Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1146/16.9T8FAR.E1
Relator: FRANCISCO MATOS
Descritores: DOMÍNIO PÚBLICO
USUCAPIÃO
Data do Acordão: 06/27/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Para efeitos do artigo 10º, nº 1, da Lei 54/2005, de 15/11, o leito das águas do mar comporta o terreno coberto pelas águas e os areais nele formados por deposição, sucessiva e impercetível, de tais águas.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc. nº 1146/16.9T8FAR.E1


Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório.
1. (…), divorciado, residente na Praça da (…), 3 – 7º-B, dto., em Faro, instaurou contra o Estado Português, representado pelo Ministério Público, Câmara Municipal de Faro, com serviços centrais domiciliados no Largo da Sé, em Faro, Polis Litoral Ria Formosa- Sociedade Requalificação, Valorização da Ria Formosa, S.A., com sede no Chalet João Lúcio, Pinheiro Marim, Guarda Nacional Republicana (Unidade de Ação Fiscal - Guarda Fiscal), com Comando Geral domiciliado no Largo do Carmo, em Lisboa e Polícia Marítima, com Comando Geral domiciliado no Largo do Carmo, em Lisboa, ação declarativa com processo comum.

Alegou, em resumo, que construiu uma casa, no ano de 1979, no designado núcleo populacional da Ilha da Culatra, fora da faixa de 50 metros que constitui a margem das águas do mar, composta por dois quartos, cozinha e casa de jantar/sala comum, casa de banho, duas arrecadações e logradouro, com a área coberta de 53m2, num total de 168m2, a confrontar a Norte com (…), Sul com (…), Nascente com a Rua do (…) e Poente com (…) e que desde a referida data, vem cuidando da casa e logradouro, habitando-a como sendo sua e nela recebendo familiares e amigos, à vista de todos, sem disputas nem demandas de quem quer que seja.

A Ilha da Culatra pertence ao domínio privado do Estado e, como tal, é suscetível de usucapião.

Em Abril de 2015, foi-lhe comunicada uma deliberação do Conselho de Administração da ré Polis que determina a demolição da sua casa e a tomada de posse administrativa por parte da referida Ré, na sequência da qual o A. e outros moradores do local, intentaram providência cautelar, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, visando a declaração de nulidade ou anulação do ato administrativo, providência cautelar que se mostra suspensa para conhecimento da questão prejudicial que constitui o alegado direito de propriedade do A.

Concluiu pedindo que se declare e reconheça que é dono e legítimo possuidor do prédio urbano, sito na Rua do (…), nº (…), no Núcleo do Farol, na Ilha da Culatra, Faro, com a composição e confrontações que identifica, por o haver adquirido por usucapião.

A ré Polis contestou, em resumo, excecionando a ilegitimidade do A, por preterição de litisconsórcio necessário, a falta de personalidade judiciária e a ilegitimidade das rés Guarda Nacional Republicana, Polícia Marítima e Município de Faro, impugnando a generalidade os factos alegados pelo A. e defendendo a falta de condições de procedência da ação, por se situar a casa do A., construída sem licenciamento, em terreno pertencente ao domínio público do Estado e, assim, insuscetível de aquisição por usucapião.

Concluiu pela improcedência da ação.

O réu Estado Português contestou, em resumo, excecionando a falta de personalidade judiciária das rés Guarda Nacional Republicana e Polícia Marítima, impugnando a generalidade os factos alegados pelo A e defendendo a falta de condições de procedência da ação, por se situar a casa do A., construída sem licenciamento, em terreno pertencente ao domínio público do Estado e, assim, insuscetível de aquisição por usucapião.

Concluiu pela improcedência da ação.

Respondeu o A. por forma a admitir a falta de personalidade da Guarda Nacional e Polícia Marítima e a defender a improcedência da exceção de ilegitimidade do réu Município de Faro.

Foi admitida a intervenção principal de (…), como associada do A. a qual, não obstante citada, não ofereceu articulado, nem fez qualquer declaração.

2. Foi proferido despacho que julgou procedente a exceção dilatória de falta de personalidade judiciária da ré Guarda Nacional Republicana e da ré Polícia Marítima, homologou a desistência da instância relativamente ao réu Município de Faro e conhecendo do mérito da causa julgou improcedente a ação.

O A. recorreu, o acórdão desta Relação de 8/3/2018 deu-lhe razão e os autos prosseguiram com a identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.

Houve lugar à audiência de discussão e julgamento, seguindo-se a prolação de sentença, que dispôs a final:

“Por todo o exposto, ao abrigo das disposições legais citadas, decido julgar a presente ação intentada por (…) contra Estado Português, representado pelo Ministério Público e Sociedade Polis Litoral Ria Formosa – Sociedade Requalificação, Valorização da Ria Formosa, S.A., em que é interveniente (…) improcedente, por não provada, e, em consequência, absolvo os réus do pedido.”


3. O A. recorre da sentença e conclui assim a motivação do recurso:
“A) A decisão proferida que considera a Ilha da Culatra como leito, para poder concluir, pela lei da titularidade do domínio hídrico, tratar-se de domínio público do estado, faz, com o devido respeito, errada interpretação da lei,

B) Desde logo porquanto o aluvião diz respeito a depósitos sedimentares em sistema fluvial, a material mais fino extravasado dos canais das cheias, sedimentos clásticos depositados em zonas estuarinas,

C) Aluvião pode ser sinónimo de inundação, e o termo “aluvião” refere-se exclusivamente a um evento meteorológico, levando à formação sedimentar depositada nos rios. Assim consta em vários dicionários.

D) Se é certo que a Constituição da República Portuguesa individualiza os bens que pertencem ao domínio público, a verdade é que deixa ao legislador a faculdade de, por lei ou decreto-lei, classificar outros bens como bens do domínio público, como decorre do artigo 84º e artigo 165º, n.º 1.

E) Do artigo 84.º decorre, desde logo, como sendo do domínio público “As águas territoriais com os seus leitos (…) e as águas navegáveis ou flutuáveis, com os respetivos leitos.

F) Porém é pelo diploma que estabelece a titularidade dos recursos hídricos, o Decreto-Lei 468/71, de 05 de Novembro (em vigor ao início da posse do Autor) e a Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, que se alcançam os três domínios hídricos: as águas do domínio público marítimo, as águas do domínio público lacustre e fluvial e as restantes águas e respetivos leitos.

G) Sendo que, a definição de leito, tal resulta do artigo 2.º e do artigo 10.º dos citados diplomas, respetivamente, enuncia expressamente a noção de leito das águas do mar, quer no n.º 2 do artigo 2.º quer no n.º 2 do artigo 10.º dos citados diplomas,

H) E o nº 3 dos citados artigos, em ambos os diplomas, expressamente se referem ao leito das outras águas, pelo que, dúvidas não podem subsistir que, o n.º 1 daqueles citados artigos dizem respeito apenas ao leito das águas lacustre e fluviais, tanto mais que apenas estas águas são influenciáveis por cheias extraordinárias e inundações. As águas do mar estão sujeitas à influência das marés, e as dos rios às cheias,

I) Ao aplicar o n.º 1 e não o n.º 2 dos referidos artigos e diplomas legais, verifica-se erro na aplicação da norma, saindo violada a norma cuja aplicação se impõe, pois o legislador distingue, sendo no caso o intérprete que não o faz.

J) A casa do Autor, que dista mais de 100m das águas do mar, só poderia, quanto muito, estar situada na margem, e nunca no leito, em domínio privado, como se alega.

L) Verifica-se uma contradição insanável entre a matéria assente em 11, onde se lê “De modo contínuo, à vista de todos e sem oposição” e a decisão de julgar verificada a interrupção da prescrição, que obsta à usucapião, face à oposição do Estado Português manifestada pela publicação de diversos diplomas legais, contradição que importa a nulidade da sentença prevista na alínea c) do artigo 615º do C.P.C., o que se invoca.

M) Sendo a usucapião uma prescrição, a mesma só se interrompe pela citação ou notificação judicial de qualquer ato que exprima, direta ou indiretamente, a intenção de exercer o direito, como impõe o artigo 323º do Código Civil.

N) A publicação de legislação não pode equivaler a uma citação ou notificação judicial, desde logo pela ausência de intervenção de órgão judicial e ainda pela total ausência de garantia de que esse ato de vontade de exercer o direito chegue ao efetivo conhecimento do destinatário, pondo em causa o princípio da segurança jurídica (cf. Acórdão desta Relação de Évora de 08 de Março de 2018). Ao decidir assim, a sentença recorrida violou o artigo 323º do Código Civil.

O) Ao praticar, durante vários anos (desde 1979), atos materiais sobre o terreno ocupado, atos que consistiram na construção e manutenção da casa (…) da Rua do (…), o Autor/recorrente agiu na convicção de exercer um direito próprio sobre a sua casa, ainda que, por mera hipótese se admite que não sobre o terreno, que afirmou ser domínio privado do estado, como se defende,

P) Ao decidir em contrário, verifica-se uma contradição, pois o terreno e a casa são coisas distintas, não sendo incompatíveis os respetivos direitos,

Q) E gozando o Autor/recorrente da presunção prevista no n.º 2 do artigo 1252º do Código Civil de que, se dúvidas houvesse, e não há, “(...) presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto (...)”. E, quem tem a seu favor uma presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz, como resulta do n.º 1 do artigo 350º do Código Civil.

R) Para ser dono da casa, como se considera e é, não carecia o Autor/recorrente de demonstrar a inversão do título da posse,

S) O Autor pretende ser reconhecido como dono e legítimo possuidor da casa que construiu, pois a faculdade de edificar sobre terreno alheio é possível pela figura do direito de superfície, sendo o Autor/recorrente o verdadeiro proprietário da coisa implantada, por não se tratar de um simples direito real de gozo de coisa alheia, mas antes um direito de domínio sobre a própria coisa, como resulta do artigo 1528º do Código Civil.

T) Ao não decidir assim, violou o tribunal recorrido o disposto no artigo 1528º de Código Civil.

Nestes termos e no mui douto suprimento deste venerando Tribunal, deve julgar-se procedente a apelação, e, consequentemente, revogar-se a sentença recorrida, com as legais consequências.

Responderam o Ministério Público e a ré Sociedade Polis por forma a defenderem a confirmação da decisão recorrida.
Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II - Objeto do recurso.
Pretende o A. “ser reconhecido como dono e legítimo possuidor da casa que construiu, pois a faculdade de edificar sobre terreno alheio é possível pela figura do direito de superfície, sendo o Autor/recorrente o verdadeiro proprietário da coisa implantada, por não se tratar de um simples direito real de gozo de coisa alheia, mas antes um direito de domínio sobre a própria coisa, como resulta do artigo 1528º do Código Civil” [cclª S)].

A ação tem causa na aquisição por usucapião do imóvel, sito na Rua do (…), nº (…), no Núcleo do Farol, na Ilha da Culatra, Faro, decorrente da prática reiterada de atos materiais de posse pelo A. sobre o prédio com o animus de proprietário, foi esta, em síntese, a configuração da causa que o A. submeteu a ingerência judicial; a construção do dito prédio ao abrigo de um direito de superfície comporta uma inadmissível alteração da causa de pedir e pedido (artºs 264º e 265º, do CPC) e, decisivamente, constitui uma questão colocada ex novo no recurso.

Como é pacífico para a doutrina e para a jurisprudência, no nosso sistema, os recursos ordinários, como é o presente recurso de apelação, destinam-se à reponderação da decisão recorrida, o que significa que, em regra, “o tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que nela não foram formulados”[1], e isto porque os recursos visam modificar ou anular as decisões recorridas[2] e “não criar decisões sobre matéria nova não sendo lícito invocar e conhecer nos mesmos questões que as partes não tenham suscitado perante o tribunal recorrido”[3].
Assim, não tendo a decisão sob recurso resolvido qualquer questão relacionada com um eventual direito de superfície, por não lhe haver sido colocada, não pode o recurso, neste particular, apreciar seja o que for, por se tratar de uma questão que nem o A. suscitou perante o tribunal recorrido, nem este resolveu.
Por esta razão não se conhecem das conclusões S) e T).
Vistas as demais conclusões da motivação do recurso e sendo estas que delimitam o seu objeto, importa decidir: (i) se a sentença recorrida é nula por violar o disposto na al. c) do artº 615º, do Código de Processo Civil, (ii) se a Ilha da Culatra não pertence ao domínio público do Estado; (iii) se ocorreu a interrupção da prescrição por oposição do Estado (iv) se o A demonstra o animus da posse.

III. Fundamentação.
1. Factos:
Sem impugnação, a sentença recorrida julgou provados os seguintes factos:
1- O autor, desde o ano de 1980, ocupa a casa nº (…), sita na Rua do (…), do Núcleo do Farol Nascente, Ilha da Culatra.

2- A qual foi mandada construir pelo autor durante o ano de 1979, sendo composta por dois quartos, cozinha e casa de jantar/estar comum, casa de banho, duas arrecadações e logradouro, com uma área coberta de aproximadamente 53 m2.

3- A construção foi levada a cabo numa porção de terreno com a área aproximada de 168m2, a qual confronta a Norte com (…), a Sul com (…), a Nascente com a Rua do (…) e a Poente com (…).

4- Entre a casa e o terreno onde se edificou e a margem das águas do mar distam aproximadamente 100 metros.

5- A construção foi levada a efeito pelo autor com ajuda de terceiros durante o ano de 1979, com transporte dos tijolos, cimento, ferro, pavimentos e sanitários em embarcações.

6- Ao tempo eram várias as casas em construção na Rua do (…) e todos os moradores se ajudavam entre si.

7- A ocupação do terreno e a construção da casa foram realizadas à vista e com o conhecimento de todos, incluindo a Guarda Fiscal.

8- Os acessos às casas e outros arruamentos que permitem o acesso à praia e ao cais de embarque foram construídos pelo autor e outros moradores.

9- Desde a data de conclusão da construção o autor habita a casa durante períodos do ano e fins-de-semana.

10- Nela pernoita, recebe e convive com familiares e amigos.

11- De modo contínuo, à vista de todos e sem oposição.

12- O autor procedeu a reparações e pintou a casa, cuidou do logradouro e equipou a casa com móveis e utensílios domésticos.

13- O autor não possui título de aquisição do terreno e da casa que construiu, nem estes se encontram registados.

14- Em Abril de 2015 o autor recebeu da ré Polis Litoral uma carta na qual se refere a tomada de posse administrativa e a demolição da construção n.º (…), Rua do (…), do Núcleo do Farol Nascente.

15- Informando que, por força de uma deliberação do Conselho de Administração da Polis Litoral Ria Formosa S.A. datada de 21.04.2015, foi determinada a demolição da casa e que a ré Polis iria tomar posse administrativa.

16- A tomada de posse administrativa esteve prevista para o mês de Maio de 2015 mas por oposição dos moradores não teve lugar.

17- O autor intentou junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé contra a ré uma providência cautelar e ação principal pedindo a declaração de nulidade da deliberação da ré Pólis a que coube o nº 468/15.0BELLE.

18- Nessa ação a aquisição por usucapião foi tida como uma questão prejudicial a obstar ao prosseguimento dos autos, declarando-se o Tribunal Administrativo incompetente em razão da matéria para apreciar a questão da propriedade da casa.

19- A Ilha da Culatra ocupa a área de 340ha, distinguindo-se três núcleos populacionais, a Culatra, o Farol e os Hangares, encontrando-se referenciada em mapas.

20- A construção de parte das casas dos diferentes núcleos da Ilha da Culatra surgiu na sequência das alterações políticos e sociais subsequentes ao 25 de Abril de 1974.

21- Nos anos de 1974-1975 até meados 1980 deu-se um processo de ocupação por privados de parcelas de terreno da Ilha da Culatra, Núcleo do Farol.

22- Nas quais construíram casas, a sede do Núcleo Associativo e procederam à abertura de acessos entre casas, cais de embarque, restaurantes e estabelecimentos comerciais.

23- À vista de todos e com o conhecimento e consentimento da Guarda Fiscal.

24- O autor obteve da Guarda Fiscal consentimento para a ocupação do terreno e construção da casa.

25- O sistema da Ria Formosa constitui uma unidade morfológica, que engloba duas penínsulas e cinco ilhas barreira, Ilhas da Barreta, Culatra, Armona, Tavira e Cabanas, individualizadas por seis barras de maré.

26- O sistema de barreiras arenosas protege e assegura a manutenção do sistema lagunar, nomeadamente exercendo o efeito barreira contra os processos de galgamento oceânico e de erosão provocada pelas ondas e pelo vento.

27- Nos últimos anos a localização e o número de barras de maré e, simultaneamente, o número e forma das ilhas, tem variado, traduzindo a dinâmica do sistema de ilhas-barreiras que caracteriza a Ria Formosa.

28- As barras referidas têm carácter migratório, deslocando-se ao longo do tempo, acabando por assorear e abrindo-se então nova barra, sendo as ilhas progressivamente destruídas e construídas durante esse processo.

29- As alterações e dinâmica das barras e das ilhas resultam do movimento das areias transportadas pelas águas, sendo a Ilha da Culatra formada pela progressiva deposição de areia.

30- A Ilha da Culatra é constituída em toda a sua extensão por areais formados por deposição aluvial.

31- Ao longo dos anos, através dos seus diversos departamentos, o Estado sempre considerou a Ilha da Culatra como pertencente ao domínio público marítimo, seja autorizando a transferência, sem mutação dominial, de um terreno com a área de 1.024.324 m2 para a Marinha, seja emitindo licenças para manutenção provisória de barracas, qualificando sempre os terrenos como situados no domínio público marítimo.

2. Direito
2. 1. Se a sentença recorrida é nula por violar o disposto na al. c) do artº 615º, do Código de Processo Civil.
O A. considera nula a sentença por «contradição insanável entre a matéria assente em 11, onde se lê “de modo contínuo, à vista de todos e sem oposição” e a decisão de julgar verificada a interrupção da prescrição, que obsta à usucapião, face à oposição do Estado Português manifestada pela publicação de diversos diplomas legais».
Segundo a previsão normativa apontada pelo A. a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.

A decisão recorrida julgou improcedente a ação por haver considerado que o direito de propriedade a que o A. se arroga, inserido no domínio público do Estado, não é prescritível, decisão que constitui o corolário lógico-jurídico do fundamento que a motiva e, assim, não está em oposição como ele.

Prosseguiu a decisão recorrida com a análise de outros fundamentos de improcedência da ação e, entre estes, considerou que “sempre relevaria a oposição do Estado Português à aquisição do respetivo direito de propriedade por particulares, interruptiva do prazo legal previsto para a usucapião, manifestada nos citados diplomas, através do reconhecimento como domínio Público Marítimo. Com efeito, como resultou provado, existiu uma clara oposição do Estado à aquisição do direito de propriedade dos terrenos da Ilha da Culatra por particulares, seja através da variada legislação citada, classificando tais bens como pertencentes ao domínio público do Estado, seja através da transferência do terreno com a área de 1.024.324 m2 para a Marinha (…)”.

É este segmento da decisão recorrida que o A. considera estar em contradição com a decisão de facto quando nesta se dá como provado que o A. vem exercendo atos materiais de posse sobre a construção que erigiu na Ilha da Culatra (pontos 9 e 10), de modo contínuo, à vista de todos e sem oposição (ponto 11).

Com razão, a nosso ver; de acordo com o princípio da contradição coisa alguma pode ser e não ser ao mesmo tempo e a sentença recorrida viola este princípio, ou lei da lógica, quando considera, a um mesmo tempo, que o A. praticou sobre a coisa atos materiais de posse sem oposição e que “como resultou provado, existiu uma clara oposição do Estado”.

Contradição que não ocorre entre os fundamentos e a decisão – contrariamente ao anotado pelo A. inexiste qualquer “decisão de julgar verificada a interrupção da prescrição, que obsta à usucapião, face à oposição do Estado Português manifestada pela publicação de diversos diplomas legais” – mas decorre dos fundamentos entre si.
A oposição entre os fundamentos que concorrem para a decisão não se mostra incluída nas previsões das alíneas do nº 1, do artº 615º, do CPC, designadamente na previsão da alínea c) e, assim, sem prejuízo de, enquanto erro de julgamento, desabonar o valor doutrinário da sentença, não constitui causa de nulidade.
A razão pela qual o A. considera nula a sentença não constitui causa normativa de nulidade, improcedendo o recurso quanto a esta questão.

2.2. Se a Ilha da Culatra não pertence ao domínio público do Estado.
A decisão recorrida concluiu que as ilhas barreira da Ria Formosa e, em concreto, a ilha da Culatra integram o domínio público marítimo e, como tal, são coisas fora do comércio insuscetíveis de apropriação individual, assim declinando a pretensão do A. destinada ao reconhecimento da apropriação, por usucapião, de parte do solo da referida Ilha.
A imprescritibilidade aquisitiva de coisas do domínio público resulta da sua inserção legal como coisas fora do comércio (artº 202º, nº 2, do CC) e, assim, o seu uso é insuscetível de atribuir posse (artº 1267º, al. b), do CC); princípio geral de imprescritibilidade reiterado, quanto a bens imóveis, pelo D.L. nº 280/2007, de 7/8, ao estabelecer que os imóveis do domínio público não são suscetíveis de aquisição por usucapião (artº 19º).
O A. não questiona a vigência e amplitude deste regime mas defende a sua inaplicabilidade ao caso dos autos, argumentando essencialmente que a Ilha da Culatra não constitui um leito das águas do mar formado por aluvião, constitui quando muito, margem das águas do mar e que a casa do A., situada a mais de 100m das águas do mar se insere no domínio privado.
Decidindo.
O domínio público marítimo pertence ao Estado (artº 4º da Lei 54/2005, de 15/11, como o serão os demais artigos citados sem menção de proveniência) e compreende: a) as águas costeiras e territoriais; b) as águas interiores sujeitas à influência das marés, nos rios, lagos e lagoas; c) o leito das águas costeiras e territoriais e das águas interiores sujeitas à influência das marés; d) os fundos marinhos contíguos da plataforma continental, abrangendo toda a zona económica exclusiva; e) as margens das águas costeiras e das águas interiores sujeitas à influência das marés (artº 3º).

A inclusão das águas territoriais com os seus leitos e dos fundos marinhos contíguos no domínio público do Estado decorre da Constituição da República Portuguesa [artº 84º, nº1, al. a)], à semelhança do preconizado pela Constituição de 1933 que atribuía ao domínio público do Estado “as águas marítimas e os seus leitos” (artº 49º, 2º); assim e na parte em os artºs 3º e 4º preveem a inclusão no domínio público do Estado das águas costeiras e territoriais (3º, al. a) e do leito das águas costeiras e territoriais (3º, al. c), 1ª parte), limitam-se a reproduzir a solução constitucional há muito vigente; a novidade da Lei, digamos assim, reside em estabelecer o regime dos terrenos públicos conexos com as águas públicas ou, mais concretamente para o que agora releva, o regime dos terrenos públicos (leitos e margens) conexos com as águas do mar.

Como se anotou, aliás, no preâmbulo do D.L. nº 468/71 de 5/11, que reviu, atualizou e unificou o regime jurídico dos terrenos incluídos no que designou domínio público hídrico, antecedente legislativo da Lei 54/2005 por esta revogado (artº 29º), o diploma embora reportado ao “domínio público hídrico do continente e das ilhas adjacentes (…) não visa regular o regime das águas públicas que o compõem, antes pretende estabelecer apenas o regime dos terrenos públicos conexos com tais águas ou sejam, na terminologia adotada, os leitos, as margens e as zonas adjacentes”.

Prosseguindo, o leito é o terreno coberto pelas águas, quando não influenciadas por cheias extraordinárias, inundações ou tempestades e nele se compreendem ainda os mouchões, lodeiros e areais nele formados por deposição aluvial (artº 10, nº1); noção normativa que não coincide com o sentido comum da palavra leito, uma vez que para além da superfície coberta pelas águas, o leite coberto, propriamente dito, também inclui os mouchões (ilhas cultiváveis), lodeiros (acumulações de lodo que emergem das águas) e areais (acumulações de areias que emergem das águas), já designado por leito descoberto.

A margem é a faixa de terreno contígua ou sobranceira à linha que limita o leito das águas e no caso das águas do mar tem uma largura de 50 metros contados, em princípio, a partir da linha limite do leito, sem prejuízo de se estender para lá dos 50 metros nos casos em que a margem tiver natureza de praia (artº 11º, nºs 1, 2 e 5).

Os nºs 1 dos artºs 10º e 11º estabelecem o que deve entender-se por leito e por margem e os restantes números estabelecem respetivamente os limites do primeiro e da segunda e nesta expressa, e a nosso ver clara, técnica legislativa não se vê forma de defender, como defende o A. que a noção de leito constante do nº 1 do artº 10º não se aplica às águas do mar e tão só ao leito das águas lacustres, fluviais, decorrendo a noção daquele do nº 2 da mesma disposição legal; este número reporta-se, a nosso ver, aos limites do leito das águas do mar – o leito das águas do mar, bem como das demais águas sujeitas à influência das marés, é limitado pela linha da máxima preia-mar de águas vivas equinociais. Essa linha é definida, para cada local, em função do espraiamento das vagas em condições médias de agitação do mar, no primeiro caso, e em condições de cheias médias, no segundo – pressupondo a noção de leito configurada no nº 1 – entende-se por leito o terreno coberto pelas águas quando não influenciadas por cheias extraordinárias, inundações ou tempestades. No leito compreendem-se os mouchões, lodeiros e areais nele formados por deposição aluvial.

O leito compreende os areais nele formados por deposição aluvial (artº 10º, nº 1) e o alcance desta nomenclatura legal – deposição aluvial – constitui a razão última do recurso, uma vez que o A defendeu e reitera no recurso, que ela se reporta a rios e outras correntes de água doce e não ocorre em ambientes marinhos, razão pela qual os areais da ilha da Culatra, formados com sedimentos do mar, não são depósitos aluviais, não pertencem ao leito do mar e mostram-se assim excluídos do domínio público.

Como já referimos no acórdão desta Relação de 13/9/2018 [processo 761/16.5T8FAR.E1, com intervenção do ora relator e 1º adjunto], que temos vindo a acompanhar, o legislador, ao estabelecer as regras da titularidade dos recursos hídricos, não esclareceu o que deve entender-se por deposição aluvial; não o disse na Lei 54/2005, nem o mencionou no revogado D.L. 468/71 que continha idêntica noção de leito – entende-se por leito o terreno coberto pelas águas, quando não influenciadas por cheias extraordinárias, inundações ou tempestades. No leito compreendem-se os mouchões, lodeiros e areais nele formados por deposição aluvial (artº 2º) – mas dispondo a lei, como dispõe, de um conceito de aluvião é este que ao jurista convém (e não o que decorre do labor de outras ciências), uma vez que a unidade do sistema jurídico, enquanto elemento de interpretação, o impõe (artº 9º, nº 1, do CC).

Sob a epígrafe aluvião, estabelece o nº 1 do artº 1328º, do C.C., que pertence aos donos dos prédios confinantes com quaisquer correntes de água tudo o que, por ação das águas, se lhes unir ou neles for depositado, sucessiva e impercetivelmente.

Aluviões, para efeitos da lei, são os sedimentos que, por ação das águas, se unirem a um prédio ou neles forem depositados, sucessiva e impercetivelmente.

Conceito normativo que se afasta do conceito geológico uma vez o depósito sucessivo e impercetível que expressamente caracteriza a figura legal de aluvião, afasta as águas torrenciais geradoras de enxurradas incluídas no conceito geológico de aluvião - se a corrente das águas for violenta e arrojar coisas, como no caso das enxurradas, o conceito normativo que lhe corresponde é avulsão (artº 1329º, do CC) – e não exclui, a nosso ver, a possibilidade legal da aluvião ocorrer em ambientes marítimos.

A literatura jurídica, aliás, reporta-se ao aluvião, ou à aluvião, associado às águas do mar; para além da doutrina citada pela decisão recorrida, em comentário ao artº 1331º, do CC, relativo à formação de ilhas e mouchões, explicam P. Lima e A. Varela que “segundo a lei geral, que é a contida no novo Código, em caso de aluvião, se as ilhas ou mouchões se formarem no mar ou nas correntes navegáveis ou flutuáveis, integram-se no domínio público do Estado”;[4] no mesmo sentido, refere Carvalho Martins que “as aluviões marítimas não pertencem aos proprietários da borda mar. Essas aluviões, em regra, ficam constituindo praia; e fazem parte, sempre, do domínio marítimo do Estado”[5].

Visto o disposto no artº 10º, nº 1, da Lei 54/2005, à luz do conceito de aluvião tal como definido pelo artº 1328º, nº 1, do C.C., o leito das águas costeiras e territoriais comporta o terreno coberto pelas águas e tudo o que, por ação destas, se lhes unir ou nele for depositado, sucessiva e impercetivelmente.

Solução legal que, bem vistas as coisas, constitui uma emanação do princípio geral segundo o qual pertence ao dono da coisa tudo o que a esta acrescer por efeito da natureza (artº 1327º, do CC); a coisa como ensina Mota Pinto, tem um destino unitário na sua totalidade e, assim, “se uma coisa é unida ou incorporada com outra, por facto natural ou por indústria do homem, aquilo que assim acresceu passa a ser abrangido pelo direito real que incidia a coisa antes do aditamento verificado”[6], assim se compreendendo que pertencendo as águas territoriais com os seus leitos e fundos marinhos contíguos ao domínio público do Estado (artº 84º, nº 1, da CRP) os areais ou ilhas nestas formadas (acrescidas no leito) por deposição aluvial sejam sujeitas a idêntico domínio.

Em conclusão, para efeitos do artº 10º, nº 1, da Lei 54/2005, de 15/11, o leito das águas do mar comporta o terreno coberto pelas águas e os areais nele formados por deposição, sucessiva e impercetível, de tais águas.

No caso dos autos prova-se que a ilha da Culatra se integra num sistema dinâmico de ilhas barreira, cujas alterações resultam do movimento das areias transportadas pelas águas do mar, sendo a Ilha da Culatra formada pela progressiva deposição de areia e assim constituída em toda a sua extensão por areais formados por tal deposição (pontos 25 a 30 dos factos provados), razão pela qual se insere no leito das águas costeiras e territoriais, pertencente ao domínio público do Estado e é insuscetível de usucapião.

Havendo sido este o entendimento da decisão recorrida resta confirmá-la, mostrando-se prejudicado o conhecimento das remanescentes questões colocadas no recurso, pois seja qual for o seu resultado a solução final não se altera.

Improcede o recurso, restando confirmar a decisão recorrida.

2.3. Custas

Vencido no recurso, incumbe ao A. pagar as custas, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia (artº 527º, nºs 1 e 2, do CPC).

Sumário (da responsabilidade do relator – artº 663º, nº7, do CPC):
(…)

IV. Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto, na improcedência do recurso, em confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo A.
Évora, 27/6/2019
Francisco Matos
José Tomé de Carvalho
Isabel de Matos Peixoto Imaginário

_________________________________________________
[1] Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos, pág. 395 e Jurisprudência aí indicada; no mesmo sentido, Lebre de Freitas, CPC anotado, 2ª ed., 3º vol. Tomo I, pág. 5 e Abrantes Geraldes, Recursos, novo regime, pág. 23.
[2] É o que decorre, entre outros, dos artºs 627º, nº 1, 631º e 639º, nº 1, todos do C.P.C.
[3] Cfr., entre outros, Ac. STJ de 6/2/1987, BMJ, 364º - 714.
[4] Código Civil Anotado, vol. III, 1972, pág. 133.
[5] Acessão, Coimbra Editora, pág. 43.
[6] Direitos Reais, 1972, pág. 86.