Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
23/15.5GBSTR.E1
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: TRÁFICO DE ARMAS
ERRO NA APLICAÇÃO DO DIREITO
REFORMATIO IN PEJUS
Data do Acordão: 12/05/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
1. A omissão da indicação, na sentença, das disposições legais aplicáveis (ou seja, do número do artigo e do diploma legal à luz do qual se profere condenação), não integra nulidade de sentença e sim irregularidade processual.

2. Tendo o tribunal procedido, na sentença, a uma incorrecta definição/identificação da moldura penal abstracta correspondente ao crime da condenação, e tendo sido este erro cometido em benefício do arguido, na ausência de recurso do Ministério Público, não pode a Relação corrigir a pena aplicada (fixando-a dentro da moldura penal realmente correspondente ao crime cometido), sob pena de violação da reformatio in pejus.

Sumariado pela relatora.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal:

1. No Processo nº. 23/15.5GBSTR, da Comarca de Santarém, foi proferida sentença a condenar o arguido RD, como autor de um crime de tráfico de armas dos arts. 87.º n.º 1 e art.º 86.º n.º 1 al. d) do Regime Jurídico das Armas e Munições, na penas de dois anos de prisão suspensa na execução por igual período.

Inconformado com o decidido, recorreu o arguido, concluindo:

“1 - O arguido, inicialmente acusado da prática como autor material e na forma consumada, de um crime de tráfico de armas p. e p. pelo art.º 87.º n.º 1, por referência ao disposto no art.º 86.º n.º1 al. a), art.º 2.º n.º 4 al. m) por referência ao anexo I do DL 376/84 de 30/11 alterado pelo DL 474/88 de 22/12, veio a final, e por foça da alteração da qualificação jurídica operada, a ser condenado pela prática de um crime de tráfico de armas p. e p. pelo art.º 87.º n.º 1 com referência ao disposto no art.º 86.º n.º 1 al. d), na pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período.

2- Não pode no entanto o arguido conformar-se com a douta sentença condenatória e com a sua condenação, pois entende o arguido que a presente sentença é nula por enfermar de vícios insanáveis, nomeadamente porque por um lado não se consegue descortinar de forma clara quais efectivamente as normas ao abrigo das quais o arguido foi condenado, para além do disposto no art.º 86.º n.º 1 al. d), e por outro a moldura penal aplicada e tida em conta pelo Tribunal a quo não foi a correcta, o que levou a que o tribunal recorrido não tivesse ponderado a possibilidade de não ser aplicada ao arguido qualquer punição, nos termos do previsto no art.º 87.º n.º 3 da Lei 5/2006.

3 – Sem conceder, e a entender-se não se verificarem as nulidades supra referidas, e salvo sempre o devido respeito, entende o arguido que existe insuficiência da matéria de facto dada como provada para proferir uma sentença condenatória existe erro na interpretação e aplicação da lei;

4 – No que respeita ás normas ao abrigo das quais o arguido foi condenado, é referido que o arguido é condenado pela prática de um crime de tráfico de armas p. e p. pelo art.º 87.º n.º 1 com referência ao disposto no art.º 86.º n.º 1 al. d), art.º 20, n.º 4 al. m) por referência ao anexo I do DL 376/84 de 30/11, alterado pelo DL 474/88 de 22/12, não se conseguindo no entanto compreender a que art.º 20.º n.º 4 al. m) se refere a douta sentença, porquanto na Lei n.º 5/2006 não existe nenhum art.º 20.º n.º 4 al. m), nem tão pouco art.º 2.º n.º 4 al. m), e isto caso se tratasse de lapso de escrita.

5- A moldura penal constante da sentença aplicável ao crime pelo qual o arguido foi condenado e que foi levada em conta pelo Tribunal, de 2 a 8 anos de prisão não é a correcta, pois esta é a prevista para a al. a) do n.º 1 do art.º 86.º, e não para a al. d.) ou para bem como não é a punição prevista no art.º 87.º da Lei 5/2006, sendo que o n.º 3 desta citada norma prevê a possibilidade de ao arguido não ser aplicada qualquer punição.

6 – É que o tribunal recorrido procedeu à alteração da qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido, mas em seguida e em sede de sentença não teve em consideração que fruto de tal alteração também a moldura penal sofreu alterações, o que fez com que o tribunal a quo não se tenha pronunciado e não tenha ponderado todas as possibilidades no que concerne ao tipo e medida da pena, e nomeadamente a possibilidade prevista no n.º 3 do art.º 87.º de não ser aplicada qualquer punição ao arguido.

7 – O vertido nos pontos 4, 5 e 6 destas conclusões, constituem nulidades insanáveis, previstas no art.º 374.º do C.P.P., pois que a sentença não tenha todos os requisitos aí exigidos, e não se pronunciou sobre questão sobre a qual estava obrigada a pronunciar-se, o que conduz á sua nulidade, nulidade essa que deverá ser declarada.

8 – Caso assim e não entenda, entende o arguido que existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e existe erro na interpretação e aplicação da lei.

9 – É que tendo em conta o teor da al. d) do n.º 1 do art.º 86 da Lei 5/2006, nomeadamente o facto de esta alínea excepcionar da punição os artigos de pirotecnia que sejam fogos-de-artifício de categoria 1, impunha-se ao Tribunal a quo apurar qual a categoria do material de pirotecnia em causa e de que materiais em concreto é que eram feitos os ditos artigos, numa palavra quais as componentes constantes dos mesmos, pois só mediante tais elementos é que se poderia de facto apurar se estamos perante materiais explosivos de pirotecnia e em que categoria é que os mesmos se enquadram.

10 - Na falta destes elementos, não pode de forma alguma ser o arguido condenado pela prática do crime p. e p. na al. d) do art.º 86.º da Lei 5/2006, uma vez que não se encontram preenchidos os elementos do tipo, entendendo o arguido que a matéria de facto dada como provada é de todo em todo insuficiente para conduzir à sua condenação.

11 - No que respeita ao erro na aplicação e interpretação da lei, entende o arguido que resulta claro da douta sentença que foi erradamente aplicada a lei, pois que dos factos dados com o provados não resulta que o arguido tenha praticado o crime que lhe é imputado e pelo qual foi condenado, sendo que a existir algum ilícito sempre o mesmo seria e será de cariz contra-ordenacional e não criminal, pois apenas estará em causa violação do regulamento constante do anexo ao DL 474/88 e nada mais, estando aqui apenas em causa a posse de artigos de pirotecnia para efeitos lúdicos sem licença para tal, o que implica a revogação da douta sentença, e prolação de acórdão que absolva o arguido em conformidade.

12 – A assim não se entender existirá sempre uma errada aplicação da lei, nomeadamente no que à moldura penal aplicável concerne, pois que o Tribunal a quão não teve em conta a moldura penal correcta e as várias possibilidades no que concerne à aplicação da pena (prisão ou multa) ou á não punição do arguido.

13 – E tendo em conta toda a factualidade dada como provada nos n.ºs 3, 7 a 24 dos factos provados, nomeadamente todas as circunstâncias pessoais e sociais do arguido, que são abonatórias e circunstâncias atenuantes, e ainda o facto de o arguido ter abandonado a actividade, estaria e estarão reunidas todas as condições para que o arguido não fosse punido, isto é, não tivesse lugar a punição do arguido conforme o previsto no art.º 87.º n.º 3 da Lei 5/2006, pelo que, e a entender-se existir crime, entende o arguido que a pena de prisão em que foi condenado deverá ser revogada e ser proferido acórdão que declare que estão reunidos as condições para que ao arguido não seja aplicada qualquer punição.”

O Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo:
“1. Perscrutada a motivação do recorrente, não se descortina qualquer indicação da norma legal por força da qual a sentença recorrida é nula.

2. A essa ausência de invocação não será certamente alheia a enumeração taxativa das nulidades da sentença do artigo 379.º do CPPenal, de cuja leitura facilmente se infere que os lapsos da decisão sob recurso não são geradores de um tal vício dessa decisão e, muito menos, de um vício insanável.

3. O arguido percebeu perfeitamente a que diploma legal pertenciam as citadas normas, ou seja, foi cumprido o desígnio do dever de fundamentação das decisões.

4. É ainda possível ao tribunal a quo, de harmonia com o disposto no artigo 380.º, n.º 1, alíneas a) e b) do CPPenal, rectificar os lapsos em causa, aditando a menção ao artigo 2.º, n.º 5, alínea al. f) e aclarando que as normas citadas se reportam ao Regime Jurídico das Armas e suas Munições.

5. Da leitura da matéria de facto dada como assente resulta claro ser esta perfeitamente suficiente para imputar o crime de tráfico de armas ao arguido RD.

6. Os materiais que, em concreto, compõem os artigos apreendidos ao arguido não são elemento objectivo essencial do tipo de crime de tráfico de armas, sendo, nesse aspecto, bastante para o perfectibilizar, o facto provado descrito no Ponto 1. dos Factos Provados.

7. A sentença sob apreciação não padece do apontado vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão.

8. Tendo-se dado como assente que “(…) desde data concretamente não apurada, mas pelo menos desde 20 de novembro de 2015 e até 12 de maio de 2016, o arguido cedeu a terceiros explosivos com as características supra identificadas”, ou seja, subsumíveis à previsão do artigo 86.º, n.º 1, alínea d) do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, é manifesto que está preenchido não o crime de detenção de arma proibida, mas o de tráfico de armas do artigo 87.º, n.º 1 do mencionado regime.

9. Houve uma alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação que teve como consequência que o artigo 87.º, n.º 1 passasse a ser aplicável ao caso vertente por referência ao 86.º, n.º 1, alínea d) e não ao 86.º, n.º 1, alínea a), circunstância que não surtiu qualquer efeito quanto à moldura abstractamente aplicável.

10. Era a moldura prevista no artigo 87.º, n.º 1 e não a no 86.º, n.º 1, alínea d) do Regime Jurídico das Armas e suas Munições que cabia ter em conta no caso dos autos, estando, por conseguinte, afastada a aplicabilidade da pena de multa-

11. A alteração da qualificação jurídica terá porventura surtido efeito no que concerne a determinação da medida concreta da pena a aplicar ao arguido, que o tribunal a quo fixou no limite mínimo da moldura abstracta, ou seja, em dois anos de prisão.

12. A sentença recorrida não violou quaisquer normas, nem está ferida de qualquer nulidade.”

Neste Tribunal, a Sra. Procuradora-geral Adjunta acompanhou a resposta do Ministério Público em primeira instância. Não houve resposta ao parecer e, colhidos os vistos, teve lugar a conferência.

2. Na sentença, consideraram-se os seguintes factos provados:

1.- No dia 12 de maio de 2016, o arguido detinha, na sua posse, no interior do quarto da sua residência, sita na Rua …, Casais da Ferreira, Arneiro das Milhariças, Santarém, os seguintes engenhos explosivos, cuja carga é essencialmente constituída por pólvora:

Duas (2) Candelas de 10 bolas de 15mm, de origem chinesa;
Um (1) Pancão, "Traca Valenciana", sem designação;
Seis (6) Bombas de arremesso de 12 mm de diâmetro, "Platon SA Alfa Alfarrasi", de origem espanhola;
Duas (2) Bombas de arremesso de 21mm de diâmetro, sem designação;
Duas (2) Bomba de arremesso de 23mm de diâmetro da marca "Crazy Robots" S01002;
Uma (1) Bomba de arremesso de 12mm, "X-Terminator" de origem espanhola;
Quatro (4) bichas de rabiar "Camellia Flower;
Quatro (4) Turbilhão" Borboleta" de 8 mm de diâmetro da marca "Platun" S.A. Espana;
Dois (2) Sacos contendo cada um 25 "estalinhos" e
Um (1) Vulcão de 26mm de diâmetro, "Paracaides Doble", "EI Gato - SL Chelva".

2.- O arguido deteve e guardou para venda e cedência a terceiros, os explosivos descritos e outros com as mesmas características, desde data não concretamente apurada, mas pelo menos, entre 20 de novembro de 2015 até 12 de maio de 2016, publicitando no site da Internet denominado "OLX" a venda de tais engenhos explosivos.

3.- Com efeito, desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde 20 de novembro de 2015 e até 12 de maio de 2016, o arguido cedeu a terceiros explosivos com as características supra identificadas.

4.- O arguido, não se encontrava autorizado pela autoridade competente à detenção, guarda, compra e cedência de tais produtos explosivos.

5.- O arguido sabia que não se encontrava habilitado por qualquer licença que o autorizasse a deter, vender, ceder a qualquer título ou por qualquer meio distribuir, mediar uma transacção, ou com intenção de transmitir a sua posse ou propriedade, deter e guardar, os objectos mencionados e, não obstante, não se absteve de o fazer.

6.- O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

7.- O processo socialização de RD desenrolou-se numa aldeia da freguesia de Pernes, no seio de uma família estruturada e de condição socioeconómica modesta, junto dos pais e da irmã velha, por quem o arguido expressou grande ligação afetiva e admiração, sendo a irmã licenciada em anatomia patológica.

8.- Neste contexto a doença oncológica e o falecimento da irmã, em 2015, marcou de forma traumatizante toda a família e em particular o arguido, desencadeando uma depressão, da qual ainda se encontra a recuperar.

9.- O arguido ao nível escolar registou algumas reprovações devido, a dificuldades de aprendizagem e por esse motivo no 7.° ano de escolaridade optou frequentar o curso de técnico comercial no Centro de Formação Profissional que o certificou com o 9° ano de escolaridade.

10.- O arguido após ainda frequentou o 10. º e o 11º ano de escolaridade no ensino regular, mas desistiu, sem o concluir.

11.- O arguido começou a trabalhar aos 18 anos como DJ em festas e eventos, atividade que abandonou após o falecimento da irmã em 2015, permanecendo inativo desde então.

12.- O arguido à data dos factos supra referidos em 1.- a 6.-, tal como no presente, o arguido vivia com os pais (53 anos, reformado por invalidez e 51 anos, empregada de balcão na área de serviço de Santarém) e avó paterna (76 anos, viúva e reformada), com quem mantem um bom relacionamento afetivo.

13.- O Arguido habita numa moradia, que é propriedade dos pais e reúne boas condições de habitabilidade.

14.- O arguido no plano profissional está inativo e sem rendimentos próprios.

15.- O arguido depende economicamente dos pais, que por seu lado têm uma situação modesta.

16.- O arguido e seu agregado familiar subsiste com o vencimento da mãe €550,00 e reforma de invalidez do pai €300,00.

17.- A reforma da avó de €600,00 mensais destina-se à subsistência da mesma, que frequenta o centro de dia da Santa Casa de Misericórdia de Pernes

18.- Nos tempos livres o arguido não se dedica a atividades estruturadas, permanecendo grande parte do tempo sozinho em casa e ocupando-se sobretudo com internet.

19.- O arguido na sequência do falecimento da irmã, acontecimento que viveu de forma dramática, ficou deprimido e com ataques de ansiedade e de pânico, levando-o a optar pelo isolamento social.

20.- O arguido teve então necessidade de recorrer a apoio médico especializado, sendo medicado e acompanhado com regularidade desde setembro de 2016, por um médico psiquiatra dr. JP, que tem clinica no Porto e devido à distância as consulta de psiquiatria com este médico e com o psicólogo dr. RT, são realizadas com regularidade por skype encontrando-se a ser medicado.

21.- O arguido registou melhorias, revelando maior estabilidade em termos emocionais e apresenta projetos futuros de voltar a estudar, no próximo mês de maio.

22.- O arguido RD já renovou a sua inscrição no Centro de Formação Profissional de Santarém, foi recentemente selecionado para o curso de cozinha e pastelaria, cujo início está marcado para o dia 24-05-2017 e caso o curso seja concluído com sucesso também o certifica com o 12.º ano de escolaridade.

23.- Ao nível da sua comunidade de residência a presença do arguido é aceite, por apresentar normalmente um comportamento adequado na sua interação social com os outros residentes.

24.-O certificado de registo criminal do Arguido datado de 3/3/2017 não insere qualquer condenação deste, conforme documento junto a folhas 285, cujo teor se da por reproduzido.”

Consignou-se a inexistência de factos não provados e a motivação da matéria de facto e procedeu-se à motivação da matéria de facto provada,

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP (AFJ de 19.10.95), as questões a apreciar respeitam a (a) nulidade de sentença por ausência de indicação das normas legais ao abrigo das quais o arguido foi condenado, (b) insuficiência para a decisão da matéria de facto provada por falta de concretização da composição dos artigos apreendidos ao arguido; e (c) escolha e medida da pena.

(a) Da nulidade de sentença por ausência de indicação das normas legais ao abrigo das quais o arguido foi condenado.

O recorrente argui a nulidade de sentença argumentando que “inicialmente acusado da prática como autor de um crime de tráfico de armas do art.º 87.º n.º 1, por referência ao disposto no art.º 86.º n.º1 al. a), art.º 2.º n.º 4 al. m), por referência ao anexo I do DL 376/84 de 30/11 alterado pelo DL 474/88 de 22/12, veio a final, e por força da alteração da qualificação jurídica operada, a ser condenado pela prática de um crime de tráfico de armas do art.º 87.º n.º 1 com referência ao disposto no art.º 86.º n.º 1 al. d), na pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período” e que “não pode conformar-se com a sentença pois entende que é nula por enfermar de vícios insanáveis, nomeadamente porque não se consegue descortinar de forma clara quais efectivamente as normas ao abrigo das quais o arguido foi condenado, para além do disposto no art.º 86.º n.º 1 al. d)”.

Refere-se o arguido à ausência de identificação completa do diploma legal à luz do qual se proferiu condenação. E tem razão em parte, pois lida a sentença não se vislumbra em todo o seu texto qualquer referência à Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro (Regime Jurídico das Armas e Munições). E foi esta a lei efectivamente aplicada, com as alterações da Lei n.º 17/2009, de 06/05, Lei n.º 12/2011, de 27/04, e Lei n.º 50/2013, de 24/07.

No entanto, não é exacto afirmar que a omissão concretamente detectada integra uma nulidade de sentença, nulidade que o recorrente propala, mas sem precisar a norma legal que a comina.

Por outro lado, a nomeação dos artigos legais efectuada na sentença, por referência aos números e alíneas e à epígrafe (“tráfico de armas”), bem como à acusação e à consequente alteração não substancial de factos devidamente comunicada antes da sentença, deram ao arguido conhecimento inequívoco da identificação do crime, como o demonstra aliás o seu recurso.

Tem assim razão o Ministério Público quando responde que “perscrutada a motivação do recorrente, não se descortina qualquer indicação da norma legal por força da qual a sentença recorrida é nula. A essa ausência de invocação não será certamente alheia a enumeração taxativa das nulidades da sentença do artigo 379.º do CPP, de cuja leitura facilmente se infere que os lapsos da decisão sob recurso não são geradores de um tal vício dessa decisão e, muito menos, de um vício insanável” e que “o arguido percebeu perfeitamente a que diploma legal pertenciam as citadas normas”, sendo “ainda possível, de harmonia com o disposto no artigo 380.º, n.º 1, als. a) e b) do CPP, rectificar os lapsos em causa, aclarando que as normas citadas se reportam ao Regime Jurídico das Armas e suas Munições”.

Mesmo que se considere que a falha detectada na sentença, na “indicação das disposições legais aplicáveis” (art. 374º, nºs 1-c) e 3-a), do CPP), integra mais do que um lapso de escrita, sempre se trataria de uma irregularidade processual (já que não está expressamente cominada como nulidade no art. 379º do CPP), a suprir agora.

Adita-se, assim, à sentença, a referência à Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro (com as alterações supra ditas), e em complemento às normas legais nela mencionadas.

(b) Da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada por falta de concretização da composição dos artigos apreendidos ao arguido

Defende o recorrente que a sentença incorre no vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, não sendo viável proferir sentença condenatória porquanto o tribunal não teria apurado “por que materiais em concreto eram compostos os artigos apreendidos, sem o que não se pode apurar se se tratam de materiais explosivos de pirotecnia”.

Responde o Ministério Público que “da leitura da matéria de facto dada como assente resulta claro ser esta perfeitamente suficiente para imputar o crime de tráfico de armas ao arguido RD”. E tem razão.

A insuficiência da matéria de facto provada verifica-se quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a decisão de direito. E só existe quando o tribunal deixar de investigar o que devia e podia, tornando a matéria de facto insusceptível de adequada subsunção jurídica, concluindo-se pela existência de factos não apurados que seriam relevantes para a decisão da causa. É uma “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito” (Simas Santos, Recursos em Processo Penal, 2007, p. 69).

O art. 86.º, nº 1, al. d), da Lei n.º 5/2006, preceitua que1 - Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, transferir, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação, transferência ou exportação, usar ou trouxer consigo: (…) d) Arma da classe E, arma branca dissimulada sob a forma de outro objeto, faca de abertura automática, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, estrela de lançar, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, aerossóis de defesa não constantes da alínea a) do n.º 7 do artigo 3.º, armas lançadoras de gases, bastão, bastão extensível, bastão elétrico, armas elétricas não constantes da alínea b) do n.º 7 do artigo 3.º, quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão, silenciador, partes essenciais da arma de fogo, artigos de pirotecnia, exceto os fogos-de-artifício de categoria 1, bem como munições de armas de fogo independentemente do tipo de projétil utilizado, é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias.”

O art. 87º, nº 1 preceitua:Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, vender, ceder a qualquer título ou por qualquer meio distribuir, mediar uma transacção ou, com intenção de transmitir a sua detenção, posse ou propriedade, adoptar algum dos comportamentos previstos no artigo anterior, envolvendo quaisquer equipamentos, meios militares e material de guerra, armas, engenhos, instrumentos, mecanismos, munições, substâncias ou produtos aí referidos, é punido com uma pena de 2 a 10 anos de prisão.”

Por último, o art. 2º al. g) define como “Fogo-de-artifício de categoria 1' o artigo de pirotecnia destinado a ser utilizado para fins de entretenimento que apresenta um risco muito baixo e um nível sonoro insignificante e que se destina a ser utilizado em áreas confinadas, incluindo os fogos-de-artifício que se destinam a ser utilizados no interior de edifícios residenciais.”

Nos factos provados descreve-se o material apreendido ao arguido, especificando-se na matéria de facto provada tratar-se de “engenhos explosivos, cuja carga é essencialmente constituída por pólvora”.

Por seu turno, nas conclusões do exame directo efectuado a estes produtos (que ali se encontram descritos em forma coincidente com os factos provados) conclui-se: “Por se tratar de artigos de pirotecnia cuja carga é essencialmente composta por pólvora, representam perigo para a integridade física de pessoas que podem sofrer lesões graves, tais como queimaduras ou arrancamento de extremidades (dedos), caso sejam empregues de forma inadequada ou utilizadas contra pessoas, podendo ainda gerar medo e pânico devido aos seus efeitos sonoros”.

Resulta assim inquestionável o afastamento da previsão do art. 2º al. g) (Fogo-de-artifício de categoria 1), estes produtos, sim, fora da previsão da al. d) do art. 86º.

Ou seja, os factos provados contêm base factual bastante para se concluir pela realização plena do tipo de crime da condenação. De onde se conclui que inexiste o vício de sentença invocado em recurso.

(c) Da escolha e medida da pena por errada aplicação da moldura penal aplicável

O arguido impugna a pena, pretendendo a sua condenação em multa ou em pena de prisão mais benevolente. Para tanto argumenta que o tribunal teve em consideração uma incorrecta moldura abstracta, uma vez que a conduta prevista no artigo 86.º, n.º 1, a. d) do Regime Jurídico das Armas e Munições é punida com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias e não apenas com pena de prisão.

Sucede que o recorrente se encontra mais uma vez equivocado, agora no que respeita ao enunciado das normas tipificadoras do seu comportamento delituoso.

Na verdade, foi condenado como autor de um crime de tráfico de armas dos arts. 87.º n.º 1 e art.º 86.º n.º 1 al. d) do Regime Jurídico das Armas e Munições.

Dispõe o art. 86.º, nº 1, al. d), como se notou já, que “1 - Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, transferir, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação, transferência ou exportação, usar ou trouxer consigo: (…) d) Arma da classe E, arma branca dissimulada sob a forma de outro objeto, faca de abertura automática, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, estrela de lançar, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, aerossóis de defesa não constantes da alínea a) do n.º 7 do artigo 3.º, armas lançadoras de gases, bastão, bastão extensível, bastão elétrico, armas elétricas não constantes da alínea b) do n.º 7 do artigo 3.º, quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão, silenciador, partes essenciais da arma de fogo, artigos de pirotecnia, exceto os fogos-de-artifício de categoria 1, bem como munições de armas de fogo independentemente do tipo de projétil utilizado, é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias.”

Mas o art. 87.º, nº 1, preceitua que 1 - Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, vender, ceder a qualquer título ou por qualquer meio distribuir, mediar uma transacção ou, com intenção de transmitir a sua detenção, posse ou propriedade, adoptar algum dos comportamentos previstos no artigo anterior, envolvendo quaisquer equipamentos, meios militares e material de guerra, armas, engenhos, instrumentos, mecanismos, munições, substâncias ou produtos aí referidos, é punido com uma pena de 2 a 10 anos de prisão.”

A pena abstracta prevista para o crime da condenação é, pois, a de prisão de dois a dez anos.

Na sentença, a fundamentação da pena foi a que segue:

B. Da natureza e medidas das penas.

O crime de tráfico de armas praticado pelo Arguido é punível em abstracto com pena de prisão de dois (2) a oito (8) anos.

Os critérios de determinação da medida concretas da pena a aplicar ao Arguido encontram-se previstos no artigo 71 do código penal.

Atender-se-á na determinação da pena concreta a aplicar ao Arguido aos critérios legais de determinação da pena, previstos no referido artigo 71, e designadamente, ao grau de intensidade dos ilícitos, considerando a respectiva natureza, mediano, - ausência de consequências gravosas -, ao facto de ao Arguido ter agido com dolo directo, e a sua situação social, económica, profissional e familiar.

Tendo em consideração os mencionados elementos de ilicitude e culpabilidade entende-se adequado punir o Arguido com uma pena de mínima de dois anos de prisão.

3. Da pena de substituição. (…)”

Da leitura da sentença ressalta nova desatenção por parte do tribunal, desta feita na parte relativa à identificação da moldura penal abstracta correspondente ao crime da condenação.

O lapso cometido foi-o em benefício do arguido.

Na verdade, e como o Ministério Público frisa na resposta, a pena abstracta é a de dois a dez anos de prisão, e não a de dois a oito anos de prisão como erradamente se consignou ali.

Cumpriria então reconformar a pena aplicada ao arguido dentro da moldura penal realmente correspondente ao crime cometido por ele.

Acontece que o Ministério Público não reagiu por via de recurso a esta incorrecção da decisão, certamente por aceitar como suficiente e justa a pena aplicada. Não só não interpôs recurso, como manifestou concordância com a (pena proferida na) sentença.

O art. 409º do CPP proíbe a reformatio in pejus e, interposto recurso apenas pelo arguido, “o tribunal superior não pode modificar, na sua espécie ou medida, as sanções constantes da decisão recorrida, em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrentes”. O tribunal de recurso não pode proceder à correcção da pena aplicada ao arguido no quadro da moldura penal do crime da condenação, que pune o comprovado comportamento criminoso com prisão de dois a dez anos.

Assim, há que ponderar apenas as razões apresentadas no recurso, aferindo se estas justificam uma redução da pena proferida na sentença. E constatando-se que o mínimo da pena abstracta é, em qualquer dos casos (quer à luz da moldura penal efectivamente prevista para o crime, quer à luz da pena abstracta impropriamente configurada na sentença) dois anos de prisão, e correspondendo, este mínimo, à pena concreta já aplicada ao arguido, nada há a corrigir na sentença quanto à escolha e graduação da pena.

Recorde-se que o arguido pugna por uma pena de multa, limitando-se a argumentar, fora de qualquer suporte legal, que à sua conduta corresponderia uma pena de prisão até quatro anos ou multa até 480 dias. Esta afirmação não encontra correspondência no quadro legal aplicável.

Acresce que as demais circunstâncias pessoais a que genericamente apela, e que em seu critério assumiriam pendor atenuante, mostram-se necessariamente valoradas, já que a prisão se encontra fixada no mínimo legal (tendo sido ainda substituída por prisão suspensa).

Por último, consigna-se que inexiste igualmente a mínima base factual que permita a pretendida ponderação da aplicação do nº 3 do art. 87º (“3 - A pena pode ser especialmente atenuada ou não ter lugar a sua punição se o agente abandonar voluntariamente a sua actividade, afastar ou fizer diminuir consideravelmente o perigo por ela provocado, impedir que o resultado que a lei quer evitar se verifique ou auxiliar concretamente na recolha das provas decisivas para a identificação ou a captura de outros responsáveis”), como, de novo a despropósito, sugere o arguido.

A pena proferida é, por tudo, de manter.

4. Face ao exposto, acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, confirmando-se a sentença.

Custas pelo recorrente que se fixam em 5UC (arts 513º /1 e 514º/1 CPP e 8º/9 e Tab. III RCP).

Évora, 05.12.2017

(Ana Maria Barata de Brito)

(Maria Leonor Vasconcelos Esteves)