Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2416/22.2T8STR.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
DOLO
CULPA GRAVE
Data do Acordão: 07/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I – O tipo subjetivo da litigância de má fé apenas se preenche em caso de dolo ou culpa grave.
II – A absolvição da instância do Requerido nos presentes autos verificou-se na sequência da procedência de uma exceção legalmente prevista - ilegitimidade do Requerente [art. 141º, nº 1, do CC] -, não sendo possível concluir, sem mais, pela litigância de má-fé deste último.
III – A ausência na matéria de facto de factos concretos quanto à conduta do Requerente donde se possa concluir que o mesmo agiu com intenção dolosa de falsear a verdade dos factos e deduzir uma pretensão sem qualquer fundamento, não permite concluir pela existência de má-fé do Requerente.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
AA instaurou ação especial de acompanhamento de maior em benefício de BB, formulando os seguintes pedidos:
a) aplicação de medida de acompanhamento urgente e a decretação do acompanhamento do Requerido pelo Requerente, na sua vida pessoal, financeira e familiar, sobretudo nas decisões que digam respeito à sua saúde, acompanhamento e tratamento médico, local de habitação e gestão da sua pensão, procedendo-se ao final a publicidade da decisão nos termos da lei;
b) suprimento da autorização do Requerido, e em consequência, ser decretado o seu acompanhamento, mediante o regime da representação geral ou o decretamento, em alternativa, de outras medidas de acompanhamento que, in casu, se julguem melhor salvaguardar o interesse imperioso do Requerido;
c) nomeação de acompanhante e que seja designado acompanhante substituto, em caso de impossibilidade do acompanhante designada: Acompanhante: AA; Acompanhante substituto(a): CC.
Para tanto, alega, em síntese, que o estado de saúde e comportamentos assumidos pelo Requerido, seu pai, demandam urgência na sua submissão a acompanhamento psiquiátrico, bem como na salvaguarda dos rendimentos para as necessidades médicas do mesmo e esposa, sugerindo que o Requerido seja observado por médico psiquiatra, e que seja internado em instituição de Saúde, em Centro Geriátrico ou Casa de Repouso, o que aquele recusou.
Conclui, dizendo que o Requerido, seu pai, se encontra impossibilitado de exercer plena, pessoal e conscientemente os seus direitos e cumprir os seus deveres, sendo que as limitações de que padece não são ultrapassáveis pela assistência e auxílio dos familiares.
O Requerido contestou, negando a veracidade dos factos alegados pelo Requerente, contrapondo, em síntese, que este, seu único filho, tem relacionamento conflituoso com os pais, relacionado com problemas de ordem conjugal e financeira, impondo ao Requerido e mãe ajudas financeiras.
Reconhece o Requerido que tem problemas auditivos e de visão, mas que as mesmas são típicas da idade, não tendo sido diagnosticado com qualquer psicopatologia que coloque em causa a sua plena capacidade para gestão da sua vida quotidiana.
Conclui dizendo que o Requerente não tem legitimidade para instaurar a presente ação, porquanto o Requerido se encontra em pleno exercício e gozo das suas capacidades, devendo ser-lhe negado o suprimento do consentimento.
O Ministério Público pugnou igualmente pela ilegitimidade do Requerente, porquanto este não se encontra devidamente autorizado pelo Requerido para instaurar a presente ação, como exige o artigo 141º, nº 1, do Código Civil.
O Requerido foi submetido a exame pericial, determinado pelo Tribunal, cujo relatório foi junto aos autos por ofício de 22.03.2023 [ref.ª 9504329].
Foi proferido despacho a determinar a notificação dos intervenientes processuais [Requerente, Requerido e Ministério Público] para, querendo, se pronunciarem acerca da legitimidade do Requerente [rectius, suprimento do consentimento] para a propositura da presente ação especial de acompanhamento de maior.
O Requerido pronunciou-se no sentido de estar comprovada a ilegitimidade do Requerente, e o Ministério Público deu por reproduzido o teor da contestação, onde já havia pugnado pela ilegitimidade do Requerente, pedindo ainda a condenação deste como litigante de má-fé.
Respondeu o Requerente, dizendo que nunca agiu de má-fé, concluindo pela absolvição do respetivo pedido.
Foi de seguida proferida decisão que, julgando verificada a exceção de ilegitimidade ativa, absolveu o Requerido da instância e condenou o Requerente nas custas.
Subsequentemente foi decidido o incidente de litigância de má-fé suscitado pelo Ministério Público, o qual foi julgado improcedente.
Inconformado, o Ministério Público interpôs o presente recurso de apelação, tendo finalizado a respetiva alegação com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«1ª- Circunscreve-se o presente recurso a duas questões, respeitando a primeira à condenação do requerente em custas processuais, na medida em que os processos de acompanhamento de maior delas se encontram objectivamente isentos, nos termos do disposto no artº 4º nº 2 al. h) do Regulamento das Custas Processuais;
2º- Quanto a esta questão, afigura-se-nos líquido que a condenação se ficou a dever a mero lapso, face ao disposto no artº 4º nº 2 al. h) do Regulamento das Custas Processuais pelo que, por mera cautela, cumpre apenas referir que a improcedência da ação, decorrente da absolvição do requerido da instância, não altera a natureza e forma do processo pelo que, tratando-se uma isenção objectiva, aplicável ao processo e não às partes, não deve manter-se a condenação.
3º- Impugna-se ainda, e por outro lado, a decisão de fazer improceder o incidente de litigância de má fé e não conhecer a conduta do Requerente que é subsumível a este instituto, por alegada ausência de articulação de factos, porquanto se entende que, ainda que assim fosse, no que não se concede, o seu conhecimento não depende de especifica articulação de factos sendo, pelo contrário, de conhecimento oficioso.
4º- Na verdade, não poderia o Tribunal abster-se, ainda que oficiosamente, de conhecer o uso inadequado que o requerente fez do processo e que resulta à evidência dos factos provados em sentença, na qual se dá como provado, para além do mais, que o requerido é orientado, com capacidade para a resolução de problemas do dia a dia, lida bem com assuntos de dinheiro, é independente nas actividades sociais, vida de casa, passatempos e interesses mantidos, apresenta capacidade para cuidar de si, convive com os amigos, mostra capacidade para fazer deslocações sozinho, independente na saúde e capaz de se responsabilizar pela sua medicação.
6º- E dá-se ainda como provado que sabe o valor de bens básicos, consegue verificar o troco e o talão de compras, mostra-se capaz de gerir a sua conta bancária, mostra conhecimento da definição de extrato bancário.
7º- Mais, que da avaliação instrumental neuropsicológica, não se apuram défices significativos em qualquer área cognitiva, tendo em conta a idade e escolaridade, remete para um declínio cognitivo característico da idade e que o requerido apresenta capacidade de compreensão e de livre autodeterminação para atos que necessitem de memória, capacidade de abstracção, resolução de problemas e juízo social.
8º- E que o requerido não possui patologia psiquiátrica grave que condicione a capacidade de discernimento nem de autodeterminação, estando este capaz de avaliar os seus atos e as possíveis consequências destes e que se mostra capaz de livre e conscientemente conceder autorização para a instauração do presente acção de acompanhamento de maior.
9º- Por fim, dá-se como provado em sentença que o requerido não consentiu o Requerente a instaurar a presente acção (…)”.
10º- Não obstante este circunstancialismo apurado, que o requerente, seu filho, não podia desconhecer, este propôs a ação alegando factos integradores de um estado de incapacidade física e mental que justificaria a autorização de suprimento de consentimento, bem como a decisão de acompanhamento contendendo, designadamente, com a atribuição ao requerente da gestão da pensão de reforma de seu pai, aqui requerido.
11º- Resulta ainda dos autos que o requerido recebeu a citação, mostrando ter ficado ciente do respectivo teor, contestou a presente acção, constituindo Mandatários e negando terminantemente a maioria dos factos constantes da petição inicial que consubstanciavam a sua alegada dependência, tendo alegado que o requerente teria interesse na gestão, designadamente, da sua pensão mensal.
12º - Conclui-se, assim, no que respeita à improcedência da peticionada condenação do Requerente como litigante de má fé” que resulta da simples leitura da sentença, à saciedade, não só a completa ausência de fundamento para a propositura da ação que deu início aos presentes autos como também a manifesta contrariedade dos factos provados com a realidade que foi dada como provada na própria sentença, evidenciando, de forma gritante, um uso indevido e inadequado do processo, de tal forma evidente que não podia ser desconhecido do requerente.
13º- Note-se que da própria sentença consta que o Requerido BB recusou a propositura da presente ação (fls. 7, parag. 2) sendo que o requerido, ainda assim e destituído de elementos que a suportassem, a interpôs.
14º- Sendo a má-fé de conhecimento oficioso mal compreendemos que o Tribunal não conheça a sua existência, escusando-se a apreciar a questão apenas com fundamento na aparente ausência de alegação de factos, por parte do Ministério Público.
15º- Sem conceder, dir-se-á que, em todo o caso, no requerimento apresentado sob a referência 25446, o Ministério Público alega que “ (…) os autos reúnem elementos suficientes para determinar a condenação do requerente em litigância de má fé (…) ”, remetendo em tudo para o teor da sua contestação apresentada na data de 09.11.2022.
16º- Nesta contestação, já o Ministério Público havia feito constar a ausência de elementos probatórios que permitissem sustentar o suprimento de consentimento que vinha requerido, bem como o facto de o requerido se ter mostrado capaz de receber a citação, conforme consta da nota de citação junta aos autos, a qual assinou. Mais alegou o Ministério Público, nessa peça processual, que o requerido apresentou contestação refutando os factos alegados e juntando dois elementos clínicos atestando a ausência de doença psiquiátrica e a sua independência para as actividades básicas do dia a dia.
17º- Com a factualidade descrita, que evidencia a existência de capacidade por parte do requerido para, livremente, requerer e/ou consentir no seu próprio acompanhamento, tal como viria a ser confirmado pelo exame pericial determinado pelo Tribunal e em cujo relatório assenta a matéria dada como provada em sentença, afigura-se-nos difícil afirmar a ausência de factos em que se suporte a pretensão para condenação em litigância de má fé que, em todo o caso, como se disse, sempre seria de conhecimento oficioso.
18º- O Tribunal, ao concluir pela improcedência do incidente, apenas se escuda na alegada ausência de articulação de factos, não se concedendo que dessa forma deixe de apreciar, sem mais, a factualidade que deu como provada em sentença e com a qual sustentou a ilegitimidade do requerente.
19º- Não recorrendo a outras fontes legais, doutrinárias ou jurisprudenciais que não as citadas na douta sentença recorrida, as quais aqui damos por integralmente reproduzidas, temos que diz-se litigante de má fé, nos termos do disposto no artº 542º nº 2 do Código de Processo Civil, quem, com dolo ou negligência grave quem tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar ou tiver alterado a verdade dos factos ou tiver omitido factos relevantes para a decisão da causa.
20º- Assim sendo, no caso sub iudice, a douta sentença grita por essa mesma condenação, ao dar como provado que o requerido é capaz, não necessita de acompanhamento e que não consentiu o requerente a instaurar a presente ação, constando da fundamentação da sentença, ainda de forma mais imprecisiva, do 2º parágrafo de pag. 7, que “ (…) o Requerido estava e está em condições de dar livre e conscientemente a autorização ao requerente para a instauração da presente acção, mas recusou fazê-lo. (…)- sublinhado nosso,
21º- Assim, a decisão recorrida, ao não conhecer o mérito da questão e fazendo improceder a condenação do requerente em litigância de má fé exclusiva e alegadamente na conclusão de que, pelo requerente Ministério Público, “não foram invocados factos concretos que habilitassem o Tribunal a suportar uma tal decisão.”, viola o disposto no citado artº 542º nº 3 do C. Processo Civil, que interpretou no sentido de que não pode apreciar só de per si o uso inadequado do processo, conducente à condenação da litigância de má fé.
22º Antes deveria ter interpretado esse normativo no sentido de que a mesma é de conhecimento oficioso do Tribunal, para além de que não atentou na remissão que o Ministério Público realizou, remetendo para a sua contestação, já antes apresentada nos autos.
23º- Violou ainda a decisão recorrida o disposto no artº 4º nº 2 al. h) que interpretou no sentido de este normativo não ser aplicável aos processos de acompanhamento de maior, em caso de absolvição, quando deveria ter interpretado no sentido de que lhes é sempre aplicável, sem qualquer restrição.
Termos em que revogando as decisões proferidas sob a referência 93050038, no que respeita à condenação em custas processuais e absolvição por litigância de litigância de má fé, impondo-se consequentemente, a absolvição do requerente em custas e a sua condenação em multa processual, por litigância de má fé, dado ter interposto a acção conhecendo a falsidade dos factos que alegava e que, aliás, pela sua evidência não podia desconhecer, farão Vº Exª a costumada JUSTIÇA!»

Contra-alegou o Requerente, defendendo a manutenção da decisão recorrida.

Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), as questões a decidir consubstanciam-se em saber:
- se a decisão recorrida condenou indevidamente em custas o Requerente;
- se o Requerente deve ser condenado como litigante de má-fé.

III – FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1 - BB, casado, nascido em 23 de abril de 1930, reside na Rua ..., ..., ..., em Santarém.
2 - AA, divorciado, residente na Rua ..., Quinta ..., em Santarém, é filho de BB e de DD.
3 - O requerido é orientado, com capacidade para resolução de problemas do dia a dia, lida bem com assuntos de dinheiro.
4 - Independente nas atividades sociais, vida de casa, passatempos e interesses mantidos.
5 - Apresenta capacidade para cuidar de si.
6 - É independente, com controlo de esfíncteres, independente para higiene, vestir e mobilidade, sem necessidade de ajuda de terceiros para a alimentação.
7 - O Requerido mantém atividade de lazer, convive frequentemente com amigos.
8 - Mostra capacidade para fazer deslocações sozinho, independente na saúde e capaz de se responsabilizar pela sua medicação.
9 - Sabe o valor de bens básicos. Consegue verificar o troco e o talão das compras. Mostra-se capaz de gerir a sua conta bancária, mostra conhecimento da definição de extrato bancário.
10 - Da avaliação instrumental neuropsicológica, não se apuram défices significativos em qualquer área cognitiva, tendo em conta a idade e escolaridade, remete para um declínio cognitivo característico da idade.
11 - O requerido apresenta capacidade de compreensão e de livre autodeterminação para atos que necessitem de memória, capacidade de abstração, resolução de problemas e juízo social.
12 - O requerido não possui patologia psiquiátrica grave que condicione a capacidade de discernimento nem de autodeterminação, estando este capaz de avaliar os seus atos e as possíveis consequências destes.
13 - Mostra-se capaz de livre e conscientemente conceder autorização para a instauração da presente ação de acompanhamento de maior.
14 - O Requerido não consentiu o Requerente a instaurar a presente ação.

O DIREITO
Da condenação do Requerente nas custas
Os processos de acompanhamento de maior estão isentos de custas nos termos do disposto no art. 4º, nº 2, al. h), do Regulamento das Custas Processuais, pelo que não podia a decisão recorrida condenar o Requerente nas custas, sendo que a improcedência da ação, decorrente da absolvição do Requerido da instância, não altera a natureza e forma do processo, dado tratar-se de uma isenção aplicável ao processo e não às partes.
Por conseguinte, procede este segmento do recurso.

Da litigância de má-fé do Requerente
O modelo processual vigente consagra, como um dos seus princípios fundamentais, o princípio da cooperação, segundo o qual «na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio» - art. 7º, do CPC.
No que respeita às partes, o dever de cooperação vem concretizado no art. 8º do CPC, que impõe às partes o dever de agir de boa-fé e cuja violação pode traduzir-se em litigância de má-fé.
Por sua vez, de acordo com o disposto no art. 542º, nº 2, do CPC diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:
«a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
d) tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.»
Distinguem-se claramente, na formulação legal, a má fé substancial - que se verifica quando a atuação da parte se reconduz às práticas aludidas nas alíneas a) e b) - e a má-fé instrumental [als. c) e d)].
Não obstante, em qualquer dessas situações encontramo-nos perante uma intenção maliciosa ou uma negligência de tal modo grave ou grosseira que, aproximando-a da atuação dolosa, justifica um elevado grau de reprovação e idêntica reação punitiva[1].
Escreveu-se no Acórdão da Relação do Porto de 16.07.2014 [2]:
«A concretização das situações de litigância de má fé exige alguma flexibilidade por parte do intérprete, o qual deverá estar atento a que está em causa o exercício do direito fundamental de acesso ao direito (art. 20º da Constituição da República Portuguesa), não podendo aquele instituto traduzir-se numa restrição injustificada e desproporcionada daquele direito fundamental.
Importa não olvidar a natureza polémica e argumentativa do direito, o carácter aberto, incompleto e autopoiético do sistema jurídico, a omnipresente ambiguidade dos textos legais e contratuais e as contingências probatórias quer na vertente da sua produção, quer na vertente da própria valoração da prova produzida.
(…).
Assim, à semelhança da liberdade de expressão numa sociedade democrática, o direito fundamental de acesso ao direito só deve ser penalizado no seu exercício quando de forma segura se puder concluir que o seu exercício é desconforme com a sua teleologia subjacente, traduzindo-se na violação dos deveres de probidade, verdade e cooperação e numa utilização meramente chicaneira dos meios processuais, com o objectivo de entorpecer a realização da justiça.
Por isso, o tipo subjectivo da litigância de má fé apenas se preenche em caso de dolo ou culpa grave.»[3]
Escreveu-se na decisão recorrida:
«No caso em apreço, o Ministério Público peticionou a condenação do Requerente como litigante de má fé, sem que tenha invocado qualquer concreto facto que possa ser apreciado com vista à avaliação da pretensão deduzida.
Ora, para que Tribunal se pronuncie quando a determinado pedido, necessário é que sejam alegados factos concretos tendo em vista a sua subsunção ao direito.
Poder-se-ia equacionar se o seu pedido radicou no facto da presente demanda vir a culminar, como culminou, na absolvição do Requerido da instância.
Porém, diga-se, que a procedência de uma excepção, ainda que analisada sob o prisma factual e normativo, na procedência dos seus argumentos, não pode conduzir directamente a uma litigância de má fé.
Parece verificar-se, nos termos do artigo 542.º, do Código de Processo Civil, que a norma exige algo mais, uma total atitude gravemente grosseira, o que entendemos, salvo o devido respeito, não podemos assim concluir posto que não foram invocados factos concretos que habilitasse o Tribunal a suportar uma tal decisão.
Ora, nos termos do art. 542º do CPC, a apreciação da má fé de qualquer das partes pode/deve ter lugar oficiosamente, uma vez cumprido o indispensável contraditório, encontrando-se apenas a condenação em indemnização à parte contrária dependente do pedido do interessado com legitimidade para o efeito[4].
Não colhe, assim, o argumento aduzido na decisão recorrida de que, para que o Tribunal se pronunciasse quanto à invocada má-fé do Requerente, tinha o Ministério Público de ter alegado factos concretos tendo em vista a sua subsunção ao instituo da condenação por litigância de má-fé.
Daqui não se segue, porém, que a razão esteja do lado do recorrente quanto à condenação do Requerente.
A absolvição da instância do Requerido nos presentes autos verificou-se na sequência da procedência de uma exceção legalmente prevista, não sendo possível concluir, sem mais, pela litigância de má-fé do Requerente.
Defende o recorrente que a matéria fáctica constante dos autos é bastante para se concluir pela litigância de má-fé do requerente, resultando da contestação que apresentou, a alegação de inexistência de elementos probatórios que permitissem sustentar o suprimento de consentimento que vinha requerido, bem como o facto de o requerido se ter mostrado capaz de receber a citação e apresentado contestação refutando os factos alegados.
Ora, isto não comprova a existência de litigância de má-fé por banda do Requerente, e também se afigura insuficiente para o efeito a matéria de facto dada como provada na decisão recorrida, porquanto, à exceção dos pontos 1 e 2, referentes ao estado civil, idade e morada de requerido e requerente, e ponto 14, atinente à exceção de ilegitimidade invocada, trata-se apenas de conclusões dos exames médicos periciais a que o requerido se submeteu, não resultando de nenhum deles qualquer facto concreto quanto à conduta do Requerente que permita dizer que o mesmo agiu com intenção dolosa de falsear a verdade dos factos e deduzir uma pretensão sem qualquer fundamento.
E, repete-se, a procedência da exceção de ilegitimidade ativa não implica, por si só, litigância censurável a despoletar a aplicação de qualquer sanção processual.
Em suma, não indiciam os autos que o Requerente tenha atuado com dolo ou culpa grave, pelo que bem andou o Tribunal a quo ao julgar improcedente o pedido de condenação do Requerente como litigante de má-fé.
Por conseguinte, o recurso improcede nesta parte.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação e, consequentemente, revogam a decisão recorrida na parte em que condenou o Requerente nas custas, mantendo no mais o decidido.
Sem custas, dada a isenção legal.
*
Évora, 12 de julho de 2023
Manuel Bargado (Relator)
José Lúcio (1º Adjunto)
Maria Adelaide Domingos (2ª Adjunta)
(documento com assinatura eletrónica)

__________________________________________________
[1] Cfr. Acórdão do STJ de 23.09.2003, proc. 03B1736, in www.dgsi.pt.
[2] Proc. 117/13.1TBPNF.P1, in www.dgsi.pt.
[3] Escreveu-se, a este propósito, no preâmbulo do Decreto-lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro: «Como reflexo e corolário do princípio da cooperação, consagra-se expressamente o dever de boa-fé processual, sancionando-se como litigante de má-fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos».
[4] Cfr. Acórdão do STJ de 08.02.2022, proc. 4964/20.0T8GMR.G1.S1, in www.dgsi.pt.