Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
170/15.3T8PTG.E1
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
ACIDENTE DE TRABALHO
ANIMAL
PRESUNÇÃO DE CULPA
Data do Acordão: 06/27/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
I - O mesmo facto naturalístico pode ser gerador de diversos tipos de responsabilidade, pelo que, o acidente que causou a morte do trabalhador da ora ré, para além de configurar um acidente de trabalho, pode ainda gerar responsabilidade contraordenacional e mesmo configurar a comissão de um crime de violação de regras de segurança, podendo também determinar a obrigação da entidade patronal indemnizar civilmente os danos decorrentes do mesmo, por responsabilidade subjectiva decorrente de facto ou omissão ilícitas, podendo a indemnização em uns processos não excluir a indemnização em outros, quando sejam complementares e não excludentes entre si.
II - Na espécie, a vertente da responsabilidade objectiva da entidade patronal resultante da mera ocorrência do sinistro, em virtude da perigosidade da actividade exercida de maneio animal, e independentemente de existir ou não culpa do empregador, decorre do artigo 7.º da LAT e não do artigo 502.º do CC que foi convocado pelo Apelante, acrescendo que nem sequer foi oportunamente alegado que a Ré tivesse sobre o animal um qualquer direito real de gozo, que permitisse a sua responsabilização por via do disposto neste indicado preceito.
III - O artigo 493.º do CC situa-se no domínio da responsabilidade civil delitual, fazendo impender uma presunção de culpa sobre o encarregado da vigilância de quaisquer animais, a qual só é ilidível pela prova por banda daqueles que assumiram o encargo pela vigilância de que nenhuma culpa houve da sua parte na ocorrência do evento danoso ou que os danos sempre se teriam igualmente produzido ainda que houvesse culpa sua; e ainda sobre quem exerce uma actividade perigosa, presunção que só é afastável pela prova de que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir os riscos decorrentes da natureza da actividade exercida ou dos meios empregues no desenvolvimento desta.
IV - A presunção legal decorrente da decisão penal absolutória prevista no artigo 624.º, n.º 1, do CPC, de inexistência dos factos que consubstanciem a prática do aludido ilícito criminal, pese embora pudesse neste processo cível ter sido ilidida por prova em contrário, não foi afastada pelos Autores, o que sempre determinaria a consequência decorrente do artigo 624.º, n.º 2, do CPC, de a presunção da inexistência dos factos culposos prevalecer sobre quaisquer outras presunções de culpa estabelecidas na lei civil.
V - Significa o que vimos de dizer, que qualquer presunção de culpa decorrente do artigo 493.º do CC se encontrava desde logo inexoravelmente afastada. Porém, no caso, a Ré logrou realmente afastar qualquer comportamento culposo, donde falha tal pressuposto da sua responsabilização.
Decisão Texto Integral:
Processo n.º 170/15.3T8PTG.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre[1]
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Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[2]:

I - RELATÓRIO
1. BB, CC, DD, EE, e FF, instauraram a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra Associação de Agricultores GG, requerendo a intervenção principal provocada, como seus associados, de HH, II e JJ, com fundamento em que os mesmos também têm o direito de reclamar da ré pelo dano morte e dano moral, na qualidade de sucessores de LL, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhes a quantia de 90.000,00€ a título de danos não patrimoniais resultantes da morte deste, acrescida de juros legais a contar da citação até efectivo e integral pagamento.
Em fundamento da sua pretensão, alegaram ser sucessores de LL o qual veio a falecer em virtude de um acidente de trabalho quando se encontrava ao serviço da ré, já que faleceu quando encaminhava um animal bovino depois deste ter sido leiloado, sendo que aquele se virou repentinamente e lhe espetou um corno na zona abdominal, por a ré não ter assegurado ao falecido qualquer formação no âmbito da segurança e saúde no trabalho nomeadamente formação no maneio de animais, tendo sido essa falta de formação que motivou o acidente que lhe veio a causar a morte.
Mais alegaram que eram uma família feliz e que a morte do LL provocou a todos um profundo desgosto, estimando em 60.000,00€ a indemnização devida pela perda do direito à vida e em 30.000,00€ os danos não patrimoniais pelo sofrimento com a sua morte.

2. A R. contestou, por excepção, defendendo a incompetência do tribunal em razão da matéria, sustentando ser competente a secção do trabalho, invocando a ilegitimidade dos autores por a lei não atribuir o direito a indemnização a irmãos e sobrinhos do falecido e a caducidade do direito de acção por já haver decorrido mais de um ano a contar da data da morte do referido LL; e, em resumo, invocando que deu ao falecido LL toda a formação adequada ao desempenho daquelas funções, não tendo por conseguinte praticado qualquer facto ilícito e culposo e não lhe podendo ser imputável a qualquer título a ocorrência do acidente dos autos.

3. Admitida a requerida intervenção principal provocada, HH veio declarar não pretender intervir no processo, JJ veio declarar que se associa aos autores, fazendo seus os articulados por estes apresentados, e II nada disse.

4. Realizada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, no qual se julgaram improcedentes as excepções invocadas pela ré, e se procedeu à identificação do objecto do litígio e à enunciação dos temas da prova.

5. Realizada a audiência final, foi proferida sentença julgando a presente acção improcedente, por não provada, e em consequência, absolvendo a ré do pedido.

6. Inconformado, o Interveniente Principal JJ apelou, finalizando a respectiva minuta recursória com as seguintes conclusões:
«I- A morte do LL teve como única causa o facto da Ré não ter garantido uma formação adequada no domínio da segurança e saúde no trabalho, tendo em atenção o posto de trabalho e, por não ter zelado, de forma continuada e permanente, pelo exercício das suas actividades em condições de segurança e saúde para os trabalhadores.
II- Tal comportamento, por acção, e/ou omissão foi causa adequada do decesso que não ocorreria, nas condições em que ocorreu, se as instalações, pela sua inapropriada largura, não tivessem permitido que um animal extremamente forte e poderoso se tivesse virado repentinamente e investido brutalmente contra o infeliz trabalhador, que se comportou sempre como devia, não dando causa ao sucedido.
III- Sendo a Ré, ora Recorrida a única responsável pelo ressarcimento dos danos causados aos familiares, do falecido, ora Autores, nomeadamente de acordo com o disposto nos Arts. 483º, 486º, 493º, 499º, 502º e 505º, “a contrario”, do Código Civil».

7. A Ré apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência da apelação.

8. Observados os vistos legais, cumpre decidir.
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II. O objecto do recurso.
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil[3], é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, evidentemente sem prejuízo daquelas questões cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Assim, vistas as conclusões do recurso, as questões a apreciar respeitam a saber se da interpretação dos factos provados decorre, como pretende o Recorrente, que a morte de LL, quando se encontrava ao serviço da Ré, ocorreu em virtude desta não lhe ter garantido adequadas condições de formação e segurança, com a consequente obrigação de indemnização.
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III – Fundamentos
III.1. – De facto
Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
«1. As A.A. BB, CC e DD, são irmãs do falecido LL, vítima de acidente de trabalho de que resultou a sua morte; a A. EE, é filha da pré-falecida irmã de LL, Maria … e, FF, é viúva do pré-falecido irmão de LL, Luís ….
2. LL faleceu sem testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, sendo que os irmãos ora Autores, a sobrinha EE e HH, filhas da irmã do falecido, Maria … são os seus únicos e universais herdeiros daquele – ainda, FF, viúva do irmão do falecido, Luís …, e sua única e universal herdeira.
3. Do falecido LL, são ainda irmãos, II e JJ.
4. O falecido LL celebrou em 28 de Setembro de 2009, um contrato de trabalho a termo certo, com a Associação dos Agricultores GG, na qual ao tempo António M… exercia as funções de presidente da direcção, para desempenhar as funções de apoio à estação de lavagem e desinfecção de viaturas.
5. Logo que iniciou as funções, na referida data, foi, pela entidade patronal e aqui ré, durante algum tempo, cerca de um mês e meio, colocado junto à balança existente no parque dos leilões de gado que funciona no Campo da Feira nesta cidade de Portalegre, zona onde não existe contacto directo com os animais, para aprender como funcionam os leilões, como se maneava o gado e que trajecto tinha de fazer com o mesmo no desenrolar dos leilões.
6. Desde data não concretamente apurada, mas logo após ter deixado a zona da balança, até ao dia 5 de Janeiro de 2011, o falecido LL passou a desempenhar as tarefas de tratamento e encaminhamento dos animais das boxes para o redondel onde são licitados e, após licitação, conduzi-los de volta às mesmas boxes.
7. No dia 5 de Janeiro de 2011, pelas 15 horas e 20 minutos, quando decorria um leilão de gado no mencionado parque, o falecido LL encaminhava um animal bovino, de raça alentejana de 8 anos de idade e com o peso de 880 kg de regresso á boxe, após ter sido leiloado, seguindo atrás do animal, a uma distância de dois a três metros dele, quando o animal se virou repentinamente e o atingiu, espetando-lhe um corno na zona abdominal.
8. Com o corno do animal espetado no abdómen da vítima, o mesmo foi levantado e carregado pelo animal que o conduziu pelo ar cerca de 20 metros, após o que se soltou do chifre do animal e caiu no chão.
9. Em consequência de tal cornada sofreu a vítima um traumatismo torácico e abdominal de que resultou ruptura de vasos sanguíneos e órgãos nobres, tais como o rim direito e a aorta abdominal, com o resultado de hemorragia interna abundante, o que levou à sua morte.
10. A Ré sabia que a actividade de maneio do gado era uma actividade potencialmente perigosa.
11. À entidade empregadora, foram levantadas duas contra-ordenações laborais, uma grave e outra muito grave, por não ter sido assegurada uma formação adequada no domínio da segurança e saúde no trabalho, tendo em atenção o posto de trabalho do falecido LL e, por não ter zelado, de forma continuada e permanente, pelo exercício das suas actividades em condições de segurança e saúde para os trabalhadores.
12. No âmbito do processo n.º 5/11.6TTPTG que correu seus termos pelos Serviços do Ministério Público – Tribunal Trabalho de Portalegre, em sede de tentativa de conciliação, a Companhia de Seguros Fidelidade Mundial S.A., para quem a Ré havia transferido através da apólice nº AT4023284 a responsabilidade por acidentes de trabalho, aceitaram o acidente descrito como de trabalho e, o nexo de causalidade entre as lesões e o acidente, aceitando a Seguradora pagar ao Fundo de Acidentes de Trabalho a quantia de 24.792,00€, em virtude de inexistirem parentes sucessíveis economicamente dependentes do falecido.
13. Alguns dos aqui Autores (outros faleceram) deduziram no âmbito do processo comum singular que correu seus termos pelo 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre, com o nº 16/11.1TAPTG, pedido de indemnização civil, que foi remetido para os meios comuns em razão do falecimento da então demandante Maria ….
14. Logo que iniciou funções, o falecido LL passou a receber formação com vista a dar-lhe as necessárias competências enquanto tratador de gado bovino, e mais especificamente no maneio do mesmo no Parque de Leilões da GG.
15. Dado que inexiste curso específico para essa área de actividade, a formação em causa foi ministrada por funcionários mais antigos e experientes que trabalham no referido Parque de Leilões, designadamente António T…, Amílcar L… e o Dr. Rui M…, médico veterinário responsável pelo Parque.
16. Numa primeira fase os formandos não têm qualquer contacto directo com os animais, permanecendo na zona da balança, local onde existem grades separadoras de protecção, altura em que lhes é explicado de forma puramente teórica os procedimentos a adoptar, os cuidados a ter e o modo de funcionamento do próprio Parque de Leilões, designadamente: a) que devem sempre guardar uma distância de segurança, cerca de 2 a 3 metros, relativamente aos animais; b) não agredir os animais em zonas sensíveis, nomeadamente, órgãos genitais, olhos ou cornos; c) não utilizar instrumentos perfurantes; d) não utilizar choques eléctricos.
17. Este período de aprendizagem teórica é variável, dependendo da capacidade de apreensão dos novos funcionários e da avaliação que é feita pelos funcionários mais antigos e experientes quanto aos conhecimentos adquiridos.
18. Uma vez terminada esta fase, os funcionários mais novos passam a acompanhar os mais antigos na condução dos animais e no seu tratamento, assim lhes permitindo pôr em prática os conhecimentos adquiridos e a eventual correcção de erros cometidos.
19. Só posteriormente, mas sempre dependendo da avaliação dos mais antigos e experientes, é que os novos funcionários são considerados aptos para o exercício da função, passando a desempenhá-la com autonomia, embora sempre em obediência às instruções transmitidas pelos funcionários mais antigos.
20. O procedimento formativo referido foi respeitado e ministrado ao falecido LL, o qual depois de um período inicial de cerca de mês e meio junto à balança, local onde não teve qualquer contacto directo com os animais, passou a acompanhar os demais funcionários no tratamento e condução dos animais dentro do parque de leilões, apenas passando a fazê-lo autonomamente quando foi considerado capaz para o desempenho de tal função.
21. O falecido LL era pessoa cuidadosa no contacto com os animais, procurando sempre proteger-se e nunca "arriscando" ou pondo em causa a sua integridade física.
22. No momento da ocorrência o falecido LL conduzia o animal dos autos de volta à sua box, após este ter sido leiloado, mantendo a distância de segurança relativamente ao mesmo, ou seja, cerca de 2 a 3 metros, não tendo provocado o animal, nem o atingido em nenhuma das suas zonas sensíveis.
23. Inexistiam pessoas junto ao percurso percorrido pelo animal no dia do acidente, não tendo o mesmo sido provocado ou assustado por ninguém.
24. O touro dos autos, enquanto permaneceu no Parque dos Leilões, e com excepção do momento do acidente, teve sempre um comportamento normal, podendo ser caracterizado como um animal manso.
25. No dia do acidente o animal foi conduzido ao redondel para ser leiloado, tendo feito o percurso de forma normal e sem revelar qualquer agressividade, o mesmo acontecendo quando regressava do redondel para a sua box, excluindo o momento do acidente.
26. Após o acidente em causa nos autos, o animal voltou a evidenciar sinais de mansidão, ficando quieto a cerca de 7 ou 8 metros do corpo do falecido LL, tendo sido posteriormente encaminhado para a box respectiva, não evidenciando quaisquer sinais de agressividade.
27. O falecido LL possuía a formação adequada para o exercício da actividade que desenvolvia no momento do acidente.
28. À data dos factos, o falecido LL já desempenhava as suas funções de tratamento e encaminhamento dos animais no Parque de Leilões de gado, há mais de um ano, pelo que tinha experiência do exercício das mesmas.
29. Há cerca de 25/30 anos que se realizam leilões de gado bovino no Parque de Leilões da GG, nunca tendo ocorrido qualquer acidente do qual tenha resultado a morte ou perigo para a vida de qualquer trabalhador, ou sequer perigo de grave ofensa para o seu corpo ou saúde.
30. Verificando-se ao longo de todo esse tempo identidade nos parâmetros da formação ministrada aos trabalhadores contratados para o exercício de tais funções, pelo que nenhum facto novo ocorreu que levasse a ré a configurar como insuficiente a formação ministrada.
31. Pelo menos desde 2009 que a GG tem vindo a contratar empresa externa especializada na assessoria de questões relacionadas com Segurança e Higiene no Trabalho.
32. O relatório sumário da visita elaborado pelo responsável da empresa K-MED Europa, com data de 26 de Novembro de 2010, apenas aponta a falta de equipamento de extinção passiva de incêndio, como a única desconformidade notória detectada na visita às instalações da GG, das quais fazem parte o Parque dos Leilões onde ocorreu o sinistro.
33. O trabalhador LL tinha sido considerado apto para o exercício específico da função de "tratador de gado".
34. Em data anterior ao sinistro não tinha a ré indicação de qualquer lacuna em matéria de segurança e higiene no trabalho existente no âmbito do trabalho desenvolvido pelo falecido LL.
35. Antes da morte do LL, os A.A. e a vítima, enquanto irmãos e sobrinhos, davam-se todos bem, eram amigos e unidos.
36. Visitavam-se, passavam as épocas festivas de Natal, Páscoa, alguns aniversários juntos.
37. A vítima era amiga dos irmãos e sobrinhos, eles dele, bem como da cunhada, vivia com a irmã Inês DD, a qual lhe tratava da roupa e confeccionava as refeições.
38. Quando se juntavam, o ambiente que viviam era de alegria e felicidade, nutriam amor e carinho uns pelos outros.
39. A morte de LL causou aos A.A. profundo desgosto, as circunstâncias trágicas em que ocorreu provocou neles tristeza, amargura, dor e infelicidade que ainda hoje sentem.
40. Os A.A. e o falecido irmão, tio e cunhado, eram todos (e são) muito dedicados uns aos outros».
E foram considerados não provados os seguintes factos:
«A. A entidade empregadora, Associação dos Agricultores GG, representada por António M…, não assegurou ao falecido LL qualquer formação no âmbito da segurança e saúde no trabalho desde a data da sua admissão até à data do acidente, nomeadamente formação do maneio de animais nos termos estipulados pelo art.º 20.º n.º 1 da Lei n.º 102/2009, de 10 de Setembro.
B. A entidade patronal não procedeu da forma a que estava obrigada, a uma identificação do perigo e avaliação de riscos para o tipo de actividades a que estava sujeito o falecido LL.
C. E, não assegurou ao trabalhador falecido as condições de segurança e saúde em todos os aspectos do seu trabalho.
D. O falecido LL não possuía nem capacidade, nem conhecimento, nem competência profissional adequadas, porquanto nunca frequentou qualquer acção de formação para o efeito, ao contrário de outros trabalhadores da Associação dos Agricultores GG.
E. O acidente poderia ter sido evitado caso tivesse sido respeitada a distância entre a vítima mortal e o animal, concretamente uma distância entre quinze a vinte metros.
F. Tal não veio a suceder porque o falecido trabalhador não teve formação específica para o exercício das suas funções por uma entidade creditada para dar esse tipo de formação.
G. Agiu a Ré com a falta de cuidado a que estava obrigada e de que era capaz, não observando as disposições legais quanto à segurança no trabalho nem quanto à identificação dos riscos inerentes à actividade desenvolvida por LL, não prevendo como podia e devia que, dessa forma punha em risco a vida do trabalhador, como veio a verificar-se.»
Ao abrigo do disposto no artigo 607.º, n.ºs 4 e 5, ex vi artigo 663.º, n.º 2, do CPC, encontra-se ainda provado que:
- Por sentença proferida em 08.07.2013, no processo comum identificado no ponto 13., transitada em julgado, a ora Ré Associação de Agricultores GG e António M…, foram absolvidos «da prática de um crime de violação de regras de segurança, previsto e punido pelos artigos 152.º-B, n.ºs 1, 2, e 4 al. b), por referência aos artigos 11.º, n.º 2, al. a), 15.º e 26.º, todos do Código Penal».
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III.2. – O mérito do recurso
A presente acção foi intentada com fundamento em responsabilidade civil da entidade patronal do falecido familiar dos autores na ocorrência do acidente de trabalho que o vitimou, por alegado incumprimento das regras relativas à segurança e saúde no trabalho, sem que os mesmos tenham procedido à qualificação jurídica da imputada responsabilidade.
Como é consabido, e para o que ora importa considerar, são fonte das obrigações, nomeadamente da obrigação de indemnizar, o contrato, e a responsabilidade civil, tanto por facto ilícito como pelo risco.
Na sentença recorrida entendeu-se que a pretensão dos autores se fundou na “responsabilidade civil subjectiva extracontratual (ou delitual), nos termos do artigo 483.º do Código Civil”[4], cujos pressupostos foram genericamente analisados, para seguidamente se concluir «que não resultou demonstrada a sua verificação.
Na verdade, o certo é que não se provou (e o respectivo ónus da prova cabia aos autores) que a ré não deu ao falecido qualquer tipo de formação ou a formação adequada para o maneio dos animais (antes se tendo provado o contrário). Mais importa salientar que não se apurou nada que a ré pudesse ter feito ao nível da formação do sinistrado, sendo que tal não resulta de qualquer legislação e, é também certo, os autores também não dizem que formação devia ter sido dada pela ré.
Assim, nenhuma responsabilidade poderá, com efeito, ser assacada à ré porquanto a autora não produziu prova no sentido de ter sido esta, com uma qualquer sua omissão, que potenciou a possibilidade de verificação do infeliz falecimento de LL. Isto, refira-se, quando era aos Autores que competia tal prova.
Em suma, dos factos provados não resulta a prática pela ré de qualquer facto ilícito culposo.
Deste modo, terá a presente acção que improceder».
Insurge-se o Apelante aduzindo, em suma, que «perante toda a matéria julgada provada, “máxime” a atrás citada [referem-se aos pontos 7, 10, 11, 16, 21 e 22], por ser aquela que é verdadeiramente importante para se perceber a verdadeira causa da “ocorrência” e a dimensão das suas consequências, necessário se torna concluir que, como é óbvio, não tendo sido a infeliz vítima a dar causa ao sucedido, a única justificação plausível e, diga-se mesmo, incontestável e incontornável, para o acontecido, encontra-se plasmado nos Autos de Contra-Ordenação levantados pela Autoridade para as Condições de Trabalho, porque e cite-se mais uma vez:
“… por não ter sido assegurado uma formação adequada no domínio da segurança e saúde no trabalho, tendo em atenção o posto de trabalho do falecido LL e, por não ter zelado, de forma continuada e permanente, pelo exercício das suas actividades em condições de segurança e saúde para os trabalhadores. (…)
E de tal forma assim é que basta verificar a extensa documentação fotográfica existente nos Autos e os documentos de instrução da própria ACT, para de imediato se perceber que as instalações, isto é, o posto de trabalho, não tem as condições de segurança apropriadas para impedir que se verifiquem “ocorrências” como a ora em causa!
Sendo um touro de raça alentejana, com oito anos de idade e oitocentos e oitenta quilos de peso, uma animal cujo maneio constitui (“sic”) uma actividade potencialmente perigosa, a via que o conduz da, respectiva box ao local onde se realiza o leilão e vice-versa, nunca poderia permitir que o animal se tenha virado repentinamente e atingido o infeliz LL, espetando-lhe um corno na zona abdominal.
Foi esse comportamento transgressor, na exacta medida detectada pela ACT, ou a omissão de comportamento, um ou outro sempre da responsabilidade exclusiva da Ré, ora Recorrida, que foram causal da “ocorrência”, lhe deu directa origem e produziu as consequências conhecidas».
Na verdade, socorre-se agora o Apelante dos normativos respeitantes à responsabilidade civil fundada tanto na culpa como no risco, já que invoca ter a sentença recorrida violado o disposto nos artigos 483.º, 486.º, 493.º, 499.º e 502.º, todos do CC.
Vejamos.
Como é entendimento pacífico, o mesmo facto naturalístico pode ser gerador de diversos tipos de responsabilidade, sendo o caso em apreço paradigmático do que vimos de afirmar porquanto um evento como o ocorrido, que causou a morte do trabalhador da ora ré, para além de configurar um acidente de trabalho, pode ainda gerar responsabilidade contraordenacional e mesmo configurar a comissão de um crime de violação de regras de segurança, podendo também determinar a obrigação da entidade patronal indemnizar civilmente os danos decorrentes do mesmo, por responsabilidade subjectiva decorrente de facto ou omissão ilícitas.
Efectivamente, conforme referem MARIA ADELAIDE DOMINGOS, VIRIATO REIS e DIOGO RAVARA[5], «a responsabilização do empregador é independentemente de culpa, ou seja, estamos no domínio da responsabilidade objetiva (cfr. art. 7.º da LAT). A responsabilidade subjetiva, ou seja, decorrente de culpa do empregador (noção que abrange o dolo e a negligência), está, contudo, presente nas situações em que a lei menciona como casos especiais de reparação previsto no art. 18.º da LAT. (…) Neste caso, a reparação (agravada) está a cargo do empregador, competindo ao trabalhador, nos termos gerais, provar que o acidente ocorreu por culpa do empregador ou seu representante ou por o mesmo não ter culposamente cumprido as normas sobre segurança e saúde no trabalho, bem como a verificação de um nexo causal entre o ato ilícito culposo ou a violação das regras de segurança por parte empregador, seu representante, entidade contratada, ou empresa utilizadora de mão-de-obra, e a ocorrência do acidente. Assim o sistema português, no que concerne aos acidentes de trabalho, caracteriza-se por consagrar uma responsabilidade objetiva, com recurso à responsabilidade subjetiva para todas as matérias não especialmente reguladas. Por outro lado, a verificação de acidente de trabalho não afasta a responsabilidade delitual sempre que se encontrem preenchidos os requisitos do art. 18.º do LAT, já que no que toca ao empregador a existência duma responsabilidade objetiva não a desresponsabiliza em caso de culpa e, quanto a terceiros, sempre há direito de regresso por parte do empregador ou de quem efetivamente tenha procedido à reparação do dano».
Na situação em presença, basta atentar na matéria de facto provada que se mostra vertida nos pontos 11 a 13, para verificarmos que à entidade empregadora, ora Ré, foram levantadas duas contra-ordenações laborais, uma grave e outra muito grave, por não ter sido assegurada uma formação adequada no domínio da segurança e saúde no trabalho, tendo em atenção o posto de trabalho do falecido LL e, por não ter zelado, de forma continuada e permanente, pelo exercício das suas actividades em condições de segurança e saúde para os trabalhadores.
Ora, ainda que tivessem sido efectivamente aplicadas coimas à Ré - porque a prática dos actos descritos no artigo 18.º, n.º 1, da Lei dos Acidentes de Trabalho[6] constitui uma contraordenação grave se fizermos o seu cotejo com o artigo 171.º, n.º 1, al. c), da LAT -, nada impede a cumulação da responsabilidade objectiva como da contraordenacional com a criminal, isto expressamente de acordo, respectivamente, com o n.º 2 do artigo 18.º e com o preceituado no artigo 170.º da LAT, que sobre tal epígrafe refere que «a responsabilidade contraordenacional não prejudica a eventual responsabilidade civil ou criminal», ou seja, nada impede, como dito, que o mesmo facto naturalístico determine estes vários tipos de responsabilidades, e mais, que a indemnização em uns processos não excluam a indemnização em outros, quando sejam complementares e não excludentes entre si[7].
Deste modo se compreende que alguns dos aqui Autores (outros faleceram) tenham deduzido no âmbito do processo comum singular que correu seus termos pelo 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre, com o nº 16/11.1TAPTG, pedido de indemnização civil, e que tenham sido remetidos para os meios comuns em razão do falecimento da então demandante Maria de Lurdes Biscainho Belo Martins, dando origem aos presentes autos, apesar de no âmbito do processo n.º 5/11.6TTPTG que correu seus termos pelos Serviços do Ministério Público – Tribunal Trabalho de Portalegre, em sede de tentativa de conciliação, a Companhia de Seguros Fidelidade Mundial S.A., para quem a Ré havia transferido através da apólice nº AT4023284 a responsabilidade por acidentes de trabalho, ter aceitado o acidente descrito como de trabalho e, o nexo de causalidade entre as lesões e o acidente, aceitando a Seguradora pagar ao Fundo de Acidentes de Trabalho a quantia de 24.792,00€, em virtude de inexistirem parentes sucessíveis economicamente dependentes do falecido.
Significa o que vimos de referir que na espécie, a vertente da responsabilidade objectiva da entidade patronal resultante da mera ocorrência do sinistro, em virtude da perigosidade da actividade exercida de maneio animal e independentemente de existir ou não culpa do empregador, decorre do artigo 7.º da LAT e não do artigo 502.º do CC que foi convocado pelo Apelante.
Acresce que, sendo certo que na subsecção respeitante à responsabilidade pelo risco, sob a epígrafe «danos causados por animais», o preceito em causa estipula que «quem no seu próprio interesse utilizar quaisquer animais responde pelos danos que eles causarem, desde que os danos resultem do perigo especial que envolve a sua utilização», a verdade é que o mesmo, neste concreto caso, não pode ser lido desgarrado daquele preceito da LAT, nem do artigo 493.º do CC, que regula a responsabilidade por factos ilícitos, nos casos de presunção de culpa.
Esclarecem PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA[8] a respeito da aplicação de cada um dos dois indicados preceitos do CC que «a diferença de regime explica-se pela diversidade de situações a que as duas disposições se aplicam: o artigo 493.º refere-se às pessoas que assumiram o encargo da vigilância dos animais (o depositário, o mandatário, o guardador, o tratador, o interessado na compra que experimenta o animal, etc.), enquanto o disposto no artigo 502.º é aplicável aos que utilizam os animais no seu próprio interesse (o proprietário, o usufrutuário, o possuidor, o locatário, o comodatário, etc.).
É quanto a estas pessoas que tem inteiro cabimento a ideia do risco: quem utiliza em seu proveito os animais, que, como seres irracionais, são quase sempre uma fonte de perigos, deve suportar as consequências do risco especial que acarreta a sua utilização (…)
Normalmente, este fundamento da responsabilidade atinge o proprietário ou aqueles que, como o usufrutuário ou o possuidor, têm um direito real de gozo sobre o animal».
Na jurisprudência, ponderou-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 23.04.2009[9], que «um proprietário de um animal, para além de poder ser considerado como utilizador do mesmo no seu próprio interesse, pode também ser considerado como encarregado de sua vigilância. Aliás, será esse o caso normal. Na verdade, um proprietário que utiliza um animal no seu próprio interesse, naturalmente assume o encargo de o vigiar, aplicando-se-lhe assim, cumulativamente, as disposições previstas nos citados nº1 do artigo 493º e 502º do Código Civil. Senão e como se diz no acórdão deste Supremo de 06.09.21 “in” www.dgsi.pt, relatado pelo conselheiro Noronha do Nascimento, “teríamos o ilogismo de o proprietário/utilizador/vigilante se subtrair a uma presunção de culpa que recairá sobre um mero vigilante”. Não pode ser».
Ora, no caso em presença, os autores não alegaram qualquer factualidade da qual se pudesse extrair que a ré utilizasse o animal no seu próprio interesse, o mesmo é dizer, que tivesse sobre o animal um qualquer direito real de gozo.
Acresce que, pese embora tenhamos como certo que nas decisões dos tribunais deva «ser tida em conta, não só a alegação factual explícita, como também a implícita»[10], admitindo-se inclusivamente que a alegação possa ser complementada pelo teor de documentos juntos aos autos, tal não significa que estes possam substituir a total omissão das partes quanto a factos que sejam essenciais e que aquelas não aleguem de todo, ainda que imperfeitamente, e muito menos permite que só em sede recursiva o interessado venha «alegar» factualidade que oportunamente não invocou e, por isso, não foi contraditada e não pode ser atendida - como fez mormente a respeito da largura das instalações -, já que os recursos visam o reexame de matéria de facto oportunamente alegada e não quaisquer questões novas, salvo se forem de conhecimento oficioso.
Não obstante, sempre se dirá que de fls. 3 da participação do acidente mortal, que deu origem ao processo comum, e que faz fls. 22 dos autos, consta expressamente que «o animal em causa é propriedade de Francisco A….», e não da Ré, cuja actividade, conforme os seus Estatutos[11] anunciam pode, em suma, resumir-se à prestação de serviços de vária natureza, entre os quais o espaço para a realização dos leilões, onde o acidente que vitimou o seu trabalhador ocorreu. Assim, não vemos como na situação de vida que foi trazida a juízo se configurasse situação em que a ré tivesse sobre o animal um qualquer direito real de gozo, que permitisse a sua responsabilização por via do disposto no artigo 502.º do CC.
Afastada no caso a possibilidade de convocar a responsabilidade objectiva da Ré como fundamento da pretendida obrigação de indemnização a seu cargo, sumariada na conclusão 2.ª, importa melhor atentar no disposto no artigo 493.º do CC, a propósito de cujo n.º 1 RUI ATAÍDE[12] escreve que «apesar da sua aparente simplicidade, a formulação encerra razoável teor de complexidade sobre o exacto alcance do âmbito de vinculação. Em primeiro lugar, o critério de identificação das pessoas vinculadas prescinde, ao invés do que suporta o art. 492º, de qualquer posição de vantagem associada à condição de possuidor, centrando-se no puro controlo da coisa, contradizendo também a solução acolhida no artigo 2394º do Código de Seabra, que consagrava a culpa presumida do proprietário, dado se considerar agora que esta modalidade de responsabilidade não deve constituir um encargo correspectivo de situações de soberania jurídica ou económica mas apenas de presumir a culpa daquele que, pela sua situação de facto em relação à coisa, deva guardá-la. Em segundo, ao impor como pressuposto de responsabilidade que as pessoas vinculadas tenham em seu poder coisa móvel ou imóvel com o dever de a vigiar, o artigo 493º/1 requer o corpus possessório. Com efeito, só os sujeitos que dispõem o controlo material de uma coisa, reúnem condições para cumprir aquele dever de vigilância; a exigência implica portanto a necessária exclusão de todos aqueles que mantêm um simples contacto físico com a coisa, ocasional ou mesmo duradouro mas desprovido de poderes de controlo que, não servindo para construir o corpus, impede consequentemente a formação de uma situação de detenção em sentido técnico. A solução legal conhece plena justificação ao nível dos princípios fundamentais que governam o ordenamento civil. …, explicando que só devam responder pelos danos causados por coisas as pessoas que tenham poder de controlo (que pressupõe liberdade) para dispor acerca do modo como devem ser guardadas e utilizadas e não aqueles que, embora as guardem ou usem, o fazem sob a autoridade e direcção de outrem». Ora, também a este respeito os Autores não alegaram oportunamente factualidade bastante para se poder concluir que aquando do acidente a Ré se encontrava numa situação de detenção porquanto se desconhece se apesar de tudo indicar estarmos perante um contacto duradouro com o animal, que não é apenas o momento do leilão, não podemos concluir, porque nada foi alegado e, portanto, não se mostra provada factualidade que sustente estar o controlo do animal entregue à Ré.
Somos, pois, chegados ao momento de centrar o nosso olhar na vertente respeitante à invocada omissão ilícita da ré quanto à formação da infeliz vítima, vertida na conclusão 1.ª, já que foi este o efectivo fundamento oportunamente invocado na petição inicial, para sustentar a pretensão indemnizatória formulada pelos Autores.
Porém, perdoando-se-nos a antecipação, diremos desde já ser uma evidência que também esta pretensão do ora Apelante, não pode proceder.
Efectivamente, no que tange à vertente de facto da causa, olvidam o Apelante que, em primeiro lugar, não tendo impugnado a matéria de facto considerada provada e não provada pelo Tribunal a quo, a mesma encontra-se definitivamente fixada, pois que não se vislumbram razões para a sua modificação oficiosa, nos termos previstos no artigo 662.º, n.º 1, do CPC.
De facto, não só os autos de contra-ordenação elaborados pela Autoridade para as Condições de Trabalho não são factos mas meios de prova dos mesmos, como os factos relevantes neles contidos quando submetidos ao crivo da prova vieram a ser considerados não provados conforme retratam as alíneas A) a G) da matéria de facto não provada, e tendo mesmo demonstrado o seu contrário[13]. Ademais, ao contrário do que os Apelantes parecem supor -, sendo estes terceiros, não estamos em presença de meio de prova vinculada.
Na realidade, mesmo entendendo-se que o direito contraordenacional configura um direito sancionatório equiparado ao direito penal, ainda que tivesse havido condenação definitiva nos processos de contra-ordenação, conforme decorre do disposto no artigo 623.º do CPC, esta apenas constituiria presunção ilidível no que respeita à existência dos factos que integram a punição e os elementos do tipo. Ora, como os factos provados a respeito de ter sido ministrada a devida formação, como os não provados acima descritos evidenciam, essa presunção de culpa foi ilidida.
Acresce que, e inversamente, no âmbito do processo-crime acima identificado, por sentença transitada em julgado, foram considerados provados e não provados factos em tudo semelhantes àqueles que se mostram provados e não provados nestes autos, tendo os ali arguidos - um deles, a ora Ré - sido absolvidos, da prática de um crime de violação de regras de segurança. O mesmo é dizer que a presunção legal decorrente da decisão penal absolutória prevista no artigo 624.º, n.º 1, do CPC, de inexistência dos factos que consubstanciem a prática do aludido ilícito criminal, pese embora pudesse neste processo cível ter sido ilidida por prova em contrário, não foi ilidida, o que sempre determinaria a consequência decorrente do artigo 624.º, n.º 2, do CPC, de a presunção da sua inexistência prevalecer sobre quaisquer outras presunções de culpa estabelecidas na lei civil.
Significa o que vimos de dizer, que qualquer presunção de culpa decorrente do artigo 493.º do CC se encontrava desde logo inexoravelmente afastada.
Efectivamente, este preceito situa-se no domínio da responsabilidade civil delitual, fazendo impender uma presunção de culpa sobre o encarregado da vigilância de quaisquer animais, a qual só é ilidível pela prova por banda daqueles que assumiram o encargo pela vigilância de que nenhuma culpa houve da sua parte na ocorrência do evento danoso ou que os danos sempre se teriam igualmente produzido ainda que houvesse culpa sua; e ainda sobre quem exerce uma actividade perigosa, presunção que só é afastável pela prova de que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir os riscos decorrentes da natureza da actividade exercida ou dos meios empregues no desenvolvimento desta.
Porém, a Ré logrou realmente afastar qualquer comportamento culposo, donde falha tal pressuposto para a sua responsabilização.
Acresce que, tendo os autores fundado a acção unicamente na violação pela ré de regras atinentes à segurança e saúde no trabalho, concretamente por não ter sido assegurada ao trabalhador a formação adequada, e alegando esta que o havia feito e em que moldes, ficou cabalmente nos termos melhor descritos nos pontos 14. a 20. da matéria de facto, e evidenciados em jeito de conclusão no ponto 27, que não só o falecido LL possuía a formação adequada para o exercício da actividade que desenvolvia no momento do acidente, como à data dos factos, aquele já desempenhava as suas funções de tratamento e encaminhamento dos animais no Parque de Leilões de gado, há mais de um ano, pelo que tinha experiência do exercício das mesmas, sendo pessoa cuidadosa no contacto com os animais, procurando sempre proteger-se e nunca "arriscando" ou pondo em causa a sua integridade física, tanto assim que no momento da ocorrência conduzia o animal dos autos de volta à sua box, após este ter sido leiloado, mantendo a distância de segurança relativamente ao mesmo, ou seja, cerca de 2 a 3 metros, não tendo provocado o animal, nem o atingido em nenhuma das suas zonas sensíveis. Conclui-se, pois, que a Ré logrou efectivamente afastar a presunção de culpa decorrente do n.º 1 do indicado preceito.
Ademais, a Ré demonstrou igualmente, tal como havia alegado, que quando o falecido LL conduzia o animal de volta à box não existiam pessoas junto ao percurso percorrido pelo animal, não tendo o mesmo sido provocado ou assustado por ninguém; que o touro em causa, tanto antes como depois do acidente, e com excepção desse momento, enquanto permaneceu no Parque dos Leilões teve sempre um comportamento normal, podendo ser caracterizado como um animal manso, sem revelar qualquer agressividade, pelo que não se vislumbram que providências devia a ré em concreto ter tomado para evitar o ocorrido, tanto mais quando se demonstrou ainda que há cerca de 25/30 anos se realizam leilões de gado bovino no Parque de Leilões da GG, nunca tendo ocorrido qualquer acidente do qual tenha resultado a morte ou perigo para a vida de qualquer trabalhador, ou sequer perigo de grave ofensa para o seu corpo ou saúde, verificando-se ao longo de todo esse tempo identidade nos parâmetros da formação ministrada aos trabalhadores contratados para o exercício de tais funções, pelo que nenhum facto novo ocorreu que levasse a ré a configurar como insuficiente a formação ministrada.
Finalmente, a Ré demonstrou também que o trabalhador LL tinha sido considerado apto para o exercício específico da função de "tratador de gado" e em data anterior ao sinistro aquela não indicação de qualquer lacuna em matéria de segurança e higiene no trabalho existente no âmbito do trabalho desenvolvido pelo falecido, sendo que pelo menos desde 2009 tinha vindo a contratar empresa externa especializada na assessoria de questões relacionadas com Segurança e Higiene no Trabalho, pelo que, impõe-se igualmente concluir que a Ré afastou também de facto a presunção de culpa decorrente do n.º 2 do artigo 493.º do CC.
Pelo exposto, a apelação improcede, sendo de confirmar a sentença que julgou improcedente a acção.
Porque integralmente vencido na Apelação, e atenta a regra da causalidade vertida no artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, deveria o Recorrente suportar as respectivas custas, na vertente de custas de parte, de harmonia com o disposto nos artigos 529.º, n.ºs 1 e 4 e 533.º, todos do CPC. Porém, tendo-lhe sido concedido o benefício do apoio judiciário nessa modalidade, encontra-se dispensado de proceder ao respectivo pagamento.
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III.3. - Síntese conclusiva
I - O mesmo facto naturalístico pode ser gerador de diversos tipos de responsabilidade, pelo que, o acidente que causou a morte do trabalhador da ora ré, para além de configurar um acidente de trabalho, pode ainda gerar responsabilidade contraordenacional e mesmo configurar a comissão de um crime de violação de regras de segurança, podendo também determinar a obrigação da entidade patronal indemnizar civilmente os danos decorrentes do mesmo, por responsabilidade subjectiva decorrente de facto ou omissão ilícitas, podendo a indemnização em uns processos não excluir a indemnização em outros, quando sejam complementares e não excludentes entre si.
II - Na espécie, a vertente da responsabilidade objectiva da entidade patronal resultante da mera ocorrência do sinistro, em virtude da perigosidade da actividade exercida de maneio animal, e independentemente de existir ou não culpa do empregador, decorre do artigo 7.º da LAT e não do artigo 502.º do CC que foi convocado pelo Apelante, acrescendo que nem sequer foi oportunamente alegado que a Ré tivesse sobre o animal um qualquer direito real de gozo, que permitisse a sua responsabilização por via do disposto neste indicado preceito.
III - O artigo 493.º do CC situa-se no domínio da responsabilidade civil delitual, fazendo impender uma presunção de culpa sobre o encarregado da vigilância de quaisquer animais, a qual só é ilidível pela prova por banda daqueles que assumiram o encargo pela vigilância de que nenhuma culpa houve da sua parte na ocorrência do evento danoso ou que os danos sempre se teriam igualmente produzido ainda que houvesse culpa sua; e ainda sobre quem exerce uma actividade perigosa, presunção que só é afastável pela prova de que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir os riscos decorrentes da natureza da actividade exercida ou dos meios empregues no desenvolvimento desta.
IV - A presunção legal decorrente da decisão penal absolutória prevista no artigo 624.º, n.º 1, do CPC, de inexistência dos factos que consubstanciem a prática do aludido ilícito criminal, pese embora pudesse neste processo cível ter sido ilidida por prova em contrário, não foi afastada pelos Autores, o que sempre determinaria a consequência decorrente do artigo 624.º, n.º 2, do CPC, de a presunção da inexistência dos factos culposos prevalecer sobre quaisquer outras presunções de culpa estabelecidas na lei civil.
V - Significa o que vimos de dizer, que qualquer presunção de culpa decorrente do artigo 493.º do CC se encontrava desde logo inexoravelmente afastada. Porém, no caso, a Ré logrou realmente afastar qualquer comportamento culposo, donde falha tal pressuposto da sua responsabilização.
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IV - Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
O Recorrente está dispensado de proceder ao pagamento das custas, na vertente de custas de parte, que seriam a seu cargo.
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Évora, 27 de Junho de 2019
Albertina Pedroso [14]
Tomé Ramião
Francisco Xavier
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[1] Juízo Central Cível e Criminal de Portalegre - Juiz 3.
[2] Relatora: Albertina Pedroso;
1.º Adjunto: Tomé Ramião;
2.º Adjunto: Francisco Xavier.
[3] Doravante abreviadamente designado CPC.
[4] Doravante abreviadamente designado CC.
[5] In “Acidentes de Trabalho e doenças profissionais. Introdução”, Coleção de Formação Inicial, CEJ, Julho de 2013, págs. 21 e 22.
[6] Doravante abreviadamente designada LAT.
[7] Cfr. neste sentido, com aprofundado desenvolvimento, o recente Acórdão do STJ, proferido em 20.03.2019, no processo n.º 183/13.0GAVNO.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt, como os demais adiante indicados sem menção de outra fonte.
[8] In Código Civil Anotado, vol. I, 3.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, 1982, págs. 484 e 485.
[9] Processo n.º 7/09.2YFLSB.
[10] Cfr. neste sentido, o Ac. STJ de 04-06-2015, Revista n.º 177/04.6TBRMZ.E1.S1.
[11] Publicados no seu sítio na Internet.
[12] In Responsabilidade Civil por Violação de Deveres de Tráfego, págs. 387 e 388, citado no Ac. TRL de 10.04.2018, proferido no processo n.º 2331/11.5TVLSB.L1-7.
[13] Como melhor apreciaremos abaixo.
[14] Texto elaborado e revisto pela Relatora.