e lugar o arguido acariciou-lhe intensamente os braços pernas e peito, enquanto a mantinha sentada no seu colo. O arguido, aproximando cada vez mais a sua mão da zona genital procurou acariciar-lhe a vagina, por fora das calças, o que apenas não ocorreu porque a criança LM, o conseguiu evitar ao desculpar-se com a necessidade de ir à casa de banho.

44° No dia 16 de Abril de 2009 o arguido voltou a agir exactamente da mesma forma que no dia anterior acariciando-lhe intensamente os braços pernas e peito. Também neste dia o arguido aproximando cada vez mais a sua mão da zona genital procurou acariciar-lhe a vagina, por fora das calças, o que apenas não ocorreu porque a criança LM, o conseguiu evitar ao desculpar-se de novo com a necessidade de ir à casa de banho.

45° Como consequência dos factos praticados pelo arguido a criança LM sofreu angústia e ansiedade.

46° Os restantes alunos da turma --- do --° ano não conseguiam ver o que fazia o arguido enquanto tinha estas crianças sentadas no seu colo porque a parte frontal da mesa destinada ao professor na referida sala 6 era revestida com um taipal de madeira que se estendia do tampo até uma zona próxima do chão.

47º O arguido sabia a idade das menores F, M, C, H e LM à data dos factos, uma vez que as mesmas eram suas alunas, estando bem ciente que estas tinham menos de 14 anos.

48° Estava também o arguido ciente que ao actuar da forma supra descrita em relação a estas crianças estava a perturbar e a prejudicar o desenvolvimento das suas personalidades bem como o são desenvolvimento da consciência sexual das menores, ofendendo os seus sentimentos de pudor.

49° Sabia o arguido que, em função da idade das crianças F, M, C, H e LM as mesmas não tinham suficiente discernimento para avaliar se os comportamentos do arguido eram ou não adequados.

50° Actuou o arguido relativamente às crianças F, M, C, H e LM fortalecido pela relação de confiança estabelecida com elas, decorrente da circunstância de ser seu professor, a exclusivo cargo de quem as mesmas eram confiadas durante o tempo de duração de cada uma das aulas onde os factos descritos ocorreram.

51º Ao agir da forma descrita, o arguido actuou com o intuito concretizado de dar satisfação aos seus instintos lascivos e libidinosos, utilizando, para tanto, as identificadas crianças, indiferente à sua idade e às consequências de tal actuação sobre os mesmos.

52º Ainda, relativamente à criança JM. Durante o ano lectivo com início em Setembro de 2008 e término em meados de Junho de 2009, na sala de aula e no decurso desta, em datas que não é possível determinar, o arguido, como forma de castigar a criança JM, puxava-lhe as orelhas, provocando-lhe dor.

53° Relativamente à criança RI. Durante o ano lectivo com início em Setembro de 2008 e término em meados de Junho de 2009, na sala de aula e no decurso desta, em datas que não é possível determinar, o arguido, como forma de castigar a criança RI, puxava-lhe as orelhas, desferia-lhe bofetadas na cara, e desferia-lhe palmadas na cabeça, provocando-lhe dor.

54° Relativamente à criança MA. Durante o ano lectivo com início em Setembro de 2008 e término em meados de Junho de 2009, na sala de aula e no decurso desta, em datas que não é possível determinar, o arguido, como forma de castigar a criança MA, e batia-lhe na zona occipital da cabeça com a mão aberta, provocando-lhe dor,

55° tendo ainda, em duas ocasiões distintas em datas que não é possível determinar, sofrido puxões de orelhas, o que lhe provocou dor.

56° Relativamente à criança CA. Durante o ano lectivo com início em Setembro de 2008 e término em meados de Junho de 2009, na sala de aula e no decurso desta, em datas que não é possível determinar, o arguido, como forma de castigar a criança CA, desferia-lhe bofetadas na cara, provocando-lhe dor.

57° Na sequência dos factos descritos, ao arguido foi aplicada, por despacho do Sr. Secretário de Estado Adjunto e da Educação de 19 de Outubro de 2009, a pena de despedimento por facto imputável ao trabalhador, no seguimento do processo disciplinar que lhe foi instaurado pela Inspecção-Geral da educação.

58° Com as condutas descritas em 16, 32, 51°, 52°, 53°, 54°, e 55°, o arguido actuou de forma deliberada e com perfeita consciência de que, reiteradamente, molestou fisicamente as crianças F, JM, RI, MA e CA, com intenção de lhes provocar as lesões que lhes causou, bem como assim actuou relativamente a C, bem sabendo que dessa forma lhe restringia a liberdade de forma injustificada, apesar de saber que tal era proibido e punido por lei.

59° Perante toda a factual idade descrita agiu sempre de forma voluntária, livre e consciente, ciente de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.”

Consigna-se que esta acusação não contem nenhum facto claramente supérfluo ou sem a mínima relevância para a decisão de direito.

Decorre da lei que o tribunal deve atender a todos os factos que o M.P. elegeu como integrantes do objecto do processo, desde que – ou sempre que – juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena (art. 124º do CPP).

Daqui decorre que a amplitude do objecto da prova – e, logo, do facto – tal como o M.P. o apresenta no processo tem como única condicionante a sua relevância para a decisão de direito.

E apesar de, como dissemos, nenhum dos factos da acusação se apresentar, à partida, como totalmente destituído de relevância para a decisão, os cinquenta e nove artigos da acusação dão inexplicavelmente lugar, na sentença, a cinco pontos de factos provados e a um (totalmente impreciso e indeterminado) ponto de facto não provado.

Da estrutura acusatória do processo decorre que impende sobre o acusador a exposição total do facto que imputa ao arguido. Esta definição do objecto do processo implica a narração dos factos – de todos os factos – que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido. É a acusação que fixa e delimita o objecto do processo, fixando também, em consequência, os limites dos poderes de cognição do tribunal.

Mas esta limitação é dupla e funciona em dois sentidos: por um lado, impede o tribunal de conhecer para lá do facto, mas, pelo outro, obriga-o a pronunciar-se até ao limite do facto narrado pelo M.P., ou seja, impede-o de ficar aquém do facto.

Ao arguido foram imputados factos objectivos e subjectivos dos crimes de abuso sexual de crianças e de maus-tratos; ou seja, a acusação continha todos os factos integrantes do tipo objectivo e do tipo subjectivo dos crimes em causa.

Tais factos teriam, por tudo, de constar obrigatoriamente do acórdão – nos factos provados ou nos factos não provados.

Mas o que aconteceu então, por exemplo, aos factos seguintes:

“47º O arguido sabia a idade das menores F, M, C, H e LM à data dos factos, uma vez que as mesmas eram suas alunas, estando bem ciente que estas tinham menos de 14 anos.

48° Estava também o arguido ciente que ao actuar da forma supra descrita em relação a estas crianças estava a perturbar e a prejudicar o desenvolvimento das suas personalidades bem como o são desenvolvimento da consciência sexual das menores, ofendendo os seus sentimentos de pudor.

49° Sabia o arguido que, em função da idade das crianças F; M, C, H e LM as mesmas não tinham suficiente discernimento para avaliar se os comportamentos do arguido eram ou não adequados.

50° Actuou o arguido relativamente às crianças F, M, C, H e LM fortalecido pela relação de confiança estabelecida com elas, decorrente da circunstância de ser seu professor, a exclusivo cargo de quem as mesmas eram confiadas durante o tempo de duração de cada uma das aulas onde os factos descritos ocorreram.

51º Ao agir da forma descrita, o arguido actuou com o intuito concretizado de dar satisfação aos seus instintos lascivos e libidinosos, utilizando, para tanto, as identificadas crianças, indiferente à sua idade e às consequências de tal actuação sobre os mesmos.

58° Com as condutas descritas em 16, 32, 51°, 52°, 53°, 54°, e 55°, o arguido actuou de forma deliberada e com perfeita consciência de que, reiteradamente, molestou fisicamente as crianças AC, JM, RI, MA e CA, com intenção de lhes provocar as lesões que lhes causou, bem como assim actuou relativamente a C, bem sabendo que dessa forma lhe restringia a liberdade de forma injustificada, apesar de saber que tal era proibido e punido por lei.

Provaram-se? Não se provaram?

Se não se provaram, porque razão?

Todos estes factos desapareceram inexplicavelmente da decisão condenatória.

Também nos factos não provados nada consta a tal propósito, já que aí apenas se menciona que “não se provaram outros factos, nomeadamente que alguma vez o arguido tenha introduzido os dedos na vagina de C, ou a tenha agredido, bem como outros concretos pormenores relativos a actuações de índole sexual sobre alunas ou de agressões às mesmas”.

Quer-se dizer com isto que não se provou também que o arguido sabia a idade das menores… que estava ciente que estas tinham menos de 14 anos… que estava ciente que perturbava e a prejudicava o desenvolvimento das suas personalidades… que, em função da idade das crianças as mesmas não tinham suficiente discernimento para avaliar se os comportamentos do arguido eram ou não adequados… que actuou relativamente às crianças fortalecido pela relação de confiança estabelecida com elas, decorrente da circunstância de ser seu professor, a exclusivo cargo de quem as mesmas eram confiadas durante o tempo de duração de cada uma das aulas onde os factos descritos ocorreram …?

Onde estão – ou para onde foram – todos estes factos, e tantos outros respeitantes ao tipo objectivo?

Como “único facto” do tipo subjectivo dos crimes o tribunal limitou-se a considerar como provado que o arguido “agiu de forma livre, deliberada e consciente, sabendo a sua conduta proibida”.

Sendo o crime totalmente um facto tipicamente ilícito e totalmente um facto tipicamente culpável, na definição de Cavaleiro Ferreira, “os elementos da noção de crime são partes do todo que é o crime, e não uma justaposição ou soma de elementos autónomos. Na análise do crime não se constrói a estrutura do crime pela sobreposição de elementos autónomos” (Lições de Direito Penal, I, 2010, p. 85).

Mas, se assim é, por razões metodológicas, de compreensão da norma e de correcta subsunção de factualidade, há que decompor o crime em partes.

A bipartição em tipo objectivo e tipo subjectivo é tradicionalmente seguida pela doutrina e unanimemente assumida pela jurisprudência.

Os crimes em causa não são puníveis a título de negligência (art. 13º), podendo-nos já situar na análise do tipo subjectivo do crime doloso de acção e/ou de omissão, na classificação quadripartida de Figueiredo Dias (Direito Penal, I, 2004, p. 246)

Este tipo subjectivo desdobra-se, muito sinteticamente, nas conhecidas componentes cognoscitiva ou intelectual e volitiva ou intencional, respectivamente correspondentes ao conhecer ou saber e ao querer o desvalor do facto.

Esta a estrutura do crime, especificamente no que ao dolo diz respeito, de todo o crime, por mais simples ou menos grave que seja.

Resta, então, saber se a expressão “agiu de forma livre, deliberada e consciente, sabendo a sua conduta proibida”, desacompanhada de qualquer outra, é suficiente para cumprir as exigências de descrição do facto passível de pena.

O código penal define o dolo nas três modalidades previstas no art.14º, sendo difícil considerar que a expressão agiu de forma livre, deliberada e consciente, sabendo a sua conduta proibida, sem mais, satisfaça as exigências normativas típicas actualmente vigentes. Tal expressão quando desacompanhada de outras que no caso se imponham – consoante o tipo de crime em causa – dificilmente constituirá base factual bastante.

É que é também factualmente que tem de resultar que o agente quer e sabe que comete o crime de abuso sexual de criança e o crime de maus tratos, ou seja, faltam factos, faltam o facto (precedente) imprescindível para a afirmação/conclusão de direito (consequente).

Estamos perante tipo de crime que se basta com o dolo genérico.

A base factual tem, por isso, de integrar factualidade susceptível de integrar o dolo genérico.

E é errado pensar que tais factos – subjectivos - possam resultar logicamente dos factos objectivos narrados. É que uma coisa é a base factual que constitui a decisão de facto, prévia e pressuposto da decisão de direito, e outra é a prova desses mesmos factos que, esta sim, pode fazer-se com recurso a presunções e inferências lógicas.

Para além dos factos integradores do tipo objectivo de ilícito, o tribunal deve de igual modo pronunciar-se sobre os factos integradores do tipo subjectivo de ilícito. É que o tribunal não pode declarar a culpabilidade do arguido sem a prova desses factos. E se estes factos constituem, como constituem, matéria de facto, então têm de ser objecto de alegação e prova e devem ser descritos na matéria de facto em conformidade com a prova produzida. Sejamos claros: a especificidade da prova destes factos não altera a natureza das coisas(Sérgio Poças, Da Sentença Penal – fundamentação de facto, Rev. Julgar, nº3, 2007, p. 26-27)

Tal como constam do acórdão, os factos provados não permitem, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso submetido a julgamento.

Perante a insuficiência da matéria de facto provada o acórdão padece de vício do art. 410, nº2, al. a) do CPP.

O que se declara.

Aqui chegados, e não sendo agora possível decidir da causa, duas soluções se podem perfilar: a absolvição – no caso de os factos inexistirem totalmente no processo – não se provaram e não se conseguem demonstrar, ou não se provaram por não se poderem provar já que a acusação é totalmente omissa quanto a eles – ou o reenvio para novo julgamento, para que a sentença os complete e assim se complete.

No caso, revela-se possível esta segunda solução.

A correcção só seria inadmissível se se pretendesse que o juiz actuasse sobre o que não chega e sobre o que não há (v. Ac. STJ 11.07.91, BMJ 409-412).

A insuficiência dos factos é suprível com o novo julgamento já que todos os factos em falta constavam da acusação. O M.P. cumpriu o seu dever de exposição total do facto que imputa ao arguido narrando todos os factos geradores da responsabilidade criminal, pelo que nenhum deles pode deixar de ser objecto da discussão da causa e constar da decisão final.

Os factos em falta na decisão recorrida devem ser trazidos ao acórdão, descrevendo-se factual e adequadamente o dolo, bem como todos os factos referentes ao tipo objectivo dos crimes, de acordo com os resultados da prova mas cumprindo o ónus de especificação/concretização factual.

Só que o acórdão não só não narrou adequadamente os factos relativos ao dolo, como subtraiu, fazendo desaparecer totalmente, factos que integravam a acusação.

Tais factos não constam dos provados, mas também não se encontram nos não provados, o que, repete-se, integra o vício do art. 410º, nº2-a) do CPP, com as consequências previstas no art. 426º do CPP.

A partir daqui fica prejudicado o conhecimento das restantes questões objecto do recurso.

No entanto, por se relacionar directamente com o fundamento da (nossa) decisão, não queremos deixar de consignar que o acórdão sempre seria nulo na parte respeitante aos “factos não provados”, aqui por violação do art. 374º, nº2 do CPP.

Disciplina este preceito, sob a epígrafe “requisitos da sentença”, que “ ao relatório se segue a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados”.

Enumerar significa “especificar”, “listar”, “ expor de modo esmiuçado” (Dic. Houaiss da Língua Portuguesa, 2005, p. 3362). Esta exigência visa garantir que o tribunal apreciou especificadamente toda a matéria de facto sujeita a apreciação.

O acórdão recorrido também não enumera – como devia – os factos não provados.

Utiliza antes a fórmula imprecisa e genérica, já transcrita supra

Para além da sua duvidosa legalidade, não consideramos o método de aplaudir.

Desde logo, porque não permite sindicar, como se viu no caso, que o tribunal, prosseguindo o princípio da exaustão, cumpriu o dever de conhecimento factual total, conditio da decisão de direito.

Nunca é de mais lembrar a dupla função de controle endoprocessual e extraprocessual da fundamentação (também de facto) das decisões jurisdicionais (v. por todos Ac. TC nº 55/85)

Tomando a sintética redacção (dos factos) do acórdão, resulta claro que ela nunca satisfaria as exigências do art. 374º, nº2 do CPP. A fórmula escolhida pelo tribunal é incorrecta porque lacunosa, dúbia, imprecisa, e, como tal, insusceptível de cumprir as exigências legais (e constitucionais). Não demonstra que o tribunal se debruçou sobre todos os factos relevantes para a decisão de direito.

Também se aligeira o exame crítico da prova, dele não resultando com clareza, desde logo, qual o sentido das declarações das vítimas e dos depoimentos da testemunhas (o que, note-se, é diferente e não implica a descrição dos relatos).

Como refere o Senhor Procurador-geral adjunto neste tribunal, “a fundamentação do acórdão recorrido não permite, intraprocessualmente e por via de recurso, aos sujeitos processuais e ao tribunal ad quem o exame do processo lógico ou racional que lhe está subjacente e, extraprocessualmente, assegurar, pelo seu conteúdo, o respeito efectivo pelo princípio da legalidade da sentença”.

Por último, ainda no que respeita à questão de facto, não podemos deixar de consignar que é juridicamente errado incluir nos factos provados que o arguido “manteve o silêncio”. O silêncio do arguido não é um facto, no sentido de facto-com-conteúdo-normativo. Não é um facto porque dele não se pode retirar qualquer consequência jurídica.

O arguido não presta qualquer declaração sobre os factos que lhe são imputados no exercício de um direito que lhe é reconhecido, consagrado nos arts. 61º, nº1, al. d), 132º, nº 2, 141º, nº 4, a), e 343º, n. 1, do CPP e unanimemente considerado como de tutela constitucional implícita. O silêncio, mesmo que não o possa beneficiar, não pode, a nenhum título, prejudicá-lo. Logo, estamos perante um não-facto que, como tal, não poderá constar dos factos provados, na sentença.

4. Face ao exposto, acordam os juízes da 2ª Secção do Tribunal da Relação de Évora em:

- Julgar procedente o recurso, embora não exactamente pelos mesmos fundamentos.

- Determinar o reenvio do processo para novo julgamento quanto à totalidade do objecto do processo, nos termos dos arts 410º, nº2-a) e 426º do CPP.
Sem custas.

Évora, 6.12.2011

Ana Barata Brito

António João Latas