Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
804/10.6TBPTG.E1
Relator: FRANCISCO XAVIER
Descritores: SIMULAÇÃO RELATIVA
NULIDADE
COMPRA E VENDA
DOAÇÃO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Data do Acordão: 06/26/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Sumário:
I. Na simulação, o intuito de enganar terceiros – a não confundir com o intuito de os prejudicar – prende-se com a actuação voluntária de criar uma aparência: intenção essa revelada pela divergência entre a vontade real e a declarada e pelo acordo que tal determina. Tal ocorre em caso de conluio entre os contraentes com o objectivo de criarem uma determinada aparência – a existência duma compra e venda – para conseguirem de terceiro (o Banco) uma prestação, neste caso um empréstimo hipotecário sobre o bem objecto do alegado negócio simulado, que de outra forma não conseguiriam.
II. Na simulação relativa, as partes fingem celebrar um determinado negócio e, na realidade, querem um outro negócio jurídico de tipo ou conteúdo diverso. Nesta situação, nos termos do artigo 241º do Código Civil, admite-se a validade do negócio dissimulado, que não é prejudicado pela nulidade do negócio simulado, respeitados que sejam os requisitos de forma exigidos na lei.
III. Deste modo, a nulidade do contrato simulado de compra e venda não acarreta a nulidade do negócio dissimulado – a doação de imóvel – observada que esteja a forma prescrita no artigo 947º, n.º 1, do Código Civil.
IV. A norma do n.º 1 do art. 1791º do Código Civil – que estatui que o cônjuge declarado único ou principal culpado no divórcio perde todos os benefícios recebidos ou que haja de receber do outro cônjuge ou de terceiro, em vista do casamento ou em consideração do estado de casado, quer a estipulação seja anterior quer posterior à celebração do casamento (assim como a resultante da redacção da Lei n.º 61/2008, de 31/10) – abrange, entre outros benefícios, as doações feitas a ambos os cônjuges por familiar de um deles em consideração do estado de casado do beneficiário.
V. Tal situação não acarreta um “enriquecimento” desprovido de causa para o outro cônjuge, por resultar de previsão legal.
VI. Também não decorre tal enriquecimento ilegítimo do facto de o cônjuge que perdeu o domínio do bem continuar onerado com o pagamento do empréstimo contraído ao Banco aquando da celebração do negócio simulado, declarado nulo, porque tal situação decorre porque o cônjuge também recebeu a quantia dada de empréstimo pelo Banco e dela tirou proveito em seu próprio benefício, e porque se provou que o empréstimo não se destinou à aquisição do imóvel, mas à compra por ambos os cônjuges de um táxi e do seu alvará.

Sumário do relator
Decisão Texto Integral:
Acórdão na Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório
1. MR..., residente …, veio propor acção declarativa, que segue a forma de processo ordinário, contra JB..., residente …, JR... e BS..., ambos residentes …, pedindo que se declare:
a) Que quando na escritura pública de 22.7.1999, outorgada no Cartório Notarial de …, a fls. 55 vº e segs. do Livro 20-D, JR... e BS... declararam que vendiam a MR... e JB… o prédio urbano sito na …, da freguesia da …, concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº …/061186, inscrito na matriz sob o artigo …, os primeiros não quiseram de facto vender, mas sim doar e os segundos não quiseram comprar mas receber por doação e que não foi nem pago nem negociado qualquer preço;
b) Que, por isso, vale como doação o negócio nela exarado.
c) Que em razão do divórcio da Autora e do Réu JB… e da culpa deste, este perdeu o beneficio que a doação representava e o prédio ficou pertença exclusiva da Autora, enquanto única donatária; e
d) Que se ordene, por averbamento à cota G-3 da descrição referida em a), o cancelamento da inscrição feita, na parte em que o foi também a favor do Réu JB..., em termos de o prédio ficar inscrito apenas a favor da Autora.

2. Para tanto, alegou, em síntese, que:
- Por escritura pública de 22 de Julho de 1999, os Réus JR... e BS...declararam vender à Autora e ao Réu JB..., o prédio urbano sito na Rua …, na freguesia de …, concelho de …;
- Pela mesma escritura, os compradores deram-no de hipoteca ao Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa em garantia de um empréstimo de 8.000.000$00;
- Sob esta aparência de uma normal compra e venda esconde-se uma doação em consideração do estado de casado (cf. 1791º do C. Civil), porquanto os Réus JR... e BS...não quiseram vender o prédio e a Autora e o Réu JB... não o quiseram comprar. Os primeiros quiseram doá-lo à Autora, só envolvendo, na escritura, também o Réu JB... em consideração do seu estado de casado, com ela, Autora;
- A Autora e o Réu JB... contraíram matrimónio em 21 de Dezembro de 1986, sem convenção antenupcial, e o casamento foi dissolvido por divórcio decretado por sentença transitada em julgado em 6-10-2006, que declarou o Réu JB... único culpado;
- A Autora é filha dos Réus JR... e BS;
- Já casados, a Autora e o Réu JB... quiseram montar uma vida económica própria, através da exploração de um transporte de táxi. Para tanto negociaram a compra de um táxi e do correspondente alvará e, para o explorar, constituíram a Sociedade Comercial “T…, Ld.ª”;
- O preço acordado com o vendedor foi de 10.000.000$00; mas não tinham essa quantia, nem bens que pudessem dar de garantia a um banco que lha emprestasse;
- Os Réus JR... e BS...tinham o prédio referido, que não lhes fazia falta e que contavam até deixar a sua filha MR…, uma vez que já tinham dado aos outros três filhos, irmãos da Autora, bens em valor equivalente. E decidiram antecipar a deixa por doação imediata para permitir à filha e ao marido utilizá-lo como garantia junto de uma instituição de crédito;
- Na escritura referida no artigo 1º ficou dito que se tratava de compra e venda e ficou indicado um preço, concretamente o preço de 9.000.000$00, porque, se não fosse para financiar uma compra o Banco não emprestava o dinheiro, tendo sido o próprio Banco Espírito Santo que indicou essa forma de actuação;
- Não foi acordado entre os outorgantes, pais de um lado, filha e genro do outro, nenhum preço, porque o que os primeiros quiseram, no acto da escritura, foi transferir a propriedade do prédio para os segundos, gratuitamente, com espírito de liberalidade; e o que os segundos tiveram em mente, ao assinar a escritura, era que o estavam recebendo nos indicados termos;
- Foi por acordo ajustado entre os outorgantes que na escritura se exararam declarações diversas da sua vontade real, com o objectivo de propiciar a obtenção do empréstimo bancário que, revestindo a transmissão a forma de doação, não seria concedido;
- Apesar de na escritura se dizer que foi pago o preço declarado, a Autora e seu ex-marido nada pagaram e os Réus JR... e BS...nunca se consideraram com direito a ele.
Acrescenta que:
- A nulidade do negócio de compra e venda, decorrente da divergência entre a declaração e a vontade, não afecta a validade da doação realmente querida, porque foi respeitada a forma – escritura pública (artigo 241º, nº1 e 2 do C. Civil); e
- Foi em atenção à circunstância de a Autora estar casada com o Réu JB... que os Réus JR... e BS...aceitaram transferir para o nome de ambos a propriedade do prédio. Se imaginassem que eles se iam divorciar e que o Réu JB... podia querer, na partilha, participar naquele bem, nunca teriam admitido intervir na escritura nos termos em que o fizeram e nem sequer lhe teriam doado o bem também a ele.

3. Os réus foram devidamente notificados para contestar, tendo o réu JB... apresentado atempadamente contestação/reconvenção, invocando a excepção da ilegitimidade, por entender ser necessária a intervenção, como réu, do Banco/credor hipotecário, e alegando que:
- Autora e réus foram todos simuladores, tendo todos conhecimento e orquestrado o teor da escritura pública em causa, bem sabendo previamente que havia divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, não tendo ocorrido a venda em relação ao dito prédio;
- Não existiu, porém, qualquer doação;
- O que ocorreu foi uma dação em cumprimento prevista no art. 837º e seguintes do Código Civil. A autora e o réu contestante trabalharam sempre na exploração agrícola dos réus JR… e BS..., desde o seu casamento até à data da separação sem receber qualquer salário ou contrapartida, pelo que, e para satisfazer estes serviços prestados e não pagos, aqueles réus deram em 22/7/99, em pagamento, o sobredito imóvel, tendo compensado, em dinheiro, os dois restantes filhos intervenientes na escritura, JF… e JM…;
- Pode ter ocorrido, em vez de dação em cumprimento, antes a doação remuneratória, prevista no art. 941º do Código Civil. Porém, esta não implica a perda do benefício por o contestante ter sido declarado o único culpado no divórcio, pois a doação remuneratória não foi efectuada em vista do casamento ou em consideração do estado de casado, mas antes em função da prestação de serviços ao JR… e BS..., ficando afastado o disposto no art. 1791º, nº 1, do Código Civil, então vigente;
- Através de qualquer destas figuras, o imóvel identificado na acção não pode ficar a pertencer em exclusivo à autora, mas a ela e ao seu ex-marido, ora contestante;
- O réu pagou até ao divórcio as prestações do financiamento ao Banco;
- Havendo nulidade por simulação, os efeitos operam-se desde então, cabendo ao réu contestante metade de todas as prestações pagas ao Banco credor;
- Por outro lado, o crédito foi concedido mediante análise aos rendimentos e salários da autora e contestante e o deferimento do financiamento de 8.000.000$00 pelo Banco face à compra e venda reduzida a escritura publica do imóvel, levou em conta os rendimentos, sendo um beneficio próprio, utilizado na aquisição do aluguer e alvará de táxi do interesse do contestante e autora;
- O produto da simulação reverteu em benefício comum do casal e esse produto pertence parcialmente ao contestante que não pode ficar sem compropriedade no imóvel;
- A anulação da compra e venda impõe a anulação do documento complementar que integra e que faz parte da mesma (elaborado nos termos do nº 2 do art. 64 do C. do Notariado), isto é, o contrato de mútuo com hipoteca a favor do Banco Espírito Santo;
- A hipoteca voluntária constituída a favor do BES e resultante da aludida escritura de compra e venda, anulada esta, terá de ser anulada consequentemente a hipoteca;
- Mantendo-se sobre o contestante o ónus do pagamento da hipoteca do bem, este não pode passar para terceiro mantendo-se tal ónus;
- Deve a aquisição do imóvel manter-se em nome do contestante independente da anulação da compra e venda por simulação; devendo o contestante receber metade do montante das prestações pagas ao banco desde a data da escritura até ao trânsito em julgado do divórcio; em caso contrário deve ser cancelado o ónus da hipoteca na parte que vincula o contestante.
Termina, pedindo que a acção seja julgada improcedente por não provada e que seja julgado procedente por provado o pedido reconvencional, mantendo-se o imóvel em compropriedade a favor do contestante/reconvinte e, bem assim, ser-lhe reconhecido o direito a metade do montante das prestações pagas ao BES, no montante que se vier a liquidar em execução de sentença, desde a aquisição do imóvel até ao trânsito em julgado da sentença; em caso de procedência do pedido da acção deve ser cancelada a hipoteca na parte que onera o contestante e este ser compensado pela A. de 4.000.000$00 (1/2 do recebido do banco na escritura) e aplicado na aquisição de bens comuns do casal, requerendo, ainda, o cancelamento da inscrição hipotecaria do imóvel na parte que vincula o contestante no caso da procedência do pedido nos termos do disposto no art. 8º, do Código de Registo Predial.

4. Na sequência de no pedido reconvencional se pedir o cancelamento do registo da hipoteca foi o réu/reconvinte convidado a fazer intervir nos autos o Banco/credor hipotecário, nos termos do artigo 325º do Código de Processo Civil, na versão então aplicável, sob pena de a autora/reconvinda ser absolvida da instância quanto a esse pedido.

5. Designado dia para realização da audiência preliminar, foi proferido o despacho saneador, no âmbito do qual, por decisão bem fundamentada, foi julgada improcedente a excepção de ilegitimidade passiva deduzida pelo réu contestante, e, em consequência de o dito réu/reconvinte não ter feito intervir nos autos o Banco/credor hipotecário, decidiu-se absolver a autora da instância reconvencional, por ilegitimidade, relativamente à pretensão de cancelamento da hipoteca que onera o imóvel em causa nos autos.
Após, procedeu-se à selecção dos factos considerados já assentes e elaborou-se a base instrutória.

6. Instruído o processo, procedeu-se a julgamento e respondeu-se à matéria de facto que integrava a base instrutória como consta do despacho (ref. 1651453) de fls. 162 a 165, que não foi objecto de reclamação pela I. Mandatária presente.
A autora apresentou alegações escritas, que constam de fls. 168 a 171, nas quais concluiu pela integral procedência da acção.
Após, foi, então, proferida sentença (ref. 1671440), que:

I - Julgou parcialmente procedente a acção e, em consequência, decidiu:
A) Declarar nulo, porque simulado, o contrato de compra e venda outorgado entre MR... e JB..., por um lado, e JR... e BS..., por outro, referente ao prédio urbano sito na Rua …, da freguesia ..., concelho ..., e que se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº …./061186 e inscrito na matriz sob o artigo …;
B) Julgar válido o negócio dissimulado de doação referente àquele mesmo prédio, por ter sido esse o negócio que efectivamente os contraentes quiseram realizar através da escritura pública de 22 de Julho de 1999, outorgada no Cartório Notarial de …, a fls. 55 vº e seguintes do Livro 20-D: JR... e BS... dispuseram gratuitamente em benefício da filha e ora autora MR... e de JB..., do prédio supra identificado, o que por estes últimos foi aceite;
C) Declarar que relativamente a JB..., tal doação foi feita em razão do seu estado de casado com MR...;
D) Declarar que em razão do divórcio da autora MR... e do réu JB..., e nos termos e ao abrigo do disposto no nº 1, do art. 1791º, do Código Civil, na redacção introduzida pela Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro, aquele réu perdeu o benefício que aquela doação para si representava;
E) Absolver os réus do pedido de cancelamento da descrição predial nos termos peticionados pela autora.

II - Julgou improcedente por não provada a acção reconvencional deduzida pelo réu/reconvinte JB..., assim absolvendo a autora/reconvinda do pedido reconvencional.

7. Inconformado recorreu o réu, pedindo a revogação da sentença, alegando, dever ser dado como provado o depoimento da testemunha do Banco e, em síntese conclusiva, que:
1. Não foram enganados os ligados ao negócio simulado nem quaisquer terceiros;
2. A procedência da acção impõe um enriquecimento da recorrida que fica com o prédio, ficando o encargo solidário de o pagar ao recorrente;
3. Quando todos os agentes contratuais lhe asseguraram a compra do bem e o encargo de o pagar;
4. Estamos a impor a responsabilidade solidária do pagamento de bem alheiro caso ocorra a procedência da acção;
5. E retirar o bem e obrigar o recorrente ao seu pagamento;
6. Não é legítimo o presente impulso processual de simuladores contra simulador.

8. Respondeu a recorrida, pugnando pela manutenção da sentença, com os seguintes fundamentos:
1. O recorrente não justifica, nos termos exigidos pela lei do processo, a aparente tentativa de reapreciação da prova gravada; e nem sequer faz reflectir isso nas conclusões. Tal circunstância leva à recusa de apreciação dessa questão (artº 685º-B, nº 2 do C. P. Civil).
2. O recorrente não diz em que sentido deve ser interpretada a norma que considera violada. Devia fazê-lo (artº 685º-A, nº 2, als. a) e b) do C. P. Civil).
3. Não tem consistência a pretensão levada à conclusão 6 de que a simulação não pode ser invocada entre os simuladores. O artº 242º do C. Civil prevê expressamente essa possibilidade.
4. Também não tem consistência a pretensão de que não ocorre, no caso, o requisito do intuito de enganar terceiro.
5. Esse intuito revela-se desde logo pela simples criação, por acordo, de uma aparência não concorde com a realidade (Prof. Oliveira Ascensão, Direito Civil, Teoria Geral, Coimbra editora, 1999, Vol. II, pag. 195).
6. E é claramente manifestado na circunstância de o banco ter emprestado dinheiro na perspectiva de compra por parte dos mutuários do imóvel que deram de garantia.
7. Crê-se, de resto, que na simulação relativa não parece sequer que seja necessário a prova da verificação do elemento engano e que chega a constatação de que com um negócio se quis encobrir outro.
8. Por último não tem consistência a queixa do recorrente de que a privação do domínio do bem redunda em enriquecimento sem causa por parte da recorrida.
9. É verdade que ele perde o bem e que continua vinculado a pagar o empréstimo; mas perde o bem porque a causa por que veio ao seu domínio foi uma doação e o artº 1791º, nº 1, do C. Civil o pune com a sua perda; e mantém-se vinculado ao pagamento do empréstimo porque tirou proveito do valor mutuado, recebendo-o e investindo-o no interesse próprio.

9. O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata e efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
*
II – Objecto do recurso
O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 660.º, n.º 2, 684.º, n.º3 e 685º-A, nº1, todos do Código de Processo Civil [redacção vigente à data da decisão recorrida, anterior à Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho].
Considerando o teor das conclusões apresentadas, importa decidir as seguintes questões:
(I) Da impugnação da matéria de facto;
(II) Da possibilidade da invocação da simulação entre simuladores;
(III) Da verificação do requisito da simulação previsto no artigo 240º do Código Civil – “o intuito de enganar terceiros”; e
(IV) Das consequências do negócio simulado, nomeadamente para o recorrente.
*
III – Fundamentação
A) - Os Factos
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:

1- Por escritura pública de 22 de Julho de 1999, outorgada no Cartório Notarial de …, a fls. 55 v.º e ss. do Livro 20-D, os Réus JR... e BS...declararam (para além do mais) vender à Autora e ao Réu JB... o Prédio Urbano sito …, na freguesia da …, concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de …, sob o n.º …/061186, da referida freguesia, inscrita na matriz sob o artigo … (Al. A) da matéria de facto assente).
2- A ora autora MR... e o réu JB... declararam aceitar tal venda, conforme documento de fls. 9-18, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (Facto provado por documento).
3- Nessa escritura a Autora e o Réu JB... declararam constituir hipoteca a favor do Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa, SA, sobre o prédio urbano acima referido, para garantia do pagamento de um empréstimo concedido pelo banco àqueles, no valor de Esc. 8.000.000$00 (oito milhões de escudos) (Al. B) da matéria de facto assente).
4- A aquisição da propriedade foi registada a favor da Autora e do Réu JB..., sob a cota G-3 e a hipoteca foi registada a favor do Banco sob a cota C-1 (Al. C) da matéria de facto assente).
5- Os Réus JR... e BS...não quiseram vender o prédio e a Autora e o Réu JB... não o quiseram comprar (Al. D) da matéria de facto assente).
6- A Autora e o Réu JB... contraíram matrimónio em 21 de Dezembro de 1986, sem convenção antenupcial (Al. E) da matéria de facto assente).
7- O casamento foi dissolvido por divórcio, decretado por sentença transitada em julgado em 6-10-2006, proferida nos autos de divórcio que correram pelo 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre com o nº410/03.1TBPTG (Al. F) da matéria de facto assente).
8- A sentença que decretou o divórcio declarou o Réu JB... único culpado (Al. G) da matéria de facto assente).
9- A Autora é filha dos Réus JR... e BS...(Al. H) da matéria de facto assente).
10- Já casados, a Autora e o Réu JB... quiseram montar uma vida económica própria, através da exploração de um transporte de táxi. Para tanto negociaram com o respectivo proprietário, Sr. JÁ…, a compra de um táxi e aquisição do correspondente alvará e, para o explorar, constituíram a Sociedade Comercial “T…, Ldª” (Al. I) da matéria de facto assente).
11- O preço acordado com o vendedor foi de 10.000.000$00; mas não tinham essa quantia, nem bens que pudessem dar de garantia a um banco que lha emprestasse (Al. J) da matéria de facto assente).
12- A Autora e o Réu JB... e os Réus JR... e BS…, acordaram em não estipular, entre si, nenhum preço para a compra e venda, formalizada na escritura referida em 1) (Al. K) da matéria de facto assente).
13- Apesar de na escritura se dizer que foi pago o preço declarado, a Autora e seu ex-marido, o Réu JB..., nada pagaram e os Réus JR... e BS...nunca se consideraram com direito a ele (Al. L) da matéria de facto assente).
14- Na escritura referida em 1), o Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa, S.A., ainda declarou emprestar à Autora e Réu JB... a quantia de Esc. 8.000.000$00, quantia da qual, estes se confessaram, desde logo, devedores (Al. M) da matéria de facto assente).
15- E a qual foi por eles recebida (Al. N) da matéria de facto assente).
16- A Autora e o Réu JB... tiveram, antes ainda de concluído o processo de financiamento bancário, de confirmar o negócio de compra e venda do veículo automóvel de táxi e do respectivo alvará e de pagar o preço (Al. O) da matéria de facto assente).
17- Em 1 de Julho de 1999, a Autora e seu então marido confirmaram-no com o Sr. José Fé Alegria, através do contrato-promessa de compra e venda constante de fls.36 e 37 e aqui se dá como reproduzido, para todos os efeitos legais (Al. P) da matéria de facto assente).
18- Nesse contrato, o preço convencionado foi de 10.000.000$00 (dez milhões de escudos), a pagar, parte, no montante de 8.000.000$00 (oito milhões de escudos), a título de sinal, na referida data, e o restante, 2.000.000$00 (dois milhões de escudos) na data da conclusão do negócio (Al. Q) da matéria de facto assente).
19- Como a Autora e o Réu JB... ainda não tinham dinheiro, por ainda não terem obtido o financiamento, os Réus JR... e BS…, para os ajudar, adiantaram-lhes, provisoriamente, de conta sua, a quantia de 8.000.000$00 (oito milhões de escudos), necessária para o pagamento do sinal (Al. R) da matéria de facto assente).
20- Concluído o processo de financiamento com o banco e, celebrada a escritura de compra e venda e de mutuo com hipoteca, o Banco colocou à disposição deles 8.000.000$00 (Al. S) da matéria de facto assente).
21- Com esse dinheiro, a Autora e o Réu JB... pagaram a segunda prestação ao vendedor do táxi e do alvará, no montante de 2.000.000$00, e o restante, 6.000.000$00, transferiram-no para a conta dos Réus JR... e BS...para pagamento do adiantamento que estes lhes tinham feito, aquando da celebração do contrato-promessa de compra e venda (Al. T) da matéria de facto assente).
22- Ao proceder a tal transferência não quiseram a Autora e o Réu JB..., proceder ao pagamento parcial do preço da escritura referida em 1) (Al. U) da matéria de facto assente).
23- Mais tarde a Autora e seu marido concluíram o reembolso da parte em falta – 2.000.000$00 – com dinheiro que receberam do Centro de Emprego (Al. V) da matéria de facto assente).
24- Os Réus JR... e BS...não teriam celebrado a escritura referida em 1), caso imaginassem que a Autora e o Réu JB... se iriam divorciar e que este último queria participar na partilha do imóvel objecto da referida escritura (Al. W) da matéria de facto assente).
25- Quando foi celebrada a escritura referida em 1), os Réus JR... e BS, ao invés de querer vender o imóvel aí referido, queriam doá-lo à Autora e ao Réu JB... (Resposta ao quesito 1º).
26- E a Autora e o Réu JB..., queriam recebê-lo em doação (Resposta ao quesito 2º).
27- O acordo referido em 11) foi alcançado entre Autora e o Réu JB... e os Réus JR... e BS…, pois que o que os Réus JR... e BS...quiseram foi doar o prédio referido em A. à Autora (Resposta ao quesito 3º).
28- Com vista a permitir que a Autora e o Réu JB... concretizassem o negócio referido nos pontos 9) e 10) (Resposta ao quesito 4º).
29- A fim de permitir à Autora e ao Réu JB... a possibilidade de utilizar o referido imóvel como garantia junto de uma instituição de crédito (Resposta ao quesito 5º).
30- O Réu JB... só teve intervenção na escritura, como comprador, atento o seu estado de casado (à data referida em 1.) com a Autora (Resposta ao quesito 6º).
31- Na escritura referida em 1) ficou dito que se tratava de compra e venda e ficou indicado um preço, concretamente o preço de 9.000.000$00, porque, se não fosse para financiar uma compra o Banco não emprestava o dinheiro Resposta ao quesito 7º).
32- Os réus JR... e BS...exploravam o prédio denominado “Monte …” (Resposta ao quesito 18º).
33- Após o casamento, a autora e o réu JB... Batista habitaram no prédio denominado “Monte …” (Resposta ao quesito 20º).
34- A autora e o réu JB... passaram a habitar o prédio identificado em 1) em momento temporal não concretamente determinado (Resposta ao quesito 21º).
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B) – O Direito
1. Da impugnação da matéria de facto
1.1. No que se reporta ao recurso sobre a matéria de facto, nos termos do artigo 712.º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa, ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 685º-B, Código de Processo Civil, a decisão com base neles proferida.
De acordo com o n.º 2 do mesmo artigo, no caso a que se refere a segunda parte da alínea a) do número anterior, a Relação reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações do recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
No artigo 685º-B do Código de Processo Civil estabelecem-se, pois, os ónus que impendem sobre o recorrente que impugne a matéria de facto.
Assim, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados (nº 1, alínea a); e - os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da recorrida (nº 1, alínea b).
Acresce que, no caso previsto na alínea b) do n.º 1 deste artigo, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 522.º-C, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição.
Daqui resulta que segundo os citados dispositivos legais, o recorrente tem o ónus de especificar os concretos pontos de facto cuja alteração pretende e de especificar os concretos pontos da gravação dos meios de prova que, em seu entender, imponham decisão no sentido que pretende seja adoptada.

1.2. No caso concreto refere o recorrente nos pontos 11 e 12 das alegações, que:
Deve ser dado como provado o teor do depoimento da testemunha do Banco ou pelo menos atender-se a esse facto.”; “Que depôs: - O Sr. R… – pretendeu ajudar a filha na aquisição do alvará da praça de táxi, tendo sido os funcionários do Banco credor do imóvel, quem lhe sugeriu o negócio simulado em causa.”
Ora, independentemente de saber se o recorrente tinha o ónus de levar às conclusões do recurso a questão da alteração da matéria de facto, como é referido pela recorrida, é manifesto que aquele não cumpriu os ónus impugnatórios exigidos pelo artigo 685º-B do Código de Processo Civil, não indicando qual, ou quais, os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados e que pretende ver alterados com o depoimento da dita testemunha, de que transcreve apenas uma frase, não indicando a passagem da gravação em que se funda, o que implica a imediata rejeição do recurso.
De todo o modo, verificando-se que tal matéria está relacionada com o artigo 8º da base instrutória, no qual se pretendia saber se foi sugerido pelo próprio Banco que na escritura ficasse dito que se tratava de uma compra e venda, e indicado um preço, porque, se não fosse para financiar uma compra o Banco não emprestava o dinheiro (cf. ainda artigo 7º da base instrutória), a que o tribunal respondeu “não provado”, sempre se dirá que não ocorrem razões para divergir do entendimento sufragado na primeira instância, perante o qual foi proferido o depoimento em causa (beneficiando da oralidade e imediação), que fundamentou a resposta negativa a esta matéria por o depoimento da referida testemunha não ter sido convincente, pois, como se referiu: “BC… admitiu que possa ter sido o próprio Banco - BES – a sugerir a realização da escritura de compra e venda, tendo em vista a possibilidade do imóvel vir a ser dado em garantia por conta do empréstimo que foi concedido à autora e ao então seu marido, JB... , mas na ausência de qualquer outro meio de prova susceptível de reforçar aquele depoimento, que de per si é notoriamente frágil, resultou como não provado o quesito 8°.

2. Da invocação da simulação entre simuladores
Não subsistem dúvidas que nos presentes autos a autora invoca a existência de negócio simulado em que além dela foram intervenientes os réus.
Porém, alega o recorrente não ser possível a invocação da simulação entre os próprios simuladores.
A este respeito, estipula-se no artigo 242º do Código Civil, sob a epigrafe “Legitimidade para arguir a simulação) que: “Sem prejuízo do disposto no artigo 286º, a nulidade do negócio simulado pode ser arguida pelos próprios simuladores entre si, ainda que a simulação seja fraudulenta” (n.º 1).
Ou seja, a arguição da simulação entre os simuladores está expressamente prevista na lei, pelo que é manifesto que não assiste razão ao recorrente.

3. Da verificação do requisito da simulação previsto no artigo 240º do Código Civil – “o intuito de enganar terceiros”.
3.1. No n.º 1 do artigo 240º do Código Civil define-se o negócio simulado como aquele em que, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, há divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante.
Desta noção tem a doutrina defendido a necessidade da verificação simultânea de três requisitos para que haja um negócio simulado:
(i) A intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração;
(ii) O acordo simulatório (pactum simulationis), e
(iii) O intuito de enganar terceiros (que se não deve confundir com o intuito de prejudicar).
Como explicita Menezes Cordeiro aos requisitos acabados de mencionar, “o acordo entre as partes é importante para prevenir a confusão com o erro ou a reserva mental; a divergência entre a vontade e a declaração surge como dado existencial da simulação; o intuito de enganar terceiros – a não confundir com o intuito de os prejudicar – prende-se com a actuação (logo: voluntária) de criar uma aparência” (Tratado de Direito Civil Português, I, Parte geral, 2ª Edição, 2000, pág. 631).
A simulação pode revestir várias modalidades, distinguindo-se, habitualmente, a simulação absoluta da simulação relativa e a simulação inocente da simulação fraudulenta.
“A simulação é inocente se houve o mero intuito de enganar terceiros, sem os prejudicar (“animus decipiendi”) e é fraudulenta, se houve o intuito de prejudicar terceiros ilicitamente ou de contornar qualquer norma da lei (“animus nocendi”)”
A simulação é absoluta quando “ (…) as partes fingem celebrar um negócio jurídico e na realidade não querem nenhum negócio jurídico (…)”; é relativa quando “ (…) as partes fingem celebrar um determinado negócio e, na realidade, querem um outro negócio jurídico de tipo ou conteúdo diverso. (…) Por detrás do negócio simulado ou aparente há um negócio dissimulado ou real ou latente ou oculto” [cf. Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª Edição, Coimbra Editora, 1985, pág. 472 e 473].

3.2. No caso, dos autos, concluiu-se que, face à matéria de facto provada ocorria a verificação simultânea dos três requisitos para que haja um negócio simulado.
Efectivamente, como se escreveu na sentença:
“A autora MR... é filha dos réus JR... e BS..., e foi casada com o réu JB....
Na pendência do casamento destes dois últimos, e por escritura outorgada no Cartório Notarial de …, os réus JR... e BS...declararam vender-lhes, pelo preço de Esc. 9.000.000$00 (nove milhões de escudos), o prédio urbano sito na Rua …, na freguesia ..., concelho ....
MR… e JB... declararam aceitar a sobredita venda e registaram a seu favor o dito prédio, na competente Conservatória do Registo Predial.
Pese embora o teor das referidas declarações, emerge da prova produzida em audiência de julgamento que os réus JR... e BS... não quiseram vender aquele prédio à sua filha e ao réu JB..., então seu marido, e que estes dois últimos jamais quiseram comprá-lo, não tendo, por isso, pago aos alegados vendedores o preço que deixaram estipulado na escritura pública, valor a que aqueles nunca se consideraram com direito.
Provou-se, outrossim, que uns e outros acordaram na realização da dita venda, para que a autora e o réu JB..., na qualidade de proprietários do dito imóvel, pudessem dá-lo em garantia, visando a concessão dum empréstimo bancário que necessitavam para montarem vida económica própria, através da exploração de um transporte de táxi, empréstimo que lhes foi concedido pelo Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa, mediante declaração emitida na mesma escritura pública intitulada “Compra e Venda e Mútuo com Hipoteca”, sendo que, e também como ficou demonstrado, o Banco só concedia o referido empréstimo à autora e ao réu JB... para financiar uma compra, razão pela qual ficou dito na dita escritura pública que se tratava de compra e venda de imóvel e foi indicado o preço da venda”
Deste modo, concluiu-se na sentença que: “… não foi celebrado qualquer contrato de compra e venda entre MR... e JB... e JR... e BS..., estando verificados todos os pressupostos da simulação acima apontados.
Efectivamente, não existe correspondência entre a vontade real e a vontade declarada de qualquer um dos contraentes, não ocorreu o pagamento do preço (elemento essencial do contrato de compra e venda), revelando ainda os autos a existência dum conluio entre os contraentes com o objectivo de criar uma determinada aparência – a existência duma venda – de molde a conseguir de terceiro uma prestação – neste caso um empréstimo bancário com hipoteca sobre o bem objecto da alegada venda - ainda que, e de acordo com os elementos disponíveis nos autos, sem qualquer intuito de o prejudicar. Efectivamente, e conforme decisão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Outubro de 2003 [Vide CJ STJ, Ano XI, Tomo III, pág. 96], “ (…) o intuito de enganar terceiros identifica-se com a intenção de criar uma aparência: intenção essa, adita-se, necessariamente revelada pela divergência entre a vontade real e a declarada e pelo acordo que tal determina.
Concertadamente criada aparência não conforme com a realidade, tanto basta para que tenha de julgar-se outrossim revelado ou manifestado – tornado, mesmo, sem margem para tergiversação, evidente – o intuito ou propósito de enganar terceiros”.
Resulta do exposto estarem verificados, in casu, todos os pressupostos da simulação, na modalidade de simulação inocente”.

3.3. Ora, o recorrente apenas põe em causa a verificação deste último requisito - o intuito de enganar terceiros, referindo que “quer compradores do prédio, quer vendedores, quer o banco não foram enganados”.
Mas não lhe assiste razão.
Como se disse na sentença, o intuito de enganar terceiros identifica-se com a intenção de criar uma aparência: intenção essa revelada pela divergência entre a vontade real e a declarada e pelo acordo que tal determina e, no caso, houve o conluio entre os contraentes com o objectivo de criarem uma determinada aparência – a existência duma compra e venda – para conseguirem de terceiro (o Banco) uma prestação, neste caso um empréstimo hipotecário sobre o bem objecto do alegado negócio, e não se provou que o Banco tivesse conhecimento do negócio simulado.

4. Das consequências do negócio simulado, nomeadamente para o recorrente.
4.1. Invoca ainda o recorrente que a procedência da acção impõe um enriquecimento da recorrida que fica com o prédio, ficando o encargo solidário de o pagar ao recorrente, quando todos os agentes contratuais lhe asseguraram a compra do bem e o encargo de o pagar, e que se lhe está a impor a responsabilidade solidária do pagamento de bem alheiro caso ocorra a procedência da acção.

4.2. Entendeu-se na decisão recorrida que, no caso dos autos, por detrás da venda simulada é bem visível, a real vontade dos contraentes, qual seja a de outorgarem um contrato de doação, pois, os contraentes fingiram uma venda quando, na realidade, queriam uma doação, donde decorre a efectiva verificação duma simulação inocente e relativa, na vertente objectiva (simulação sobre a natureza do negócio).
Tratando-se duma simulação relativa, admite-se, pois, nos exactos termos consagrados no citado art. 241º, a validade do negócio dissimulado: “Quando sob o negócio simulado exista um outro que as partes quiseram realizar, é aplicável a este o regime que lhe corresponderia se fosse concluído sem dissimulação, não sendo a sua validade prejudicada pela nulidade do negócio simulado” (n.º 1); “Se, porém, o negócio dissimulado for de natureza formal, só é válido se tiver sido observada a forma exigida por lei”.
Sendo que no caso, a validade do negócio está assegurada por ter sido cumprida a forma legal – por ter sido celebrado por escritura pública (cf. artigo 947º, n.º 1 do Código Civil).
A sentença recorrida dá-nos conta em detalhe das teses doutrinais e jurisprudenciais em confronto no que toca à validade da doação em caso de nulidade do negócio simulado de compra e venda, concluindo que se afigura como mais justa a solução preconizada pela doutrina e jurisprudência que considera válida a doação dissimulada por compra e venda. Neste sentido, vide, Oliveira Ascensão, “Direito Civil – Teoria Geral”, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª Edição, pág. 228, Rodrigues Bastos, “Notas ao C. Civ., I, 1987, pág. 318. Contra, Carlos Mota Pinto, ob. cit., pág. 479-480.
E, deu como assente, que no caso dos autos, os pais da autora quiseram inquestionavelmente doar-lhe, a si, e ao então seu marido JB..., o imóvel já identificado, tendo estes aceite tal doação. A estipulação do preço na escritura pública de compra e venda constituía um elemento essencial deste tipo de contrato (sem preço não há compra e venda) e, por isso, o mesmo tinha de ser expressamente mencionado para que o negócio aparente pudesse ser formalizado. No entanto, todos os contraentes quiseram celebrar um negócio gratuito, que está titulado por escritura pública, devendo, pois, ter-se como válido, por esta situação ser a mais compatível com critérios de razoabilidade e de efectiva justiça.
Deste modo, concluiu-se, que o contrato aparente de compra e venda é nulo, porque simulado e que o negócio dissimulado – a doação - é válida, atento o disposto nos nºs 1 e 2 do art. 241º do Código Civil.
Concordamos com tal entendimento, que, aliás o recorrente não questiona no recurso, embora na contestação tivesse invocado a existência de um negócio dissimulado diferente, que não provou.

4.3. A discordância do recorrente assenta, essencialmente, no facto de se ter entendido que na sequência do divórcio em que ele foi considerado principal culpado, face ao disposto no n.º 1 do artigo 1791º do Código Civil, então em vigor, havia que decretar a perda do benefício que a sobredita doação representava para o recorrente.
E, na verdade assim é, pois estando demonstrado nos autos que o casamento da autora e do réu recorrente, celebrado em 21 de Dezembro de 1986, sem convenção antenupcial, foi dissolvido por divórcio, decretado por sentença transitada em julgado em 6 de Outubro de 2006, que declarou o réu JB... único culpado, que a autora é filha dos réus JR... e BS...e que estes não teriam celebrado a escritura pública de que se vem tratando, caso imaginassem que a autora e o réu JB... se iriam divorciar e que este último queria participar na partilha do imóvel objecto da referida escritura, sendo que o réu JB... só teve intervenção na escritura, como comprador, atento o então seu estado de casado com a autora, dúvidas não existem que a doação – acto que consubstancia inequivocamente um benefício para o destinatário (donatário) - dos pais da autora ao beneficiário, ora réu, foi feita em consideração do seu estado de casado com a autora, filha dos doadores.
À data do divórcio (6/10/2006) vigorava a norma do n.º 1 do artigo 1791º do CC, na redacção do Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro, que estipulava que: “O cônjuge declarado único ou principal culpado perde todos os benefícios recebidos ou que haja de receber do outro cônjuge ou de terceiro, em vista do casamento ou em consideração do estado de casado, quer a estipulação seja anterior quer posterior à celebração do casamento”.
Porém, à data da entrada da acção em juízo, a referida norma tinha a redacção introduzida pela Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro, prevendo que,“Cada cônjuge perde todos os benefícios recebidos ou que haja de receber do outro cônjuge ou de terceiro, em vista do casamento ou em consideração do estado de casado, quer a estipulação seja anterior quer posterior à celebração do casamento”.
Assim, quer à luz da lei em vigor à data do divórcio, por o réu ter sido declarado único culpado, quer face à lei em vigor à data da entrada da acção em juízo, por efeito do divórcio o réu perdeu os benefícios recebidos em consideração do seu estado de casado com a autora, o que abrange as doações feitas a ambos os cônjuges por familiar de um deles em consideração do estado de casado do beneficiário.
Deste modo, e não tendo o réu logrado provar como lhe competia, face ao disposto no art. 342º, nº 2, do Código Civil, qualquer facto susceptível de extinguir o direito reclamado pela autora, e designadamente, que a doação em causa tenha consubstanciado qualquer dação em pagamento ou uma doação remuneratória (art. 941º), como invocou, mostra-se correcta a decisão recorrida que determinou a perda do benefício que a sobredita doação representava para o réu, ora recorrente.

4.4. Mas, será que a decretada perda do domínio do bem pelo recorrente determina um enriquecimento sem causa para a autora?
É evidente que não, pois tal “enriquecimento” não é desprovido de causa, como resulta do que a cima se disse, está justificado dos factos provados e pela aplicação do regime do n.º 1 do artigo 1791º do Código Civil, então em vigor.
Ao contrário do que alega, o recorrente não está a pagar o imóvel, porque este foi doado, mas sim as prestações do empréstimo contraído por via do negócio simulado.
É verdade que o recorrente vai continuar onerado com o pagamento do empréstimo contraído ao Banco aquando da celebração do negócio simulado, declarado nulo, mas tal situação decorre porque o recorrente também recebeu a quantia dada de empréstimo pelo Banco e dela tirou proveito em seu próprio benefício, pois está provado que o empréstimo não se destinou à aquisição do imóvel, mas à compra pelo recorrente e pela recorrida de um táxi e do seu alvará (cf. pontos 10 a 13, 27, 28 e 29 da fundamentação de facto).

5. Nestes termos e com tais fundamentos, improcede a apelação, com a consequente manutenção da sentença recorrida.
*
IV – Decisão

Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, manter a sentença recorrida.
Custas a cargo do apelante.
*
Évora, 26 de Junho de 2014
(Francisco Xavier)
(Elisabete Valente)
(Cristina Cerdeira)